RAUL SEIXAS: DA LINGUAGEM FILOSÓFICA PARA A LINGUAGEM POPULAR Julio Cezar Ramos - UNIOESTE1 O menino Raulzito e a paixão pela filosofia O bahiano Raul Santos Seixas (28 de junho de 1945 – 21 de agosto de 1945) foi um cantor e compositor brasileiro que tornou-se um dos pioneiros do rock nacional. Desde criança, Rauzito, como era chamado, já demonstrava grande interesse pelos livros, especialmente filosofia e literatura. Por passar várias horas lendo repentinamente durante as noites de sua infância e adolescência, o excesso de leitura acabou lhe causando sérios problemas de visão. Ao que tudo indica, Raul Verellas Seixas, o pai de Raul Seixas, era um amante dos livros, possuindo uma vasta biblioteca em casa. O fascínio pelo mistério das letras fez com que o garoto se tornasse um leitor assíduo dos volumes que encontrava na biblioteca do pai. As histórias que lia ampliavam sua imaginação e, nos cadernos do colégio, inventava estórias para depois vender a Plínio, seu irmão mais novo. O irmãozinho se interessava e comprava os rascunhos de Raulzito com a mesada que ganhava do pai. Plínio passava horas prestando atenção nas estórias de Raul, que o levava a viagens imaginárias pelo universo. O irmão não entendia porque o universo não tinha fim, e Raul, repetidas vezes tentava junto com o irmão inventar um fim para o universo. Os dois irmãos tinham muito em comum, como o amor pela literatura e o pavor pela escola. Certa vez, quando Raul já estava adulto,disse: "Eu era um fracasso na escola. A escola não me dizia nada do que eu queria saber. Tudo o que aprendia era nos livros em casa ou na rua. Repeti cinco vezes a segunda série do ginásio. Nunca aprendi nada na escola. Minto. Aprendi a odiá-la. (BAHIANA, 1975, p. 15) Logo veio o interesse pela música. O pai perguntava se ele estava estudando, mas a mãe Maria Eugênia cortava a conversa dizendo: "Estudou nada, ficou aí ouvindo rock o tempo 1 [email protected] inteiro, essa porcaria desse ‘élvis préji’, de ‘líri ríchi’ e gritando essas maluquices" (BAHIANA, 1975, p. 16). Os pais de Raul estranhavam o rock, que não era muito bem aceito pela geração da época. Aos 15 anos de idade Raul com o amigo Waldir Serrão fundaram o primeiro fã clube de Elvis Presley no Brasil, o Elvis Rock Club. Serrão foi a influência para que Raul começasse a sair de casa e a manter uma vida social mais ampla. O Elvis Rock Club era como uma gangue de vândalos que arrumavam encrencas na rua, faziam arruaça, pichavam paredes, quebravam vidraças e estavam sempre se metendo em confusão. Raul não gostava muito dessas coisas, mas, como era de se esperar, afirmava: "ia na onda, pois o rock (pelo menos a meu ver) tinha toda uma maneira de ser" (BAHIANA, 1975 p. 18). Mesmo demonstrando um gosto muito sincero pela música, seu maior sonho era ser escritor: “Quando eu era guri, lá na Bahia, música para mim era uma coisa secundária. O que me preocupava mesmo eram os problemas da vida e da morte, o problema do homem, de onde vim, para onde vou” (BAHIANA, 1975, p. 13). Música metafísica No primeiro contato com a filosofia, Raul demonstra enorme interesse por questões existenciais, por isso, o fascínio pela metafísica (do grego µετα [metà] = depois de, além de; e Φυσις [physis] = natureza ou física), uma das áreas da filosofia, que trata de problemas centrais da filosofia teórica, procurando descrever os fundamentos, o sentido e a finalidade da realidade como um todo ou dos seres em geral. Estas questões se fazem presente em algumas das composições já para sua primeira banda de Rock na década de 60, que depois de experimentar diversos nomes, ficou oficialmente conhecida como Raulzito e os Panteras. Uma destas canções, e que está entre as preferidas do próprio Raulzito é a música por quê? pra quê?. Nesta música, nos trechos que se seguem é possível perceber alguns elementos da metafísica transcritos de forma popular: Por que o azul é azul Por que o lilaz é lilaz Por que o sim não é sul Por que não, não é mais Por que ... Pra que definir o azul Pra que definir o lilaz Pra que destinguir sim de sul Pra que igualar não e mais Pra que... Será que um dia poderei saber Por que, pra que, pra que, porque Por que, pra que... (SEIXAS, 1967) Esta música já contém em si, no próprio título, a base e o fundamento daquilo