Joseph Murray Hill, SJ A DOUTRINA DO PECADO ORIGINAL À LUZ DA TEORIA DA EVOLUÇÃO EM TEILHARD DE CHARDIN E KARL RAHNER Dissertação de Mestrado em Teologia Orientador: Prof. Geraldo Luiz de Mori BELO HORIZONTE FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2014 Joseph Murray Hill, SJ A DOUTRINA DO PECADO ORIGINAL À LUZ DA TEORIA DA EVOLUÇÃO EM PIERRE TEILHARD DE CHARDIN E KARL RAHNER Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Teologia. Área de concentração: Teologia Sistemática Orientador: Prof. Geraldo Luiz De Mori BELO HORIZONTE FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2014 AGRADECIMENTO Ao Prof. Dr. Geraldo de Mori pelo apoio, incentivo e sábia paciência ao longo da pesquisa. À direção, professores e funcionários da FAJE, pela amizade, respeito e confiança em mim depositados. A Dr. Manuel Hurtado, João Renato Eidt, Karina Garcia Coleta e Cleiton Nery pela ajuda na tradução dos textos. A Ana Maria Castro, Rosanna Araujo Viveiros, Alex Pin, Robson Sosa, Alex Palmer e Cleiton Nery, que leram os originais e corrigiram os erros linguísticos. 2 RESUMO Esta dissertação tem como objeto de estudo a interpretação da doutrina do pecado original à luz da teoria da evolução nos escritos de Teilhard de Chardin e Karl Rahner. A doutrina do pecado original tem recebido várias críticas no século XX, especialmente em relação a sua incoerência e incompatibilidade com a antropologia evolucionista. Esta pesquisa dá um breve resumo da base bíblica da doutrina, seu desenvolvimento na tradição e sua definição pelo Magistério, para identificar seus problemas principais em si mesmos e diante da teoria da evolução. A partir dessas dificuldades, o estudo investiga a interpretação do pecado original de Teilhard de Chardin e Karl Rahner, analizando como eles tentam resolver os problemas e continuam fiéis ao testemunho bíblico e aos pontos centrais da doutrina clássica. Atenção é dada ao desenvolvimento de uma antropologia que harmoniza os dados da ciência com a fé cristã. Os dois autores dão contribuições importantes para a teologia cristã. Contudo, o pensamento de Rahner fornece um melhor caminho para esclarecer o pecado original dentro de uma antropologia evolucionista, especialmente sua concepção da situação do pecado, que relaciona o primeiro pecado (peccatum originale originans) com o estado do pecado original (peccatum originale originatum). PALAVRAS-CHAVE Teilhard de Chardin, Karl Rahner, pecado original, evolução, antropologia, Adão, poligenismo, Cristo, graça, estado, concupiscência, transmissão, privação, responsabilidade pessoal. 3 ABSTRACT This dissertation has as its object of study the interpretation of original sin in the writings of Teilhard de Chardin and Karl Rahner. The doctrine of original sin has received various critiques in the 20th century, especially in relation to its incoherence and incompatibility with an evolutionist anthropology. This study gives a brief overview of the biblical foundation of the doctrine, as well as its development in the tradition and its definition by the Magisterium, in order to identify its principal problems, in itself, and in relation to the theory of evolution. On the basis of these difficulties, this study investigates the explanations of original sin in Teilhard de Chardin and Karl Rahner, analyzing how they attempt to overcome them and remain faithful to the biblical testimony and the central points of the classic doctrine. Attention is paid to the development of an anthropology that harmonizes the facts of science with the Christian faith. The two authors make important contributions to Christian theology. However, the theology of Rahner offers a better way to articulate original sin within an evolutionist anthropology, especially with respect to his concept of the sinful situation, which connects the first sin (peccatum originale originans) with the state of original sin (peccatum originale originatum). KEY WORDS Teilhard de Chardin, Karl Rahner, original sin, evolution, anthropology, Adam, polygenism, Christ, grace, state, concupiscence, transmission, privation, personal responsibility. 4 ABREVIAÇÕES ANET PRITCHARD, Ancient near eastern texts. AT Antigo Testamento CCC Catecismo da Igreja católica. CCEM RAHNER, A cristologia dentro de uma concepção evolutiva do mundo. CE TEILHARD DE CHARDIN, Christologie et évolution. CFF RAHNER, Curso fundamental da fé. CRG TEILHARD DE CHARDIN, Chute, rédemption et géocentrie. DH DENZINGER, Compêndio dos símbolos. FH TEILHARD DE CHARDIN, Fenômeno humano. TDOT BOTTERWECK, Theological dictionary of the Old Testament. NJBC BROWN, New Jerome biblical commentary. NT Novo Testamento RHPO TEILHARD DE CHARDIN, Note sur quelques représentations historiques possibles du péché original. RPO TEILHARD DE CHARDIN, Réflexions sur le péché original. SA RAHNER, The sin of Adam. STh AQUINO, Suma teológica. 5 SUMÁRIO AGRADECIMENTO 2 RESUMO 3 ABSTRACT 4 ABREVIAÇÕES 5 INTRODUÇÃO 9 1 A DOUTRINA DO PECADO ORIGINAL: PASSADO E PRESENTE 15 1.1 As raízes do pecado original nas Escrituras 15 1.1.1 O pecado no Antigo Testamento 16 1.1.2 O pecado no Novo Testamento 18 1.1.3 Avaliação do testemunho bíblico 25 1.2 O desenvolvimento da doutrina na tradição 26 1.2.1 O pecado nos padres da Igreja antes e santo Agostinho 26 1.2.2 Santo Agostinho 28 1.2.3 A teologia ocidental depois de santo Agostinho 31 1.2.4 O Magistério da Igreja e o pecado original 33 1.2.5 A condição sine qua non da doutrina 35 1.2.6 As incoerências na doutrina do pecado original 36 1.3 A teoria da evolução e os problemas para a doutrina do pecado original 37 1.3.1 A teoria da evolução 37 1.3.2 Os problemas para a antropologia cristã 39 1.4 A status questionis na teologia contemporânea 41 1.4.1 Humani generis e o debate entre o monogenismo e o poligenismo 41 1.4.2 As reinterpretações da doutrina à luz da evolução 45 1.4.2.1 Teilhard de Chardin e a síntese científico-cristã 45 1.4.2.2 Os personalistas 47 1.4.2.3 Os situacionistas 48 1.5 Conclusão 50 6 2 TEILHARD DE CHARDIN SOBRE O PECADO ORIGINAL 53 2.1 Introdução 53 2.1.1 A interpretação das obras de Teilhard 2.2 A antropologia de Teilhard de Chardin 54 55 2.2.1 A origem dos homens dentro da evolução 55 2.2.2 O poligenismo 59 2.2.3 A noosfera 60 2.2.4 O ponto Ômega 62 2.2.5 A atividade de Deus dentro da evolução 62 2.3 Interpretação do pecado original de Teilhard de Chardin 65 2.3.1 A crítica da doutrina clássica do pecado original 65 2.3.2 O problema do mal no universo e o pecado original 66 2.3.3 O pecado original no ser humano 68 2.3.4 Justificativa: o argumento da redenção cósmica à universalidade do pecado original em toda a criação material 2.4 Avaliação de Teilhard de Chardin 3 71 72 2.4.1 As respostas aos problemas da doutrina clássica à luz da evolução 72 2.4.2 Os problemas metafísicos e antropológicos 73 2.4.3 Os problemas com as afirmações teológicas 76 2.4.4 Os problemas com a interpretação da doutrina do pecado original 80 2.5 Conclusão 83 RAHNER SOBRE O PECADO ORIGINAL 85 3.1 Introdução 85 3.2 Antropologia de Rahner à luz da evolução 86 3.2.1 O método rahneriano 86 3.2.2 A evolução e a antropologia 89 3.2.3 Cristo e a evolução 91 3.2.4 Monogenismo e poligenismo 94 3.2.5 A relação de Rahner com Teilhard de Chardin 95 3.3 Interpretação do pecado original de Rahner 7 97 3.3.1 Peccatum originale originans: o pecado de Adão 97 3.3.1.1 Peccatum originale originatum: a situação do pecado e os pecados pessoais 102 3.3.1.2 A liberdade e o ‘não’ a Deus 102 3.3.1.3 A co-determinação pela culpa alheia 104 3.3.1.4 O pecado original como a situação co-determinada pela culpa alheia 107 3.3.2 As consequências do pecado: a concupiscência e a morte 3.4 Avaliação de Rahner 109 114 3.4.1 As respostas aos problemas relacionados à doutrina do pecado original 114 3.4.2 As respostas aos problemas da doutrina em relação à evolução 116 3.4.3 O problema com a subjetividade transcendental e os pecados 118 3.4.4 O pecado original como a privação da graça e a presença universal da autocomunicação de Deus 120 3.4.5 Rahner dá lugar suficiente para a ‘corrupção da natureza’? 3.5 Conclusão 123 124 CONCLUSÃO GERAL 126 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 129 8 INTRODUÇÃO Objetivo da pesquisa É possível ter uma interpretação do pecado original coerente em si mesma e compatível com a teoria da evolução? Esta pesquisa tentará responder a essa questão a partir dos escritos de Pierre Teilhard de Chardin e Karl Rahner. O objetivo será analisar como eles respondem aos problemas da doutrina do pecado original à luz da evolução. A análise tem dois aspectos. O primeiro, como eles desenvolvem uma antropologia coerente com a evolução e a fé cristã, e como eles explicam o pecado original dentro desta antropologia? O segundo consiste em propor uma avaliação crítica das suas propostas à luz da teoria da evolução, da doutrina do pecado original e das tensões inerentes à interpretação clássica. A tese é a seguinte: em resposta à questão central, é realmente possível superar os problemas internos da doutrina e harmonizá-la com uma antropologia evolucionista. Uma conclusão secundaria será: Rahner oferece uma interpretação do pecado original mais sólida e consistente com a tradição do que Teilhard. Justificativa da escolha do tema A doutrina do pecado original não é muito popular hoje no ambiente teológico. A maioria dos teólogos duvidariam do valor de uma pesquisa sobre o assunto. Alguns preferem que essa doutrina desvaneça. Essa situação representa uma grande mudança com relação aos últimos 1500 anos da teologia ocidental, quando o pecado original foi aceito quase que universalmente. Mas, nos séculos XIX e XX emergiu um questionamento da doutrina a partir de três questões. Os novos métodos históricos da exegese bíblica levaram à questão: ela tem fundamento bíblico? À luz da radicalização da doutrina pelo protestantismo e pelo jansenismo, os intelectuais da época moderna, inclusive os teólogos, se perguntaram: ela é consistente em si mesma? Finalmente, a adopção da teoria da evolução pela ciência e pela sociedade em geral levou muitos a questionarem-se: ela contradiz à teoria da origem evolucionista do ser humano? Essas três questões estimularam muito a discussão sobre 9 pecado original na teologia católica do século XX, até ao ponto em que as novas teologias ‘contextualizadas’ se tornaram dominantes e a doutrina foi esquecida. 1 Na Igreja hoje em dia os fieis dividem-se entre os que acreditam ainda numa forma da doutrina clássica, com a história de Adão e Eva e a transmissão da corrupção a toda a raça humana, e os que não acreditam na doutrina e reduzem o fenômeno do pecado aos pecados pessoais e sociais. Eles percebem uma contradição entre a doutrina clássica e a evolução e não encontram uma interpretação satisfatória na tradição ou na pregação da Igreja, e às vezes perdem sua fé. 2 Além disso, o pecado original não ocupa um lugar significante na pregação da Igreja. 3 Em geral, as pessoas não entendem a doutrina. Rahner articula essa situação da teologia no mundo contemporâneo da seguinte forma, “os enunciados teológicos não são formulados de tal forma que o homem possa compreender como é que eles visam referir-se à compreensão de si mesmo que lhe dá sua própria experiência.”4 Como explicar a fé cristã hoje para os fieis e para o homem pós-moderno? Ao mesmo tempo, como Maldamé afirma, “falar do pecado original é tocar em todos os pontos fundamentais da doutrina cristã.”5 Se Jesus é verdadeiramente o salvador da humanidade (At 4,12), toda a humanidade necessita de salvação. Como se explica essa verdade da fé sem recurso à doutrina do pecado original? Além disso, no século XX o ser humano mostrou seu lado mais obscuro com tanta imoralidade, tanto em nível coletivo quanto individual. Assim, podemos colocar a seguinte questão: existe uma possibilidade de uma nova aceitação da pecaminosidade universal do ser humano e sua necessidade de ser salvo? É possível que a doutrina, ao invés de ser uma vergonha para a Igreja Cristã, possa ser vista uma interpretação iluminadora para o ser humano hoje? Ajudaria a explicar a fé cristã para nosso mundo? Portanto, a justificativa da escolha desse tema é entrar no debate sobre a consistência da doutrina e sua compatibilidade com a evolução, para ver se é possível superar esses problemas. Além disso, para tentar encontrar uma interpretação do pecado original compreensível para as pessoas de hoje. 1 Numa nota pessoal, quando eu explico que minha pesquisa é sobre o pecado original, a maioria das pessoas riem ou pelo menos zombam. Às vezes perguntam, ‘por que?’ e tentam explicar como de fato o pecado original não existe. 2 Maldamé escreve sobre essa experiência em seu trabalho com universitários. MALDAMÉ, O pecado original, p. 19. 3 RAHNER, Original sin, p. 329. 4 RAHNER, Teologia e antropologia, p. 34. 5 MALDAMÉ, O pecado original, p. 15. 10 Justificativa da escolha de Teilhard de Chardin e Rahner A escolha desses autores foi feita por quatro razões. Em primeiro lugar, os dois levam a sério a ciência da evolução e a doutrina clássica do pecado original. Portanto, não tentam dissolver o problema por meio da rejeição da ciência ou da doutrina. Em segundo lugar, os dois desenvolvem uma metafísica e uma antropologia compatíveis com a teoria da evolução, que eles usam como base para seus escritos sobre o pecado original. Esse desenvolvimento é muito importante, porque muitos dos problemas e dos conflitos aparentes existem no nível metafísico e antropológico, e podem contribuir a uma reflexão mais profunda sobre o pecado original. A terceira razão, é que esses autores, em seus tempos, possibilitaram um diálogo real da teologia católica com a teoria da evolução. Portanto, eles são importantes do ponto de vista histórico. Finalmente, os dois têm sido muito influentes nos debates sobre o assunto. Alguns cientistas e teólogos seguem Teilhard de Chardin em sua interpretação do pecado original à luz da evolução, e outros seguem Rahner e os situacionistas. É claro que os dois autores têm formado um quadro contemporâneo para a investigação da doutrina. Então, há uma justificação de voltar a seus textos e ver se é possível mudar o debate e encontrar uma nova síntese. Parece que Teilhard teve uma influência importante no pensamento de Rahner, 6 então uma comparação entre os dois terá bastante pontos de contato. A metodologia Teilhard de Chardin e Karl Rahner escreveram muitos livros e artigos. Esta pesquisa se concentrará nos escritos diretamente ligados ao tema do pecado original, e focará no pensamento maduro dos autores, encontrado em seus escritos posteriores. É necessário, no entanto, considerar as perspectivas metafísicas e antropológicas dos dois autores como parte da pesquisa. Para isso, estudaremos duas obras importantes, o Fenômeno humano, de Teilhard de Chardin, e A cristologia dentro de uma concepção evolutiva do mundo, de Rahner. Duas observações são importantes do ponto de vista do método. A primeira diz respeito à explicação comum da teoria da evolução feita pelos cientistas. Elas serão assumidas sem questionamento. Isso não exclui mais desenvolvimentos científicos na teoria da evolução nem a possibilidade de mudanças nas atuais explicações dadas por ela. No que diz respeito à 6 Cf. EDWARDS, Teilhard’s vision, p. 233s. 11 investigação científica, esta pesquisa assumirá o que é o consenso comum do meio científico. 7 Em geral, os teólogos devem submeter-se aos cientistas nos assuntos científicos, da mesma forma que os cientistas devem deixar aos teólogos a reflexão sobre Deus e a explicação da fé cristã. Esta primeira observação não exclui, porém, a possibilidade de haver diferenças filosóficas e metafísicas com relação aos cientistas, mas que não afetam a teoria da evolução. Por exemplo, pode-se aceitar a teoria da evolução e toda a ciência sobre a origem e o desenvolvimento dos humanos, mas não aceitar o materialismo e o reducionismo de alguns cientistas, porque estas posições não são científicas, mas filosóficas. A segunda observação diz respeito à doutrina do pecado original. Os textos bíblicos, o decreto do Concílio de Trento sobre o pecado original e algumas declarações do Magistério serão também assumidos como autoridades. A exposição feita no primeiro capítulo será a referência para as interpretações justificáveis dos textos, que servem como um critério de julgamento dos dois autores. Contudo, quando necessário, os dois autores estudados serão confrontados com os textos bíblicos e as declarações do Magistério e a interpretação clássica da doutrina. Teilhard de Chardin e Rahner trabalham estes parâmetros do problema: a ciência da evolução e a doutrina do pecado original. Então, os critérios do julgamento são: (1) é compatível com a teoria da evolução (princípio científico)?; (2) é fiel aos textos bíblicos e às declarações do Magistério sobre o pecado original (princípio doutrinal)?; (3) dá uma resposta satisfatória aos problemas da interpretação clássica da doutrina (princípio teológicopastoral)?; (4) é coerente em si mesmo (princípio de coerência)? Esses critérios são justificados não somente porque são requeridos para uma exposição clara dos conteúdos da pesquisa, mas também porque são critérios que os autores aplicam em seus escritos, dão forma aos textos, então não são extrínsecos. As leituras de Teilhard e Rahner sobre o pecado original serão tomadas a partir de uma perspectiva crítica. A pesquisa seguirá os textos detalhadamente de modo a dar interpretação aos textos diretamente. Buscar-se-á dar a melhor interpretação dos autores, de modo claro e consistente. Serão evitadas críticas fáceis e objeções baseadas em caricaturas de seus pensamentos. Quando houver problemas, buscar-se-á salvar as proposições dos autores, se for possível. 7 Por exemplo, esta pesquisa tomará o consenso científico sobre o poligenismo como um dado, e não investigará as diferentes possibilidades dentro da ciência da evolução neste momento, por exemplo o adaptacionismo ou o pluralismo, ou os argumentos da genética sobre a possibilidade da “Eva mitocondrial” e os argumentos sobre o número mínimo de primatas necessários para a evolução dos humanos. 12 O plano da dissertação As questões ligadas ao testemunho bíblico da doutrina e seu desenvolvimento na tradição não podem ser desconhecidas. Então, o primeiro capítulo fará um percurso pelo testemunho bíblico e pela tradição, para articular o que é justificável do ponto de vista bíblico e dogmático, o que é realmente central para a fé cristã e o que são os problemas inerentes na doutrina clássica. Além disso, o primeiro capítulo também dará uma análise dos problemas criados pela teoria da evolução e um breve status questionis das respostas dos teólogos do século XX, colocando Teilhard e Rahner, e suas posições históricas, no conjunto deste debate. Os resultados dessa investigação, especialmente o resumo dos pontos centrais da doutrina, suas dificuldades em si mesmas e seus problemas em relação à evolução, funcionarão como os princípios de julgamento para a avaliação da teologia de nossos autores. O segundo capítulo investigará a interpretação do pecado original à luz da evolução em Teilhard de Chardin, dando uma exposição e depois uma avaliação de como ele supera os problemas. O terceiro capítulo estudará a perspectiva de Rahner em diálogo com Teilhard, mostrando onde Rahner desenvolve Teilhard e onde toma caminhos diferentes. Esse capítulo descreverá também as contribuições particulares do teólogo alemão. Além disso, avaliará como ele evita os problemas de Teilhard, resolve as dificuldades da doutrina clássica e a harmoniza com a evolução. Explicitará, ainda, as limitações da interpretação de Rahner, especialmente em relação a sua subjetividade transcendental. A nossa conclusão afirmará a tese desta pesquisa: é realmente possível superar os problemas internos da doutrina e harmonizá-la com uma antropologia evolucionista. A ideia rahneriana da influência sócio-cultural do pecado, que cria uma ‘situação’ permanente para toda a humanidade através da historia, supera o problema da transmissão e da universalidade do primeiro pecado e abre, portanto, espaço para a aceitar o poligenismo sem negar a doutrina. Esta pesquisa apontará para novos desenvolvimentos possíveis da mesma, especialmente sobre os detalhes da ‘situação’ do pecado, sua relação com a privação da graça e sua relação com a concupiscência.8 8 Os textos em inglês foram traduzidos com a ajuda de João Renato Eidt e Karina Garcia Coleta, os textos em francês por Cleiton Nery e Manuel Hurtado. 13 14 1 A DOUTRINA DO PECADO ORIGINAL: PASSADO E PRESENTE A doutrina do pecado original recebeu muitas críticas nos séculos XIX e XX. Teólogos e pensadores levantaram várias questões sobre ela: tem fundamento bíblico? É consistente em si mesma? É contraditória com a ciência da evolução? Eles atacaram sua base bíblica, sua consistência interna e sua incompatibilidade com a teoria da evolução. Os teólogos do século XX, incluindo Teilhard de Chardin e Karl Rahner, tentaram responder a essas questões. Este capítulo resumirá esses debates a fim de identificar os problemas mais urgentes com relação ao pecado original. Seus objetivos são: 1) defender o fundamento bíblico da doutrina; 2) explicar o desenvolvimento e a fraqueza da doutrina clássica do pecado original; 3) explicar as dificuldades que surgem com relação a essa doutrina à luz da evolução; 4) dar um breve status questionis dessa temática na teologia contemporânea. O capítulo está dividido em quatro partes. A primeira dará uma breve exposição do testemunho bíblico sobre o pecado e as bases bíblicas da doutrina aqui estudada. A segunda explicará o desenvolvimento da doutrina na Tradição e no Magistério da Igreja, isolando o que é realmente central à mesma e destacando seus problemas. A terceira analisará os conflitos entre a teoria da evolução e a doutrina clássica do pecado original. A quarta dará um breve status questionis sobre esta temática na teologia do século XX, que colocará Teilhard de Chardin e Karl Rahner em relação às diversas respostas aos problemas levantados pelo o pecado original no confronto com a teoria da evolução. 1.1 As raízes do pecado original nas Escrituras Os novos métodos exegéticos introduzidos nos séculos XIX e XX questionaram as interpretações clássicas que sustentavam a doutrina do pecado original. As análises históricas e literárias dos textos bíblicos colocaram em dúvida a historicidade do relato de Adão e Eva em Gn 2-3 e a interpretação doutrinal de Rm 5,12-21, e também debilitaram a tradução in quo todos pecaram, de Rm 5,12, determinante na definição da doutrina. Isso provocou um grande debate sobre o sentido desses textos e as implicações dos mesmos para o pecado original. 1 Este capítulo tratará brevemente esses tópicos, e focará na questão da base bíblica da doutrina, se é justificável ver nos textos uma fundação para uma teologia do pecado original. 1 WIEDENHOFER, Principales formas, p. 528-29. 15 1.1.1 O pecado no Antigo Testamento As culturas antigas da Mesopotâmia testemunham uma crença comum em torno da universalidade do mal no ser humano.2 Por exemplo, um texto da Suméria do segundo milênio AC diz que não existe uma pessoa sem pecado.3 Uma encantação Acadiana enfatiza explicitamente que cada ser humano é pecador.4 Os autores bíblicos refletem a mesma ideia: “Pode o homem ser justo diante de Deus? Um mortal ser puro diante do Criador?” (Jó 4,17); “Quem pode dizer: ‘Tenho consciência pura, estou limpo de meu pecado? ’” (Pr 20,9); “Não há quem não peque” (1Rs 8,46); “Não cites perante o tribunal teu servo, porque nenhum ser vivo é justo diante de ti!” (Sl 143,2). O Antigo Testamento começa a história do ser humano com uma série de mitos que explicam a origem e o desenvolvimento do mal. O homem e a mulher começam num estado de harmonia com Deus, com a natureza e entre si mesmos (Gn 2,5-25). Ao comer o fruto proibido, esta harmonia fica destruída (Gn 3,7-24). A história primordial continua com mais transgressões dos mandamentos de Deus e o crescimento da desordem. Primeiro, temos ciúme, fratricida (Gn 4,1-16), depois acontece a vingança (Gn 4,23-24), seguida de relações sexuais perversas entre seres celestiais e mulheres (Gn 6,1-4), a violência endêmica (Gn 6,1112), e, no final, o orgulho de construir uma torre para alcançar o céu (Gn 11,1-10).5 Com esse fundo, a história de Abraão e do povo da promessa continua esta trajetória, mostrando a luta entre a vontade de Deus e o coração desobediente do ser humano. O conceito do pecado no AT não foca primeiramente a falta moral, mas a relação entre Deus e o homem. Embora uma das palavras para o pecado em hebraico, chatah/hata, signifique ‘errar o alvo’, a mesma é usada para dizer ‘pecar’, especificamente no sentido de falhar diante de Deus.6 As duas outras palavras para pecado mostram claramente a concepção relacional. Em hebraico, passa/pesa, significa ‘culpa’, ‘ofensa’ contra alguém, 7 e, o mais 2 Cf. COVER, Sin, sinners, p. 32-33. “Never has a sinless child been born to its mother; a sinless workman has not existed from of old.” ANET, p. 590. 4 “Who is there who has not sinned against his god? Who that has kept the commandment for ever? All humans who exist are sinful.” Citado em: COVER, Sin, sinners, p. 32. 5 Para uma interpretação da história do Javista a partir das categorias psicológicas, especialmente de angústia, veja: DREWERMANN, Strukturen des bösen, cap. 1-2. 6 TDOT IV, p. 309ff. 7 TDOT XII, p. 133ff. 3 16 importante, ‘awon, com significado profundamente religioso, tem um campo semântico amplo, sendo utilizado para designar ‘transgressão’, pecado’, ‘culpa’, ‘punição’.8 Os textos paradigmáticos do AT falam explicitamente desse sentido relacional do pecado. Adão e Eva são desobedientes ao mandamento de Deus (Gn 3,8). O salmista lamenta, “Contra ti, só contra ti pequei, pratiquei o mal diante de teus olhos” (Sl 51,6). Davi cometeu adultério e enviou Urias para a morte, mas confessa, “Pequei contra o Senhor,” (2Sm 12,13) e não contra um homem! Os profetas enfatizam uma infração da lei da aliança como uma ofensa contra Deus (cf. Jr 11,6-10; Ez 16; Os 8,1-4). Para eles, a aliança é como um casamento (Is 5; 50,1; 54,6; 61,10; 62,4s; Jr 2,2; Os 1-3). Então a infidelidade à aliança, especialmente expressa na idolatria, é como adultério e prostituição (Jr 3,1-4, 20; Ez.16,8s.). De fato, o pecado principal do AT é a idolatria (cf. Dt 30,17; Ez 6,2-14; 22,3-5). Lyonnet dá uma boa síntese do testemunho do AT em sua definição do pecado: “[...] o pecado é considerado essencialmente uma violação do mandamento de Deus, por meio dele o homem se afasta de Deus, a única fonte da vida.”9 O fato de Deus ser ofendido faz com que somente Ele possa tirar o pecado do ser humano (cf. Sl 51,7.9-10).10 As consequências do pecado são várias e sempre destrutivas. A ruptura da relação com Deus é o primeiro efeito fundamental do pecado. Adão e Eva são expulsos do jardim e da presença do Senhor (Gn 3,17-24). O fato de Deus ser a fonte da vida, faz com que sair de sua presença cause a morte (Gn 2,17; 3,23-24; Sb 2,21-24).11 A consequência do pecado sempre é o mal, “O mal persegue os pecadores” (Pr 13,21). Muitas vezes o pecado (‘awon) refere-se a uma quase substância que afeta as pessoas e os lugares (cf. Sl 49,6).12 Os profetas veem o pecado (chatta’th) como uma força que determina o curso da história negativamente, e leva à destruição.13 A desobediência à aliança produz alienação de Deus (cf. Jr 14,10-13), que traz outros males e mais pecado. A infidelidade a Deus causa a injustiça entre os homens (Is 1,21). O pecado mesmo pune, “Teu crime te castigue, teu próprio voltar atrás te corrija. Reconhece e vê como é ruim e amargo teres abandonado o Senhor, teu Deus” (Jr 2,19). Também, dentro da aliança Deus pune o povo de Israel com a perda das bênçãos e a destruição (cf. Is 9,8-17; Jr 8 TDOT X, p. 546ff. “[…] sin is considered to be essentially a violation of God’s commandment, whereby man turns away from God, the sole source of life.” LYONNET, Sin, redemption, p. 12. 