Transferência

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Transferência Hoje –Aspectos Clínicos
Marco Antônio Brant Saldanha
Introdução
Pensar a “transferência hoje” necessariamente supõe que uma mudança vem se dando ao
longo do tempo com o que se vive na e como transferência em nosso trabalho diário.
É a transferência que possibilita a clínica psicanalítica e só nesta ela se instrumentaliza.
Ela representa o elemento vivo da análise, vento que por muitas vezes espalha ao ar as
cinzas da teoria.
Neste trabalho pretendo pensar alguns elementos da transferência na clínica da
contemporaneidade. Entendendo o homem atual regido pelo imperativo de gozo, numa
cultura onde o imaginário impera em detrimento do simbólico, desenvolverei, usando
exemplos clínicos como este homem que nada quer perder abdica de sua subjetividade. A
ciência e em especial as neurociências, portam uma transformação da linguagem e da
relação do sujeito com seu desejo. Enquanto no campo da linguagem o símbolo vem
sendo substituído por cifras, siglas e signos, a necessidade de atendimento imediato das
demandas gera uma relação compulsiva com os objetos, restringindo o campo do desejo.
Transferência
O conceito de transferência, central à teoria psicanalítica, é amplo e abrangente. De
transposição de sentimentos e clichês de condutas e modos do passado à relação com o
analista, passando pela transferência especular e idealizada até suposição do analista num
lugar de saber, a transferência sempre se refere ao campo vincular entre paciente e
analista. Podemos dizer, portanto que a transferência é condição para psicanálise.
Penso que com Strachey1, um ponto culminante foi atingido. A transferência era vista
como elemento central em torno da qual toda análise deveria se dar. Enquanto atualização
do passado apontava para um erro cognitivo do paciente passível de ser corrigido no

Painel para o 44° Congresso Internacional de Psicanálise, julho de 2005, Rio de Janeiro, Brasil.
Psiquiatra, psicanalista, membro efetivo e didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro.
1
Strachey, J. – The Nature of the Therapeutic action of Psycho-Analysis. International Journal of PsychoAnalysis 15 (1934): 129-159.

momento presente da análise. Os Kleinianos levaram esta concepção ao extremo
propondo trabalhar apenas na transferência, buscando estabelecer com seus pacientes
uma relação de tal forma baseada no aqui e agora da sessão que o que se desenvolvia não
mais seria uma neurose de transferência, mas sim uma psicose de transferência.
A antiga idéia de Alexander de experiência emocional corretiva parece estar na base das
teorias da transferência que vieram à tona com a psicologia do self, onde a transferência
especular e as expectativas diante de uma imago parental idealizada ofereciam um lugar
para a transferência não apenas centrado no conceito de uma repetição inadequada do
passado. Abria-se a porta para pensar que o que busca se repetir seria uma necessidade de
desenvolvimento de um self que não teria sido atendida, ou reconhecida.
O
espelhamento de um self em desenvolvimento ou o oferecimento de um suporte para os
ideais em formação do sujeito recebiam especial atenção, notadamente no tratamento
daqueles pacientes com acentuados traços narcísicos.
Sejam repetições de um passado do qual devemos nos libertar, sejam preenchimentos de
faltas que precisam ser supridas, mesmo que através da simbolização, para que
continuemos a caminhar, o conceito de transferência propunha uma historicidade e uma
temporalidade que por si só organizavam o sujeito. Em ambos os casos a liberação tanto
das amarras do passado como de suas carências propunha, seja isto o que for, ao sujeito
viver em seu tempo. Então vamos ao nosso tempo.
Transferência Hoje
O que mudou no campo transferencial? Fosse a transferência uma invariável, um
conceito teórico como Verleugnung, Verwerfung, etc, pouco sentido faria perguntar
sobre estes hoje. Podemos no máximo pensar em sua prevalência, por exemplo: em nossa
sociedade atual a renegação da castração tornou-se comum, sendo o comportamento
perverso quase uma regra, enquanto, com a indefinição dos parâmetros e limites
norteadores, as inibições neuróticas, fundadas em um recalque da sexualidade se
apresentam menos freqüentes.