que representa a razão da própria filosofia, ou seja, a pergunta. Além disso, como a Filosofia enquanto disciplina tem por objeto a criação de conceitos, a música acaba oferecendo condições agradáveis para o desenvolvimento do conhecimento filosófico, como alargar a consciência crítica, promover o exercício da cidadania, em detrimento da consciência ingênua. Eládio Gilbraz, um dos integrantes dos panteras, certa vez disse: "De um lado havia a inexperiência de quatro rapazes, recém-chegados da Bahia, falando em qualidade musical, agnosticismo, mudança de conceitos e sonhos. Do outro lado, uma multinacional que só falava em "comercial". ( SEIXAS, O Baú do Raul Revirado, p.45) A banda Raulzito e os Panteras não fazia muito sucesso e Raul se sentia cada vez mais aborrecido devido a problemas financeiros, até que a banda se desfez completamente, e como sempre, buscou refúgio nos livros: "Passava o dia inteiro trancado no quarto lendo filosofia, só com uma luz bem fraquinha, o que acabou me estragando a vista [...]". (SEIXAS, O Baú do Raul Revirado, p. 48) Algum tempo depois, na Bahia, Raul conhece um diretor da CBS discos, o qual lhe convida para ser produtor musical e ele aceita. A situação financeira se resolve, mas o afortunado compositor ainda não estava contente, porque o que ele queria mesmo era cantar. Os caminhos se abrem e ele consegue realizar sua pretensão. Compondo e cantando suas próprias composições Raulzito tem a oportunidade de utilizar a música como veículo de transmissão da linguagem filosófica. Então, recebe oficialmente o cognome Raul Seixas. Devido ao regime militar, na época nem todas as músicas eram permitidas, enfrentando graves problemas de censura, principalmente depois da parceria com Paulo Coelho, com o qual fez grandes sucessos com letras marcantes e repletas de conteúdos filosóficos e literários. O trecho abaixo é da música gospel, proibida pela censura: Por que é que o Sol nasceu de novo E não amanheceu? Por que é que tanta honestidade No espaço se perdeu? Por que é que Cristo não desceu lá do céu? E o veneno só tem gosto de mel? Porque é que a água não matou a sede de quem bebeu? (SEIXAS, 1970) Como é típico do estilo de Raul, a música gospel é carregada de questões filosóficas que a sociedade da época não via com bons olhos. É importante ressaltar a atenção para a obra “Metafísica”, de Aristóteles, na qual o autor apresenta a filosofia como a busca pelos princípios e causas primeiras, a dúvida, dessa forma, é um fator fundamental. Princípios de filosofia oriental No ano de 1974, Raul Seixas foi convidado pelo regime militar a se retirar do país. Suas músicas não agradavam a censura e Raul e Paulo Coelho viajaram para os Estados Unidos. Ambos tinham interesse pelos conhecimentos transmitidos pelas diversas culturas do Brasil e do Mundo. Depois da leitura do Bhagavad Gita, o sexto livro do Mahabbarata (Escrituras hindus), como se fosse a Bíblia para os povos do ocidente, em certo momento Raul e Paulo iniciam um diálogo sobre Deus e suas diversas formas de manifestação de acordo com o hinduísmo e terminam a conversa compondo um dos maiores sucessos da parceria entre os dois, a música Gita. A música trata especificamente do diálogo entre o deus Krishna e o príncipe guerreiro Arjuna, que tem seu trono usurpado por seus próprios parentes e se vê isolado e sem forças para lutar. No maior momento de angústia de Arjuna, aparece-lhe uma figura masculina ( Krishna) que inicia um diálogo com ele. O guerreiro percebe muita sabedoria em seu interlocutor e pede para que se revele, ao que ele responde: Pois bem! Eu te descreverei os meus principais atributos, os principais somente, porque sem limites é a minha plenitude, ser algum me pode conhecer totalmente (...) Eu sou a Essência Espiritual que habita no íntimo da alma de cada criatura (...) No céu das divindades, sou o deus supremo; entre os sentidos sou a mente pensante; entre as forças mentais sou a razão consciente (...) entre os sábios sou a sabedoria (...) entre os santos sou a santidade (...) eu sou o princípio, o meio e o fim do universo (...) eu sou a letra A entre as letras do alfabeto, o pensamento dos pensadores, a vida dos videntes, o amor dos amantes, o sustentáculo cósmico de tudo quanto existe (...) (GUITA, 2008, p. 