10 Ibid., p. 23. 11 Cover enfatiza isso, “Sin ruptured the relationship between the creator and the creature, and set in motion a series of consequences which, if unchecked, would eventuate in the ‘death’ of the individual sinner.” COVER, Sin, sinners, p. 38. 12 TDOT X, p. 551. 13 TDOT IV, p. 314. 9 17 25,8-14; Am 2,4-8). Jeremias lamenta a corrupção do coração do ser humano e grita por uma cura (Jr 17,9). Em relação à origem e à transmissão do pecado, o AT fala pouco. A história da transgressão de Adão e Eva não tem um grande significado para os Israelitas. Ez 28,12-19 explica os pecados e a punição de Tiro como uma repetição da expulsão do Éden, mas não menciona Adão. Sb 2,23-24 faz uma alusão a Gn 3, quando declara que Deus criou o homem para a incorruptibilidade, mas a morte entrou no mundo com a influência do diabo (cf. Sb 1,13-16). Estes textos não falam explicitamente do primeiro pecado em sua relação com os pecados subsequentes. O salmista declara que ele foi concebido na iniquidade (Sl 51,5), mas não renega sua responsabilidade com relação às suas transgressões (Sl 51,3-4). A literatura hebraica preserva a ideia de que os filhos herdam a punição dos pecados de seus pais (Ex 20,4-5; 34, 6-7; Nm 14,18; Dt 5, 9-10; Jr 32,18; cf. 1Sm 15,2-3; 1Rs 21,28-29). Esta ideia tem muito a ver com o conceito de personalidade corporativa e os atos coletivos do povo, que são centrais na teologia pré-exílica (Dt 30,15-20; Js 6,1-2; Os 4,1-19; Am 2,4-8).14 No período exílico, o questionamento sobre a injustiça dessa concepção leva a uma compreensão mais individual do pecado e da punição (cf. Jr 31,29; Lm 5,7; Ez 18,2; Sl 109,14-15). Ao mesmo tempo, os profetas exílicos afirmam também que os filhos imitam os pecados de seus pais (Is 65,6-7; Jr 3,25; 14,20; Ez 2,3). Isso faz com que exista uma continuação dos mesmos pecados através das gerações.15 A afirmação mais completa, que reflete bem o pensamento bíblico, é, “Pecamos como nossos pais, cometemos a iniquidade, praticamos o mal” (Sl 106,6). Esses elementos formam a base do desenvolvimento da doutrina do pecado original, mas não existe uma afirmação explícita da consequência do primeiro pecado nos descendentes.16 1.1.2 O pecado no Novo Testamento O NT segue os pontos básicos da teologia do AT sobre o pecado. Como no AT, no NT ‘pecado’ é uma atividade ou posição contra Deus, que inclui os atos imorais contra os 14 COVER, Sin, sinners, p. 36. Sobre a solidariedade dos pais e dos filhos no pecado, veja: RUIZ DE LA PEÑA, El don de Dios, p. 55-56. 16 Dubarle conclui, “L’essentiel est que les auteurs bibliques ont reconnu une influence indépendante de la volonté libre de l’homme s’exerçant sur sa condition religieuse. Il y a là sans doute un des éléments les moins élaborés intellectuellement des enseignements bibliques sur la solidarité de l’homme avec son milieu, soit pour le bien, soit pour le mal. Mais il y a là toutefois un apport à la doctrine du péché originel, dans la mesure où il est supposé que des tares religieuses peuvent affecter un sujet sans acte peccamineux de sa part, ni même parfois décision libre…..Ainsi l’Ancien Testament, pris dans son ensemble, discerne différents plans sur lesquels peut s’établir ou se rompre le rapport avec Dieu. Et il admet que, au plan inférieur de la pureté rituelle, des causes extérieres, indépendantes d’un mouvement personnel du cœur, peuvent entraîner une séparation d’avec Dieu.” DUBARLE, Le péché originel dans l’Écriture, p. 38. 15 18 seres humanos. 17 Vários termos são usados para exprimir esta realidade, a grande maioria vêm da LXX: ‘αµαρτια (hamartia – pecado), παραπτωµα (paraptoma/parabasis – trespassar, transgressão), παρακουω (parakouw – desobedecer), αδικια (adikia – injustiça, usualmente contra homens), ασεβεια (asebeia – impiedade, contra Deus), πονηρος (poneros – maldade).18 Concordando com a tradição bíblica e judaica, os autores do NT acreditam que todas as pessoas ‘pecam’ (por exemplo: Mt 6,12; Mc 1,4.15; Lc 11,4; Jo 1,29; At 2,28; Rm 3,23; Hb 2,17-18; 1Jo 1,8-10; Ap 1,5). Em Mateus, ’ανοµια (anomia – sem lei, injustiça) corresponde mais ou menos ao Hebreu ‘awon, o estado contra Deus.19 Em João, hamartia não significa um pecado, mas um estado, ou um poder, ligado ao ‘mundo’, que coloca o homem fora de Deus.20 Como no AT, somente Deus pode perdoar o pecado. No NT, Jesus, como instrumento de Deus, vem para salvar o mundo dos pecados (Mt 1,21; Lc 1,77; Jo 1,29; At 4,12; Rm 3,24-26; Hb 9,26-28). A missão de Jesus está ligada especificamente com o problema do pecado no mundo. Ele veio não para os justos mas para os pecadores (Mt 9,13). Ele veio para salvar os perdidos (Lc 19,10). Por isso, ele tem a autoridade de perdoar os pecados (Mc 2,5-12). Uma caraterística de seus seguidores é o perdão (Mt 18,21-22). Mas Jesus ensina que o pecado tem que ser ultrapassado, não somente nos atos externos, mas também no coração (cf. Mt 23,2528), porque é no coração que o mal tem sua origem (Mt 15,10-20; Mc 7,14-23).21 Por isso, ele prega o arrependimento (Mc 1,15), e aquele que se arrepender será salvo (cf. Lc 15). Ele ensina um novo modo de agir com os outros (Mt 5,21-48), baseado numa pureza de coração (Mt 5,8), que supera tudo o que causa o pecado (Mt 18,7-9). De onde vem essa desordem no coração? Os Evangelhos não tratam esta questão, mas existem alusões à ideia da queda.22 Jesus fala sobre a unidade original do homem e da mulher no princípio, antes da dureza do coração (Mt 19,8; Mc 6-8). Em João, Jesus diz, “Vós tendes como pai o diabo. Desde o princípio ele foi homicida e não se manteve na verdade” (Jo 8,44). Então, uma pessoa tem que nascer de novo no Espírito Santo para receber a vida eterna (Jo 3,5-6). Mas, Jesus não concorda com a ideia de que o sofrimento físico seja sempre a consequência do pecado (Jo 9,2-3; cf. Jó 31,3; Tb 3,3). 17 COVER, Sin, sinners, p. 40. Ibid., p. 40-41. 19 LYONNET, Sin, redemption, p. 33. 20 Ibid., p. 39. 21 Dubarle vê na perícope sobre a impureza da comida uma noção do pecado original em embrião: “La parole sur les aliments qui ne souillent pas doit donc aider à circonscrire la notion du péché originel qu’il est legitime de découvrir insinuée par l’Evangile.” DUBARLE, Le péché originel dans l’Écriture, p. 117. 22 Ibid., p. 117. 18 19 No NT São Paulo possui a teologia do pecado mais desenvolvida. Para ele, seguindo a tradição, o pecado é uma ofensa contra Deus.23 Segundo a carta aos Romanos, que representa seu pensamento sistemático, Deus criou os seres humanos sem pecado (Rm 1,2021), mas eles trocaram a glória de Deus por imagens idolátricas, tornaram-se ignorantes e perdidos (Rm 1,22-25). Por isso, “Deus os entregou às paixões vergonhosas [...], aos sentimentos depravados, que os levam a cometer torpezas, a encherem-se de toda injustiça” (Rm 1,26.28-29). Para Paulo, asebeia leva a adikia, ou seja, o esquecimento de Deus causa a desordem nas relações humanas (Rm 1,26-32). A Lei não ajuda nessa situação porque todos pecam (Rm 3,23; cf. 3,10-12), e por isso a Lei funciona para o reconhecimento do pecado (Rm 3,20). O pecado começa como um ato e depois se torna um estado, um estar fora de Deus, e finalmente passa a ser um poder acima do ser humano (Rm 3,9). Por isso, os seres humanos necessitam de um salvador, Jesus. A mudança da escravidão do pecado à vida da graça, é um tema que Paulo trata em Rm 6-7. 9. Pode-se resumir as consequências do pecado em Paulo com duas palavras: σαρξ (sarx) e a θανατος (thanatos). Para Paulo, sarx não significa a corporalidade, 24 mas a fraqueza e a natureza perecível do ser humano,25 que, no nível moral, torna-se fonte de cobiça e desordem, mostrada nos ‘atos da sarx’ (Gl 5,19-21). Estes atos da sarx incluem os pecados do espírito, como a idolatria e o ciúme (Gl 5,20). Tais atos então não podem ser reduzidos à esfera corporal, mas envolvem todo o ser humano. 26 Eles significam uma atitude, uma disposição destrutiva diante do mundo e das outras pessoas.27 Paulo diz, “quando estávamos na carne (sarx), as paixões do pecado, excitadas pela Lei, agiam em nossos membros e davam frutos de morte” (Rm 7, 5). Aqui se vê que os pecados levam para a morte. O telos interno do pecado é a morte.28 Paulo faz muitas vezes, em Romanos, a conexão entre o pecado e a morte (5,12-21; 6,16.21; 7,5. 10. 23s). Além disso, como o ser humano é corporal e espiritual, a morte aqui não somente tem a ver com o nível biológico, mas também com o nível espiritual. 29 23 MORRIS, Sin, guilt, p. 877. WRIGHT, Paul, p. 35. 25 LYONNET, Sin, redemption, p. 54. 26 MORRIS, Sin, guilt, p. 879. 27 DUNN, Theology of Paul, p. 120. 28 Ibid., p. 125; LYONNET, Sin, redemption, p. 55. 29 FITZMYER, Romans, p. 412. Acerca da morte em Paulo, Dubarle esclarece da seguinte forma: “Car ce que Paul nomme la « mort », la misère humaine, religieuse, morale, physique, dépasse de beaucoup le décès avec les circonstances douloureuses et tragiques dont il est grevé.” DUBARLE, Le péché originel dans l’Écriture, p. 156. Existe uma congruência entre Paulo e o que o livro do Apocalipse chama ‘a segunda morte’ (Ap 2, 11; 20, 6. 14; 22, 8). 24 20 O texto fundamental para falar sobre a doutrina do pecado original é Rm 5,12-21. Ainda hoje sua interpretação é muito controversa. Os exegetas continuam a discutir seu propósito e sentido. Eles concordam que há uma alusão a Gn 3 e Sb 2,23-24,30 que visa à obra de Cristo e não à de Adão. 31 O texto não menciona a natureza do pecado de Adão ou explicitamente a ‘transmissão’ do pecado à humanidade. 32 O argumento toma a forma de a minori ad maius: todos os efeitos da transgressão de Adão são superados na obediência, livre dom, graça, justiça e vida de Jesus.33 Bultmann vê no fundo desse texto a tradição gnóstica do homem original. Então, Adão e Cristo são tipos de homens diferentes, com origens diferentes, dentro do esquema cosmológico e não da história da salvação.34 Käsemann rejeita essa base para o texto35 e argumenta em favor de uma referência à ideia apocalíptica dos dois aeons, presente na literatura Judaica, e da salvação interpretada em termos messiânicos.36 Então o foco é cristológico e não antropológico, numa visão completamente escatológica. 37 O contraste entre a primeira era, em Adão, e a era de Cristo, é colocado no nível históricosalvífico. Jesus inverteu os efeitos de Adão e se tornou a cabeça duma nova humanidade. Fitzmyer e Wright continuam nessa linha, com algumas variações. 38 Grelot percebe a lógica apocalíptica também e enfatiza a solidariedade universal dos homens em Adão. Através disso, o domínio do pecado e da morte está acima do ser humano.39 As dificuldades do argumento em Rm 5,12-21 e em Rm 1,18-32 levam Sanders a concluir que Paulo começou com o fato, revelado em sua vida, que Jesus era o Salvador de todos, e construiu esses argumentos para afirmar a universalidade do pecado a fim de justificar a necessidade de um Salvador universal. Os argumentos não são satisfatórios do ponto de vista lógico, porque a conclusão é decidida antes do raciocínio.40 Ele então chega à mesma conclusão de Käsemann do outro lado, ou seja, para Paulo a cristologia informa a antropologia. A questão do estado histórico de Adão em Paulo é importante para a doutrina do pecado original. Alguns teólogos preferem interpretar o Adão do texto paulino em termos de 30 DUNN, Theology of Paul, p. 95. CRANFIELD, Critical commentary, p. 269, 281. 32 Cf. FITMYER, Romans, p. 407; KÄSEMANN, Commentary on Romans, p. 147; KREITZER, Adam and Christ, p. 13; 33 KREITZER, Adam and Christ, p. 13. 34 BULTMANN, Adam and Christ, p. 143-65. 35 Cranfield também concorda nesta rejeição. CRANFIELD, Critical commentary, p. 281 nota 2. 36 KÄSEMANN, Commentary on Romans, p. 141-42. 37 Ibid., p. 143. 38 FITZMYER, Romans, p. 406-07; WRIGHT, Paul, p. 31. 39 GRELOT, Péché originel et rédemption, p. 121-23. 40 SANDERS, Paul and palestinian Judaism, p. 475, 499-500. 31 21 uma personalidade corporativa, comum na teologia Judaica. 41 A referência no v. 14, do ‘tipo’, dá mais força a essa interpretação. Mas, como Käsemann explica, a tipologia pressupõe a história, e o contexto escatológico demanda mais do que um personagem mítico.42 Rejeitar a historicidade de Adão em Paulo é quebrar o estrito paralelo entre o “um homem” (Rm 5,15. 16. 17. 18. 19) e o “um homem Jesus Cristo” (Rm 5,17). Por isso, Fitzmyer afirma que Paulo trata de Adão como uma pessoa histórica. 43 Isto não significa que os cristãos estejam, impreterivelmente, comprometidos com uma história que remonte à origem da humanidade ancorada na imagem de um só casal, como será discutido abaixo. A questão surge do sentido da afirmação segundo a qual o pecado de Adão causa a morte. Parece claro que Paulo acredita numa relação causal entre o primeiro pecado e a morte de todos (Rm 5,12. 15. 17). Com esta afirmação ele segue o pensamento Judaico. Na literatura sapiencial, “Foi pela mulher que o pecado começou, e é por causa dela que todos nós morremos.” (Eclo 25,24); “A morte, porém, por inveja do diabo entrou no mundo, e a experimentarão os que a ele pertencem” (Sb 2,24). Na literatura Apocalíptica, “Quando Adão pecou, a morte foi decretada contra os que nasceram dele” (2Ap.Br. 23,4);44 “Ele [Adão] o transgressor [do mandamento de Gn 2,17], e imediatamente vós apontastes a morte para ele e seus descendentes” (4Ez 3,7); 45 “O primeiro Adão, sobrecarregado com um coração malicioso, transgrediu (o mandamento) e foi superado, como também todos aqueles que descendem dele. Assim a doença se tornou permanente” (4Ez 3,21). 46 Além disso, como muitos explicam, a morte é vista como um poder que entrou no mundo com Adão (cf. 1Cor 15,21). A morte, é como um efeito do pecado, não é somente física, mas profundamente espiritual. 47 A tradução de Rm 5,12, que é o versículo central do argumento de Santo Agostinho, ainda é problemática. Fitzmyer, em seu comentário, dá nada menos de onze possibilidades de tradução de ’εφ ω (eph’hô) v. 12d.48 A questão é, a que se refere a cláusula relativa hô (ω), e como cabe com eph (’εφ)? A ambiguidade da linguagem muda o foco da 41 KREITZER, Adam and Christ, p. 12. KÄSEMANN, Commentary on Romans, p. 142. 43 FITZMYER, Romans, p. 407-08. 44 “When Adam sinned, death was decreed against those who were to be born (from him).” Citado em: FITZMYER, Romans, p. 413. 45 “He transgressed it, and immediately you appointed death for him and his descendants.” Citado em: FITZMYER, Romans, p. 413. 46 “The first Adam, burdened with a wicked heart, transgressed (the command) and was overcome, as were also all who were descended from him. So the disease became permanent.” Citado em: FITZMYER, Romans, p. 413. 47 Cf. Ibid., p. 412. 48 Ibid., p. 413-16. 42 22 interpretação que depende das preferências teológicas. Agostinho discute o sentido do texto em De peccatorum meritis et remissione e Contra duas epistolas Pelagianorum, e decide que in quo (da tradução latina) refere-se a anthropou (Adão), ou seja, “em quem todos pecaram.” 49 Embora essa interpretação seja possível conforme o Grego, 50 a maioria dos exegetas contemporâneos rejeitam o in quo de Agostinho por várias razões51 e traduzem o v. 12d como διοτι (dioti), “porque todos pecaram”. 52 Essa interpretação cria um paralelo entre o v. 12ab e o v. 12bc, em que Adão pecou e a morte entrou no mundo, todos pecaram e então a morte espalhou-se a todos. Fitzmyer argumenta que esta interpretação não tem nenhum paralelo na literatura Grega e os paralelos Paulinos são dúbios, e parece que contradizem os v. 12abc e o v. 15, que afirmam que o pecado e a morte entraram no mundo com Adão.53 Então, tal interpretação perde o paralelo entre Adão e Cristo, que é central em 5,12-21.54 Bultmann coloca o antecedente na morte (thanatos). Então diante da morte todos pecaram. Isso não cabe bem no pensamento de Paulo. O pecado causa a morte, não a morte o pecado.55 Em geral, Käsemann critica a tendência de colocar uma divisão entre o v. 12abc e o v.12d e de ver uma transição do nível cósmico ao nível individual. Para ele, a antropologia é aqui uma projeção da cosmologia, dentro do esquema apocalíptico. Paulo está falando sobre a manifestação das forças introduzidas com Adão.56 Se existe um consenso entre alguns teólogos sobre o v. 12, o mesmo se aglutina em torno da ligação entre o pecado de Adão e os pecados de todos. Muitos autores percebem uma influência entre o pecado de Adão e a morte no v. 12abc e os pecados pessoais de todos 49 AUGUSTINE, On merit, I, 8; I, 10-11; AUGUSTINE, Against two letters, IV, 7. Cf. CRANFIELD, Critical commentary, p. 274-76; FITZMYER, Romans, p. 413. 51 Por exemplo, Cranfield pensa que enos anthropou está distante demais de hô para ser o antecedente natural (Ibid., p. 276); Fitzmyer concorda e afirma que se Paulo quisesse isso escreveria en hô (Romans, p. 414); Käsemann rejeita in quo porque Paulo não pensa sobre a herança do pecado e da morte (Commentary on Romans, p. 147-48). 52 CRANFIELD, Critical commentary, p. 269; DUNN, Theology of Paul, p. 95; DUBARLE, Le péché originel dans l’Écriture, p. 128; cf. KÄSEMANN, Commentary on Romans, p. 148. 53 FITZMYER, Romans, p. 415-16. 54 Cranfield percebe esta crítica e responde que a passagem enfatiza a diferença entre Adão e Cristo e não somente a similaridade, “therefore we have no right to insist that, because he saw the righteousness which we have through Christ to be quite independent of our works, Paul must necessarily have held that the guilt which is ours through Adam must also be quite independent of our actual sinning.” Ibid., p. 278. 55 Cf. FITZMYER, Romans, p. 414. É interessante que Santo Agostinho faz a mesma critica dessa interpretação contra os pelagianos, que tentam superar a dificuldade desse texto para sua teologia por um argumento que coloca o thanatos como o antecedente do quo (ω). AUGUSTINE, Against two letters, IV, 7. Parece que no mundo da exegese bíblica o axioma de Coélet pode ser aplicado, “nada há de novo debaixo do sol.” (Ec 1,9). 56 KÄSEMANN, Commentary on Romans, p. 149-50. Grelot pensa nesta direção, focando na ideia do domínio do Pecado e da Morte na vida humana. Mas, contra Käsemann e outros, ele não dá lugar à responsabilidade pessoal ao pecado de Adão neste movimento. Para ele, o ‘pecado original’ é somente a condição existencial do ser humano, privilegiando Rm 7 sobre o cap. 5. GRELOT, Péché originel et rédemption, p. 123, 125-26, 128. 50 23 no v. 12d, e traduzem eph’hô para refletir esta relação. 57 Fitzmyer prefere a tradução consecutiva, ‘οστι (hoste): “com o resultado de que todos pecaram”. 58 Ele explica, “Paulo está apresentando um resultado, a sequela à influência má de Adão para a humanidade por causa da ratificação de seu pecado nos pecados de todos os indivíduos. Ele concederia assim aos pecados individuais uma causalidade secundária ou uma responsabilidade pessoal para a morte.” 59 Outra tradução, o valor elíptico causal de eph’ho em referência a Adão, nos apresenta o mesmo sentido: “devido ao qual todos pecaram.” Todos são responsáveis por seus pecados, mas também tem uma influência quase-causal (a força desta causalidade e a maneira de entendê-la, varia entre autores) do pecado de Adão. 60 Esta interpretação harmoniza-se melhor com a ideia de Paulo sobre o pecado como um poder (Rm 6,16-17; 7,13-14) e o sentido escatológico da passagem. 61 Também tem um paralelo na literatura apocalíptica. 2Ap.Br. 54,15 diz, “Embora Adão tenha pecado primeiro e trazido a morte a todos os seres humanos, mesmo assim cada um dos que dele nasceu, preparou sua própria alma para o futuro tormento ou escolheu para si mesmo a glória que terá.” 62 À luz da visão escatológica, Käsemann diz: A inegável individualização do v. 12d dá profundidade ao que é dito sobre o escopo do desastre [em v. 12abc], como reflexão ulterior no crente individual dá profundidade existencial ao evento universal da salvação. A preocupação de Paulo une o que para nós parece ser uma contradição lógica e o que de fato se torna antitético no judaísmo: ninguém começa sua própria história e ninguém pode dela ser exonerado. Cada um em sua própria conduta confirma o fato de que encontra a si mesmo no mundo marcado pelo pecado e pela morte e que é sujeito a uma pesada maldição [...] Ele [Paulo] não vê a pessoa 57 Flick e Alszeghy, Ladaria e Martelet aceitam esta influência como um ponto básico do texto. FLICK– ALSZEGHY, El Hombre bajo, p. 65; LADARIA, Teologia del pecado, p. 74; MARTELET, Libre réponse, p. 68-69. 58 FITZMYER, Romans, p. 405. 59 “Paul is expressing a result, the sequel to Adam’s baleful influence on humanity by the ratification of his sin in the sins of all individuals. He would thus be conceding to individual human sins a secondary causality or personal responsability for death.” Ibid., p. 416. 60 KERTELGE, El pecado de Adán, p. 516. Os padres Gregos: Origenes (cf. RONDET, Le péché originel, p. 95), João Damasceno, Teofilato e João Crisóstomo preferem esta interpretação. Cf. CRANFIELD, Critical commentary, p. 277. Dubarle também segue essa linha em sua própria maneira. DUBARLE, Le péché originel dans l’Écriture, p. 133-34. 61 Käsemann enfatiza o sentido histórico-cósmico de Paulo aqui, a ideia é que todos vivem sob o reino do pecado e da morte, a época escatológica antes de Cristo, e a responsabilidade pessoal é secundária dentro deste contexto (Commentary on Romans, p. 149-50). Ele vê uma ambivalência entre destino e culpa individual no v. 12d, traduzindo-o “em que circunstâncias todos pecaram”, também preservando a influência do pecado de Adão e a responsabilidade pessoal (Ibid., p. 148). 62 “Though Adam sinned first and brought untimely death on all human beings, yet each one of those who were born of him has either prepared for his own soul (its) future torments or chosen for himself the glories that are to be.” Citado em: FITZMYER, Romans, p. 413: Cf. 2Ap. Ba. 54,19, “cada um de nós é seu próprio Adão.” 24 como alguém que pode ser isolado, mas como a manifestação do mundo representado por ele. 63 Esse consenso parcial sobre Rm 5,12 mantém uma questão: como o pecado de Adão influi nos pecados e na morte de todos? Essa é exatamente a questão que se coloca no coração da discussão sobre a doutrina do pecado original. 1.1.3 Avaliação do testemunho bíblico Pode-se concluir esse breve resumo do testemunho bíblico sobre o pecado com quatro afirmações centrais em relação ao pecado original. Primeira, no fundo o pecado é uma ofensa contra Deus e cria uma ruptura na relação com Ele. Segunda, a partir dessa ruptura, ou como parte dela, surge a imoralidade, a discórdia humana, a fraqueza, a desordem, os atos da sarx. Terceira, toda a humanidade está no estado de alienação de Deus por causa do primeiro pecado e da continuação da transgressão contra Deus, tornando-se prisioneira do pecado da sarx. Quarta, o ser humano é incapaz de superar sua situação. Flick e Alszeghy resumem bem esses quatro pontos: [...] na Bíblia está presente a convicção de que todos os homens pecam. A universalidade do pecado se explica por meio de uma inclinação universal e irresistível, da qual o homem é incapaz de se liberar por si mesmo. Aparece então o paradoxo, que não recebe uma explicação ulterior, de como pode o pecado pessoal de cada um ser ao mesmo tempo imputável e inevitável. O impulso irresistível para o pecado é uma ausência da paz de Deus [...] É um estado da maldição que pesa sobre a humanidade. 64 Portanto, pode-se concordar com Grossi e Sesboüé, que afirmar que a Escritura nada menciona sobre os aspectos da doutrina do pecado original, “parece pelo menos uma grave simplificação da questão.”65 Existe, pelo menos, uma base significante nas Escrituras para o desenvolvimento da doutrina do pecado original. 66 Flick e Alszeghy nos apresentam uma posição justificável, a saber: a partir da Escritura não se pode afirmar uma imputação do 63 “The undeniable individualizing in v. 12d gives depth to what is said about the scope of the disaster [in v. 12abc], as later reflection on the individual believer gives existential depth to the universal event of salvation. Paul’s concern unites what seems to us to be a logical contradiction and what does in fact become antithetical in Judaism: No one commences his own history and no one can be exonerated. Each in his own conduct confirms the fact that he finds himself in a world marked by sin and death and that he is subject to the burdening curse […] He [Paul] does not view a person as a being who can be isolated but as a manifestation of the world represented by him.” KÄSEMANN, Commentary on Romans, p. 149-50. 64 “[…] en la Biblia está presente la convicción de que todos los hombres pecan. La universalidad del pecado se explica por medio de una inclinación universal e irresistible, de la que el hombre es incapaz de librarse. Aparece entonces la paradoja, que no recibe una explicación ulterior, de cómo puede el pecado personal de cada uno ser al mismo tiempo imputable e inevitable. El impulso irrefrenable hacia el pecado es un ausencia de la paz de Dios […] Es un estado de maldición, que pesa sobre la humanidad.” FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 81. 65 SESBOÜÉ, História dos dogmas II, p. 163. 66 Muitos teólogos concordam com essa conclusão. Pode-se levar como exemplos das escolas diferentes Schoonenberg, da nouvelle theologie, e Labourdette, dos tomistas. SCHOONENBERG, Man and sin, p. 125, 139-40; LABOURDETTE, Le péché originel, p. 357-393. 25 pecado de Adão a todos os seus descendentes, nenhuma clara transmissão do pecado original e nenhuma explicação da origem histórica da humanidade. 67 1.2 O desenvolvimento da doutrina na tradição 1.2.1 O pecado nos padres da Igreja antes de santo Agostinho Os padres antes de Agostinho não discutem em detalhe a questão da origem e da continuação do pecado, mas em geral repetem as fórmulas bíblicas. Melitão diz que a desobediência do homem e da mulher no Éden resultou em condenação e, “legando a seus filhos esta herança [...] a luxúria [...] a corrupção [...] a desonra [...] a escravidão [...] a tirania [...] a morte [...] a perdição” que causou a imoralidade e a concupiscência na vida humana. 68 Justino explica que a raça humana caiu sob o poder da morte e do diabo por causa de Adão e depois cometeu as transgressões pessoais também. 69 Ireneu afirma, seguindo o texto de Rm 5,12-21, que o homem teve pecado em si mesmo, e através da transgressão de um homem muitos foram feitos pecadores (Rm 5,19). 70 A desobediência tornou-se a causa da morte porque Adão tornou-se o primeiro deles que morrem. 71 Tertuliano, a partir de seu traducianismo, afirma que a alma é o produto da semente com o corpo.72 A natureza, alma e corpo, é originada de Adão e então é impura e corrupta, escrava do diabo.73 Santo Ambrósio praticou o batismo das crianças, assegura que todas têm pecado hereditário, em sucessão do pecado do primeiro homem, e a água do batismo lava isso e os pecados pessoais.74 Os padres Gregos mantêm uma ligação entre o pecado de Adão e os pecados pessoais e a necessidade universal da salvação. Orígenes, em Peri Archon, explica o mal e a 67 FLICK–ALSZEGHY, El Hombre bajo, p. 83. MELITÃO, Sobre a páscoa, no. 47-56, p. 83. Sesboüé afirma sobre Melitão que, “O mínimo é conceder que as categorias da catequese de Melitão estão abertas à interpretação teológica do pecado original tal qual ela foi compreendida depois dele, na época da polêmica pelagiana. Todos esses testemunhos relativos à catequese batismal, ainda que permaneçam mais gerais e ainda pouco evoluídas teologicamente, levam à mesma conclusão: há um rastro de pecado no homem, precisamente porque ele é filho de Adão.” SESBOÜÉ, História dos dogmas II, p. 168. 