A transferência, por sua vez, transforma-se de acordo com a memória social referida à
psicanálise e ao psicanalista, muda com a cultura e, também imprime ao analista uma
2
nova forma de trabalhar. Para pensar a transferência hoje, acredito ser preciso
inicialmente refletir sobre a função do analista na sociedade contemporânea.
O Analista hoje e o sujeito contemporâneo.
Poucos estudos são tão reveladores sobre nosso próprio trabalho como este - falar sobre a
clínica da transferência.
Será, portanto à clínica que recorrerei para prosseguir neste caminho. No entanto, a fim
de atender à reflexão histórica implícita ao título, procurarei inserir comentários a
respeito de mudanças que percebi delinearem-se ao longo do tempo.
A morte do papa João Paulo II nos fez testemunhar o maior dos fenômenos de
transferência em massa jamais visto. Cabe perguntar o sentido deste consenso mundial
em lamentar a morte de um homem. O que estaria sendo velado e que luto sendo
significado, neste momento? Pensei ao acompanhar dia a dia a mídia não haver outro
homem, estadista ou não neste momento da história capaz de causar esta reação de
reverência e reconhecimento. Era ela referida à morte de um homem, ou ao fim de uma
era, à morte de um homem, do humano, ou ainda das ilusões que tanto acalentamos e que
morrem com seu último representante? Com sua morte um luto e um resgate simbólico
são vividos pela humanidade.
Segundo Melman2 a contemporaneidade é marcada por mutação cultural onde há o
“apagamento do lugar de esconderijo próprio a abrigar o sagrado, quer dizer, daquilo pelo
que se sustentam tanto o sexo como a morte”.
Sabemos com Freud que a dimensão da perda é o que funda nossa subjetividade. É a
perda do objeto que nos introduz no mundo das representações, alicerce do nosso desejo
e nossas identificações.
Nada querendo saber de perdas, o sujeito contemporâneo desconsidera a necessidade de
um outro que se faça interlocutor para simbolizar sua falta, dando-lhe positividade
através da palavra. O inconsciente passa a ser tratado como um pressuposto fadado à
obsolescência, e, portanto um saber que permita acesso a ele parece o mesmo que
desenhar um mapa para o universo pré-coperniciano, onde a terra seria o centro do
universo.
Melman, C. – O Homem sem Gravidade – Gozar a qualquer preço. – Editora Campo Matêmico, Rio de
Janeiro, 2003, pág. 20.
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Tanto a relação dos analistas com seu saber como a demanda dos pacientes que procuram
analistas, mudaram. O analista não se encontra mais no lugar do sujeito-suposto-saber.
Este não lhe é mais atribuído a priori e precisa ser construído. Em um mundo povoado de
sentidos a partir da difusão da psicanálise, o paciente já vem sabendo de si, ou
simplesmente nada quer saber de si, o que busca é de outra ordem. A interioridade está
esvaziada na medida em que tudo já foi exteriorizado, tudo agora pode ser buscado fora,
num exterior que está ao alcance do consumo. O ideais são reduzidos a metas ao alcance.
Não havendo além, fora do alcance, utopia, ek-sistência, este lugar Outro onde o sujeito
se constitui e que delimita nossa condição humana, o sujeito contemporâneo não cessa de
buscar suas bordas.
Com o fim da interlocução ao representante simbólico do Outro, o lugar do indivíduo, ou
melhor, do sujeito e de sua singularidade está apagado. A massa , como o nome diz,
extingue as diferenças formando um todo mole, e informe. Tudo se passa e se extingue
em um presente sem preocupação com as conseqüências futuras, sem reflexão, não
havendo, depois, além; muda a temporalidade. O imediato do gozo, representante da
pulsão de morte domina. É como já estar no mais-além, no gozo de morte, de forma que o
existir se assemelha mais ao constante passar ao ato compulsivo, desprovido de sentido,
do que à ação refletida.
O fim desse campo reflexivo traz uma transformação na linguagem. Ela vai sendo
cifrada, torna-se sígnica. Signos propõem uma relação direta e plena, que exclui a idéia
de relação parte-todo.
Sendo assim, todos os gozos são supostos plenos. Não há mais pulsões parciais ou préprazer que conduza a um prazer maior. O corpo do sujeito contemporâneo não é
fragmentado, tampouco desintegrado, ele é des-integrado, desconstruído e desmembrado.