90-91) A revelação do deus Krishna para o príncipe transforma-se em linguagem popular nos trechos da música Gita. É plausível a facilidade dos compositores em fazer em fazer essa transmutação de uma linguagem para outra sem perder a beleza do significado da mensagem. Devido à fidelidade ao livro, essa é uma das raras músicas de Raul e Paulo, que abrem pouco espaço para o debate sobre a interpretação. Este livro é muito anterior à Bíblia, o que o torna um dos livros mais antigos da humanidade. Como ele mesmo diz, de acordo com as escrituras hindus, trata-se da revelação do Todo. De acordo com o hinduísmo, Deus é ilimitado (o Todo), conforme se vê, é indefinível, e possui a dualidade em si. Na íntegra, é fácil de fazer a analogia entre as verdadeiras palavras do livro e os trechos da música Gita: Às vezes você me pergunta Por que é que eu sou tão calado, Não falo de amor quase nada, Nem fico sorrindo ao teu lado. Você pensa em mim toda hora. Me come, me cospe, me deixa. Talvez você não entenda, Mas hoje eu vou lhe mostrar... Eu sou a luz das estrelas; Eu sou a cor do luar; Eu sou as coisas da vida; Eu sou o medo de amar. Eu sou o medo do fraco; A força da imaginação; O blefe do jogador; Eu sou!... Eu fui!... Eu vou!... (SEIXAS, 1974) A filosofia antiga De certa forma, ao música transmite os sentimentos e os valores culturais de outros povos.Mostra que existem diversas concepções de vida e de mundo na qual cabe a leitura fornece a capacidade de explorá-los. Raul se interessava pela filosofia antiga que considerava fundamental. Desde os tempos mais antigos, quando o homem começou a investigar mais aprofundamente os mistérios do universo, percebeu que muito daquilo que acreditavas ser fruto de causas divinas, na hera mitológica, pela racionalidade fez surgir a ciência. Pitágoras, aquele que intitulou-se um amante da sabedoria, dando origem ao conceito etimológico da filosofia, acreditava que o mundo era regido por leis matemáticas. Diferente do que pensavam os físicos naturalistas como Tales, Anaximandro e Anaxímenes, Pitágoras trouxe uma nova interpretação da natureza: Enquanto a escola filosófica de Mileto identificava o arché - a natureza íntima do todo, fundamento e causa de toda coisa – em um elemento físico, e Heráclito acreditava no devir, Pitágoras acreditava que esse fundamento residia no número. (...) No entanto, diferentemente dos modernos, com o termo número ele não identificava um ente abstrato, puro conteúdo da mente, mas um elemento essencial da realidade. ( NICOLA, 2005, p. 22) Para Pitágoras, a ciência dos números pode explicar cada aspecto da realidade, e até mesmo a música, acaba sendo um exemplo de harmonia matemática entre os sons. A harmonia musical rege a ordem do universo. Surpreendentemente, para o filósofo, os astros produzem no seu movimento uma música literalmente perfeita e divina, essencialmente celestial. Se os seres humanos não podem ouvi-la, é devido ao fenômeno psicológico que fez com que um som contínuo torne-se despercebido pela consciência perceptiva. Como era de se esperar, pelo seu jeito irreverente de ser e pelo interesse nas obras filosóficas, em especial aquelas que tratam do universo, Raul produz uma música intitulada “números”, na qual satiriza conceitos filosóficos: Meus amigos essa noite eu tive uma alucinação Sonhei com um bando de número invadindo o meu sertão E de tanta coincidência que eu fiz essa canção -Falar do número um Falar do número um não é preciso muito estudo, Só se casa uma vez e foi um Deus que criou tudo, Uma vida só se vive, só se usa um sobretudo. -Agora o doze E só de pensar no doze eu então quase desisto, São doze meses do ano, doze apóstolos de Cristo, Doze hora é meio-dia, haja dito e haja visto. -Agora o sete Sete dias da semana, sete notas musicais, Sete cores do arco-íris nas regiões divinais, E se pintar tanto sete, eu já não agüento mais. -Dois E no dois o homem luta entre coisas diferente, Bem e mal, amor e guerra, preto e branco, bicho e gente Rico e pobre, claro e escuro, noite e dia, corpo e mente. -Agora o quatro E o quatro é importante, quatro ponto cardeal, Quatro estação do ano, quatro pé tem um animal, Quatro perna tem a mesa, quatro dia o carnaval. - Pra encerrar Eu falei de tanto número, talvez esqueci algum, Mas as coisas que