69 JUSTIN, Dialogue with Trypho, 88, 4. 70 IRENAEUS, Against the heresies, III. 18, 7. 71 Ibid., III. 22, 4. O julgamento de Sesboüé é pertinente aqui, “O clima do pensamento de Ireneu sobre o pecado na humanidade é, pois, bem menos trágico que o de Agostinho. Esse pecado não é uma catástrofe; é uma peripécia, grave sem dúvida, mas quase inevitável e previsível, dada a fraqueza do homem no início; a peripécia deixa o homem capaz de liberdade, e a salvação trazida por Cristo triunfa em honra do homem: ele até a integra, de algum modo, na dinâmica do crescimento da humanidade em direção a Deus.” SESBOÜÉ, História dos dogmas II, p. 171. 72 TERTULLIAN, Treatise on the soul, 27. 73 Ibid., 39-41. Cf. TERTULLIAN, On the flesh, 17,3. 74 AMBROSE, On the mysteries, n. 31-32. 68 26 corrupção a partir da livre decisão das naturezas racionais que caem fora de Deus aos níveis mais e mais imperfeitos e materiais, 75 e faz alusões ao pecado de Adão como parte de uma grande visão teológica da criação.76 Em seus comentários bíblicos ele defende o batismo das crianças, mas parece ligar as consequências do pecado com a corporalidade. 77 Cirilo de Jerusalém representa bem a perspectiva geral dos padres gregos. O ser humano caiu com Adão sob a influência do diabo. 78 Mas, a alma é criada sem pecado e cada um peca voluntariamente.79 A história do ser humano é uma revolta contínua contra Deus, de Caim ao tempo dos profetas, até o tempo de Jesus.80 Então, todos precisam da salvação do pecado, que Jesus oferece através da cruz.81 Atanásio distingue entre o estado natural, que é mortal, e a graça de Deus que trouxe a imortalidade, que o ser humano rejeitou com o pecado.82 Portanto, a queda é da graça ao estado natural. Mas, ele continua sua reflexão com a história do pecado que trouxe a corrupção e o mal ao ser humano.83 Atanásio trata de todos os homens juntos como uma pessoa coletiva. Em relação a Rm 5,12, São João Crisóstomo interpreta São Paulo e diz que no pecado de Adão todos se tornaram mortais, e os pecados inumeráveis seguiram o primeiro.84 São Gregório Nazianzeno segue a narrativa de Gênesis, em que o efeito do pecado de Adão foi a expulsão de Paraíso, da árvore da vida e de Deus, com a punição da morte. Existe uma sugestão que o ‘vestuário de pele’ (Gn 3,21) significa a carne mais pesada.85 Ele também afirma que os pecados do ser humano se tornaram muitos, e uma ‘doença’ cresceu através do tempo.86 São Gregório de Nissa enfatiza que a morte em consequência do primeiro pecado é espiritual, uma alienação de Deus.87 Os descendentes de Adão compartilham, em seu estado de exílio, o “hábito de pecar” que originou com esse mal e espalhou-se em todos.88 Ladaria resume o testemunho pré-agostiniano da seguinte maneira: Sem pretender uma sistematização total da matéria, notamos algumas direções: a união de todos os homens em Adão e em Cristo, com o peso posto 75 ORIGEN, De principiis, I. 6, 2. RONDET, Le péché originel, p. 87-88. 77 Ibid., p. 90-91, 96-97. 78 CYRIL, Catechetical lectures, II, 4-5. 79 CYRIL, Catechetical lectures, IV, 19. 80 Ibid., XII, 5-7. 81 Ibid., XIII, 28. 82 ATHANASIUS, On the incarnation, 4. 83 Ibid., 5. 84 CHRYSOSTOM, Homilies on Romans, X, 2-5. 85 NAZIANZEN, Oration 38, n. 12. 86 Ibid., n. 13. 87 NYSSA, Against Eunomius, II, 13. 88 NYSSA, On virginity, 12. Por um argumento que São Gregório concorda substancialmente com Agostinho e Trento, lê: McCLEAR, The fall of man, p. 175s. 76 27 sobretudo neste último; a ‘herança’ de Adão, que se manifesta em certa ‘corrupção’ da natureza que está em relação com o primeiro pecado: a morte, a concupiscência, o pecado da ‘natureza’, mesmo com a imprecisão que esta expressão possa ter; os pecados pessoais que se veem também, pelo menos em certas ocasiões, como consequência do pecado de Adão; o batismo das crianças, uma práxis que sem dúvida obriga a uma reflexão sobre seu sentido e sobre a situação da criança antes e depois de recebê-lo, etc. 89 A ligação entre o pecado de Adão e os pecados pessoais, o estado de concupiscência e de morte, a necessidade da graça de Cristo, esses parecem ser os elementos comuns da teologia patrística antes de Agostinho. 1.2.2 Santo Agostinho Santo Agostinho é o primeiro padre que desenvolve uma teologia do pecado em relação a Adão e a toda a humanidade. Existe uma evolução em seu pensamento, que começa com a controvérsia contra os maniqueístas e termina com a polêmica contra os pelagianos. Embora os pontos básicos da doutrina apareçam na carta Ad Simplicium,90 somente com a primeira obra anti-pelagiana, De peccatorum meritis et remissione, ele fala explicitamente do “pecado original”. 91 Seu argumento principal é cristológico, baseado no testemunho das Escrituras. Ele explica: Pode-se concluir que merecem ser apontados como inimigos da graça de Deus os que defendem que a natureza, em qualquer idade, não necessita de médico, e que afirmam não ter sido ela corrompida no primeiro Adão [...] Com efeito, desde o tempo em que por um só homem entrou o pecado no mundo (e pelo pecado a morte), e assim passou a todos os homens; nele todos pecaram (Rm 5,12), toda a massa de perdição tornou-se possessão do corruptor. Assim, ninguém, absolutamente ninguém desde então, se isentou ou se isenta ou se isentará do pecado, a não ser pela graça do Redentor.92 Se Cristo é o salvador de todos, então todos precisam a salvação. Uma pessoa precisa da salvação porque é pecadora. Então, todas as pessoas são pecadoras, incluindo as crianças. Se as crianças não pecam pessoalmente, elas têm que receber um pecado por geração. De onde vem esse pecado universal? De Adão. A lógica é clara. 89 “Sin pretender una sistematización total de la materia, señalemos algunas direcciones: la unión de todos los hombres en Adan y en Cristo, con el peso puesto sobretodo en este último; la <herencia> de Adán, que se manifiesta en la cierta <corrupción> de la naturaleza que se pone en relación con el primer pecado: la muerte, la concupiscencia, el pecado de la <naturaleza>, aun con la vaguedad que esta expresión puede tener; los pecados personales que se ven también, al menos en ciertas ocasiones, como consecuencia del pecado de Adán; el bautismo de los niños, praxis que sin duda obliga a la reflexión sobre el sentido de este bautismo y sobre la situación del niño antes y después de recibir-lo, etc.” LADARIA, Teologia del pecado, p. 85-86. 90 SAGE, Péché originel, p. 212. 91 AUGUSTINE, On merit, I, 9. 92 AUGUSTINE, On the grace of Christ, II, 34. A tradição vem de: AGOSTINHO, A graça, p. 299-300. A tradução da citação de Rm 5,12 segue uma edição do português e não do latim de Agostinho. Na tradução, porém, não se seguiu o texto de Agostinho. Por isso nós a corrigimos aqui. 28 O pecado original, para Agostinho, é o pecado de Adão, em quem todos pecaram. Ele usa Rm 5,12, que na versão Latina dizia, “in quo omnes peccaverunt”, para justificar a afirmação que todos estão implicados no pecado de Adão. Por isso, ele argumenta que o pecado original é transmitido a todos por geração e não por imitação.93 Pode-se resumir a teologia de Santo Agostinho sobre o pecado original em sete pontos centrais: 1. O pecado de Adão implica toda a humanidade porque é transmitido a seus descendentes por propagação, portanto, todos estão ‘em pecado’ e necessitam da salvação de Cristo;94 2. As crianças que não pecaram pessoalmente ainda estão sob o pecado de Adão, e por isso não estão num estado de inocência como Adão antes da queda;95 3. Então, o batismo é para a remissão dos pecados para todos, incluindo as crianças;96 4. Com a perda da graça de Deus, a morte corporal e espiritual é uma consequência do pecado de Adão;97 5. A concupiscência, como lei do pecado e corrupção da natureza, especialmente nos membros e no corpo, é uma consequência do pecado de Adão, sendo transmitida por geração;98 6. Nenhum adulto, desde Adão até Cristo, está sem pecado pessoal;99 7. Ninguém pode agir com a santidade e a justiça do reino sem a graça de Cristo;100 Portanto, para Agostinho, o ser humano herda três coisas do pecado de Adão: a culpa (porque todos pecaram nele); a concupiscência (como a corrupção da natureza); e a morte (porque a graça foi perdida). Somente a graça de Cristo no batismo pode tirar a culpa e levar para a vida eterna. A concupiscência permanece na natureza depois do batismo, mas com a renovação da pessoa na vida da graça, pouco a pouco será transformada até a regeneração final da ressurreição. 101 Durante o debate contra os pelagianos, Agostinho desenvolve sua posição, mas não muda seus pontos básicos. Existem algumas tensões na síntese agostiniana da doutrina. A primeira, como o pecado do primeiro homem pode ter uma grande consequência para todos os seus descendentes? Por que os humanos que não pecaram recebem tanto a imputação da culpa, lavada nas águas do batismo, quanto os efeitos do pecado, a corrupção e a morte? A segunda 93 Ibid., II, 38; II, 46; AUGUSTINE, On merit, I, 10-11. AUGUSTINE, On merit, I, 10-11; I, 19; II, 43; AUGUSTINE, On the grace of Christ, II, 34. 95 AUGUSTINE, On merit, III, 2; AUGUSTINE, On nature and grace, 9; 75. 96 AUGUSTINE, On the grace of Christ, II, 21; AUGUSTINE, On marriage, I, 22. 97 AUGUSTINE, On merit, I, 8; I, 21; AUGUSTINE, On nature and grace, 25. É importante afirmar que Agostinho entende que o corpo humano é naturalmente mortal e sujeito a corrupção, mas era preservado disso por graça antes do pecado. Cf. AUGUSTINE, On merit, I, 21. 98 AUGUSTINE, On merit, II, 4; AUGUSTINE, On nature and grace, 3; 75; 81; AUGUSTINE, On marriage, I, 25. 99 AUGUSTINE, On merit, II, 8; II, 34; AUGUSTINE, On nature and grace, 42. 100 AUGUSTINE, On the grace of Christ, I, 27; AUGUSTINE, On nature and grace, 70. Aqui Agostinho não exclui atos virtuosos no nível natural. Ele aceita que é possível ter virtude natural, limitada, sem a graça. 101 AUGUSTINE, On the grace of Christ, II, 44; AUGUSTINE, On marriage, I, 28. 94 29 tensão, como o ‘pecado original’ se transmite por geração? O que é este movimento? A tradição católica não adotou a afirmação de Agostinho, dos escritos mais tardios, que diziam que através da paixão do ato sexual o pecado original passa para os filhos. 102 Se o pecado original não é parte da natureza humana e os pais transmitem biologicamente a natureza aos filhos, como o pecado pode ser transmitido? Essa dificuldade é ainda mais problemática quando se lembra que, segundo Agostinho, Deus cria a alma diretamente. Então, não faz parte da transmissão biológica. Santo Agostinho percebeu esta dificuldade e evitou falar sobre ela. 103 A terceira tensão que temos é tematizada da seguinte forma: como a concupiscência (a corrupção da natureza) pode ‘quase’ causar os pecados pessoais e, ao mesmo tempo, se afirmar que a pessoa é livre e responsável pelos pecados? A quarta tensão, por que a culpa do pecado original, lavado no batismo dos cristãos, ainda passa para seus filhos? Agostinho responde a essa pergunta várias vezes, dizendo que a natureza é gerada e a vida em Cristo é re-generada, ou seja, o pecado original vem com a natureza e a graça da regeneração com o Cristo.104 Esses quatro grandes problemas ainda são difíceis de ser superados, e na história teológica escolas diferentes tomaram linhas diferentes para tentar evitar um ou outro problema. Os comentaristas contemporâneos têm várias reações à teologia de Agostinho. Rondet argumenta que Santo Agostinho não é infiel ao pensamento de São Paulo, mas ao mesmo tempo interpreta a significação do primeiro pecado diferente de Paulo. Agostinho vê na alusão a Gn 3, em Rm 5,12, algo realmente histórico e não mítico e paradigmático. 105 Ladaria e Flick-Alszeghy percebem que o foco da preocupação de Agostinho não é a afirmação da universalidade do pecado, mas a universalidade da salvação em Cristo.106 Grossi e Sesboüé concordam com isso, contudo, ao mesmo tempo, fazem duas críticas. Primeira, a ideia que todos pecaram em Adão e então recebem a culpa desse pecado é muito problemática. Segunda, a ligação da concupiscência com a carne e a libido é exagerada. 107 Ruiz de la Peña critica Agostinho principalmente por causa da consequência de sua lógica, a condenação das crianças não batizadas, e da tradução de uma noção ética, a culpa, para uma que é ontológica, o pecado original. Isso cria uma visão bem pessimista do ser humano, e leva 102 AUGUSTINE, On marriage, I, 27. Cf. AUGUSTINE, On merit, II, 59. 104 AUGUSTINE, On the grace of Christ, II, 44-45; AUGUSTINE, On marriage, I, 20-21. 105 RONDET, Le péché originel, p. 32. 106 LADARIA, Teologia del pecado, p. 90; FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 130. 107 SESBOÜÉ, História dos dogmas II, p. 157. 103 30 para distorções na história do Ocidente.108 Ricoeur argumenta que a noção de transmissão do pecado é uma racionalização que mistura as categorias éticas com as categorias biológicas. O sentido comum e interpessoal do pecado está perdido.109 Por isso, em relação à formulação de Agostinho, Ricoeur diz que o ‘pseudoconceito’ de pecado original “é antignóstico em seu fundo, mas quase-gnóstico em seu enunciado,” porque coloca o mal no nível da natureza. 110 Mas, pode-se concordar com a afirmação de Duffy, segundo a qual a ideia de Agostinho de que o mal moral é a consequência da decisão livre do ser humano e não uma consequência inevitável da natureza (contra os maniqueístas), e que o pecado é inevitável na vida humana por causa de uma corrupção universal (contra os pelagianos), ou seja, o pecado é tanto voluntário quanto inevitável. 111 Como se explica esse estado do ser humano sem o recurso ao sentido biológico da transmissão do pecado? 1.2.3 A teologia ocidental depois de santo Agostinho A tradição ocidental está marcada pela teologia do doutor de Hipona, mas também desenvolve algumas novas explicações. Santo Anselmo, em seu tratado Sobre a concepção virginal e o pecado original, reafirma que em Adão todos pecaram pelo fato que todos existem de Adão e todos recebem a necessidade de pecar pessoalmente.112 Ao mesmo tempo, o pecado original não é transmitido através da semente dos pais, porque não pode haver pecado onde não há a vontade da alma racional. 113 Então, ele rejeita a teoria da transmissão de Agostinho. Em vez disso, Anselmo explica que em Adão toda a natureza humana estava presente. Quando Adão pecou, ele perdeu a graça original para ele e a natureza humana total. Então, “[a natureza humana em Adão] contrai o pecado junto com a punição acompanhada pelo pecado quando é propagada através de seu poder dado na reprodução natural.” 114 Anselmo fala sobre um ‘pecado da natureza’, que é a privação da justiça original que cada pessoa deve ter por natureza. O pecado pessoal de Adão causou a privação para sua 108 RUIZ DE LA PEÑA, El don de Dios, p. 132-34. RICOEUR, The symbolism of evil, p. 84. 110 RICOEUR, O ‘pecado original’, p. 228. Ricoeur explica que o pecado original se torna uma ‘mitologia dogmática,’ que mistura os símbolos com os conceitos, “Antignóstico em sua origem e por intenção, já que o mal permanece integralmente humano, o conceito de pecado original tornou-se por assim dizer gnóstico na medida em que se racionalizou; ele constitui, doravante, a pedra angular de uma mitologia dogmática comparável, do ponto de vista epistemológico, à da gnose.” Ibid., p. 236. 111 DUFFY, Our hearts of darkness, p. 600. Duffy confia bastante na interpretação de Ricoeur sobre a ‘vontade servil.’ Veja: RICOEUR, O ‘pecado original’, p. 241. 112 ANSELMO, De la concepción, c. 7, p. 25. 113 Ibid., c. 3, p. 13; c. 7, p. 25. 114 “[humana natura quae sic erat in Adam tota] peccatum secum comitante poena peccati, quantumcumque per datam propaganda naturam propagetur, trahit.” Ibid., c. 10, p. 33. 109 31 descendência. 115 Essa privação da justiça é a injustiça e uma ofensa contra Deus, então é uma culpa (reatus). Para tirá-la do ser humano, é necessária a satisfação feita por Cristo. 116 Portanto, o pecado original não é a concupiscência ou a corrupção.117 Santo Tomás desenvolve a ideia anselmiana do pecado da natureza, mas dá mais espaço para a concupiscência.118 Para o Aquinate, Deus criou o ser humano na graça da justiça original, que ele define como o estado em que, “a razão estava submetida a Deus, as forças inferiores à razão, e o corpo à alma.”119 Adão pecou e perdeu essa graça. Esse pecado implica todo o ser humano porque toda a humanidade está presente em Adão como uma pessoa coletiva, do mesmo modo que uma pessoa não peca somente com uma parte do corpo, já que todo o corpo está implicado na culpa. Portanto, num sentido, toda a humanidade pecou em Adão.120 Santo Tomás descreve Adão como uma causa universal, porque ele foi a fonte de toda a natureza humana. 121 Nesse sentido, a transmissão do pecado original se dá pela descendência física de Adão, ou seja, a geração da natureza humana. 122 A concupiscência é um efeito secundário do afastamento de Deus e da perda da graça.123 Por isso, o Aquinate define o peccatum originale originatum da seguinte maneira, “Assim, o pecado original é materialmente a concupiscência, mas formalmente é a falta da justiça original.”124 Esses dois elementos se reúnem no ‘hábito’ do pecado original como uma ‘segunda natureza,’ que é a disposição desordenada da natureza.125 A corrupção da natureza, para Santo Tomás, é uma consequência da perda da graça, porque o ser humano se afastou do Criador em direção da criatura. As imperfeições morais e a morte são as consequências do fato que a natureza humana é deixada a si mesma, fora da presença de Deus.126 Então, o ser humano por natureza não é imortal127 ou perfeito moralmente.128 115 Ibid., c. 23, p. 61; c. 27, p. 71. Ibid., c. 23, p. 63. 117 Ibid., c. 27, p. 71. Para uma exposição completa da teologia de Anselmo, veja: McMAHON, Anselm and the guilt. Rondet identifica vários pensadores medievais que seguem Anselmo. Veja: RONDET, Le péché originel, p. 181-89 118 RONDET, Le péché originel, p. 195-96. 119 STh. 1a. 95, 1. Para uma defesa da tese segundo o qual o estado de justiça original era um estado de graça e não somente a perfeição da natureza, VAN ROO, Grace and original justice, p. 146-47. 120 AQUINAS, De Malo, IV, 1 corp. 121 Ibid., IV, 1 ad 18. 122 Ibid., IV, 2 corp. 123 Ibid., IV, 2 corp. 124 STh. 1a2ae. 82, 3. Cf. De Malo, IV, 2 corp. 125 STh. 1a2ae. 82, 1. 126 STh. 1a2ae. 87, 7. 127 STh. 1a. 97, 1. 128 STh. 1a. 95, 1-2. 116 32 A tradição depois de santo Tomás tende a enfatizar um ou outro aspecto de sua síntese. A maioria dos teólogos medievais concordam com ele que a essência do pecado original é a privação da graça. 129 Ao mesmo tempo, a devotio moderna, com seu foco na experiência espiritual, tende a enfatizar a concupiscência como o pecado original. 130 Os protestantes, especialmente Lutero, seguiram a devotio moderna e identificam a concupiscência com o pecado original, 131 com algumas consequências importantes. Por exemplo, segundo Lutero, o ser humano permanece pecador diante de Deus depois do batismo, porque sua natureza corrupta permanece. 132 Na tradição católica, Baio e Jansênio fazem a mesma identificação,133 e portanto têm visões bem parecidas com a dos protestantes. Durante a época moderna, a discussão sobre o pecado original entre os católicos e os protestantes, e entre os jesuítas e os jansenistas, basicamente foca na questão do nível da corrupção da natureza humana e o efeito da graça de Cristo. Somente no século XX o debate mudou. Passou-se a refletir sobre os novos problemas criados pela teoria da evolução. 1.2.4 O Magistério da Igreja e o pecado original A síntese agostiniana do pecado original influenciou as decisões do Magistério da Igreja. Primeiro, o XV sínodo de Cartago (418) condenou Pelágio e promulgou nove cânones (DH 222-230), inspirados pelo pensamento de Agostinho.134 O papa Zózimo confirmou essas decisões e escreveu uma carta, a Tractoria (DH 231), que reformulou algumas proposições do sínodo.135 O segundo concílio de Orange (529), sob a presidência de Cesário de Arles, tentou responder às tendências semipelagianas que se manifestavam ainda na Gália. Sesboüé explica que os 25 cânones (DH 370-95), “propõem aqui, pois, como doutrina de fé, o ensinamento agostiniano: o exercício do livre-arbítrio está ferido em consequência do pecado original.” 136 O concílio de Trento (1546-63), na formulação mais importante da história da Igreja, definiu em cinco cânones a doutrina católica sobre o pecado original. Os cânones de Orange e de Cartago foram referências importantes para os padres do concílio. Os dois primeiros cânones 129 VOLLERT, The two senses, p. 22. SESBOÜÉ, História dos dogmas II, p. 195-96. 131 RONDET, Le péché originel, p. 201. 132 SESBOÜÉ, História dos dogmas II, p. 199. 133 Ibid., p. 213, 215. 134 Ibid., p. 142. É importante notar que o primeiro sínodo de Cartago, em 411, que condenou Celéstio, um discípulo de Pelágio, não teve a presença de Agostinho. Então ele não começou a polêmica pelagiana. SESBOÜÉ, História dos dogmas, p. 140-41. 135 Ibid., p. 159-60. 136 Ibid., p. 186. 130 33 (DH 1511-12) reformularam os cânones 1o e 2o de Orange, 137 e o cânone 4o (DH 1514) retomou o cânone 2o do concílio de Cartago. 138 A teologia de Agostinho está detrás da formulação de Trento.139 Em breve, os cânones de Trento condenam quem que afirma que: 1. Depois de sua transgressão, Adão não perdeu “a santidade e a justiça” e não incorreu na “indignação de Deus,” e na morte e na “escravidão sob o poder” do diabo, e que o Adão inteiro não “mudou para pior, no corpo como na alma” (DH 1511); 2. “A prevaricação de Adão não prejudicou nem a ele nem à sua descendência”, e “que perdeu somente para si e não também para nós a santidade e a justiça recebidas de Deus;” ou que, “manchado pelo pecado de desobediência, ele transmitiu a todo o gênero humano ‘só a morte’ e as penas do corpo, e não também o pecado, que é a morte da alma [e cita Rm 5,12]’” (DH 1512); 3. O pecado de Adão não é transmitido para todos “por propagação, não por imitação,” e, “pode ser tirado com as forças da natureza humana ou com outro remédio que não os méritos do único mediador, nosso Senhor Jesus Cristo” (DH 1513); 4. As crianças não “devam ser batizadas recém saídas do útero materno”, ou que as crianças, “não herdam de Adão nada do pecado original que seja necessário purificar com o banho da regeneração para conseguir a vida eterna; e em consequência, para elas a forma do batismo para a remissão dos pecados não deve ser considerada verdadeira, mas falsa” (DH 1514); 5. A graça de Jesus Cristo, conferida no batismo, não tira “a condição de réu <proveniente> do pecado original, ou sustenta que tudo o que tem verdadeiro e próprio caráter de pecado não é tirado, mas apenas rasurado ou não imputado” (DH 1515).140 Os pontos básicos são claros. O pecado de Adão (peccatum originale originans) perdeu para ele e sua descendência a santidade e incorreu na morte. Esse pecado é transmitido por propagação a todos os seus descendentes (peccatum originale originatum) e somente pode ser tirado através da graça de Cristo no batismo. Essa graça do batismo tira realmente o pecado original, embora a concupiscência permaneça depois, mas não como pecado (DH 1515).141 A interpretação dos cânones do Trento fica sujeita ao debate. Ladaria aponta o fato que Trento não diz muita coisa nova em relação ao pecado original, visto o uso dos cânones de Orange e Cartago. Ladaria sumariza a afirmação central como, “Esta situação de pecado na qual o homem nasce é prévia à sua vontade, deriva de um ‘pecado original originante’, que o concilio identifica com o pecado de Adão, cabeça do gênero humano, do 137 Ibid., p. 203-04. Ibid., p. 206-07. 139 Ibid., p. 209. 140 Para um comentário dos três primeiros cânones a partir de seu contexto histórico, veja: VANNESTE, Alfred. Le décret du concile, p. 695-726. 141 Esses três pontos correspondem ao resumo de Flick e Alszeghy: “Los teólogos están convencidos de que el concilio de Trento define: a) la realidad del pecado original originante (como un hecho único, cometido en un momento determinado del tiempo por el primer padre de la humanidad); b) la existencia del pecado original originado en todos los hombres (comprendido como un estado que implica la privación de la santidad y la justicia, en la que había sido constituida la humanidad antes del primer pecado, y la necesidad de un verdadero y auténtico perdón, que ha de obtenerse de Cristo en el bautismo); c) la supresión completa de este pecado en el bautismo.” FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 27. 138 34 qual todos descendemos.”142 Mas, fora da frase, “por propagação e não por imitação”, uma frase anti-pelagiana de Agostinho, 143 Trento não define o modo de transmissão do pecado original. 144 O concílio define o pecado original primeiramente como uma perda da graça, que leva para a morte, e não como a concupiscência. 145 Além disso, Sesboüé observa que, “Utilizando os textos de santo Agostinho na linha dos concílios precedentes, Trento não se obriga a emitir seu parecer sobre as interpretações que lhes são dadas de diversas partes para sustentar diferentes teses.” 146 A teologia de Agostinho é uma referência importante para Trento, mas não se pode reduzir a doutrina do Trento ao pensamento de Agostinho. 1.2.5 A condição sine qua non da doutrina Da exposição acima, a questão sine qua non da doutrina parece mais clara. O debate na literatura sobre o que é essencial à doutrina foca na interpretação dos textos da Escritura, especialmente Gn 3 e Rm 5, 12-21, e nos cânones de Trento. Essa breve exposição mostra que pelo menos existem três proposições centrais: 147 o pecado de Adão o levou a perder a graça para ele e sua descendência, com a morte como uma de suas implicações;148 existe uma ligação do pecado de Adão (peccatum originans) com os pecados inevitáveis de todos os seres humanos (explicado de modos diferentes, mas quase sempre com uma referência à concupiscência);149 e a necessidade da graça e da salvação de Cristo para todos.150 A doutrina tenta explicar essas convicções de modo consistente e razoável. Mas não existe um consenso sobre outras três questões importantes: o modo de transmissão do pecado original, 151 em que sentido a humanidade está implicada na culpabilidade do pecado de Adão (por participação ou por natureza ou por imputação etc.);152 e o nível da corrupção da natureza 142 “Esta situación de pecado en la que el hombre nace es previa a su voluntad, deriva de un <pecado original originante>, que el concilio identifica con el pecado de Adán, cabeza del genero humano, del que todos descendemos.” LADARIA, Teologia del pecado, p. 104. 143 AUGUSTINE, On merit, I. 10-11. Para um commentario, veja: VANNESTE, Alfred. Le décret du concile, p. 719. 144 LADARIA, Teologia del pecado, p. 100; BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 124; DUFFY, Our hearts of darkness, p. 615. 145 VANNESTE, Alfred. Le décret du concile, p. 712; FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 27; SESBOÜÉ, História dos dogmas II, p. 202, 205. 146 SESBOÜÉ, História dos dogmas II, p. 209. 147 O resumo aqui apresentado tem como inspiração a pesquisa detalhada do artigo de Gaudel. Cf. GAUDEL, Péché originel, p. 584s. 148 GAUDEL, Péché originel, p. 584-85; 597. 149 Ibid., p. 591. 150 Ibid., p. 589. 151 Gaudel, em seu artigo no Dictionnaire de théologie catholique, fala sobre o mistério da propagação, que ainda não tem uma resposta comum. Ibid., p. 589. 