A linguagem sígnica endereça diretamente à Coisa, busca a plenitude, e dispensa o
pensamento.
Por sua vez, o significante, próprio da linguagem simbólica, remete a outro significante e
produz o pensar. O fato de a linguagem ser incapaz de tudo dizer, ser furada, é fruto desta
perda fundamental do objeto primário, a Mãe, e é isto que nos põe a pensar. Já a
linguagem sígnica tenta ocultar a falta do objeto. O signo propõe a certeza, apaga o
sujeito da dúvida, necessário para a reflexão.
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A sociedade regida pelo gozo tenta camuflar a castração, na medida em que busca trocar
a palavra pela cifra que propõe certeza. O sujeito não mais dividido, não vacila na dúvida
que o leva ao pensar. O signo remete diretamente à coisa, e nela se esgota. A única
angústia que resta apresenta-se quando se chega à beira da morte. Diversos casos clínicos
nos confirmam isto.
A psiquiatria, através da neurociência busca avidamente tornar desnecessário interrogar
o sujeito sobre seu sintoma. Naquilo que mais me parece expressão de uma fadiga de
pensar, não suportando como Heidegger3 suportava, o que nos chama a pensar, o projeto
da neurociência busca transformar o olhar sobre o homem de tal forma que no fim não
mais o chamaremos de sujeito. Este novo indivíduo tem ou não sintomas, mas estes, no
limite, de nada dependem de sua subjetividade, e são cifrados (DDA, TOC, etc.). Com
todos os caminhos trilhados e desvendados é só questão de encontrar seu diagnóstico
correto, sua sigla, e a bula, ou ‘design drug’adequada para seu sofrimento. Não perca
tempo pensando mais em seu problemas e angústias, algum neurocientista está buscando
a anestesia exata para que você possa gozar de seu sintoma sem dor! Não há mais lugar
para um sujeito que se interrogue quanto a sua responsabilidade, ou quanto ao significado
e conseqüência de seus atos. O inconsciente ou não existe ou não vale a pena interrogálo, a solução deve ser fácil, acessível, pragmática e direta.
Venho observando na minha clínica um aumento da prevalência das vezes que me vejo
lembrando a meus clientes que atos geram conseqüências. Restabelecer uma
temporalidade, que promova o pensar reflexivo e simbólico parece imperioso no sentido
de qualquer idéia de preservação, inclusive da vida.
Encontro elementos que me levam a crer4, juntamente com muitos outros, de que
vivemos em uma cultura onde a perversão e psicose tornaram-se regra.
Qual o lugar do analista diante disto tudo?
Tenho recebido pacientes idosos que buscam incessantemente o signo da morte sob a
forma de sintomas imaginários. Um médico que não cessa de se examinar a quem tento
alertar que pode não gostar quando encontrar alguma coisa. Investir na vida, na família
que possui e que lhe quer bem fica obstruído pela fascinação que a possibilidade de
Heidegger, M. – What is called Thinking? - Harper & Row Publishers, Inc. New York, 1968
Saldanha, M A B. – Novas Formas do Sofrimento Psíquico. Congresso Brasileiro de Psicanálise, São
Paulo, 2003.
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5
encontrar o signo da morte um passo antes de seu ato lhe causa. Vivendo para pré-venir, a
morte, ele a realiza já que sua vida já é morta, a morte é vinda em vida.
Outros pacientes chegam por estarem diante do abismo, estiveram mais de uma vez no
limite da overdose, seja de drogas, violência, loucura, trabalho etc. Outros, felizmente,
nos procuram um pouco antes disto.
O Fausto da ciência:
43 anos, empresário, bem sucedido, queixa-se de insônia, nada mais. Seu clínico sugeriulhe análise. Sem queixas subjetivas, casado em casamento feliz, dois filhos, faz esportes,
e não tem tempo a perder. Vive angustiado com temores sobre sua segurança e de sua
família. No Brasil esta é uma preocupação realista, no entanto tendo-lhe sugerido que
havia um exagero paranóide, em suas preocupações ele responde: “only the paranoids
survive”,
enuncia um dos hinos do sujeito contemporâneo. Sugiro que comecemos
trabalhando com três sessões semanais. Depois de um mês ele já pressionava para
diminuirmos o número de sessões. O tempo o angustia. Tendo insistido em mantermos o
número de sessões recebo no fim do mês um envelope com meu pagamento e um gentil
bilhete dizendo que vai ter que interromper o tratamento por um tempo.