eu disse não são lá muito comum, Quem souber que conte outra, ou que fique sem nenhum (SEIXAS, 1976) Esta música apresenta em si uma maneira alegre de se estudar e refletir sobre a importância da incrível capacidade humana da criação dos números, principalmente trazendo à tona uma recordação da teoria pitagórica. Do mesmo modo que Cristo, Buda e Maomé, Pitágoras nunca escreveu, preferia difundir seus ensinamentos pelo exemplo da vida prática e através de breves sentenças. Considerava o saber como instrumento de purificação religiosa. Ainda, segundo esta filosofia, é amando a sabedoria que podemos nos colocar em sintonia com a harmonia universal. É por isso que, de acordo com os pitagóricos, os números representam a essência universal. Ainda relembrando os filósofos da antiguidade, Heráclito de Éfeso (540 - 480 a.C) é formado de forças opostas, ou seja, o movimento provocado pela luta entre contrários. Isso faz com que o mundo esteja em constante mutação, e, portanto, nada existe de estável na natureza, tudo muda continuamente. Uma reflexão sobre Heráclito pode ser identificada na seguinte canção: Assim como todas as portas são diferentes Aparentemente todos os caminhos são diferentes Mas vão dar todos no mesmo lugar Sim O caminho do fogo é a água Assim como O caminho do barco é o porto O caminho do sangue é o chicote Assim como O caminho de reto é o torto O caminho do risco é o sucesso Assim como O caminho do acaso é a sorte O caminho da dor é o amigo O caminho da vida é a morte (SEIXAS, 1975) Ao mesmo tempo que fornece a ideia de que é necessário que exista antagonismo no mundo, a música “Caminhos” representa em si, um belíssimo poema. Uma poesia que trás em mente a incrível noção de que somos e não somos ao mesmo tempo, indica que existir, significa tornar-se, ou seja, deixar de ser para novamente ser, e assim sucessivamente. Então, fica evidente que, como diz Heráclito: “Não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio” (NÍCOLA, 2005, p.18), pois a lei que regula o mundo é o contraste entre elementos opostos em perene e recíproca alternância: “A mesma coisa são o vivo e o morto, o desperto e o adormecido, o jovem e o velho: estes, de fato, mudando, tornam-se aqueles, e aqueles, mudando, por sua vez, se transformam nestes.” (NÍCOLA, 2005, p.20) Uma das músicas mais polêmicas de Raul, principalmente com relação à instituição da igreja foi “Judas”: Parte de um plano secreto Amigo fiel de Jesus Eu fui escolhido por ele Para pregá-lo na cruz Cristo morreu como um homem Um mártir da salvação Deixando para mim seu amigo O sinal da traição (...) (...) Se eu não tivesse traído Morreria cercado de luz E o mundo hoje então não teria A marca sagrada da cruz E para provar que me amava Pediu outro gesto de amor Pediu que o traísse com um beijo Que minha boca então marcou. Mas é que lá em cima Lá na beira da piscina, Olhando simples mortais Das alturas fazem escrituras E não me perguntam se é pouco ou demais (...) (SEIXAS, COELHO, 1978) Esta canção apresenta uma problemática sobre a questão do destino envolvendo a vida de Judas, o apóstolo que traiu Jesus Cristo. De acordo com a noção de destino implícita na composição de “Judas”, ao cometer o ato da traição, o apóstolo estaria apenas cumprindo o que estaria presente nas Escrituras, e portanto, seria uma vítima da fatalidade que lhe impuseram. BIBLIOGRAFIA ESSINGER, Silvio . O Baú do Raul Revirado (Incluí CD com raridades). Ediouro, RJ 2005. ROHDEN, Humberto.Bhagavad Gita, Martin Claret – SP 2008. SEIXAS, Raul. Por quê pra quê? In: SEIXAS, Raul. Raulzito e os Panteras. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, 1967, 1 CD. Faixa 2. SEIXAS, Raul/COELHO, Paulo. 20 Anos sem Raul Seixas. MZA Music. RJ 2009. SEIXAS, Raul/COELHO, Paulo. Gita. In: Seixas Raul. Gita. Rio de Janeiro: Philips Records, 1974, 1 CD. Faixa 12. SEIXAS, Raul. Caminhos II. In: SEIXAS, Raul. Novo Aeon. Rio de Janeiro: Philips, 1975, 1 CD. Faixa 12. SEIXAS, Raul. Eu sou Egoísta. In: SEIXAS, Raul. Novo Aeon. Rio de Janeiro: Philips, 1975, 1 CD. Faixa 4. SEIXAS, Raul/COELHO, Paulo. Todo mundo explica. In: SEIXAS, Raul. Mata Virgem. Rio de Janeiro: WEA, 1978, 1 CD. Faixa 10. SEIXAS, Raul/COELHO, Paulo. Judas. In: SEIXAS, Raul. Mata Virgem. Rio de Janeiro: WEA, 1978, 1 CD. Faixa 1.