152 Ibid., p. 591. 35 (somente o pessimismo protestante e jansenista está excluído). 153 A tradição favorece a interpretação de uma transmissão que se dá através da geração da natureza humana, mas o formulário de Trento “por propagação e não por imitação” é ambíguo. Muito depende do que exatamente é transmitido: a culpa do pecado? Uma natureza corrupta? Uma natureza ‘natural’, sem a graça da justiça original? Então, um teólogo ainda tem espaço para pensar e explicar a doutrina? 1.2.6 As incoerências na doutrina do pecado original A síntese clássica da doutrina, brevemente esboçada acima, levanta várias questões. Connor explica algumas delas: Como podemos explicar o fato de que o único pecado de um homem é a única explicação para a condição da privação em cada outro homem? Pela inclusão virtual de todos os homens nesse único homem? Pela imputação jurídica? Por alguma forma da ‘personalidade corporativa’? Como sabemos, nenhuma dessas teorias têm provado tudo satisfatoriamente. Como podemos explicar a transmissão dessa condição pecaminosa? Podemos aceitar que a nãotransmissão da graça, que o ser humano deve ter pelo decreto de Deus, é a transmissão positiva da culpa? Em qual sentido a privação da graça pode ser chamada ‘pecaminosa’ no indivíduo quando ele não a acolhe pessoalmente? Esses e outros problemas incomodaram os teólogos durante séculos.154 Connor identifica três problemas: como o pecado de Adão pode ter um efeito universal? Como esse pecado é transmitido? Como uma pessoa recebe a culpa do pecado de outra? Pode-se demarcar esses problemas da seguinte maneira: o ‘efeito universal’, a ‘transmissão’ e a ‘responsabilidade pessoal’. Pelo fato de constituírem parte da herança comum da doutrina, qualquer interpretação deve responder a eles, ou pelo menos explicá-los. Há que se acrescentar ainda outro problema, o da ‘concupiscência’ em relação ao primeiro pecado. O pecado de Adão causou uma corrupção da natureza humana? Se sim, como e até que ponto? Os quatro problemas são interligados, ou seja, são aspectos distintos do mesmo desafio, que é o de explicar a relação entre o pecado do Adão (peccatum originans) e o estado do pecado de todos (peccatum originatum). Os teólogos contemporâneos tentam responder a essas questões, sobretudo a partir das interrogações levantadas pela teoria da evolução. 153 Ibid., p. 597. Essas três questões correspondem, mais ou menos, a três dos quatro temas da controvérsia atual sobre o pecado original identificados por Flick-Alszeghy. FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 27-28. 154 “How are we to explain the fact that the single sin of one man is the sole explanation for a condition of deprivation in every other man? By the virtual inclusion of all men in this one? By juridical imputation? By some form of "corporate personality"? As we know, none of these theories have proven fully satisfactory. How are we to account for the transmission of this sinful condition? Can we seriously hold that the non transmission of grace, which by God's decree man should have, is the positive transmission of guilt? In what sense can the deprivation of grace be called "sinful" in the individual when not personally willed by the individual? These and other problems have vexed theologians for centuries.” CONNOR, Original sin, p. 215. 36 1.3 A teoria da evolução e os problemas para a doutrina do pecado original A doutrina do pecado original entrou numa grande crise com o advento e a aceitação comum da teoria da evolução. Antes da publicação da Origem das Espécies, de Darwin, em 1859, a grande maioria das pessoas nas sociedades ocidentais acreditava na criação direta e imediata do ser humano por Deus. A visão da humanidade seguiu a narrativa básica da criação por Deus – um momento da inocência no paraíso – o pecado e a queda – a corrupção moral e a mortalidade. A maioria considerava Adão e Eva os primeiros humanos históricos. 155 Mas, com a teoria da evolução, toda essa narrativa foi questionada. Com a publicação de O Descendente do Homem (1871), Darwin não deixou nenhum dúvida que o ser humano era o resultado de um processo biológico que começou com outros animais mais primitivos e passou para a etapa dos primatas antes de chegar ao ser humano. Como Baugartner diz, “Estas duas imagens do homem, a da teologia e da ciência pareciam impossíveis de conciliar.” 156As técnicas da ciência e a complexidade das dificuldades que surgem merecem um breve excursus. 1.3.1 A teoria da evolução A teoria científica da evolução declara que os humanos vieram dos primatas através de um lento movimento da transformação.157 O processo consiste numa luta para a sobrevivência entre as espécies e dentro das populações das espécies. Através de uma maior facilidade para a sobrevivência, baseada na genética, o processo de ‘seleção natural’158 causa a lenta evolução das populações, até, eventualmente, se tornarem espécies distintas. A evolução não precisa de nenhuma intervenção direta de Deus; é completamente natural. O ser humano é um produto desse processo, das mesmas linhas genéticas dos primatas. Neste sentido, os humanos são animais, do mesmo feito que os outros animais, e têm os mesmos antepassados arcaicos dos macacos contemporâneos. 155 É interessante notar que, mesmo que tentassem repensar o ser humano num modo não-Cristão, os filósofos iluministas mantiveram esta estrutura básica. Esse é o caso da antropologia de Rousseau, em seu Segundo Discurso sobre a desigualdade. 156 « Ces deux images de l’homme, celle de la théologie et celle de la science, semblaient impossibles à concilier. » BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 116. Cf. também : RONDET, Le péché originel, p. 7. 157 Cf. por exemplo, DOBZHANSKY, Mankind evolving, p. 168-69. 158 Cf. AYALA, La teoría de la evolución, p. 63-119. 37 Uma pergunta muito importante para a teologia é a da origem do gênero homo sapiens. Para a doutrina do pecado original, a questão central é: em qual sentido a humanidade inteira tem uma origem comum? Os cientistas propõem dois modelos básicos para a evolução do homo sapiens, monofiletismo ou polifiletismo. Dobzhansky explica os dois, “Se a humanidade viva é descendente de uma única forma ancestral (monofileticamente) ou de várias formas (polifileticamente), essa disputa é, há muito tempo, inconclusa.”159 Até agora, a evidência aponta à única origem hipótese (monofilétismo). 160 Contudo, os dois modelos aceitam que o homo sapiens é uma só espécie com uma só raiz e uma só origem. Dobzhansky explica: Todos os homens pertencem à mesma espécie. A humanidade é uma entidade biologicamente com sentido, tal como é uma entidade culturalmente, sociologicamente e filosoficamente. A antiga questão, se a espécie humana tem uma origem monofilética ou polifilética não tem mais o mesmo sentido que antes.161 Esta pesquisa pressuporá o monofiletismo como a teoria comum da origem humana, embora, essa opção não resolva a questão de saber se a único filo humano tem seu começo com um grupo (poligenismo) ou com só um homem e uma mulher (monogenismo). A ideia do monogenismo 162 ocupa um lugar central na tradição Cristã, mas não se harmoniza bem com a teoria da evolução. O processo da evolução ocorre no nível das populações e não entre indivíduos separados. 163 Como os teólogos percebem, a evolução implica, quase que necessariamente, o poligenismo.164 A ideia de um homem e uma mulher como os pais de toda a humanidade, simplesmente não é provável, ou mesmo possível, dentro da evolução, e as teorias científicas não propõem tal noção. O otimismo de alguns cristãos sobre o estudo genético que propõe uma ancestral de todos os homens, a assim chamada ‘Eva Mitocondrial’, não é justificável. A Eva Mitocondrial não pode ser identificada com a Eva do Gênesis. 165 De fato, um estudo do DNA do núcleo, que é mais importante, mostra que a diversidade nos genes que existem hoje sugerem que o número mínimo de população humana 159 “Whether living mankind is descended from a single ancestral form (monophyletically) or from several forms (polyphyletically) has long been inconclusively disputed.” DOBZHANSKY, Mankind evolving, p. 188. 160 FOLEY, Os humanos, p. 159-62. 161 “All men belong to the same species. Mankind is a biologically meaningful entity, just as it is an entity culturally, sociologically, and philosophically. The old question, whether the human species is monophyletic or polyphyletic in origin has, as shown in the foregoing chapter, no longer the same meaning it once had.” DOBZHANSKY, Mankind evolving, p. 192. 162 Baumgartner dá uma breve definição, « Le monogénisme, au sens théologique, est la doctrine selon laquelle tous les hommes descendent, par voie de génération, d’un couple primitif unique. Le polygénisme admet une pluralité de couples. » BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 115. 163 DOBZHANSKY, Mankind evolving, p. 180-81. 164 Cf. BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 117; LABOURDETTE, Le péché originel, p. 169-70. 165 Para uma explicação da Eva Mitocondrial, veja: FOLEY, Os humanos, p. 162-64. 166-67. 38 necessária para permitir esta diversidade é de 4.000 indivíduos reproduzindo, ou seja, uma população de 15.000 no total.166 Em conclusão, hoje em dia o poligenismo é a teoria da origem dos humanos que goza do consenso da comunidade científica. Os teólogos devem trabalhar com as teorias científicas aceitas pela grande maioria da comunidade científica. Embora não rejeite o monogenismo ou a possibilidade de reconciliar o monogenismo teológico com o poligenismo científico, esta dissertação aceitará o poligenismo como um fato dado pela ciência e avaliará as propostas teológicas à luz disso. 1.3.2 Os problemas para a antropologia cristã Essa explicação científica da origem do ser humano desafia o conceito tradicional cristão da origem e da essência dos seres humanos. Uma crença fundamental do cristianismo é que o homem e a mulher são especiais na criação de Deus, porque foram criados à sua imagem e semelhança (Gn 1,28). Os humanos têm almas imateriais e foram criados por uma relação íntima com Deus. À luz da evolução, no entanto, os humanos não parecem especiais, mas somente animais mais complexos e avançados no processo da evolução. A própria ideia de uma alma espiritual não combina bem com o desenvolvimento gradual dos humanos a partir dos primatas. Então, há um conflito de antropologias. Os humanos são animais complexos ou seres espirituais à imagem de Deus? Se alguém aceita a segunda perspectiva, quando então os primatas se tornaram humanos? Em um momento ou lentamente? Essas questões desafiam a teologia cristã.167 Além disso, há três grandes problemas para a doutrina do pecado original. De novo Connor os formula bem: A evolução apresenta a doutrina do pecado original com uma série de questões interessantes. É o Adão tradicional, especialmente possuindo dons preternaturais clássicos, um ‘parêntese maravilhoso’ na teoria evolucionista (progressiva) mais perfeita do mundo? A teoria científica mais favorável, a do poligenismo (a emergência original de um número dos seres humanos), se não for do polifiletismo (a emergência original de vários grupos distintos de seres humanos), deve ser rejeitada no campo do pensamento teológico? Como um teólogo explica a unidade da família humana, um pressuposto para a universalidade do pecado original, em vista dessas hipóteses? Num contexto 166 AYALA, The myth of Eve, p. 1935. Infelizmente, por causa do espaço, este estudo não pode tratar a questão da criação da alma, que é muito importante no debate sobre a evolução. 167 39 poligenístico, como um teólogo explicaria a transmissão do pecado original, como resultado de uma herança física do pai de todos (Adão)?168 Pode-se assim nomear três dificuldades. A primeira é a do ‘paraíso-problemático’. A narrativa cristã da criação-paraíso-queda, parece ser contra os dados científicos,169 porque nunca existiu um paraíso ou um ser humano perfeito.170 A segunda é a do ‘monogenismo-problemático’. Parece que, para manter a unidade de todos os seres humanos com Adão e também a transmissão do pecado original por geração, a doutrina tem que ser baseada no monogenismo, que contradiz os dados científicos. A terceira é a da ‘transmissão-problemática’. A questão da transmissão do pecado por “propagationem, non imitationem” (DH 1513) também ignora a teoria da evolução. Herdamos nossos genes e outras coisas epigenéticas, 171 mas não os efeitos de nossas ações. Existe um nível de herança que inclui as consequências das ações e as coisas espirituais (por exemplo a mancha na alma)? De fato, a herança biológica pode explicar o problema da concupiscência, sem recurso a um pecado primitivo, através da redução da tendência a uma certa consequência do fato biológico da competição e do egoísmo animal. Precisa preservar ou distinguir entre a tendência ao mal e os instintos animais, ou pode identificar os dois e então rejeitar a ideia que a concupiscência é uma consequência do pecado? Pode-se ver as conexões entre esses três problemas com os quatro em relação à consistência da doutrina. Por um lado, a evolução foca a questão da explanação do peccatum originale originans, ou seja, a possibilidade de um primeiro pecado e a unidade do gênero humano. Por outro lado, a doutrina clássica tem mais dificuldades com o peccatum originale originatum, a transmissão do pecado e a imposição aos descendentes das consequências dos atos dos antepassados. Mas, a transmissão é um problema central que toca os dois lados. Seria possível explicar o pecado original de um modo que se harmonize com a evolução, sendo consistente com a exegese bíblica, e resolvendo as tensões com seus pontos básicos? Guiados 168 “Evolution presents the doctrine of original sin with a number of interesting questions. Is the traditional Adam, particularly as endowed with the classical preternatural gifts, a "marvelous parenthesis" in the otherwise progressively more perfect evolution of the world? Is the scientifically more favorable theory of polygenism (the original emergence of a number of human beings), if not polyphyletism (the original emergence of several disparate groups of human beings), to be rejected out of hand on theological grounds? How does the theologian explain the unity of the human family, a presupposition for the universality of original sin, in view of these hypotheses? In a polygenistic context, how would a theologian explain the transmission of original sin, related as it has been to direct physical generation from the first father of all?” CONNOR, Original sin, p. 217. 169 DUFFY, Our hearts of darkness, p. 608. 170 Rondet acha que esta é a questão mais importante no conflito: « Pour aller droit au cœur de la question, est il nécessaire, pour être orthodoxe, de tenir comme vérité catholique tout ce que la théologie nous a dit d’Adam et de ses privilèges ? Comment faut-il interpréter les chapitres de la Genèse que racontent la création et la chute de l’homme ? » Rondet, Le péché originel, p. 15. 171 Cf. JABLONKA, Evolution in four dimensions, cap. 4-6. 40 pelo princípio de que uma contradição entre a verdade da fé e a verdade da ciência não pode existir, Flick e Alszeghy dizem que, “[...] a partir dos anos 50 começaram na teologia católica alguns intentos que não se contentam em propor adaptações episódicas, mas que tentavam uma reinterpretação radical do dogma do pecado original, embora conservando sua substância.”172 Como os teólogos fizeram isso? 1.4 A status questionis na teologia contemporânea 1.4.1 Humani generis e o debate entre o monogenismo e o poligenismo Embora a primeira reação à teoria da evolução no mundo católico fosse defensiva, lentamente uma apropriação positiva começou a se dar. Pierre Teilhard de Chardin, como paleontólogo, foi um dos primeiros a tratar a doutrina cristã dentro do mundo em evolução. 173 Mas só nos anos quarenta um debate forte começou a se dar sobre a relação entre a evolução e a doutrina cristã. Rondet escreve: Em nossos dias, o dogma do pecado original tem sido um ponto de discórdia entre a ciência e a teologia. Em 1946 foi travada na França e em outros lugares uma batalha em relação às teorias evolucionistas. Em seguida, os ânimos se abrandaram. Em 1950, a encíclica Humani Generis fechou várias portas à pesquisa, mas ela abriu outras e desde então, na unidade da fé, se levantou problemas como o do poligenismo. 174 A Encyclica Humani generis (1950) teve uma mensagem mista sobre o debate. Por um lado aprovou, com algumas precauções, a discussão sobre a teoria da evolução e as tentativas de harmonizar a fé com os dados científicos (n. 35-36). Por outro, questionou a possibilidade de reconciliar o poligenismo com a doutrina do pecado original (n. 37). Desde a Humani generis, os teólogos têm se posicionado sobre isso, desenvolvendo novas formas de interpretar a doutrina à luz de evolução Uma das questões mais prementes foi sobre a necessidade ou não de afirmar, a partir da Sagrada Escritura e da Tradição, o monogenismo. 172 “[...] a partir de los años 50 empezaron en la teología católica algunos intentos que no se contentaban con proponer adaptaciones episódicas, sino que tendían a una reinterpretación radical del dogma del pecado original, aunque conservando su substancia.” FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 29. 173 Já em 1920 ele escreveu um artigo sobre a queda e a redenção à luz da evolução. Veja: TEILHARD DE CHARDIN, Fall, redemption, p. 36-44. 174 « De nos jours, le dogme du péché originel a été comme une pomme de discorde entre la science et la théologie. Vers 1946, on a bataillé en France et ailleurs autour des théories évolutionnistes. Puis les passions se sont calmées. En 1950, l’Encyclique Humani generis a fermé plusieurs portes à la recherche, mais elle en a entrouvert d’autres et depuis lors, dans l’unité de la foi, on a soulevé de nouveau des problèmes comme celui du polygénisme. » RONDET, Le péché originel, p. 15. 41 Por isso, os teólogos e exegetas investigaram as interpretações dos textos bíblicos e magisteríais sobre esse problema. A questão da historicidade da narrativa de Gn 2-3 ocupa tanto os exegetas quanto os teólogos. Os estudos literários concluem que o gênero literário parece mítico. A maioria aceita que a narrativa é uma projeção ao passado, numa forma mítica, da situação atual do ser humano e do pecado.175 A expulsão do paraíso responde à pergunta, ‘de onde vem o pecado?’ Funciona mais como uma etiologia do que como um fato histórico. Por isso, muitos teólogos interpretam o paraíso do ponto do visto escatológico, e veem uma imagem do fim do ser humano, segundo o plano de Deus, no início de sua história.176 Mas, Dubarle tenta superar a antítese histórico-mítica com uma interpretação que afirma que o autor está falando sobre um patrimônio do mal herdado dos antepassados, mas num modo mítico, através da imaginação da fé: No texto atual, não se trata apenas de mostrar o homem, criatura de Deus, mas confrontado com o sofrimento e a morte. Há, além disso, uma explicação do presente pelo passado, segundo o princípio, certo aos olhos do autor, de uma herança moral passando dos antepassados aos descendentes. Pode-se, portanto, falar de mito a propósito do relato do Éden, mas lembrando que o mito foi ajustado para ter um lugar na imagem do passado da humanidade. Pode-se falar de história, mas sem esquecer que esta imagem do passado foi formada não por memórias efetivas de testemunhas, mas pela imaginação e pela fé. 177 Portanto, com Dubarle, pode-se dizer que o valor histórico de Gn 2-3 não se encontra no fato de ser uma história, mas por ser um mito sobre um evento que aconteceu no passado, segundo o qual o ser humano pecou. Nessa linha, Flick e Alszeghy descrevem o gênero como um ‘compositum mixtum’. 178 Então, a questão dos detalhes da origem histórica da humanidade, a partir deste texto, parece sem resposta.179 175 RONDET, Le péché originel, p. 20-21; MARTELET, Libre réponse, p. 52-53; LADARIA, Teologia del pecado, p. 35. 62. 176 MARTELET, Libre réponse, p. 39; BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 158 ; LADARIA, Teologia del pecado, p. 41-42 ; SMULDERS, A visão de Teilhard, p. 207. 177 « Dans le texte actuel, il ne s’agit pas seulement de montrer l’homme, créature de Dieu, mais confronté avec la souffrance et la mort. Il y a, de plus, une explication du présent par le passé, selon le principe, certain aux yeux de l’auteur, d’un héritage moral passant des ancêtres aux descendants. On peut donc parler de mythe à propos du récit de l’Éden, mais en se rappelant que le mythe a été aménagé pour tenir une place dans un tableau du passé de l’humanité. On peut parler d’histoire, mais sans oublier que ce tableau du passé a été constitué non par des souvenirs effectifs des témoins, mais par l’imagination et la foi. » DUBARLE, Le péché originel perspectives, p. 159. 178 FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 49-50. Embora alguns pensam que o texto seja uma história popular com redação religiosa, que ensina implicitamente o monogenismo (LABOURDETTE, Le péché originel, p. 19), outros o negam enfaticamente como Baumgartner, que diz, « il n’est pas possible de tirer directement de l’Ancien Testament un argument en faveur du monogénisme. », BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 119. 179 42 Sobre a interpretação de Rm 5,12-21 em relação ao monogenismo, uma conclusão semelhante teve o consenso dos teólogos. Fitzmyer dá um resumo da maioria: Paulo, contudo, não soube nada sobre o Adão da história. O que ele sabe sobre Adão, derivou do livro do Gênesis e da tradição Judaica que se desenvolveu do Gênesis. ‘Adão’ para Paulo é o Adão do livro do Gênesis; ele é um indivíduo literário, como Hamlet, mas não simbólico, como ‘cada homem’ [...] Os teólogos questionaram se Paulo ensinava em 5,12-21 uma forma do monogenismo por causa de sua ênfase que Adão era ‘um homem’ e sua historicização de Adão [...] O poligenismo é então um desenvolvimento moderno da teoria da evolução. Leva-nos muito além da perspectiva de Paulo; portanto o que Paulo diz em 5,12-21 não pode ser usado para resolver tal problema. 180 Então, perante a ideia do autor, Paulo fala sobre Adão a partir dos textos Judaicos, ou seja, como um indivíduo literário. A afirmativa sobre Adão é uma referência com relação a seu significado na tradição Judaica (o patriarca da humanidade, o começo de um aeon, etc.) e não uma referência à sua própria história e à origem da humanidade. Portanto, a partir das obras paulinas, a questão dos detalhes sobre a origem histórica da humanidade, o monogenismo ou o poligenismo, fica ainda sem resposta. Usar Paulo para decidir este tópico é aplicar mal os textos bíblicos. Sobre a questão da afirmação do monogenismo no texto de Trento, o consenso dos teólogos é que isso está fora da intenção do decreto. Labourdette argumenta que Trento pronunciou-se claramente em favor da historicidade de Adão.181 Mas Vanneste responde que isso é um pouco exagerado. Os padres de Trento aceitaram ingenuamente a historicidade de Gn 2-3 e então não se preocuparam com a questão de se Adão era uma pessoa histórica ou representava um grupo. Portanto, eles não se pronunciaram sobre esse assunto.182 Além disso, Vanneste argumenta que, “Mesmo para aqueles que consideram Adão como um tipo literário ou uma figura mítica, este primeiro cânone mantém seu significado e seu próprio objeto, porque dá uma descrição do estado de Adão depois de seu pecado que é, obviamente, para explicar as consequências deste pecado em nós.”183 Baumgartner e Connor concordam com 180 “Paul, however, knew nothing about the Adam of history. What he knows about Adam, he has derived from Genesis and the Jewish tradition that developed from Genesis. ‘Adam’ for Paul is Adam in the Book of Genesis; he is a literary individual, like Hamlet, but not symbolic, like Everyman […] Theologians have queried whether Paul was teaching in 5:12-21 a form of monogenism because of his emphasis on Adam as ‘one man’ and his historicization of Adam […] Polygenism is thus a modern development of teaching about evolution. It goes far beyond Paul’s perspective; hence what Paul says in 5:12-21 cannot be used to solve such a problem.” Ibid., p. 410. Grelot concorda com isso. Veja: GRELOT, Péché originel et rédemption, p. 127. As palavras monogenismo e poligenismo serão tematizadas em outro momento – abaixo. 181 LABOURDETTE, Le péché originel, p. 33-34. 182 VANNESTE, Alfred. Le décret du concile, p. 716. 183 “Même pour celui qui considère Adam comme un type littéraire ou une figure mythique, ce premier canon garde son sens et son objet propre, car la description plus ample qu’il donne de l’état d’Adam après son péché vise, de toute évidence, à expliquer les suites de ce péché en nous. » Ibid., p. 716. 43 essa conclusão e mantêm que a questão do monogenismo ainda permanece aberta depois de Trento.184 Para não entrar nos debates sobre a hermenêutica das definições conciliares, esta pesquisa adotará essa conclusão para seus objetivos. Seria um erro pensar que nenhum teólogo tenha defendido a Humani generis e o monogenismo. O dominicano Labourdette escreveu um livro onde tenta justificar a doutrina clássica à luz da evolução. 185 Ele afirma a criação especial do ser humano e seu destino sobrenatural, 186 mas coloca essa criação dentro do mundo em evolução, que promove uma preparação para a possibilidade de um animal que poderia receber a criação direta da alma, tornando-se humano. 187 Contudo, ele afirma que, “[...] esta unidade [da raça humana em Adão] é explicitamente ensinada nas Escrituras; ela também está implicitamente revelada nos dois dogmas do pecado original e da redenção [de Trento].”188 Ele mantém a necessidade de ter tanto a unidade do gênero humano quanto a unidade do primeiro pecado. Mas, ele não é ignorante do possível conflito com a ciência, e percebe que o poligenismo está implícito na teoria da evolução. 189 Ele sintetiza os dois lados, a ciência poligenista e a teologia monogenista. Para o teólogo dominicano a queda é a perda da graça da justiça original, 190 e a criação da alma acontece diretamente por Deus, 191 a história da salvação fica fora da perspectiva científica, e portanto, não a contradiz. 192 Ele pode assim manter os dados da doutrina clássica e os da evolução sem contradição. Mas, ele não tem que reinterpretar os pontos básicos da doutrina e então ele não responde aos problemas da responsabilidade pessoal e da transmissão. 184 BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 124; CONNOR, Original sin, p. 223-24. LABOURDETTE, Le péché originel. 186 Ibid., p 141. 187 Ibid., p 146-47. 188 «[…] cette unité [de la race humaine en Adam] est explicitement enseignée par l’Ecriture; elle est en outre implicitement révélée dans les deux dogmes du péché originel et de la Rédemption [du Trente]. » Ibid., p 157. 189 Ibid., p 162, 164. 190 Ibid., p 177. 191 Ibid., p 163. 192 Labourdette explica, « la loi normale de l’évolution des vivants est de se faire par polygénèse, sinon même par hologénèse, et c’est effectivement cette loi qui a présidé à l’apparition des diverses espèces vivantes. Mais que Dieu, librement, soit intervenu pour fonder, au milieu d’un « buissonnement » d’hominiens, toute l’humanité historique sur un seul couple originel, lui seul sait si c’est vrai, et lui seul en l’absence de tout témoin et de tout document, pouvait nous le révéler. Or nous croyons qu’il l’a révélé, et nous conclurons simplement que, sur ce point de nos origines, notre foi est plus affirmative que notre science. Que les « essais d’hominisation », dans la perspective que nous tracions plus haut, aient été multiples, c’est sans doute un fait; mais l’intervention de Dieu qui a donné à la fois l’âme spirituelle et la vie surnaturelle, une vie surnaturelle engagée dans une histoire, n’a effectivement porté que sur un seul couple. » Ibid., p 164-65. 