Mudou o nosso manejo do tempo. Nosso paciente não tem tempo a perder e tampouco
nós. Esta é a temporalidade de uma sociedade regida pelo signo, não aceita perdas. Tenho
o sentimento de que muitos de nossos pacientes hoje precisam a cada sessão levar para
casa algo que justifique terem usado seu tempo e dinheiro para vir ao consultório. Estes
pacientes não encaram análise como um processo, mas nem por isto deixam de ser
pacientes para análise. Se isto pode ser considerado uma forma de resistência, entrar em
confronto direto com ela em geral leva à ruptura do laço terapêutico. Devido ao fato da
palavra ativo, ter em psicanálise conotações muito carregadas, nem sempre de boas
lembranças, como Freud observou a Ferenczi, prefiro dizer que o analista hoje precisa ser
ágil.
Bem, o paciente acima poderia também ter ido embora por, rapidamente, como é o seu
estilo, ter me definido como mais um imbecil com quem não vale a pena perder tempo.
Mas, seis meses depois ele volta. Desde então estamos trabalhando uma vez por semana.
Já se passam 18 meses. É dele o segundo exemplo que me vem sobre a transferência.
Prova de que em uma sessão por semana ela pode muito bem se estabelecer.
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Candidamente este senhor por diversas vezes diz: “Não consigo mais fazer tal coisa sem
pensar em você”. De alguma forma me instalei em sua vida como um interlocutor um
Outro, por quem, , passam seus pensamentos.
Exemplo:
Ele encontra um artigo, a seu ver interessante sobre tratamento relâmpago de viciados em
heroína e o remete a mim, por e-mail. O artigo é longo e às vezes maçante, porém leio-o
com atenção tentando entender qual mensagem transferencial nele estava contida.
Na sua sessão seguinte faço referencia a sua busca de curas rápidas e milagrosas, a seu
aspecto junkie que tem medo que o domine, mas o ponto que enfatizo é: porque alguém
que diz não ter um segundo a perder leu tal artigo, que nada tem a ver com sua profissão
e interesse pessoal, até o fim. Responde: Gosto de saber de tudo, pois em algum
momento, posso encontrar algo que pode me ser útil. Querer tudo saber é a forma
paranóide de estar sempre apto a se defender, a comprar a imortalidade logo que ela sair
no mercado. À isto chamo Fausto da ciência.
Poucas sessões depois, me informa que andava dormindo melhor: “Agora sempre que
estou lendo alguma coisa diferente lembro de você me perguntando, porque estou lendo
isto.”
O analista nomeia o limite, a impossibilidade de tudo saber, e em um mundo de excessos
e de fronteiras elásticas, oferece contrapontos reflexivos, alternativos para cessar a
repetição compulsiva.
Uma queixa que tenho notado com freqüência entre meus pacientes é o cansaço. A
palavra do analista muitas vezes pode oferecer repouso no tempo para pensar, já que
propõe uma pausa à esgotante compulsão ao gozo.
À interpretação não cabe explicar nada para o paciente, lhe basta colocar em andamento o
processo reflexivo.É na medida que ela assim o faz que a transferência se dá. Penso que a
transferência hoje é, mais do que nunca, sustentada pela interpretação. Ela é a constante
avalista de que o analista está no lugar, no vértice, que o capacita a dizer aquilo que diz.
Parafraseando Winnicott: se é pela interpretação que o paciente tem noção do grau de
entendimento que o analista tem dele, será através dela que a transferência se estabelecerá
e muitas vezes é à ela - interpretação- que a transferência se dirige.
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Na medida em que o lugar de representante simbólico de um saber sobre o inconsciente
está perdido este lugar precisa ser tecido a cada palavra e sustentado pelo fio do discurso
do analista, que é a sua maneira de interpretar e falar com seu paciente. O estilo e a
pessoa do analista são relevantes aqui.