185 44 Essa síntese continua popular ainda hoje na Igreja católica, presente de certo modo no Catecismo de 1993 (CCC, 374-79, 390, 400),193 e tem seus defensores.194 Contudo, a maioria dos teólogos favoreceram uma reinterpretação da doutrina à luz da evolução e não somente de uma reconciliação entre as duas, ou seja, aceitaram o poligenismo e não defenderam o monogenismo. 1.4.2 As reinterpretações da doutrina à luz da evolução Existe muita variedade nas representações do pecado original, 195 embora seja possível identificar três grandes linhas na teologia católica. 1.4.2.1 Teilhard de Chardin e a síntese científico-cristã A primeira proposta é inspirada no pensamento de Teilhard de Chardin. O sábio Jesuíta identifica o pecado com a imperfeição natural do universo no processo da unificação, do qual os seres humanos também são sujeitos.196 O segundo capítulo dará uma exposição completa dessa proposta. Schmitz-Moormann e Haught sistematizam os princípios de Teilhard do ponto de vista teológico.197 Schmitz-Moormann argumenta que, pelo fato de que a corrupção exista em cada nível do universo e cada entidade tem a possibilidade de se desintegrar, então existe a ‘liberdade’ em todos os movimentos para permanecer, desenvolver-se ou destruir-se. No nível 193 O Catecismo não fala sobre a evolução ou de monogenismo nesses parágrafos, mas afirma a doutrina clássica do ser humano criado na graça da justiça original, com a alma criada diretamente por Deus, e o primeiro pecado de Adão e Eva como “um evento primordial” no começo da história humana, e a transmissão do pecado original por geração em virtude da unidade do gênero humano em Adão. 194 Kemp recentemente propôs um argumento muito similar ao de Labourdette, ou seja, de um monogenismo teológico dentro de um poligenismo biológico, “That account can begin with a population of about 5,000 hominids, beings which are in many respects like human beings, but which lack the capacity for intellectual thought. Out of this population, God selects two and endows them with intellects by creating for them rational souls, giving them at the same time those preternatural gifts the possession of which constitutes original justice. Only beings with rational souls (with or without the preternatural gifts) are truly human. The first two theologically human beings misuse their free will, however, by choosing to commit a (the original) sin, thereby losing the preternatural gifts, though not the offer of divine friendship by virtue of which they remain theologically (not just philosophically) distinct from their merely biologically human ancestors and cousins. These first true human beings also have descendants, which continue, to some extent, to interbreed with the nonintellectual hominids among whom they live […] Throughout this process, all theologically human beings would be descended from a single original human couple (in the sense of having that human couple among their ancestors) without there ever having been a population bottleneck in the human species. This scenario accommodates both the genetic evidence and theological doctrine (if that it be) of monogenesis.” KEMP, Science, theology, p. 231-32. 195 Dois bons resumos mais amplos das propostas recentes são CONNOR, Original sin, e McDERMOTT, Theology of original sin. 196 TEILHARD DE CHARDIN, Reflections on original sin, p. 197. 197 SCHMITZ-MOORMANN, Die erbsünde. 45 humano, essa liberdade manifesta a si mesma no livre arbítrio de cada pessoa. Mas, porque o erro e a fraqueza são inevitáveis num universo material em evolução, o pecado, como um ato escolhido contra o movimento progressivo do universo, é também inevitável. Isso é estatisticamente necessário na tensão entre a matéria e o processo evolutivo. 198 Haught concorda com isso, mas dá mais espaço para a responsabilidade humana, 199 que escolhe a atração do ‘múltiplo’ em vez da unificação no ‘Ômega-Deus’. 200 Ele dá mais espaço também para a história e os dados bíblicos. 201 Para os dois, a redenção é universal e significa a destruição da morte, e a dinâmica da salvação de Cristo é basicamente a luta contra o ‘múltiplo’ para a unificação no ponto Ômega. 202 A outra maneira de desenvolver o pensamento de Teilhard vem não dos teólogos mas dos biólogos. Nas últimas décadas, vários biólogos viram uma homogeneidade entre o comportamento dos animais e o dos humanos. A sócio-biologia tenta criar modelos e teorias para explicar essas atividades em conformidade com os princípios da evolução. Então, em vez de colocar o princípio fundamental do pecado na desintegração do universo, alguns propõem uma explanação puramente biológica. Os instintos de preservação e de reprodução e as dinâmicas sociais entre as populações explicam os ‘pecados’ humanos. Domning fala sobre o ‘egoísmo original’ que é o instinto de preservação de si mesmo que todos os seres vivos possuem. 203 Quando os animais se tornam livres, como no caso do ser humano, abre-se o espaço para a responsabilidade pessoal e então, para o pecado. 204 Em termos similares, Peterson fala sobre a ‘queda para cima’, em relação ao ‘pecado original’, 205 e o ‘pecado’ do ser humano é um produto inevitável do animal que se torna livre e responsável. Williams adota uma posição muito similar, mas foca no conflito natural entre os indivíduos como o lugar da imoralidade. 206 Os três têm um método similar ao de Teilhard: o de reinterpretar a doutrina à luz dos dados científicos, empíricos e teóricos.207 Em geral essas propostas sofrem de uma falta do conhecimento bíblico e teológico sobre a doutrina do pecado original. Por exemplo, uma investigação mais profunda dessas 198 Ibid., p. 199-215. HAUGHT, Deeper than Darwin, p. 174. 200 Ibid., p. 175. 201 Ibid., p. 175. 202 Para um resumo, veja: McDERMITT, Theology of original sin, p. 497-98. 203 DOMNING, Original selfishness, p. 105. 204 Ibid., p. 118. 205 PETERSON, Falling up, p. 273s. 206 WILLIAMS, Doing without Adam, p. 143. 207 Somente Domning reconhece explicitamente uma influência de Teilhard em sua proposta. Veja: DOMNING, Original selfishness, p. 172s. 199 46 fontes revelaria que um pecado não é simplesmente um ato imoral, mas uma rejeição de Deus. No desejo de conformar a fé cristã com a ciência, emergem algumas distorções da fé cristã. Por isso, a maioria dos teólogos buscaram outras respostas para o problema. 1.4.2.2 Os personalistas Vanneste tenta reinterpretar o pecado original de modo ‘personalista’. Ele reduz o pecado original à universalidade dos pecados atuais, rejeitando a ideia do pecado ‘da natureza’. 208 Por isso, ele interpreta o desenvolvimento da doutrina no tempo de Santo Agostinho como a afirmação da necessidade universal da redenção em Cristo, “O pecado original é a necessidade de cada homem para a redenção de Cristo.”209 O argumento central de Agostinho contra os pelagianos, na justificação do batismo das crianças, é que elas precisam da graça de Cristo, e por isso elas têm que estar num estado do pecado.210 Para Vanneste, esse estado do pecado é o fato delas não estarem ‘em Cristo.’211 A questão da concupiscência é secundária e deve ser entendida através de uma analogia com a habituação dos pecados pessoais.212 Ele rejeita a herança do pecado, a narrativa clássica da queda, e as tentativas de explicar o pecado em termos quase-científicos ou psicológicos.213 Por isso Vanneste não trata da evolução ou do poligenismo. Flick e Alszeghy oferecem uma terceira opção personalista para o pecado original. Ao contrário de Vanneste, eles se preocupam mais com a evolução e a solidariedade de todos os seres humanos no pecado. Eles afirmam que, “O pecado original é uma alienação dialogal com Deus, isso é, a incapacidade de amar Deus sobre todas as coisas, dependente de um pecado cometido no começo da história e solidário com todos os demais pecados do mundo.”214 O ser humano, como pessoa, é criado para um diálogo com Deus, e deve orientarse para Deus como sua opção fundamental, ‘com todo o seu coração’ (cf. Dt 6,4-6). No momento dos primeiros humanos, o convite para esse diálogo, que era a oferta da vida da graça, foi rejeitado. Eles perderam a oportunidade para um novo nível de vida e entraram num 208 VANDERVELDE, Original sin, p. 262. “Original sin is the need of every man for redemption by Christ.” VANNESTE, Toward a theology, p. 209. 210 Ibid., p. 211. 211 Ibid., p. 212. 212 Ibid., p. 213. 213 Ibid., p. 213. 214 “El pecado original es la alienación dialogal con Dios, esto es, la incapacidad de amar a Dios sobre todas las cosas, dependiente de un pecado cometido al comienzo de la historia y solidario con todos los demás pecados del mundo.” FLICK–ALSZEGHY, El Hombre bajo, p. 263. 209 47 estado contrário a Deus. 215 O estado do pecado original é o de uma incapacidade para o diálogo vertical com Deus, que existe antes de qualquer decisão pessoal.216 Porque todos os seres humanos existem em solidariedade uns com os outros, todos crescem no estado de privação da graça e no ‘pecado do mundo’.217 Em relação ao poligenismo e à evolução, a transmissão desse estado acontece não porque todos são descendentes do Adão histórico (Flick e Alszeghy aceitam o poligenismo), mas porque o pecado do Adão histórico (eles aceitam um primeiro pecado histórico) afeta todos os que estão em solidariedade com ele, uma concepção similar a uma personalidade corporativa.218 A concupiscência é secundária e é entendida em relação à incapacidade para um diálogo com Deus.219 Através da renovação em Cristo, é possível superar a concupiscência e ter uma opção fundamental por Deus.220 Os personalistas tocam dois pontos muito importantes sobre a doutrina do pecado original, a centralidade da graça e não da concupiscência, e a distinção, em Flick e Alszeghy, entre o pecado como uma opção fundamental diante de Deus e os atos pecaminosos. Mas, os problemas com a evolução ainda continuam. Vanneste ignora o problema, e a resposta de Flick e Alszeghy falha em responder às dificuldades. Sua defesa do primeiro pecado, significa que eles são afetados das mesmas dificuldades em relação a sua influência universal e a transferência da responsabilidade para outros que enfraquecem a doutrina clássica. Além disso, a questão ainda permanece: se a solidariedade humana é suficiente para explicar a transmissão? Eles não desenvolvem isso. A antropologia cristã ainda não se harmoniza bem com a evolução. 1.4.2.3 Os situacionistas Os situacionistas focam suas articulações na história do ser humano e do pecado, e tentam responder ao problema da origem e da transmissão dentro deste quadro. Rahner constrói sua resposta baseado na ideia que cada liberdade humana é co-determinada pela culpa alheia, que é uma situação universal, permanente e, portanto, original. 221 O terceiro capítulo apresentará sua proposta com mais detalhes. 215 Ibid., p. 361. Ibid., p. 332-33. 217 Ibid., p. 369. 218 Ibid., p. 378-79. 219 Eles definem a concupiscência como, “la dificultad para escoger cualquier bien o para influir en cualquier tendencia a reforzar el amor de Dios.” Ibid., p. 414. 220 Ibid., p. 415. 221 CFF, p. 136. 216 48 Schoonenberg desenvolve as contribuições de Rahner a partir de uma reflexão da Sagrada Escritura.222 Ele também descreve o estado de pecado do ser humano em termos de uma ‘situação’.223 Ele define a situação como, “[...] a totalidade das circunstâncias na qual alguém ou algo permanece num certo momento, a totalidade das circunstâncias predominantes num certo ambiente.” 224 Cada pessoa é ‘situada’ existencialmente e historicamente, e a situação afeta suas ações. Ele usa este conceito para explicar a frase bíblica do ‘pecado do mundo’ (Jo 1,29). As atitudes más e os pecados dos outros, da comunidade, da sociedade, combinam para criar o ‘pecado do mundo’, que é a situação em que cada pessoa existe. No fundo, ele percebe aqui uma rejeição da graça de Deus e uma usurpação do mundo.225 A leitura de Schoonenberg lhe permite explicar a influência de todos os pecados da humanidade na situação das pessoas, não reduzindo o pecado original ao pecado de Adão.226 O pecado do mundo, segundo ele, explica a transmissão do pecado em termos históricos, e, então, evita a dificuldade de defender a herança do pecado de um modo quase-biológico.227 Finalmente, Schoonenberg pode reconciliar a ideia de pecado do mundo com o poligenismo e a antropologia evolucionista, porque o pecado do mundo tem uma história de desenvolvimento. 228 A situação de pecado do mundo, como universal, também destaca a necessidade da redenção em Cristo para todos.229 A influência da proposta de Schoonenberg é muito ampla na teologia católica. Com algumas distinções, a maioria dos teólogos adota as linhas gerais de sua reflexão. Rondet, utilizando o conceito da ‘situação’, vê uma unidade da humanidade na história da salvação, com Adão como um representante da coletividade, e o pecado original como a totalidade dos pecados pessoais que imprimem à natureza humana. 230 Baumgartner conecta a ideia da privação da graça, que aliena o ser humano de Deus, com a desordem moral do ser humano. 231 Para explicar a transmissão do pecado, ele aproveita a noção da ‘situação’ de 222 Para entender a relação entre Schoonenberg e Rahner, veja: VANDERVELDE, Original sin, p. 58-59, 84-85. Basicamente, Schoonenberg articula o conceito da ‘situação’ histórica do ser humano a partir da filosofia existentialista de Rahner e da Sagrada Escritura. 223 SCHOONENBERG, Man and sin, p. 104. 224 “[…] the totality of the circumstances in which somebody or something stands at a certain moment, the totality of the circumstances prevailing in a certain domain.” Ibid., p. 104-05. 225 Ibid., p. 110. 226 Ibid., p. 177. 227 Ibid., p. 186-87. 228 Ibid., p. 188-89. 229 Ibid., p. 190. 230 RONDET, Le péché originel, p. 316, 321, 323 231 BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 162. 49 Schoonenberg.232 Dubarle enfatiza a privação da graça no estado do pecado original, e usa o pecado do mundo para explicar sua transmissão e a solidariedade da humanidade no pecado.233 Martelet utiliza as ideias do pecado do mundo e da história do pecado infectando a pessoa dentro de uma visão Ireneísta do mundo,234 com mais força no pecado de Adão como o pecado inaugural e especial. 235 Ladaria aceita o pecado do mundo como a situação que transmite o pecado original, e, com Martelet, enfatiza a importância do primeiro pecado como o início do movimento da história pecaminosa. 236 A teologia da libertação desenvolve as ideias de Schoonenberg, não para a doutrina do pecado original, mas para nomear a situação do mal no mundo, encarcerado nas ‘estruturas’ de pecado.237 Weger ocupa a mesma escola do pensamento de Schoonenberg, mas segue mais a antropologia de Rahner em sua interpretação.238 Pode-se concluir que a proposta comum dos teólogos hoje é a dos situacionistas. Ela reconcilia os dados bíblicos e as tensões da doutrina com a teoria da evolução. O pecado do mundo é fácil de se entender e de se ver hoje. Contudo, sua proposta tem recebido algumas críticas. Schoonenberg reduz a geração do pecado a um patrimônio cultural. Flick e Alszeghy argumentam que uma sociedade pecaminosa não impede o próprio desenvolvimento pessoal, e também uma alta virtuosidade, mesmo com um sacrifício pessoal e os projetos para o bem comum. 239 Então, a ‘situação’ realmente explica o coração da doutrina, a escravidão ao pecado? Entraremos nessa discussão no terceiro capítulo. 1.5 Conclusão Os resultados desta investigação são os seguintes. Pode-se afirmar, pelo menos, que a doutrina do pecado original desenvolve aspectos importantes do testemunho bíblico sobre o pecado. Além disso, a teologia de Agostinho não fica isolada das afirmações básicas da doutrina, e recebeu a aprovação, apenas parcial, do Magistério. Mas, a concepção clássica tem quatro problemas ainda não resolvidos (o efeito universal, a transmissão, a responsabilidade pessoal e a concupiscência). Além disso, a evolução levanta outros problemas (o paraíso, o 232 Ibid., p. 163-64. DUBARLE, Le péché originel perspectives, p. 110-111, 129-30. 234 MARTELET, Libre réponse, p. 70-71. 235 Ibid., p. 68-69. 236 LADARIA, Teologia del pecado, p. 127-28. 237 Por exemplo, cf. GUTIERREZ, Teología de la liberación, p. 112. 238 WEGER, Theologie der erbsünde, p. 478-82. 239 FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 192. 233 50 monogenismo, e também a transmissão). As diversas respostas a essas dificuldades revelam a complexidade do tópico mas também os recursos possíveis para o teólogo que quer encontrar uma interpretação que é bíblica, fiel à doutrina, consistente em si mesma e compatível com a evolução. Com esses seis problemas claramente articulados, estamos numa posição para avaliar as posições de Teilhard de Chardin e Karl Rahner. 51 52 2 TEILHARD DE CHARDIN SOBRE O PECADO ORIGINAL 2.1 Introdução A reflexão de Teilhard sobre o pecado original tem uma história turbulenta. Que este tema tenha ocupado sua mente é notável pelo fato de que ele o considerou em seus escritos desde o começo de sua vida literária até o fim, sobretudo em: A queda, redenção e o geocentrismo (1920), Sobre algumas representações possíveis do pecado original (1922) e Reflexões sobre o pecado original (1947), e tratou o problema da queda e da história de Adão e Eva em dois outros lugares: Cristologia e a evolução (1933), e Cristo o evolutor (1942), e falou sobre o monogenismo em O fenômeno humano (1940), Monogenismo e monofiletismo (1950) e A continuação ao problema da origem humana (1953).1 Mas sua teoria não foi bem recebida e, por isso, nenhuma dessas obras foram publicadas durante sua vida. A primeira reflexão, de 1920, escrita do ponto de vista do geólogo, levantou uma denúncia de seus superiores e uma petição para assinar uma declaração.2 Depois disso, estes escritos foram distribuídos somente de forma privada. Embora sua proposta parecesse contra a doutrina clássica do pecado original, ele não a mudou. Ao contrário, ele a desenvolveu e a refinou com o tempo. Por que? Porque como cientista ele acreditava que a doutrina clássica, a história literal de Adão e Eva, a queda e o monogenismo eram incompatíveis com a evolução. Ele diz: Quando se busca viver e pensar, com a alma moderna, o cristianismo, as primeiras resistências que se encontra vêm sempre do pecado original. Isso é verdade primeiro do pensador, para quem a representação tradicional da queda impede decididamente o caminho a todo progresso no sentido de uma ampla perspectiva do mundo. É de fato para salvar a letra da narrativa da falta que se dedicaram os que dependem a realidade concreta do primeiro casal.3 Segundo nosso autor, diante de um mundo cada vez mais formado pela visão da ciência moderna, era necessário reinterpretar a doutrina do pecado original à luz da evolução para manter a credibilidade do cristianismo. 1 Todas as datas são tomadas da cronologia das obras de Teilhard em GRUMETT, Teilhard de Chardin, p. 27781. 2 SMULDERS, A visão de Teilhard, p. 18. 3 « Lorsqu’on cherche à vivre et à penser, de toute âme moderne, le Christianisme, les premières résistances que l’on rencontre viennent toujours du Péché originel. Ceci est vrai d’abord du chercheur, pour qui la représentation traditionnelle de la Chute barre décidément la route à tout progrès dans le sens d’une large perspective du Monde. C’est en effet pour sauver la lettre du récit de la Faute qu’on s’acharne à défendre la réalité concrète du primier couple. » CE, p.98. 53 2.1.1 A interpretação das obras de Teilhard Os textos de Teilhard não são fáceis de interpretar. São escritos científicos ou teológicos? São reflexões pessoais ou refletem suas experiências místicas? Martelet diz que o pensamento de Teilhard não é um sistema, mas uma reflexão sobre o ser humano, a evolução e Cristo, e que Teilhard é um profeta que inspira a Igreja nesta época.4 Vaz percebe uma intenção apologética em Teilhard, que tenta “mostrar que o problema da mensagem do Cristianismo, como seus dogmas fundamentais da Encarnação, da Redenção, da Consumação final, pode encontrar seu lugar orgânico dentro da visão científica moderna.” 5 De Lubac argumenta que Teilhard não foi um teólogo ou filósofo, mas um místico, que refletiu profundamente sobre os fenômenos do universo e as descobertas da ciência, em busca de uma síntese maior.6 Nesse sentido, seus escritos são únicos. Por isso, este capítulo, embora tente dar uma síntese da reflexão de Teilhard sobre o pecado original, tem que ter cuidado para não interpretar suas ideias de modo rigorosamente teológico. O objetivo de Teilhard é articular uma visão universal da realidade. Smulders explica: Teilhard está convencido de que esta separação entre a ciência e a fé não pode ser a última palavra. Ele se acha colocado no coração da ciência natural moderna, vê como esta tende a se tornar uma ciência universal, portanto, uma visão e uma concepção do mundo. Esta tendência provém da própria natureza da ciência, que tem por objeto ‘a busca até o fim’, que não descansará enquanto não houver apreendido em uma só visão a totalidade dos fenômenos. Conhecimento é visão da unidade. Esta tendência a se realizar numa concepção do universo, conforme a natureza da ciência e a do homem, não deve, pois, ser má, mesmo se ela recorre a uma concepção da ciência um pouco mais ampla.7 Teilhard não absorve a teologia dentro da ciência ou a ciência dentro da teologia, mas desenvolve uma visão que dá conta das duas e as harmoniza através de uma série de princípios comuns. Nesse sentido, seu pensamento representa uma reinterpretação da ciência e da teologia cristã, no intuito de articular uma teoria completa que dê conta da totalidade dos fenômenos. Teilhard tenta superar qualquer tipo de dualismo ou conflito entre a visão científica e a visão cristã do mundo.8 O pensamento de Teilhard começa com a teoria da evolução. Seu enfoque consiste em olhar a realidade em todos os seus níveis, cósmico, humano e divino, como 4 MARTELET, Teilhard de Chardin, p. 24. VAZ, Universo científico, p. 103. 6 DE LUBAC, La pensée religieuse, p. 115-19. 7 SMULDERS, A visão de Teilhard, p. 34-35. 8 VAZ, Universo científico, p. 104. 5 54 processo de transformação da criação.9 Ele diz, “[a evolução] é uma condição geral à qual devem obedecer e satisfazer doravante, para serem concebíveis e verdadeiras, todas as teorias, todas as hipóteses, todos os sistemas. Uma luz que ilumina todos os fatos, uma curvatura que todos os traços devem acompanhar, eis o que é a Evolução.” 10 Ele constrói uma visão fenomenológica, metafísica, antropológica e teológica através desta chave conceitual. Portanto, ele não trata a questão do pecado original do ponto de vista bíblico ou mesmo teológico, mas do ponto de vista evolucionista. Primeiro ele desenvolve uma metafísica e uma antropologia que deem conta da evolução. Depois ele mostra como as crenças básicas do cristianismo podem ter uma certa congruência com esta visão. Por isso, temos que explicar brevemente esta metafísica e esta antropologia de nosso autor antes de entrar na discussão sobre o pecado original. 11 2.2 A antropologia de Teilhard de Chardin 2.2.1 A origem dos homens dentro da evolução A irrupção do ser humano na terra é o resultado do processo da evolução. Através da evidência do ambiente, da morfologia e da estrutura do grupo,12 Teilhard conclui que, “ele [ser humano] emerge filéticamente aos nossos olhos, exatamente como qualquer outra espécie.”13 Ele não tem dúvida que o ser humano é um produto da evolução e compartilha o mesmo filo com os primatas.14 Isso é um fato indiscutível da ciência. 15 Mas como, então, um animal racional pode emergir de um processo meramente biológico? A diferença aparente entre o ser humano e os outros animais tem sua explanação na metafísica da evolução. Teilhard admite que para a ciência positivista o ser humano ainda não tem seu espaço próprio no universo. A física e a biologia podem explicar os aspectos físicos e biológicos do ser humano, mas ainda falta a explicação da inteligência e da consciência de si mesmo. 16 Mas nosso autor pode responder à pergunta: como o ser humano 9 Aqui Smulders concorda, “Para Teilhard a evolução é um fato inconcluso.” Ibid., p. 42. FH, p. 235. 11 Esta exposição privilegiará Le Phénomène Humain porque representa o pensamento mais desenvolvido e sistematizado de Teilhard sobre esses assuntos. 12 FH, p. 193-94. 13 Ibid., p. 193. 14 Ibid., p. 195. 15 TEILHARD DE CHARDIN, Le Christ évoluteur, p. 164. 16 FH, p. 167. 10 55 inteligente pode ser um produto de um mecanismo biológico? Pelo processo da complexificação e da energia radial a emergência é possível. Contra o fíxismo da física dos séculos XVIII e XIX, Teilhard propõe um universo em processo de complexificação. Ele explica que: A Evolução da Matéria reduz-se, nas teorias atuais, à edificação gradual, por complicação crescente, dos diversos elementos reconhecidos pela FísicoQuímica. Em baixo de tudo, para começar, uma simplicidade ainda indecisa, indefinível em termos de um formigueiro de corpúsculos elementares, positivos e negativos (protões, neutrões, electrões, fotões...), cuja lista aumenta sem cessar. Depois, a série harmónica dos corpos simples, que se estendem do Hidrogénio, ao Urânio, pelas notas da gama atómica. E, em seguida, a imensa variedade dos corpos compostos, cujas massas moleculares vão subindo até um certo valor crítico acima do qual, como veremos, se passa para a Vida. Nem sequer um termo desta longa série que possa deixar de ser olhado, com base em boas provas experimentais, como um composto de núcleos e electrões. Esta descoberta fundamental, a saber, que todos os corpos derivam, por ordenação, de um só tipo inicial corpuscular, é o clarão que ilumina aos nossos olhos a história do Universo. À sua maneira, a Matéria obedece, desde a origem, à grande lei biológica (a que constantemente nos referimos), de <complexificação>.17 Deste fenômeno, ele deduz a lei da complexificação, que é fundamental no movimento do universo. É uma lei porque sem ela não se pode explicar porque existe o processo do crescimento para corpos cada vez mais complexos e sistemas cada vez mais complicados. Essa evolução da matéria Teilhard chama de cosmogênese. Segundo nosso autor, os fenômenos que provam conclusivamente a realidade dessa lei são a vida e a consciência. Porém, a lei da complexificação não é suficiente para explicar a emergência da vida e da consciência. Teilhard identifica uma força no universo que causa a emergência: a energia radial. Ele explica que: A essência do Real, dizia eu então, poderia muito bem ser representada pelo que o Universo contém, num dado momento, de ‘interioridade’; e, neste caso, a Evolução nada mais seria, no fundo, senão o aumento contínuo, no decurso da Duração, desta Energia ‘psíquica’, ou ‘radial’, sob a Energia mecânica ou ‘tangencial’, praticamente constante à escala da nossa observação. Qual será, aliás, acrescentava eu, a função particular que liga experimentalmente uma à outra, nos seus respectivos desenvolvimentos, as duas Energias, radial e tangencial, do Mundo? A ordenação, evidentemente: a ordenação, cujos progressos sucessivos são acompanhados interiormente, como podemos verificar, por um aumento e um aprofundamento contínuo de consciência.18 A partir disso, Teilhard tem os fundamentos para explicar a emergência da vida e da consciência. Elas são o resultado da contínua evolução da matéria através da ‘energia radial,’ 17 18 FH, p. 25-26. Ibid., p. 143. 56 que organiza, complexifica e conscientiza os seres.19 A energia radial funciona como a força da lei da complexificação-conscientização. Porém, a matéria que está organizada tem que ter a potência para o ser vivo e a consciência. Por isso, Teilhard desenvolve uma concepção ampla da matéria. Para explanar a emergência da vida e da consciência, Teilhard coloca a vida e a consciência no fundo de todas as coisas. Ele argumenta isso através de uma analogia com o descobrimento da radiação. A descoberta das propriedades da radiação conduziu ao fato que ela é um aspecto universal de toda a matéria, “Qualquer corpo irradia.”20 Do mesmo modo, um fenômeno que parece local e excepcional, como o rádio, pode ter, “em virtude da unidade fundamental do Mundo, um valor e raízes ubiquistas.”21 A consciência aparece somente com o ser humano. Teilhard conclui, “portanto, entrevista neste único clarão, ela [a consciência] possui uma extensão cósmica e, como tal, aureola-se de prolongamentos espaciais e temporais indefinidos.” 22 Esse fato explica como a consciência emerge. Estava lá antes. Da mesma maneira ele conclui que, “Numa perspectiva coerente do Mundo, a Vida supõe inevitavelmente, e a perder de vista antes dela, a Pré-Vida.”23 Por isso, nosso autor rejeita o materialismo como uma explicação insuficiente.24 Ele também acha que colocar a consciência como somente um epifenômeno leva à perda da verdade da unidade do universo.25 O universo tem a consciência como um princípio fundamental, o espiritual no fundo de tudo e, com isso, a pré-vida. A evolução é a explicitação desses aspectos universais. O processo da cosmogênese leva para a emergência da vida e da consciência. A energia radial impulsiona as substâncias químicas da terra para uma maior organização e ordenação até o momento em que elas voltam para si mesmas e alcançam uma unidade e interiorização maior. A complexificação e a conscientização acontecem ao mesmo tempo. A célula aparece nas águas da terra e cria a biosfera.26 A pré-vida em todos os seres do universo explica a emergência da vida, e a pré-consciência em todos, ou seja, a consciência primitiva, explica a emergência da consciência humana. 19 Ibid., p. 56. Ibid., p. 34. 21 Ibid., p. 35. 22 FH, p. 35. 23 Ibid., p. 36. 24 Ibid., p. 32. 25 Numa afirmação típica do pensamento de Teilhard, ele escreve, “Não só o Pensamento a fazer parte da Evolução como uma anomalia ou um epifenômeno; mas a Evolução tão redutível e identificável a uma marcha para o Pensamento que o movimento na nossa alma é a expressão e a medida dos próprios progressos da Evolução.” Ibid., p. 237. 26 Ibid., p. 63. 20 57 O mesmo processo promove a emergência da auto-consciência. Teilhard acredita que os seres vivos mais primitivos são conscientes, num sentido amplo,27 evidenciado pelo fato da organização em si mesma e da unidade de suas atividades. A evolução da vida segue a lei da complexificação, que é ao mesmo tempo a ampliação da consciência. Dentro desse movimento Teilhard aponta o sistema nervoso como central, onde a espécie, com um sistema mais complexo, é também mais consciente. Ele conclui que, “temos todas as razões para pensar que também nos animais existe um certo dentro, aproximativamente mensurável pela perfeição de seu cérebro.” 28 A complexificação do cérebro causa um crescimento da consciência, até o momento em que a consciência torna-se consciente de si mesma. 29 Mas aqui Teilhard corre o risco de reduzir o ser humano ao um mero animal, sem distinção. A forte continuidade evita a clara descontinuidade. Por isso, ele contrabalança sua posição. Teilhard enfatiza que a descontinuidade entre o primata e o ser humano é uma ‘mudança de estado’. Ele argumenta que a continuidade no nível morfológico (corporal e fisiológico) esconde o grande avanço no nível da reflexão.30 Ele explica que: Do ponto de vista experimental, que é o nosso, a Reflexão, como a própria palavra o indica, é o poder adquirido por uma consciência de se dobrar sobre si mesma e de tomar posse de si mesma como de um objeto dotado de sua própria consistência e do seu próprio valor: já não só conhecer – mas conhecer-se a si próprio; já não só saber – mas saber que se sabe. Com esta individualização de si próprio no fundo de si próprio, o elemento vivo, até aí espalhado e dividido sobre um círculo difuso de percepções e de atividades, acha-se constituído, pela primeira vez, em centro puntiforme onde todas as representações e experiências se enlaçam e se consolidam num conjunto consciente de sua organização. [...] O ser reflexivo, precisamente em virtude da sua inflexão sobre si mesmo, torna-se de repente susceptível de se desenvolver numa esfera nova. Na realidade, é outro mundo que nasce. Abstração, lógica, opções e invenções ponderadas, matemáticas, arte, percepção calculada do espaço e da duração, ansiedades e sonhos do amor.31 Além disso, o passo para a reflexão é um grande salto, num único ‘momento’, que implica uma mudança de estado. Ele favorece a analogia da ebulição que explica essa ‘mudança de estado’. Como um líquido se torna gás através de ebulição, o passo para a reflexão representa 27 Cf. Ibid., p. 36. Ibid., p. 144. Essa citação apoia a proposta de Grummett de que a concepção da evolução de Teilhard segue a linha de Lamarck e não a de Darwin. Ele diz, “The true context for Teilhard’s study of evolution, crucially, is Lamarckian…..Lamarck argued that all action is governed by a primoridial sentiment intérieure situated within an overarching teleology provided by a universal power which orders the universe in accordance with divine will. These beliefs are broadly identifiable as elements of Aristotelian and scholastic natural law theory. If Lamarck preserves them, then Teilhard reappropriates them for theology in order to compensate the deficiencies in Darwinianism.” GRUMMETT, Teilhard de Chardin, p. 199-200. 29 FH, p. 169. 30 Ibid., p. 167, 173, 176. 31 Ibid., p. 169-70. 28 58 um novo nível do ser, um novo nível da energia que aconteceu num momento.32 Ele rejeita então a possibilidade de um intermédio entre a pré-reflexão e a reflexão.33 Esse salto não tem que ser outro, em termos de evolução, que uma mutação,34 ou, em termos de química, uma mudança de estado. De fato, Teilhard pode afirmar tanto a continuidade corporal quanto a descontinuidade espiritual entre os primatas e o ser humano.35 2.2.2 O poligenismo O desenvolvimento de uma antropologia baseada na teoria da evolução leva à rejeição do monogenismo. O fato de Teilhard aceitar que o ser humano é um produto da evolução como as outras espécies, 36 o leva a concluir que, “O Homem entrou [no mundo] sem ruído,” 37 ou seja, sem uma grande transformação ou intervenção no universo. Segue logicamente que, “o <primeiro homem> é, pois, e não pode deixar de ser, uma multidão: e a 32 Teilhard explica plenamente, “Quando a água, sob pressão normal, atinge 100 graus, se continuamos a aquecê-la, o primeiro acontecimento que se segue – sem mudança de temperatura – é a tumultuosa expansão das moléculas libertadas e vaporizadas. – Quando, ao longo do eixo ascendente de um cone, as secções se sucedem, com uma área constantemente decrescente, chega o momento em que, com mais uma deslocação infinitesimal, a superfície se esvanece, tornando-se ponto. – Assim, graças a estas vagas comparações, podemos imaginar no seu mecanismo o passo crítico da Reflexão. No fim do Terciário, havia mais de 500 milhões de anos que a temperatura psíquica subia no mundo celular. De Ramo para Ramo, de Camada para Camada, os sistemas nervosos, como vimos, iam-se pari passu complicando e concentrando. Finalmente construíra-se, da parte dos Primatas, um instrumento tão admiravelmente dúctil e rico que o passo imediatamente seguinte não podia ser dado sem que o psiquismo animal todo inteiro se encontrasse como que refundido e consolidado sobre si mesmo. Ora o movimento não parou, pois nada, na estrutura do organismo, o impedia de avançar. Ao Antropóide, levado ‘mentalmente’ a 100 graus, foram pois acrescentadas mais algumas calorias. No Antropóide, quase chegado ao vértice do cone, exerceu-se um último esforço ao longo do eixo. E mais não foi preciso para que todo o equilíbrio interior se invertesse. O que não era ainda senão superfície centrada tornou-se centro. Devido a um acréscimo ‘tangencial’ ínfimo, o ‘radial’ voltou-se sobre si mesmo e, por assim dizer, saltou até ao infinito para a frente. Aparentemente, quase nada de mudado nos órgãos. Mas, em profundidade, uma grande revolução: a consciência jorrando efervescente, num espaço de relações e de representações supra-sensíveis; e, simultaneamente, a consciência capaz de se aperceber a si própria na simplicidade concentrada das suas faculdades – tudo isto pela primeira vez.” FH, p. 173-74. 33 Ibid., p. 178. 34 Ibid., p. 187. O cérebro representa um exemplo perfeito do processo de ‘cosmogênese’ que Teilhard propõe. O cérebro se torna cada vez mais complexo nos seres vivos, e concordante, eles se tornam mais conscientes. A lei da complexificação e a lei da conscientização são equivalentes. Por isso, Teilhard pode afirmar com os materialistas, “Em fim de contas, é verdade, toda a metamorfose hominizante se reduz, do ponto de vista orgânico, a uma questão de melhor cérebro.” (FH, p. 176). Mas, no mesmo tempo, porque a complexificação material não esgota a totalidade dos fenômenos presentes na evolução do universo, e especialmente na hominização, ele adiciona, “a passagem à reflexão é verdadeiramente uma transformação crítica, uma mutação de zero para tudo, nós não podemos imaginar, neste nível preciso, um indivíduo intermediário.” (FH, p. 177). A energia tangencial existe em conjunto com a energia radial. 35 Ibid., p. 175. 36 Num lugar o cientista jesuíta afirma claramente que, «[…] personne ne doute plus, parmi les gens compétents, que l’Homme ne soit apparu sur notre planète, à la fin du Tertiaire, en conformité avec les lois générales de la spéciation. » TEILHARD DE CHARDIN, Une suite au problème, p. 275. 37 FH, p. 195. 59 sua juventude é feita de milhares e milhares de anos.” 38 A evolução não acontece com populações minúsculas, mas somente com grupos relativamente grandes. De fato, Teilhard argumenta que o monogenismo não pode ser uma teoria científica. Um casal primordial é indiscernível cientificamente e historicamente. 39 O monogenismo e o poligenismo são propostas teológicas e não científicas. 40 A biologia não pode refutar o monogenismo, a existência de Adão e Eva, mas as leis da especiação tornam a hipótese inaceitável. 41 Contudo, Teilhard propõe a unidade filética do ser humano. Ele diz, “se a ciência do Homem nada pode afirmar diretamente pró ou contra o monogenismo... em contrapartida, ela se pronuncia decididamente, ao que parece, em favor do monofiletismo (um único filo).”42 Teilhard considera que a evidência antropológica e paleontológica apontam para o fato de que, “Todas as linhagens humanas, neste caso, se reuniriam geneticamente, para baixo.”43 O ser humano não é uma mistura de duas ou mais linhas dos primatas, mas o resultado da evolução de uma só linha. Portanto, o ser humano é uma família com uma história e uma origem. As implicações teológicas para essa afirmação se tornarão evidentes mais adiante. 2.2.3 A noosfera Teilhard chama o novo nível da realidade que emerge com a auto-consciência a noosfera. Com a consciência de si mesmo, os instintos e as atividades animais passam por uma metamorfose. O instinto sexual torna-se amor e a moral sexual, o instinto de preservação da vida, guerra e competições na sociedade; o instinto de alimentação, gosto de apreender, devorar e cozinhar; a inclinação de ver, o prazer da investigação e a pesquisa; o desejo de aproximação, a vida em sociedade e a moralidade. 44 Então, o novo nível não pode ser reduzido ao biológico. Ultrapassa o biológico, e por isso precisa-se das outras ciências, como 38 Ibid., p. 195. “Nas profundidades do tempo em que se situa a hominização, a presença e os movimentos de um casal único são positivamente inapreensíveis, indiscerníveis para o nosso olhar directo, qualquer que seja o aumento. De modo que se poderia dizer que há lugar, neste intervalo, para tudo o que venha a exigir uma fonte transexperimental de conhecimento.” Ibid., p. 195. 40 Depois da Encíclica Humani generis Teilhard escreve uma breve clarificação desse debate onde ele diz, « Par suite de l’impossibilité de fait où se trouve (et se trouvera sans doute toujours) la Science de grossir assez fortement le passé paléontoligique pour distinguer des individus, - c’est-à-dire de discerner, très loin en arrière, autre chose que des populations, le mono- et polygénisme sont en réalité des notions purement théologiques, introduites pour raisons dogmatiques, mais extra-scientifiques par nature (en tant qu’expérimentalement invérifiables). » TEILHARD DE CHARDIN, Monogénisme et monophylétisme, p. 247. 41 Ibid., p. 248. 42 FH, p. 198. 43 Ibid., p. 198. 44 Ibid., p. 187. 39 60 a psicologia e a sociologia. Além disso, essa noosfera também evolui através da história, evidenciada, no progresso da civilização humana.45 Na visão de Teilhard, a noosfera cresce e se espalha na terra. Ele diz que: Em volta da centelha das primeiras consciências reflexivas, os progressos de um círculo de fogo. O ponto de ignição alargou-se. O fogo ganha terreno. Finalmente, a incandescência envolve todo o planeta. Uma única interpretação, um único nome se encontram à medida deste grande fenômeno. É verdadeiramente uma camada nova, a ‘camada pensante’, exatamente tão extensiva, mas muito mais coerente ainda, como veremos, do que todas as camadas precedentes, que, após ter germinado no Terciário declinante, se expande desde então por cima do mundo das Plantas e dos Animais: fora e acima da Biosfera, uma Noosfera.46 Então, a emergência do pensamento no processo da evolução significa a elevação do cosmos e do bios no ser humano. Porém, o ser humano não é o centro, mas o mais alto, da síntese cósmica.47 A elevação do cosmo não pára com a consciência do ser humano, mas continua a uma super-vida. O caráter da noosfera consiste na transferência e comunicação das ideias e práticas através da educação e da imitação.48 Nesse sentido, ela é a continuação do mesmo processo de evolução no nível da consciência. Teilhard chama esse movimento noogênese, que é parte da grande cosmogênese. 49 A noosfera tem uma direção também, evidente no desejo do ser humano desenvolver o mundo, a si mesmo e seu conhecimento. O ser humano avança pelo fato que ele tem uma esperança pelo melhor.50 Mas, essa esperança não acaba neste mundo. O pensamento busca um progresso universal e duradouro,51 que não encontra na terra. Esse desejo então é inútil, ou existe um nível que o satisfaz. Teilhard percebe que, “a Vida, levada até ao seu grau pensante, não pode continuar sem que, por estrutura, exija subir cada vez mais alto.”52 Por isso ele conclui que, “há para nós, no futuro, sob qualquer forma, pelo menos coletiva, não só sobrevivência, mas sobrevida.”53 45 Ibid., p. 187-88. Teilhard descreve a evolução da civilização, baseado na evidência da paleontologia, no capítulo II da segunda parte, ‘O Desdobramento da Noosfera’, p. 201-27. 46 FH, p. 190-91. 47 Ibid., p. 241. Smulders enfatiza esse ponto: SMULDERS, A visão de Teilhard, p. 57. 88. 48 FH, p. 243. 49 Ibid., p. 247. 50 Ibid., p. 250. 51 Ibid., p. 251. 52 Ibid., p. 252. 53 Ibid., p. 253. Num outro lugar Teilhard afirma mais claramente, « Par sa fraction axiale, vivante, l’Univers dérive, simultanément et identiquement, vers le super-complexe, le super-centré, le super-conscient. » TEILHARD DE CHARDIN, Le Christ évoluteur, p. 166. 61 2.2.4 O ponto Ômega Teilhard imagina o futuro da cosmogênese como uma convergência de todo o ser, através da consciência humana e da noosfera, no ponto Ômega. A noosfera tem a tendência de unificar o ser humano. Depois de uma olhada na evidência, ele diz que, “Antropologicamente, etnicamente, socialmente, moralmente, nada se compreende do Homem [...] enquanto não se vir que, no seu caso, a ‘ramificação’, na medida em que ela subsiste, já não opera senão com um fim e sob formas superiores de aglomeração e de convergência.”54 Mas, ele não para aí. A unificação do ser humano só representa uma parte do movimento, que engloba todo o universo. Nosso autor explana que: O agrupamento geral em que, por ações conjugadas do Fora e do Dentro da Terra, encontra-se empenhada, neste momento, a totalidade das potências e das unidades pensantes – a reunião em bloco de uma Humanidade cujos fragmentos se soldam e se interpenetram sob os nossos olhos apesar e mesmo à proporção dos esforços que fazem para se separarem [...] não vejo outra maneira coerente, e portanto científica, de agrupar esta imensa sucessão de fatos senão interpretando no sentido de uma gigantesca operação psicobiológica – como uma espécie de megassíntese, - a ‘superordenação’ a que todos os elementos pensantes da Terra se acham hoje individualmente e coletivamente submetidos. 55 A ‘megassíntese’ não dissolverá toda a individualidade em sua unificação. Além disso, o ponto da convergência, o ponto Ômega, será pessoal, ou seja, hiperpessoal, que unificará as pessoas espirituais. 56 2.2.5 A atividade de Deus dentro da evolução A questão da criação, da ação de Deus, não aparece muito nos escritos mais científicos e filosóficos de Teilhard. No Fenômeno Humano Teilhard evoca Deus somente em relação ao ponto Ômega. 57 De Lubac comenta isso dizendo que o gênero desse livro é fenomenológico, que somente deduz as conclusões mais metafísicas para explicar o fenômeno.58 De fato, Teilhard usa esse método em vários de seus escritos.59 O seu motivo apologético e sua formação científica provavelmente explicam a razão dessa escolha. No 54 FH, p. 264. FH, p. 265-66. 56 Ibid., p. 284-85. Vaz sumariza bem o significado do ponto Ômega, “Vemos, então, que, na concepção teilhardiana, o Ponto Ômega concentra em si várias direções de pensamento: ele é Deus, se o pensamos do ponto de vista do universo e da possibilidade da Revelação. Ele é Cristo, se o pensamos do ponto de vista da presença de Deus na Evolução e Cristo prolongando também na atividade salvífica da Igreja, se o pensamos como sentido definitivo da Evolução, a partir da Encarnação.” VAZ, Universo científico, p. 114. 57 Ibid., p. 283s. 58 DE LUBAC, La pensée religieuse, p. 97. 59 Por exemplo, a reflexão: TEILHARD DE CHARDIN, Comment je crois, p. 117s. 55 62 entanto, ele possui duas obras nas quais reflete, especificamente, a questão da criação: Sobre a noção da criação transformativa (1920) e O Deus da evolução (1953). Destas obras podese auferir um entendimento sobre a ação de Deus em seu sistema. Teilhard rejeita qualquer forma estática de criação. Ele critica as categorias escolásticas de creatio et eductio, baseadas numa visão do universo fixo, como insuficientes para descrever a transformação do universo à luz do processo da evolução. 60 Nessa concepção, Deus deixa em movimento o universo que somente pode reproduzir seu mesmo estado através do tempo. As causas secundárias não têm a força para causar a passagem de um nível de ser para o outro.61 Tal concepção não dá conta da realidade de um universo em evolução. Além disso, ele propõe uma fusão das duas categorias, ou seja, uma criação transformativa. Ele afirma que: Não há um momento em que Deus cria, e um momento em que as causas segundas se desenvolvem. Sempre há somente uma ação criativa (idêntica com a conservação) que continuamente eleva as criaturas para o mais ser, em favor de sua atividade segunda e seus avanços anteriores. Concebida dessa maneira, a criação não é a intrusão periódica da Causa Primeira: é um ato coextensivo a toda a duração do universo. Deus cria desde a origem dos tempos, e, vista de dentro, sua criação (mesmo sua criação inicial?) tem a figura de uma transformação.62 A criação é contínua e transformativa. Ele não descreve aqui exatamente a relação entre a causa primeira e as causas secundárias, mas parece que as causas secundárias mediam a atividade de Deus. 63 Surge, então, a questão da relação entre Deus e a criação. Teilhard rejeita qualquer desconexão entre Deus e a criação. Uma consequência de uma evolução cósmica, segundo nosso autor, é que Deus não pode ficar com a causa eficiente e, em consequência, independente estruturalmente da criação. Num universo em evolução, “Deus só é concebível (estruturalmente, dinamicamente) na medida em que, como uma espécie de causa “formal”, Ele coincide (sem se confundir) com o centro de 60 TEILHARD DE CHARDIN, Sur la notion de transformation créatrice, p. 31. Aqui ele responde a uma versão da metafísica escolástica. Está fora do escopo desta pesquisa investigar em qual sentido Teilhard é correto em sua interpretação da escolástica. 62 « Il n’y a pas un moment où Dieu crée, et un moment où les causes secondes développent. – Il n’y a jamais qu’une action créatrice (identique à la Conservation) qui soulève continuellement les créatures vers le plus-être, à la faveur de leur activité seconde et de leurs perfectionnements antérieurs. La Création ainsi comprise n’est pas une intrusion périodique de la Cause première : elle est un acte coextensif à toute la durée de l’Univers. Dieu crée depuis l’origine des temps, et vue du dedans, sa création (même initiale ?) a la figure d’une Transformation. » TEILHARD DE CHARDIN, Sur la notion de transformation créatrice, p. 31. 63 Smulders defende a continuidade com a tradição nesse ponto, “a criação é fonte permanente e profunda que alimenta incansavelmente o desenvolvimento próprio do cosmos. Ela traduz igualmente o antigo dogma da criação. Mas ela lhe dá uma nova forma de representação, colocando no centro a influência permanente e ininterrupta da ação criadora de Deus, sempre presente na doutrina, mas pouco explicitada na antiga representação.” SMULDERS, A visão de Teilhard, p. 73-74. 61 63 convergência da cosmogênese.” 64 No pensamento de Teilhard, a teleologia e o fim do universo têm prioridade sobre sua protologia e começo.65 Ele privilegia a ação de Deus como o final do movimento, como o atrator similar ao Motor Principal de Aristóteles, e a criação como um movimento de síntese, em que Deus prepara o múltiplo para a união com o um. 66 Mas nessa citação ele coloca Deus no meio das coisas, como uma causa formal, e enfatiza sua imanência. Existe uma tentação de desmoronar a atividade criativa de Deus e a atividade própria dos processos criados. Porém, ele não elabora sua concepção desta relação, portanto devemos nos contentar com as linhas gerais deste estudo.67 À luz disso, Teilhard não precisa propor uma intervenção especial de Deus para explicar o ‘espiritual’ no ser humano. Ele é um produto ‘natural’ do processo da evolução. O processo da conscientização é co-extensivo com a cosmogênese do universo. O espiritual, se chama o ‘dentro’, é intrínseco de cada ser,68 e, com o movimento de complexificação, tornase cada vez mais explícita até o ser humano, ou seja, o animal consciente de si mesmo. Esta afirmação parece negar a ‘criação’ da alma diretamente por Deus. 69 Contudo, Teilhard responderia, Deus não é uma causa extrínseca do universo, mas o cria e o transforma continuamente. Deus cria em e através das causas secundárias. Segundo ele, não há dicotomia entre Deus e a causa secundária. Então, ele pode afirmar que Deus cria a alma e que a alma é produto da evolução.70 64 « Dieu n’est plus concevable (ni structurellement, ni dynamiquement) que dans la mesure où, comme une sorte de cause « formelle », il coïncide (sans se confondre) avec le Centre de convergence de la Cosmogénèse. » TEILHARD DE CHARDIN, Le Dieu de l’évolution, p. 288. 65 Por exemplo, em Le Phénomène humain, ele não trata diretamente da origem do universo, mas dedica a última parte, três capítulos, à convergência do universo e à consumação final. Smulders procede do mesmo modo, pois Deus só aparece no fim do movimento do universo. SMULDERS, A visão de Teilhard, p. 89. 66 Teilhard explica essa síntese da seguinte forma, « Créer, même pour la Toute-Puissance, ne doit plus être entendu par nous à la manière d’un acte instantané, mais à la façon d’un processus ou geste de synthèse. L’Acte pur et le « Néant » s’opposent comme l’Unité achevée et le Multiple pur. Ceci veut dire que le Créateur ne saurait, en dépit (ou mieux en vertu) de ses perfections, se communiquer immédiatement à sa créature, mais qu’il doit la rendre capable de le recevoir. Pour pouvoir se donner au Pluriel, Dieu doit l’unifier à sa mesure. Des origines du Monde à Lui, la constitution du Plérôme se traduit donc nécessairement à nos esprits par une progressive marche de l’esprit. » CE, p. 101-02. 67 O debate sobre sua concepção da criação na literatura secundária não toca explicitamente a tema dessa pesquisa. Smulders encontra problemas com a concepção da matéria de Teilhard (SMULDERS, A visão de Teilhard, p. 98-100). De Lubac tenta salvar algumas proposições dúbias em resposta a algumas críticas (DE LUBAC, La pensée religieuse, p. 283-286). 68 Teilhard argumenta que, “portanto, entrevista neste único clarão, ela [a consciência] possui uma extensão cósmica e, como tal, aureola-se de prolongamentos espaciais e temporais indefinidos.” FH, p. 35. 69 Cf. por exemplo, STh. 1a. 90, 2, e também uma afirmação recente do magistério, Humani generis 36 (DH 3896). 70 De Lubac defende essa concepção de Teilhard contra críticas, « On ne dira pas, simpliciter, que l’homme, en tant qu’être particulier naissant à sa place marquée dans l’Univers, est créé tout entier ex nihilo, puisque – aussi bien d’après la lettre de la Genèse que d’après la doctrine de l’évolution – la matière de son corps lui est fournie par des éléments préexistants. Quant à son âme, spirituelle, « parfaitement centrée », et relativement indépendante du corps qu’elle anime, elle ne constitue pas un être à elle seule : principe d’unité de l’être humain, 64 2.3 Interpretação do pecado original de Teilhard de Chardin 2.3.1 A crítica da doutrina clássica do pecado original Teilhard critica diretamente a doutrina do pecado original. Para ele, a história de Adão e Eva, que continua sendo o base da doutrina em seu tempo, é incompatível com a ciência. A exposição feita acima mostra claramente que a ideia da criação especial do ser humano, um único casal no começo, um paraíso terrestre e a origem da morte com o primeiro pecado, são completamente inaceitáveis dentro da perspectiva científica. 71 De fato, ele enfatiza: Na verdade, a impossibilidade de fazer entrar Adão e o paraíso terrestre (imaginados literalmente) em nossas perspectivas científicas é tal que me pergunto se em seu único homem, hoje, é capaz de combinar simultaneamente seu olhar sobre o mundo geológico evocado pela ciência, e o mundo normalmente contado pela história ‘santa’.72 Além disso, ele acha que a doutrina tradicional está baseada numa perspectiva estática do mundo. É uma resposta ao problema do mal num universo fixo. Ela, não se harmoniza, portanto, com um mundo que evolui. 73 Teilhard rejeita, então, a exposição tradicional da doutrina e busca uma interpretação compatível com a ciência e fiel à tradição católica. Ele vê duas opções para um teólogo cristão consciente dessa contradição. A primeira é minimizar a queda e a influência do primeiro pecado como explanação na história biológica. 