A Demanda de tratamento
Dos pacientes que atendo hoje, poucos chegaram ao consultório com uma demanda de
análise. Eles chegam buscando ajuda, trazendo um sofrimento e uma dor que cabe fazer
passar pela palavra.
No exemplo a seguir perceberemos o predomínio do campo da imagem sobre o conteúdo
simbólico. O valor de um nome de marca que dava acesso à mídia prevalece sobre o
valor pessoal do sujeito.
O homem que perdeu seu nome de domínio
Um paciente chega queixando-se que dorme demais e que padece de um sintoma com
horários. Atrasa-se sempre e isto vem lhe causando problemas profissionais. Relata-me
sua história: Empresário de Internet vende sua participação para seus sócios e amigos
para tentar outra aventura empresarial. Depois de algum tempo volta a trabalhar, agora
como empregado, com seus antigos sócios, já em outro empreendimento. “Como somos
amigos tenho muita liberdade, chego para trabalhar a hora que quero. Com isto tenho
trabalhado poucas horas, meu salário está baixo” Fala-me do fim de um namoro, e das
dificuldades que tem no relacionamento com sua mãe. Ainda mora com os pais embora
tenha 27 anos, e sabe que está na hora de ter a própria vida. Por fim revela-me que sofre
de psoríase e que com isto vive a esconder-se. Parte do tratamento seria pegar sol, mas
por vergonha, não vai à praia e não toma sol. Diz que está deprimido e que se tiver algum
remédio que possa ajudá-lo seria o seu caminho predileto por ser mais fácil.
Isto é uma entrevista e nas suas palavras entrevejo que se trata de um jovem de 27 anos
que realmente está deprimido, e que se trata claramente de uma personalidade narcísica,
que deve ter perdido a namorada em conseqüência disto, penso que possivelmente vive
conflito com sua mãe porque o pai é fraco e a mãe começa tardiamente a tentar lhe
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colocar algum limite, e que fala claramente da sua dificuldade e necessidade de se expor
a fim de poder tratar-se.
A partir destas “intuições” entrevistas na entrevista inicial, digo-lhe que não excluo que
uma medicação poderia lhe fazer sentir melhor, mas que algumas coisas me chamam
atenção: A primeira é que há um sentimento de perda em relação à venda de sua parte do
negócio para seus ex-sócios, - concorda. A segunda é que agora ele vive uma situação em
que recebe na medida do que dá, (a lei mudou) e que me parece que isto está lhe
incomodando, ou, segundo ele mesmo diz: é pouco; e a terceira é que a psoríase pode ser
entendida como uma metáfora de que precisa se expor para tratar-se. Ele assente com a
cabeça e aceita a indicação para tentar um tratamento psicoterápico por pelo menos seis
meses antes de buscar medicação.
Porque trago uma entrevista. Pois aí se estabelece a demanda de tratamento. É a palavra
de analista que produz uma questão e um desejo de saber dando forma à transferência em
alguém que não sabe o que buscar. Aquele que precisa sustentar sua transferência com a
psicanálise é o próprio analista, daí produzindo demanda de análise no outro
contemporâneo.
Conclusão
Na sociedade do espetáculo, o mundo é regido pela imagem. Estamos de volta à caverna
de Platão, só que não mais podemos acreditar nas imagens que vemos diante de nós, elas
não refletem verdades. O mundo das essências foi derrubado, digitalizado, reproduzido
em massa até a banalidade. O marketing manipula informações, avanços da ciência e da
neurociência são anunciados com estardalhaço, e vendem-se trilhões de dólares de
promessas vãs. Não tendo mais em que acreditar o sujeito busca um outro como
interlocutor para dar sustento ao seu sentimento de existência, mas o lugar do analista
enquanto este outro está sempre ameaçado, podendo a qualquer momento ser substituído
em sua função por outro que se adapte mais ao discurso que o paciente “deseja” ouvir.
Drogas de design, analistas de design, couching, a transferência não mais se apresenta de
um sujeito ao outro, mas nos vem fragmentada, sob a forma de uma necessidade
particular que o paciente quer “trabalhar” um ponto de sua vida familiar ou profissional
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que ele precisar “ver melhor”, e raramente nos aparecem sujeitos que pretendem se
interrogar “conhecer a si mesmos”, como recomendava o oráculo.