74 Então, os dons preternaturais são minimizados, a extensão do paraíso é reduzida, e as consequências do pecado, como a morte, afetam somente o ser humano.75 A queda não aparece na história antropológica porque é muita pequena. Mas, Teilhard rejeita esta interpretação porque, segundo ele, contradiz o conteúdo tradicional da doutrina, que de um lado é uma resposta ao problema do mal no mundo, e do outro, a afirmação da universalidade da redenção em Cristo (Ef 4,10). Ele acredita que, “O espírito da Bíblia e da Igreja é claro: o mundo inteiro foi corrompido pela queda, e tudo foi redimido. A glória, a beleza, a atração elle ne peut apparaître que « dans l’exercice d’un acte d’union », c’est-à-dire qu’en agissant sur un sujet d’action à sa mesure, cette action consistant à « unifier autour d’elle un univers qui, sans elle, retomberait en pluralité ». » DE LUBAC, La pensée religieuse, p. 287. 71 CRG, p. 49-51; RHPO, p. 62-63. 72 « En vérité, l’impossibilité de faire rentrer Adam et le Paradis terrestre (imaginés littéralement) dans nos perspectives scientifiques est telle que je me demande si un seul homme, aujourd’hui, est capable d’accommoder simultanément son regard sur le Monde géologique évoqué par la Science, et sur le Monde communément raconté par l’Histoire Sainte. » RHPO, p. 63. Ele afirma algo similar noutro lugar: « la Chute originelle n’est pas localisable à un moment, ni en un lieu déterminés. » TEILHARD DE CHARDIN, Le Christ évoluteur, p. 174. 73 CE, p. 99. 74 CRG, p. 51; RHPO, p. 64. 75 CRG, p. 51-52; RHPO, p. 64. 65 irresistível do Cristo, irradiam em última análise, de sua realeza universal.”76 Por isso, ele busca uma alternativa que maximalize o significado da queda. 2.3.2 O problema do mal no universo e o pecado original Teilhard liga o pecado original com o mal físico. Ele diz, “[...] o pecado original, tomado em sua generalidade, não é uma doença especificamente terrestre, nem relacionada à geração humana. Ele simboliza simplesmente a inevitável chance do mal (Necesse est ut eveniant scandala) ligada à existência de todo ser participado.”77 Em vez de minimizar a queda, ele a universaliza. Não se pode ver o momento da queda de Adão e Eva porque quando se vê, “À perda de vista, atrás, dominado pelo Mal físico [...] o Mundo nos é revelado em estado de pecado original.” 78 Então, o problema do mal é tão grande que não se pode distinguir entre o mal no ser humano e o mal no universo. Eles são co-extensivos. Mas, sugere-se a questão: o que é a caraterística do mal no universo, segundo Teilhard? Em sua fenomenologia, o mal significa a desordem, a falha e a corrupção do ser. A morte, que na doutrina clássica é um efeito do primeiro pecado, é uma caraterística de toda a matéria, e começa com o átomo. A desintegração e a decomposição, que são a morte num sentido amplo, “estão inscritas na natureza físico-química da matéria.”79 Mas essa se estende ao nível da vida, no sofrimento da carne, e da consciência, na angústia do espírito.80 A matéria não é perfeita ou imortal. Então, está condicionada pelo mal. Dentro do universo em evolução, a corrupção e o mal são inevitáveis estatisticamente. Teilhard explica que: se nos patenteia um tipo particular do Cosmos onde o Mal (não por acidente – o que seria pouco – mas pela própria estrutura do sistema) surge necessariamente, e em quantidade ou com uma gravidade tão grandes quanto se queira, na esteira da Evolução. Universo que se enrola, dizia eu – Universo que se interioriza: mas também, do mesmo passo, Universo que lida, Universo que peca, Universo que sofre.... Ordenação e centração: dupla operação 76 « L’esprit de la Bible et de l’Église est manifeste : tout le Monde a été corrompu par la Chute, et tout a été racheté. La gloire, la beauté, l’attraction irrésistible du Christ, rayonnent en définitive de son universelle royauté. » CRG, p. 52. 77 «[…] le péche originel, pris dans sa généralité, n’est pas une maladie spécifiquement terrestre ni liée à la génération humaine. Il simbolise simplement l’inévitable chance du Mal (Necesse est ut eveniant scandala) attachée à l’existence de tout être participé. » Ibid., p. 53. 78 « A perte de vue, en arrière, dominé par le Mal physique […] le Monde se découvre à nous en état de péché originel. » RHPO, p. 63. 79 « Inscrite dans la physico-chimie même de Matière » RPO, p. 221-22. 80 FH, p. 346. 66 conjugada que, tal como a ascensão de um pico ou a conquista do ar, não pode objetivamente efectuar-se senão no caso de ser rigorosamente paga.81 Nosso autor concebe a evolução como um processo de organização e de complexificação que resulta em muitos erros para cada sucesso. Quando as moléculas se reúnem, às vezes não se encaixam perfeitamente. Quando os seres vivos se reproduzem, às vezes ocorrem erros. E, no fim, cada ser complexo se decompõe, e cada ser vivo morre, por causa da fragilidade da organização e da natureza da matéria. A evolução tem muitas perdas estatisticamente determinadas. 82 Mas, por que existe essa limitação no processo da evolução? Por que a complexidade não segue linhas certas e infalíveis? A resposta a esse problema encontra-se na metafísica de Teilhard, na luta entre o múltiplo e o ‘Um’ e o movimento da unificação. O mal tem que ser o oposto de Deus, o bem universal. Dos atributos de Deus, Teilhard enfatiza sua unidade. 83 Se Deus é um, então o oposto de Deus é o não-um, a multidão. 84 Criar, para nosso autor, significa um ato de unificação.85 O problema é que tem que haver um ser primeiro que possa ser unificado. Deus tem que criar uma multidão para unificá-la. Mas, criar a multidão implica criar, como um efeito secundário, o mal. 86 Portanto, o mal, como multiplicidade, é um efeito inevitável da criação. Ele resume: Mas, em um mundo que emerge lentamente da matéria, não é mais preciso imaginar um acidente primordial crítico para explicar o surgimento do Múltiplo e de seu satélite inevitável: o Mal ... O Múltiplo? Mas ele tem, acabamos de ver, a seu lugar natural na base das coisas, uma vez que ele representa, como o oposto de Deus, as potencialidades difusas do Ser participado: não os restos de um vaso quebrado, mas o barro elementar do qual tudo vai ser amassado. O Mal? Mas ele aparece necessariamente na unificação do Múltiplo, pois ele é a expressão mesma de um estado de pluralidade incompletamente ainda organizada.87 81 FH, p. 347. RPO, p. 227. Do ponto de vista biológico essa afirmação tem sentido. Os biólogos trabalham no campo das probabilidades. A contingência dos processos biológicos e a complexidade dos fatores que afetam as mudanças tornam impossível uma certeza analítica sobre o que acontecerá. Também, em algumas reações químicas e processos radioativos, as probabilidades são o máximo que um cientista pode saber. Aqui Teilhard está aplicando esse fato ao problema do mal no universo. 83 De Lubac argumenta sobre esse ponto, afirmando que Teilhard constrói sua metafísica dos axiomas sobre a unidade de Deus e a ação da criação. DE LUBAC, La Pensée Religieuse, p. 282 : «Deus creat uniendo, - creari est uniri, - plus esse est plus, a pluribus, uniri : ce genre d’axiomes le séduisait, et il en venait à rêver de construire une métaphysique, sa métaphysique, que serait « une métaphysique de l’union ». » À luz disso, Grummett defende uma interpretação neoplatônica de Teilhard. Cf. GRUMETT, Teilhard de Chardin, p. 13-15. Martelet concorda: MARTELET, Et si Teilhard, p. 28. 84 CE, p. 101. Num lugar Teilhard diz que o ‘Múltiplo’ é a fonte do mal: La Lutte contre la multitude, p. 117. 85 TEILHARD DE CHARDIN, La Lutte contre la multitude, p. 114. 86 CE, p. 101. 87 « Mais dans un Monde qui émerge peu à peu de la matière, plus n’est besoin d’imaginer un accident primordial pour expliquer l’apparition du Multiple et de son satellite inévitable : le Mal… Le Multiple ? Mais il a, nous venons de la voir, sa place naturelle à la base des choses, puisqu’il représente, aux antipodes de Dieu, les 82 67 Mas, essa afirmação significa que Deus é o autor do mal? Nosso autor responde que o mal é o produto secundário da criação e não uma parte da intenção principal. Além disso, Deus está criando continuamente, unificando a multidão e, então, superando o mal. Aqui pode-se ver o significado da posição de uma criação transformadora dentro da visão de Teilhard. O valor da criação justifica seu sofrimento com o mal? Ele responde que só se pode saber disso no final, então é preciso confiar na sabedoria de Deus.88 2.3.3 O pecado original no ser humano Dessa concepção do mal, o pecado no ser humano é simplesmente a extensão do mal universal no nível da consciência. Teilhard afirma que o pecado original, como o mal no ser participado no estado da multiplicidade e da corruptibilidade, existe por todo o tempo e em todos os lugares do universo.89 Quando o ser chega ao nível da vida, esse mal se manifesta na morte e no sofrimento. Quando a vida chega ao nível da consciência, o mal se manifesta no pecado e no mal moral. 90 Tanto o mal é inevitável no ser criado quanto o pecado é inevitável no ser humano.91 Portanto, o pecado original passa de um ato para um estado,92 que Teilhard descreve como uma fraqueza original causada pelo fato de “[...] ser nascido a partir do Múltiplo.”93 Segue-se logicamente que a história do paraíso, do primeiro pecado e da queda recebe uma reinterpretação radical. Nosso autor rejeita então o monogenismo. Segundo ele, Adão e Eva não existiram historicamente como primeiro casal. 94 A imagem do paraíso em Gênesis significa não um estado perfeito ou uma graça especial, mas a situação de cada ser virtualités diffuses de l’Être participé : non pas les débris d’un vase brisé, mais l’argile élémentaire dont tout sera pétri. Le Mal ? Mais celui-ci apparaît nécessairement au cours de l’unification du Multiple, puisqu’il est l’expression même d’un état de pluralité incomplètement encore organisée. » CE, p. 102-03. 88 RPO, p. 228. 89 Ibid., p. 222. 90 Ibid., p. 227. 91 Ibid., p. 228. 92 Ibid., p. 228. 93 «[…] la fait naître à partir du Multiple. » CE, p. 103. Ladaria resume a posição de Teilhard do seguinte modo: “el pecado original seria, en el plano del hombre, el resultado de los desordenes que aparecen por ley estadística en todo sistema en via de organización, como un subproducto necesario de la unificación a partir de lo múltiple. El mal, el dolor físico, la falta moral, se introducen en el mundo en virtud del ser participado. Por ello, el pecado original seria una realidad de orden transhistorico, más que un elemento de la serie de los acontecimientos históricos; expresaría la ley perenne de la falta de la humanidad en cuanto se encuentra in fieri. Cristo, por el contrario, seria el que sobrepasa en sí y en todos nosotros las resistencias a la unificación y a la ascensión espiritual que hallamos en la materia […] El pecado tiene, por tanto, raíces y formas primarias en todos los niveles del universo, aunque aparezca como tal sólo cuando existe la libertad.” LADARIA, Teologia del pecado, p. 123. 94 CRG, p. 54. 68 humano diante da oferta de Deus. Nosso autor explica que, “Adão e Eva são imagens da humanidade se movendo em direção a Deus. A bem-aventurança do Paraíso terrestre é a salvação constantemente oferecida a todos, mas recusada por muitos.”95 O primeiro pecado é nada mais do que, “[...] a crise moral que verdadeiramente acompanhou na Humanidade a primeira aparição da inteligência.”96 Teilhard não dá muita importância a esse momento, tão pequeno no movimento da evolução. A queda, então, antecipa o pecado e não o segue. O pecado é a consequência da queda do Um no Múltiplo, no começo do ato da criação. Mas, sugere-se a questão: qual é o papel dos atos pecaminosos nessa visão? Nos escritos posteriores, Teilhard abre mais espaço para os pecados pessoais na dinâmica do mal no ser humano. Nos escritos anteriores, ele se contentava em afirmar que os pecados são inevitáveis no processo de complexificação e de unificação do ser. Mas, na última reflexão sobre o assunto, ele desenvolve um pouco o significado dos pecados para a humanidade. 97 Ele caracteriza o estado do pecado original como algo “[...] afetando a massa humana como um todo, como resultado de uma poeira de erros espalhados ao longo do tempo na humanidade.” 98 Então, o estado não é meramente individual, mas tem a ver com os pecados da humanidade coletivamente considerada. Ele dá também espaço para a diferenciação entre os pecados. Afirma que os primeiros pecados, embora menos conscientes, tiveram mais eficácia no filo humano, e os pecados cometidos pelo mesmo grupo da população teriam mais efeito nos indivíduos do grupo. Ademais, um pecado final, com o máximo de consciência, seria particular. 99 Embora Teilhard não desenvolva essas ideias sobre os efeitos dos pecados pessoais nos outros, antecipando aqui os situacionistas, ele os conecta com o crescimento da noosfera. Mas, podese dizer pelo menos que ele não esquece completamente o nível histórico e cultural do pecado. Sobre a questão da transmissão do pecado original, a concepção de Teilhard supera a dificuldade completamente. O ser participado, pelo fato de ser múltiplo, próprio do processo de transformação, o torna sujeito ao mal. Então, cada ser humano, pelo fato de ser parte do múltiplo e ser incompleto (no processo de unificação) encontra-se no estado de mal 95 « Adam et Ève, ce sont images de l’Humanité en marche vers Dieu. La béatitude du Paradis terrestre, c’est le salut constamment offert à tous, mais refusé par beaucoup. » RHPO, p. 68. 96 «[…] la crise morale qui vraisemblabement a accompagné dans l’Humanité la première apparition de l’intelligence. » Ibid., p. 68. 97 Pode-se especular que ele está respondendo a algumas críticas à sua concepção aqui. 98 «[…] affectant la masse humaine dans son ensemble, par suite d’une poussière de fautes disséminées au cours du temps dans l’Humanité. » RPO, p. 228. 99 Ibid., p. 229, nota 1. 69 e peca inevitavelmente. Ele não precisa de uma explanação da transmissão ou da ‘herança’ do pecado de uma geração para outra. O mal, a morte, a corrupção e o pecado são partes do ser humano desde o começo. Teilhard pode falar sobre a herança, mas no sentido biológico. E, com sua rejeição do monogenismo, a herança é coletiva. O ‘filo’ do homo sapiens é comum a todos. Neste sentido, diz ele, “A única correção feita, de fato, sendo substituída por uma ‘matriz’ e uma herança coletivas o seio de nossa mãe Eva.”100 Essa ‘matriz’ inclui a herança do pecado? Num texto onde antecipa a objeção sobre a questão do batismo, nosso autor afirma que, “[...] cada nova alma despertando para a vida se encontra solidariamente contaminada pela influência totalizada de todas as faltas passadas, presentes (e futuras) inevitavelmente espalhadas.”101 Não fica claro em que esta influência consiste, mas pode-se dizer, à luz da exposição acima, que a contaminação do pecado, para Teilhard, é nada mais nada menos que a corrupção e a divisão co-extensivas de um ser material em processo de evolução. O pecado é somente a expressão dessa corrupção no nível da consciência. Como uma divisão biológica afeta o organismo, uma divisão social afeta a comunidade. Ele não desenvolve esse ponto, então deve-se ficar com essas linhas gerais. 102 Essa concepção do pecado original necessita de uma identificação entre criação e redenção. Nos três artigos sobre o pecado original, Teilhard conclui da mesma maneira, com uma breve interpretação da relação entre a criação, a queda e a redenção, em que ele afirma: “Todos os quatro [criação, queda, encarnação, redenção] se tornam co-extensivas com a duração e a totalidade do Mundo; são, num sentido, as fases (realmente distintas mas fisicamente ligadas) da mesma operação de Deus.”103 A criação transformativa é o movimento de elevação e de unificação na megassíntese do Ponto Ômega. O mal é a disposição da corrupção e da divisão na multidão dos seres criados e a inevitável falha do processo de unificação. Então, a criação é o ato contínuo da superação do mal nos seres criados. A queda significa o primeiro momento desse ato, a geração da multiplicidade. A redenção, que implica a encarnação para Teilhard, significa o momento final desse ato, a convergência do universo no Ponto Ômega. O ser humano é o meio entre a multiplicidade original e a unidade final, que acontecerá através da conscientização e da super-conscientização do universo. Então o pecado é o mal consciente que existe entre o mal original e a síntese final. 100 «[…] le seul correctif apporté, en somme, étant de remplacer par une « matrice » et un hérédité collectives le sein de notre mère Ève. » RPO, p. 229. 101 «[…] chaque nouvelle âme s’éveillant à la Vie se trouve solidairement contaminée par l’influence totalisée de toutes les fautes passées, présentes (et à venir) inévitablement répandues. » Ibid., p. 228. 102 A literatura secundária não trata sobre esses breves textos. Por exemplo, veja MALDAMÉ, O pecado original, p. 191-94. 103 RHPO, p. 69 ; Cf. CRG, p. 57; RPO, p. 229-30. 70 2.3.4 Justificativa: o argumento da redenção cósmica à universalidade do pecado original em toda a criação material Teilhard oferece um argumento para justificar sua reinterpretação da doutrina. A premissa central consiste na extensão cósmica da redenção em Cristo. Os argumentos para essa premissa são os seguintes. Primeiro, a Sagrada Escritura afirma que Jesus é o Senhor da criação. 104 Ele se refere aos textos de Ef 4,10, “Aquele que desceu é também quem subiu acima de todos os céus, para preencher todas as coisas”;105 Co 1,17, “Ele é antes de tudo e tudo subsiste nele [in quo omnia constant]”;106 e Rm 8,22, “sabemos que toda a criação até agora geme e sente dores de parto” [até a consumação final em Cristo]. 107 Segundo, sua fenomenologia do mundo, que percebe uma convergência, sugere um elemento que atrai e unifica os três níveis: a matéria, a consciência e Deus. Cristo cumpre essa função.108 Terceiro, a ideia da encarnação, a unificação de Deus com o universo, satisfaz o desejo religioso primitivo para a união com o transcendente, expresso muitas vezes numa forma de panteísmo.109 Portanto, a extensão dessa encarnação a todo o universo completa a imperfeição da divisão entre Deus e a criação que continuaria se Cristo ficasse no nível particular e não se tornasse universal. Quarto, a ligação entre a redenção e o processo evolutivo do universo, que é possível somente se Cristo é cósmico, permite explicar a fé cristã ao mundo científico.110 O argumento, baseado nessa premissa, é o seguinte: 1. O raio do poder de Cristo é universal e cósmico (todos aceitam);111 2. O raio do poder de Cristo é o raio da redenção (por definição); 3. O raio da redenção é somente o que precisa ser redimido, o pecado e o pecado original (todos aceitam); 4. Proposta: O pecado está confinado à nossa visão moderna da cosmogênese histórica, o pecado original aconteceu num lugar particular com uma pessoa particular (a doutrina clássica); 5. Conclusão primeira: o raio do poder de Cristo é limitado à humanidade e a história humana, sem nenhuma dimensão universal ou cósmica 112 (segue de 2, 3 e 4); 6. Contradição: essa conclusão contradiz o n. 1, que o raio do poder de Cristo é universal e cósmico (contra 1);113 104 CRG, p. 52. Ibid., p. 52, 56; TEILHARD DE CHARDIN, Panthéisme et christianisme, p. 88. 106 CRG, p. 57; TEILHARD DE CHARDIN, Panthéisme et christianisme, p. 87; Le Christ évoluteur, p. 168; Christianisme et évolution, p. 210. 107 RHPO, p. 69; TEILHARD DE CHARDIN, Panthéisme et christianisme, p. 88. 108 TEILHARD DE CHARDIN, Le Dieu de l’évolution, p. 289-91. 109 TEILHARD DE CHARDIN, Comment je crois, p. 148-49; Panthéisme et christianisme, p. 88-91. 110 CE, p. 109-13; TEILHARD DE CHARDIN, Christianisme et évolution, p. 207-210. 111 O Cristo é o mediador e a cabeça da criação. Seu poder se estende a toda a criação (Rm 9,5; Co 1,17, etc.). Cf. RPO, p. 222. 112 RPO, p. 223. 113 Teilhard usa Co 1,17 para justificar esta conclusão. RPO, p. 222. 105 71 7. Conclusão segunda: a proposta 4 tem que ser incorreta, e o pecado tem que ser universal a fim de que o raio do poder de Cristo seja universal: “[...] estamos ainda obrigados (desta vez não devido à universalidade revelada pela influência crística) a refletir sobre o fenômeno da queda, para ver como ela poderia ser concebida e imaginada, não como um fato isolado, mas como uma condição geral que afeta toda a História.”114 Basicamente, Teilhard coloca, contra a particularidade do pecado original, o princípio do Cristo universal. Sua reinterpretação dá à redenção em Cristo um papel cósmico, e, segundo ele, é mais fiel ao testemunho Bíblico do que a doutrina clássica. 2.4 Avaliação de Teilhard de Chardin 2.4.1 As respostas aos problemas da doutrina clássica à luz da evolução Essa reinterpretação do pecado original responde diretamente às dificuldades encontradas à luz da evolução. Primeiro, o ‘paraíso-problemático’, recebe sua resposta na rejeição da narrativa clássica. O ser humano é um animal que evoluiu dos primatas. O paraíso nunca existiu. Essa imagem representa, para Teilhard, a salvação oferecida por Deus. Segundo, essa concepção evita o ‘monogenismo-problemático’ com a aceitação do poligenismo. O ser humano é uma só espécie, com uma só história, mas que evoluiu como um ramo, um grupo relativamente grande, e não de um só casal. Mas, isso não causa uma dificuldade para a herança do pecado original porque, em terceiro lugar, a ‘transmissãoproblemática’ se torna irrelevante pois o pecado não é tratado como uma categoria quasebiológica. A natureza humana, no estado de transformação contínua, inevitavelmente comete erros, tanto biológicos quanto morais, no processo de complexificação e de conscientização. Esses ‘erros’ formam parte dos processos biológicos, explicados naturalmente pela ciência. No nível da noosfera, os erros morais fazem parte do patrimônio cultural da humanidade. O pecado não tem um papel especial ou relevante nesse processo. Então, não é necessário propor uma transmissão quase-biológica e quase-espiritual do mesmo. A corrupção, ligada a um ser material no processo de unificação, é natural. O pecado é um efeito disso, não sua causa. Em relação aos problemas com a doutrina tradicional, também a concepção de Teilhard tem suas respostas. Ele supera a dificuldade do ‘efeito universal’, por causa da desconexão entre o estado de imperfeição e o pecado. A imperfeição humana não tem 114 «[…] nous voici encore obligés (non plus cette fois par suite de l’universalité révélée de l’influence christique) de réfléchir sur le phénomène de la Chute, pour voir comment celui-ci pourrait bien être conçu et imaginé, non plus comme un fait isolé, mais comme une condition générale affectant la totalité de l’Histoire. » RPO, p. 222-23. 72 nenhuma relação com os primeiros pecados. Eles não têm uma consequência terrível e universal para o ser humano. Por isso, a dificuldade da ‘responsabilidade pessoal’ não aparece. Nenhuma pessoa sofre as consequências negativas do pecado de um antepassado. Todos estão no mesmo estado de luta contra o Múltiplo, que é a condição de toda a criação e não está limitada ao ser humano. A dificuldade da ‘transmissão’ já recebe sua explanação. A dificuldade da concupiscência também se dissolve, porque é somente a experiência existencial da resistência da natureza humana ao movimento de unificação. Então, parece que Teilhard supera tanto os problemas da doutrina, em relação à evolução, quanto os problemas de sua própria consistência. É possível que essa explanação finalmente resolva as contradições que afligiram a doutrina nos últimos cem anos? Aqui surge a grande questão: Teilhard mantém os elementos centrais da doutrina? 2.4.2 Os problemas metafísicos e antropológicos Do ponto de vista da ciência, é possível questionar a realidade da convergência do universo. O argumento de Teilhard aponta para a convergência do universo a partir da investigação do fenômeno humano.115 Mas, uma olhada para o universo como é descrita hoje pelas ciências leva a uma conclusão diferente. Os astrofísicos diriam que o universo está se expandindo sem nenhuma evidência física de convergência. De fato, o universo parece ser dirigido por um movimento de divergência a partir de um ponto singular, o ‘Big Bang’, e é mais ‘múltiplo’ (pelo menos fisicamente) hoje do que no tempo passado. Além disso, o processo de evolução leva a uma maior complexidade e também a uma maior diversidade. Cada ser vivo se torna cada vez mais adaptado e especializado em seu ambiente. A imagem da evolução é a dos ramos de uma árvore, e não a de um cone côncavo.116 Além disso, a evolução somente funciona com a variação nos seres vivos. Sem uma variação entre as espécies e dentro das espécies não pode haver uma seleção natural. Novamente, a convergência não parece ser a direção do movimento. Teilhard é consciente desse fato, mas percebe uma outra dinâmica de unificação presente ao mesmo tempo. Por que o fenômeno da 115 Vaz considera a ideia da convergência do universo central no pensamento de Teilhard: “Na interpretação do cosmos moderno, o surgimento do Ponto Ômega como ponto de convergência e a possibilidade de inserir nesta visão convergente do universo evolutivo a perspectiva cristã, é, precisamente, o que constitui a contribuição própria de Teilhard.” VAZ, Universo científico, p. 100. 116 Faça uma comparação entre os esquemas de Teilhard, FH, p. 202, e uma típica árvore filogenética, que mostra a ramificação das espécies, encontrado num livro de biologia. 73 complexificação da evolução implica uma convergência? 117 Nosso autor não justifica essa conexão. Essas reflexões levam alguns autores a duvidar da base científica das afirmações de Teilhard. Maritain argumenta que sua ciência foi dominada pela filosofia e pela teologia. 118 Gilson fala sobre uma « pseudo-science teilhardienne ».119 A convergência que Teilhard enxerga acontece no nível da consciência, mas aqui também pode-se questionar sua afirmação. O foco no nível da consciência, a noosfera, leva realmente a uma convergência? Teilhard percebe na interação social do ser humano a formação de um organismo coletivo.120 Pode-se concordar que os povos do mundo estão se relacionando uns com os outros, como também que o conhecimento do mundo está se multiplicando e a comunicação entre as pessoas está crescendo, especialmente hoje com a internet e as novas tecnologias. Mas, uma maior interconexão é a mesma coisa que convergência? A rede pode expandir-se sem ter um ponto central. Além disso, a tendência nas sociedades avançadas vai na direção de as pessoas se tornarem mais independentes e individualistas. A unidade social da polis Grega, da raça Europeia, do povo indígena, da igreja confessional, da nação moderna, é cada vez mais parte do passado. A noosfera tecnológica parece mais atomizada, mais complexa, mas não mais unida. Em geral, os fenômenos são tão variados e complexos que é difícil perceber uma direção do movimento. A proposta de Teilhard de um Ponto Ômega à distância não encontra apoio claro à luz dos fatos. Teilhard está consciente da ambiguidade desses fenômenos e propõe o princípio do amor para superar a dificuldade. Em certo ponto, ele reflete, “Ficamos aflitos e inquietos ao verificar que as tentativas modernas de colectivização humana não têm outro resultado, contrariamente às previsões da teoria e à nossa expectativa, senão o rebaixamento e a escravização das consciências.”121 A noosfera não parece simplesmente unificar seus agentes como um fato de sua existência. Por isso, ele propõe a energia do amor como a força da união no nível da noosfera. 122 O amor que começa na família, depois cresce na relação entre amigos, e depois estende-se para o país, sempre com uma tendência a tornar-se universal. Por quê? Porque o amor é a única maneira de expressar o desejo para o total, o ‘sentido do Todo’ 117 A divergência física e biológica é significante porque Teilhard não exclui esses níveis da síntese no Ponto Ômega. Ele acha que a convergência não acontece somente para os seres conscientes, mas é constitutiva do universo inteiro, tornada possível através do nível consciente. FH, p. 283-85. 