O analista precisa estar atento ao que se passa na cultura, e ao desamparo deste sujeito
contemporâneo que perdeu se apoio e seu centro de gravidade.
Será mais do lugar de semelhante e sujeito às mesmas leis e dramas que afetam o sujeito
que o procura que o analista deverá falar. O analista ocupa um lugar de sobrevivente.
Sobrevivente analógico em um mundo digital. Enquanto semelhantes necessitamos da
palavra, da metáfora para comunicar, da analogia para empatizar com o outro, da
metonímia para discorrer e buscar sempre.
Num mundo que se digitaliza, o análogo e o semelhante são considerados erros. Busca-se
a exatidão, a igualdade, a tautologia. Possuímos apenas zeros e uns. A linguagem, como
afirma Mellman5e tantos outros, perde sua função simbólica e torna-se sígnica, ela não
mais representa, ela aponta a coisa ou busca mesmo colar-se, tatuar-se ou tornar-se
marca. O ideal do objeto é tornar-se marca, de tal forma que o nome e a coisa sejam um
mesmo, como Xerox, Gilete, etc Assim ele se torna signo e causa ato, torna-se objeto da
compulsão do outro e nada lhe falta para ser consumido. Da mesma forma neste mundo
sem sujeitos e subjetividade, o objetivo do indivíduo é tornar-se ele próprio famoso, virar
marca ou “griffe,” a fim de ser reconhecido pelo Outro da mídia.
O paciente a que me referi acima, que tinha uma empresa de Internet, vendeu a marca, o
que valia na empresa a seu ver, era o nome de domínio; seu conhecimento e capacidade
de trabalho para fazer outra, nada valem perto da perda do nome que ficou famoso.
Conhecimento, habilidade, persistência, saber-fazer (know-how), nada valem se não há
como aparecer. Ele precisa aí também encontrar outro lugar para se expor, vencer
novamente seu sintoma que o leva a esconder-se, já que o sentimento de existência não é
sustentado em uma interioridade, mas na exteriorização e reconhecimento pelo Outro que
agora é ocupado pelo mercado e pela mídia.
5
Mellman, C. – ibid..
10
A ciência no lugar do pai.
Paciente casado, um filho, há quatro anos tem tido dificuldades de ter o segundo filho,
sua mulher perdeu duas gravidezes e agora tem dificuldade de engravidar do segundo
filho.
- “Agora que terminamos o tratamento e que ela já pode engravidar novamente cada vez
que fazemos amor em seu período fértil é diferente. Sinto que ela está tensa e diferente,
querendo engravidar. Ela já me diz porque não fazemos uma inseminação de uma vez.
Quando transamos me sinto uma pipeta, inseminando-a.”
Como negar que hoje temos cada vez mais acesso direto à realização de nossas
necessidades, prescindindo do outro? Na medida em que a demanda pode ser atendida
sem passar pelo desejo do outro o desejo deixa de ser desejo do outro, e este pode ser
descartado. Como pensar uma Sociedade do Narcisismo, unir duas palavras que se
excluem?
A psicanálise demonstra que a fantasia como um filho é concebido, seja para preencher o
desejo da mãe, seja como fruto de uma relação de desejo faz diferença. Sabemos que se o
pai é aquele a quem a mãe endereça seu desejo, ele poderá ocupar o lugar de
representante da lei do desejo, e agente da castração. Mas agora, a ciência está pronta a
substituí-lo neste lugar.
A ciência que nos permite a todo instante ultrapassar limites não consegue, ao mesmo
tempo, construir uma ética, que nos oriente. Ela é incapaz de tomar para si o lugar do pai
como agente da castração. Ela promete gozos, até frustra, mas não interdita. Torna-se o
próprio pensamento agindo sem pensar.
Acredito que a transferência hoje se endereça à psicanálise enquanto ética que sustenta o
sujeito contemporâneo no limite do abismo de seu gozo.
Abre-se assim a porta para pensar o Édipo pós-moderno, o filho da ciência.
Rio de Janeiro, 19/06/2005.
Marco Antônio Brant Saldanha
[email protected]
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Rio de Janeiro – Brasil – 22449-900
Tel: 55-21- 2239-7544 Fax: 55-21-38756905.
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