118 MARITAIN, Le paysan, p. 166 : « En réalité la science des savants a été totalement dépassée, - bien plus, entraînée et absorbée dans un grand torrent de méditation chercheuse où science, foi, mystique, théologie et philosophie à l’état diffus, sont inextricablement mêlées et confondues. » 119 GILSON, Trois leçons, p. 734. 120 FH, p. 262-63. 121 FH, p. 291. 122 Ibid., p. 292-93. 74 dentro do ser humano. 123 Nosso autor afirma que, “[um amor universal] é ainda a única maneira completa e final de podermos amar.”124 Mas, de onde vem esse ‘sentido do Todo’, ou seja, o desejo para a união? Em seu pensamento, Teilhard privilegia a unidade e não a pluralidade. Num escrito, ele descreve dois tipos de pessoas, as monistas e as pluralistas. Ele explica que: [...] existem basicamente duas classes de espíritos, e apenas duas: uns que não ultrapassam (nem sentem a necessidade de ultrapassar) a percepção do múltiplo – tão ligado por sinal em si mesmo para que este apareça; e outros, para os quais a percepção deste mesmo múltiplo termina necessariamente em alguma unidade. Os pluralistas e os monistas. Aqueles que não veem, e os que veem. 125 É claro que Teilhard é um membro do segundo grupo. Sua preocupação, e pode-se dizer sua predisposição intelectual, é para a unidade. 126 Além disso, esse ‘sentido do todo’ e o desejo de união foram particularmente presentes nele, e parecem influenciar bastante seu ponto de vista. Sua explicação do universo privilegia a unidade. Combina isso com seu compromisso com a evolução e sua visão do universo concebido como um grande movimento de unificação. Mas, a realidade do universo justifica isso? Suas tendências intelectuais e desejos subjetivos são realmente universais ou Teilhard projeta um pouco esses aspectos subjetivos no universo? É difícil dizer, à luz da física e da biologia contemporânea e da noosfera na sociedade tecnologicalizada, que o universo se move na direção da convergência e da união. Os fenômenos são ambíguos e então suas afirmações são inconclusivas. Parece que Teilhard projeta seu desejo um pouco aqui, e vê o que ele quer ver. Essa preocupação com a unidade causa algumas dificuldades em sua antropologia. Teilhard, focado nos grandes movimentos do universo, descreve o ser humano como uma criatura meramente reduzida ao processo da evolução. Por exemplo, para dar conta da emergência do ser humano, o animal racional, Teilhard coloca o princípio da consciência no 123 Ibid., p. 292. Ibid., p. 293. 125 «[…] il y a au fond deux classes d’esprits, et deux seulement : les uns que ne dépassent (ni ne sentent le besoin de dépasser) la perception du multiple, - si lié d’ailleurs en soi-même qu’apparaisse celui-ci ; et les autres, pour qui la perception de ce même multiple s’achève forcément dans quelque unité. Les pluralistes et les monistes. Ceux qui ne voient pas, et ceux qui voient. » TEILHARD DE CHARDIN, Comment je crois, p. 122. Longe de ser uma categorização meramente anedótica, é possível que ela tenha uma base psicológica e ainda neurológica. Por exemplo, veja o síntese de McGilchrist sobre as duas esferas do cérebro, com uma das diferenças que a esfera direita mantém uma visão ampla e unida e a esquerda foca nos detalhes e tende dividir os fenômenos. As duas classes de Teilhard poderiam ser os que privilegiam uma ou outra esfera do cérebro. McGILCHRIST, The master, p. 42-43. 126 Os exemplos dessa tendências são numerosos. Por exemplo, FH, p. 16-19. 286-93; CE, p. 102; TEILHARD DE CHARDIN, Panthéisme et christianisme, p. 87, 91; Comment je crois, p. 146-47; Le Christ évoluteur, p. 173; Christianisme et évolution, p. 216. 124 75 fundo de todos os seres. Nisso, ele parece adotar uma posição perto do pampsiquismo,127 mas ele claramente rejeita o panteísmo e distingue bem entre Deus e sua criação.128 Contudo essa consciência no fundo do ser significa que o ser humano está determinado pelas mesmas leis que governam as moléculas. Ele parece ser somente uma grande molécula, uma mônada maior. Ele é um passo no processo. Num certo sentido, Teilhard reduz o universo, e o ser humano, a um processo da complexificação e conscientização. Em vez de valorizar o ser humano, de certo modo Teilhard o desvaloriza, porque o processo domina sobre o indivíduo. Portanto, Teilhard não dá lugar suficiente para a liberdade humana dentro da evolução e no movimento para o Ponto Ômega. Essa grande dinâmica da transformação, que é nada mais do que a ação da criação contínua, parece necessária e independente da escolha humana. Sua consciência é sujeita às energias e às leis do universo. A liberdade não entra aqui. Onde está a responsabilidade? Onde estão os novos horizontes abertos com a razão e a liberdade? Eles são secundários. De Lubac tenta responder a esse problema na exposição de Teilhard com alguns textos que mostram o lugar da liberdade na evolução. Cada pessoa tem uma opção que determina sua destinação. 129 Mas a opção presente para um indivíduo é participar ou não no processo.130 Mas essa escolha é bem limitada. A evolução continuará, e cada rejeição da participação será somente uma falha a mais no movimento para a unificação. Por isso, de Lubac aceita que esse aspecto é um dos limites da obra teilhardiana.131 Quando a questão é sobre o pecado, essa lacuna ficará bem clara. 2.4.3 Os problemas com as afirmações teológicas A criação-redenção dinâmica de Teilhard não dá espaço para o tema bíblico do fim do mundo e da nova criação. Em vários textos, difíceis de interpretar, Teilhard toma uma 127 Rideau nota sua afinidade com a metafísica de Leibniz, Schelling e Bergson, mas interpreta o dehors e o dedans de cada ser como uma explicação da discussão clássica da relação entre a matéria e o espírito. RIDEAU, La pensée, p. 174-75. Grumett nota as críticas que Teilhard fez à Monadologia de Leibniz e argumenta evitando o problema do pampsiquismo com uma clara distinção entre a matéria e o espírito, embora eles estejam unidos. GRUMETT, Teilhard de Chardin, p. 34-36. 128 Por exemplo, uma rejeição explícita do panteísmo, « Plus heureux dans sa tentative « unitarienne » que le Panthéiste qui, sous prétexte d’unifier les êtres, les confond, c’est-à-dire, anéantit en fait, par le monisme, le mystère et la joie de l’Union, le Chrétien, qui a compris la fonction universelle exercée par le Dieu incarné est vraiment parvenu à la position centrale et inexpugnable d’où fait rayonner sa foi et son espérance du haut de la possession du Monde. » TEILHARD DE CHARDIN, Panthéisme et christianisme, p. 91. Grumett dá um julgamento balanceado nesse ponto, em favor de uma intepretação não-panteísta de Teilhard. GRUMETT, Teilhard de Chardin, p. 117-18. A forte ênfase personalista nos últimos capítulos de Le Phénomène Humain mostra que ele concebe a união com Deus como sendo uma comunhão e não uma fusão. FH, p. 282ff. 129 DE LUBAC, La pensée religieuse, p. 156. 130 Ibid., p. 157. 131 DE LUBAC, A oração, p. 142-43. 76 linha em que a ação da redenção em Cristo é uma continuação dos processos físicos e biológicos. Por exemplo, ele diz: A esta generalização do Cristo Redentor em um verdadeiro "CristoEvoluidor" (Aquele que carrega, com os pecados, todo o peso do mundo em progresso) ; a esta elevação do Cristo histórico a uma função física universal; a esta identificação última da cosmogênese com uma cristogênese, pôde-se objetar que elas arriscam fazer desaparecer no super-humano, de volatilizar no cósmico a humana realidade de Jesus.132 Esse tipo da afirmação é difícil de justificar do ponto de visto cristológico. Cristo parece basicamente uma força da evolução, e a redenção é nada mais do que o movimento da evolução, que é a complexificação e a conscientização. Isso é difícil de harmonizar com o testemunho bíblico da redenção, focado não no movimento do cosmo mas na pessoa histórica de Jesus, no povo de Israel e na Igreja. Mesmo os textos que fazem alusões a um significado cósmico da salvação em Cristo enfatiza a descontinuidade entre o estado presente do mundo e o novo mundo. Paulo, que Teilhard cita em seu apoio, testemunha claramente sobre isso: “as criaturas foram sujeitas à vaidade” (Rm 8,20) e portanto não alcançarão seus fins naturalmente, por isso “passa a aparência (σχηµα) deste mundo” (1Co 7,31; cf. 1Jo 2,17), e em relação ao ser humano, “ao se desfazer a tenda que habitamos – nossa casa terrestre – teremos nos céus uma casa preparada por Deus e não por mãos de homens, uma casa eterna” (2Co 5,1), “os mortos ressuscitarão incorruptos, e nós seremos transformados. Porque é preciso que este corpo corruptível se revista de incorrupção” (1Co 15,52-53). O livro do Apocalipse concorda: “Vi um céu novo e uma terra nova, porque o primeiro céu e a primeira terra haviam desaparecido e o mar já não existia” (Ap 21,1). Jesus mesmo fala, “passarão o céu e a terra” (Mt 24,35). O que justifica a identificação da criação e da redenção, ou seja, de Cristo e a evolução? Além disso, pode-se questionar a afirmação de que o Cristo Cósmico é o redentor de toda a criação. Essa proposição, que é central no argumento de Teilhard, pois justifica sua reinterpretação da doutrina do pecado original, não tem a firmeza que ele acredita. Dos quatro argumentos acima, a convergência do universo foi colocada em dúvida, e o desejo primitivo para a união pareceu mais uma tendência pessoal de Teilhard do que um fato antropológico, e também a necessidade apologética de explicar a fé cristã ao mundo científico não pode ser um 132 « A cette généralisation du Christ-Rédempteur en un véritable « Christ-Évoluteur » (Celui qui porte, avec les péchés, tout le poids du Monde en progès) ; à cette élévation du Christ historique à une fonction physique universelle ; à cette identification ultime de la Cosmogénèse avec une Christogénèse, on a pu objecter qu’elles risquent de faire s’évanouir dans le sur-humain, de volatiliser dans le cosmique l’humaine réalité de Jésus. » CE, p. 211. Essa afirmação não é isolada. Cf. CE, p. 207; Panthéisme et Christianisme, p. 84-87; Le Christ évoluteur, p. 168, 170-72, especialmente : « Le Christ-Rédempteur, autrement dit, s’achevant, sans rien atténuer de sa face souffrante, dans la plénitude dynamique d’un CHRIST-ÉVOLUTEUR. » p. 172. 77 argumento teológico para um Cristo cósmico. Assim, somente ficam os textos da Escritura em apoio à sua posição. Mas eles não necessariamente apoiam a interpretação de Teilhard. Os exegetas percebem duas influências em Co 1,17, a tradição helenística do judaísmo da ação da sabedoria na criação (Pv 8,22-31; Sb 7,22; 9,2-4)133 e a ideia estoica da mediação do logos na criação.134 Nos dois casos, o sentido seria sobre a atividade do filho preexistente, antes da encarnação.135 Na teologia clássica, o Filho não deixa de ser parte da Trindade no momento da encarnação. Portanto, o Filho continua a ser o Criador, o Logos, depois da encarnação, em sua natureza divina. Consideremos, portanto, a importante distinção entre a economia do Filho e a economia do Cristo. Cristo, o homem-Deus, não criou o mundo qua homem, mas só qua Deus-Filho. Então, Cristo, esse homem-Deus, não é o “in eo omnia constant” porque omnia já existia antes dele.136 Rm 8,22 se refere à expectativa para a salvação final, que, para Paulo, é a salvação da morte. O contexto é escatológico e suas imagens são apocalípticas,137 referindo-se a um ato definitivo em que “libertados do cativeiro da corrupção para participarem da liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (Rm 8,21). Sem dúvida, Paulo não fala sobre um processo natural ou evolutivo. Ef 4,10 deve ser interpretado no contexto escatológico também, como uma referência à entronização do Messias, com sua presença em ‘todas as coisas’, entendida através da Igreja, o corpo de Cristo (um tema importante na carta), e os dons do espírito que o Messias dá (Ef 4,8.12).138 Simplesmente, a visão escatológica do Novo Testamento não é a de uma evolução em Cristo. Existem outras dificuldades dessa proposta do Cristo cósmico. O Cristo de Teilhard parece ter pouca relação com o Jesus dos evangelhos. Nunca nos evangelhos Jesus dá a si mesmo o lugar de centro do universo físico e do fim do processo da criação. Sua preocupação é com o arrependimento do povo e a proclamação do evangelho (Mc 1,15), não a noosfera e a super-conscientização do ser humano. Sobre isso, Gilson diz: [...] sinto-me confirmado de que, no Evangelho, Jesus de Nazaré é outra coisa que o “germe concreto” do Cristo Ômega. Não é que falte à nova função do Cristo grandeza e nobreza, mas ela é diferente da antiga. Nós nos sentimos 133 NJBC, p. 879; FABRIS, As cartas, p. 60-61. BARTH, Colossians, p. 198. 135 Barth explica, “the idea of preexistence is a necessary ingredient, since the text deals with the agent of creation.” Ibid., p. 203. Ele também rejeita qualquer interpretação de Cristo como um homem arquétipo num modo gnóstico (Ibid., p. 237-38). 136 Gilson percebe o mesmo ponto. GILSON, Trois leçons, p. 732. 137 FITZMYER, Romans, p. 509. 138 Cf. BARTH, Ephesians 4-6, p. 434-35, 476-77. 134 78 como diante de um túmulo vazio: nos tiraram nosso Senhor e não sabemos onde o puseram. 139 Maritain concorda. Sobre o Cristo cósmico, a questão, “[...] É ainda o Cristo do Evangelho? [...] Mas sua fé no Cristo do Evangelho era muito forte - e sua fé no mundo também - para que ele não estivesse interiormente seguro que a questão colocada só poderia ser resolvida pela afirmativa.”140 Apesar de Teilhard enfatizar a necessidade do Jesus histórico no processo de cosmogênese, identificado com a cristogênese,141 sua afirmação não resolve o problema. Qual a função do Jesus histórico nesse movimento? É a mesma função com a qual Jesus identifica sua missão nos evangelhos? Gilson e Maritain diriam não. Eles entendem uma confusão nas categorias, especialmente a mistura da atividade de Cristo com os processos cósmicos.142 Ou seja, para eles a teologia de Teilhard parece uma distorção da fé cristã a partir de conceitos científicos e metafísicos. Vaz tenta responder às críticas de Maritain e Gilson e defender Teilhard. Primeiro, Teilhard utiliza o método fenomenológico porque ele é um cientista realista,143 e tenta uma síntese a partir dessa perspectiva. A crítica segundo a qual Teilhard confunde os níveis do conhecimento, o físico com o nível cósmico, só pode, afirma Vaz, “ser feita a partir de uma concepção da divisão do conhecimento racional inspirada em Aristóteles e à qual, efetivamente, o pensamento de Teilhard teria dificuldade em se sujeitar.”144 Gilson e Maritain buscam no fundo tratar Teilhard dentro de suas filosofias e não nos termos próprios do paleontólogo jesuíta. Grumett concorda com Vaz e argumenta que Teilhard distingue claramente entre Cristo e o processo da evolução.145 Segundo, Vaz argumenta que o Jesuíta 139 «[…] je me sens assuré que, dans l’évangile, Jésus de Nazareth est tout autre chose que le « germe concret » du Christ Oméga. Ce n’est pas que la nouvelle fonction du Christ manque de grandeur et de noblesse, mais elle est autre que l’ancienne. Nous nous sentons un peu comme devant un tombeau vide : on nous a enlevé notre Seigneur et nous ne savons où ils l’ont mis. » GILSON, Trois leçons, p. 733. 140 «[…] « Est-ce bien encore le Christ de l’Évangile ? » […] Mais sa foi en le Christ de l’Évangile était trop forte, - et sa foi au monde aussi, - pour qu’il ne fût pas intérieurement assuré que la question posée ne pouvait se résoudre que par l’affirmative. » MARITAIN, Le paysan, p. 183. 141 « Si vraiment c’est par le Christ-Oméga que tient l’Univers en mouvement, c’est en ravanche de son germe concret, l’Homme de Nazareth, que le Christ-Omega tire (théoriquement et historiquement) pour notre expérience, toute sa consistance. Les deux termes sont intrinsèquement solidaires, et ils ne peuvent varier, dans un Christ vraiment total, que simultanément. » CE, p. 211. 142 MARITAIN, Le paysan, p. 181-83 ; GILSON, Trois leçons, p. 716-17. 143 VAZ, Universo científico, p. 14-15. 21. 144 Ibid., p. 24. 145 Grumett tenta defender a concepção de Cristo Cósmico de Teilhard: “Teilhard regards Christ as completing and redeeming the evolutionary process and therefore as irreducible to that process. David Fergusson provides, in fact, an accurate description of Teilhard’s position in his apparently critical observation that Teilhard’s view of the parousia, and the transformation of the whole of nature and redemption of evolution that are associated with it, is ‘not a realization of immanent natural forces…. But a divine transfiguring of the cosmos intimated in the resurrection of Jesus from the dead.’” GRUMETT, Teilhard de Chardin, p. 226. É duvidoso que essa resposta seja suficiente. A transformação que Teilhard descreve é parte do processo da evolução, e não uma nova ação divina. Cristo pode ser independente do processo da evolução, mas ele fica como seu motor e sua força. O 79 francês foi um místico, portanto sua teologia deve ser interpretada à luz de sua experiência pessoal. Nessa perspectiva, ele conclui que é uma “visão profundamente tradicional, integralmente ortodoxa,”146 baseada em São Paulo e semelhante à de Gregório de Nissa e Máximo Confessor.147 Esse debate pode ser decidido somente a partir de uma interpretação correta dos textos. Contudo, a questão como interpretar a teologia de Teilhard não é o foco desse estudo. Mas, pelo menos podemos concluir, com de Lubac, sempre de modo equilibrado e sem igual em seu conhecimento de nosso autor, que Teilhard sofre de uma metodologia limitada, que fica no plano fenomenológico e objetivo e não abre para reflexões propriamente existenciais ou teológicas. 148 Adiciona a isso a força de sua experiência pessoal de Deus, que influi completamente em sua visão, e seus escritos, que ele não publicou, ficam misturados com reflexões científicas e místicas, com afirmações meio metafísicas e teológicas. Por isso, a confusão das categorias, que Gilson e Maritain percebem, cria uma grande dificuldade de interpretar o sentido teológico das afirmações. Algumas afirmações e aspectos da estrutura da síntese parecem problemáticos. Como se podem interpretar tais afirmações? Temos que deixar esta questão e focar somente na questão relevante para este estudo: se Cristo não é cósmico e sua redenção não se estende a toda a criação incompleta, em que sentido pode-se interpretar o pecado original como a imperfeição inevitável do múltiplo no processo da evolução? 2.4.4 Os problemas com a interpretação da doutrina do pecado original A primeira dificuldade, mencionada acima, é a quase-identificação do pecado original com o mal físico do universo. Se Ricoeur critica Santo Agostinho pela articulação do conceito do pecado original per generationem como quase-gnóstico,149 pode-se dizer o mesmo da identificação em Teilhard sobre o pecado original com os erros inevitáveis da evolução do múltiplo no movimento para a união. A concepção de Teilhard coloca o mal no ser humano, em sua matéria corruptível, sempre visto no nível cósmico.150 Quando se pergunta ‘de onde vem o mal moral?’, a resposta de Teilhard tem que ser, ‘do múltiplo no processo de problema não é somente que ele é indistinguível da evolução, mas que sua ação redentora é nada mais que a ampliação do processo, como Gilson explica, « non pas que le Christ est l’Evolution, mais que l’Evolution est le Christ. » GILSON, Trois leçons, p. 732. 146 Ibid., p. 25. 147 Ibid., p. 21. 148 DE LUBAC, A oração, p. 137-39. 149. 149 RICOEUR, Original sin, p. 276. 150 Rondet enfatiza essa tendência no pensamento de Teilhard. RONDET, Le péché originel, p. 306. 80 unificação’.151 Então, o pecado é inevitável e a responsabilidade termina em Deus, o Criador, e não na criatura. Deus luta contra o mal no contínuo ato de unificação, e o ser humano é livre em suas decisões para o ‘múltiplo’, mas as condições vêm de Deus, e o ser humano parece desamparado frente a elas. 152 O fato de que Teilhard valoriza muito a matéria e o método científico de investigação, que são atitudes realmente anti-gnósticas, mostram que ele não propõe nem um dualismo nem um gnosticismo. Mas, como Ricoeur, entre outros, mostrou, a doutrina foi concebida como anti-gnóstica e coloca a responsabilidade pelo mal no ser humano e não num processo cósmico ou num deus.153 Teilhard transforma o pecado original num processo natural, e identifica o mal moral com o mal físico. Logo, destrói o objetivo da doutrina. Além disso, a identificação entre o mal moral e o mal físico tem vários outros problemas. Primeiro, os dois têm sido distinguidos habitualmente na tradição cristã, começando com algumas afirmações de Jesus (Lc 13,1-5; Jo 9,3).154 O mal moral não vem do mal físico, e o mal físico não é a consequência do mal moral. Se não se distingue os dois, existe a tentação de cair numa teologia infantil da retribuição,155 ou de absolver as pessoas de uma responsabilidade moral porque seus erros são inevitáveis. Rondet vê em Teilhard uma confusão entre o pecado original e a concupiscência. A fraqueza da carne, que tem um aspecto natural, não é o pecado original originans, o ato que começou o mal moral. 156 Ladaria concorda com isso. A limitação humana não é uma opção negativa diante de Deus.157 Além disso, Teilhard confunde a morte biológica com a morte como consequência do pecado. A tradição testemunha que o ser humano, como um ser corporal, é mortal naturalmente. A preservação da morte no jardim era por graça. A morte causada pelo pecado é a morte da 151 Teilhard escreveu uma reflexão com o título ‘La Lutte contre la multitude’ (1917), onde ele faz afirmações fortes sobre a origem do mal no múltiplo, que é material. Por exemplo : « la Multitude est au principe de tous nos maux. La Multitude nous heurte de dehors et nous corrompt…… La Multitude, encore, règne au-dedans de nous, parmi les vies mal disciplinées que se groupent en notre organisme, toujours prêtes à lutter entre elles, ou bien à nous déserter pour revenir à la masse commune. Elle sévit à la limite du corps et de l’âme, en cette région de lent décollement où l’esprit se dégage de la chair, celle-ci toute absorbée dans les nécessités et les soins de la vie phylétique, celui-là tout frémissant de se fixer dans l’Absolu pressenti. » TEILHARD DE CHARDIN, La Lutte contre la multitude, p. 117. Ele escreve de uma maneira menos mítica nos escritos maduros, mas essa visão permanece. A literatura secundária trata do múltiplo como uma categoria fundamental no sistema de Teilhard. Cf. DE LUBAC, La pensée religieuse, p. 283; GRUMETT, Teilhard de Chardin, p. 118; MARTELET, Teilhard de Chardin, p. 68, 132-33. 152 MARTELET, Teilhard de Chardin, p. 136. 153 RICOEUR, Original sin, p. 268-70. 154 Cf. sobre isso, MARITAIN, Le paysan, p. 183. 155 Cf. RICOEUR, The symbolism of evil, p. 31ff. 156 RONDET, Le péché originel, p. 301. 157 LADARIA, Teologia del pecado, p. 124. 81 alma, como Trento afirmou (DH 1512).158 Então, quando Teilhard liga a morte biológica com o pecado original, ele tem que interpretar a redenção como uma superação da morte biológica e não como a nova vida da graça em Cristo. Martelet critica Teilhard nesse ponto, e a fraqueza de sua interpretação do mito Adâmico. 159 De novo, a falta existe na ausência da responsabilidade humana. Vaz, que sempre defende Teilhard, concorda com Martelet. Ele diz que, sobre o problema do mal, nós encontramos, “as insuficiências do pensamento de Teilhard.”160 A segunda dificuldade dessa concepção do pecado é que ela não dá conta do aspecto relacional do pecado como um estado de alienação de Deus. Teilhard explica um aspecto do testemunho bíblico, que todo o ser humano peca e tem uma inclinação para o mal, mas não o aspecto da revolta contra Deus, que é central no AT. Para sua metafísica, é impossível estar alienado de Deus. Cada ser humano está convergindo para o ponto Ômega, que é Deus. A convergência não pode ser quebrada ou rompida pelos atos humanos. Como tal, o ser humano não pode desobedecer à lei da gravidade. Porém, uma pessoa pode rejeitar sua evolução e não participar no movimento para a superconsciência, mas parece que toda a criação vai ser unida no Ponto Ômega, com ou sem sua participação ativa. Além disso, o pecado, para Teilhard, não tem um claro sentido de uma rejeição de Deus. Deus está por trás e o movimento evolucionista está adiante. Essa exposição pode explicar a experiência do pecado descrito nas Escrituras? A terceira dificuldade consiste na diminuição da importância da responsabilidade humana no pecado. Como mencionado acima, o coração da doutrina do pecado original é a responsabilidade humana pelo pecado e suas consequências. O estado de corrupção e do ‘pecado’, na doutrina clássica, é o resultado dos atos livres do pecado. Em Teilhard, os pecados são a consequência do estado da fraqueza, de um ser material no processo de evolução.161 O ser humano não tem nenhuma responsabilidade, tanto historicamente quanto teologicamente, para sua situação.162 É inevitável. 163 A decomposição dos átomos e a revolta dos atos humanos parecem aspectos do mesmo processo em níveis distintos.164 Como Martelet 158 Veja as referências capítulo I, especialmente, como exemplos: São Gregório de Nissa (NYSSA, Against Eunomius, II, 13) e Santo Tomás (STh. 1a. 97, 1). 159 MARTELET, Teilhard de Chardin, p. 138-39. 160 VAZ, Universo científico, p. 27. 161 LEYS, Teilhard de Chardin, p. 202. 162 Ladaria critica Teilhard por isso. Cf. LADARIA. Teología del pecado, p. 124. 163 CRG, p. 53. 164 RPO, p. 221-22. 82 indica, aqui se perde a gravidade do pecado. 165 Não pode explicar os horrores da história humana, a crueldade que supera qualquer atividade meramente animal. 166 2.5 Conclusão Ao lado da antropologia, a contribuição de Teilhard é significativa. Ele desenvolve uma antropologia dentro da perspectiva evolucionista. A velha visão ‘fixista’, baseada no mito Adâmico, não dá conta das descobertas da ciência. Ele explica como o ser humano emerge dos primatas e como o progresso da cultura e da sociedade cabe dentro da evolução. Ele salva tanto a unidade da humanidade quanto a especialidade de suas potências que distinguem o ser humano do resto da criação. Em geral, a ênfase na unidade do ser humano com o mundo é uma boa correção à visão do humanismo, que coloca o ser humano acima de tudo. Com um grande conhecimento da pesquisa em paleontologia e antropologia científica, Teilhard propõe uma teoria antropológica bastante credível para o mundo atual. Então, pode-se definir alguns pontos mais valiosos para esse estudo. Primeiro, a emergência do ser humano no mundo aconteceu segundo as leis da evolução do mesmo modo que a evolução de todos os seres vivos. Teilhard dá uma explicação com sua teoria da complexificação e da energia radial. Pode-se perguntar se essa energia de fato existe. 167 A explicação da emergência ainda é controversa no mundo científico,168 mas pode-se dizer que Teilhard oferece uma possibilidade ou pelo menos mostra como uma teoria pode ser fiel à tensão continuidade-descontinuidade. Segundo, essa emergência não nega a novidade do ser humano. Esse ponto é fundamental para uma antropologia cristã. Terceiro, Teilhard evita qualquer intervenção miraculosa na criação do ser humano, o que passa a ser considerado uma vantagem. A questão da criação direta da alma não é necessariamente negada, mas não é necessária. Quarto, a afirmação do poligenismo e do monofiletismo ajuda a teologia cristã a sair da perspectiva do monogenismo, que é um obstáculo à credibilidade da fé. Com isso, a reinterpretação do símbolo do paraíso como uma idealização da oferta constante da salvação supera a dificuldade latente na doutrina do pecado original de interpretar um mito como 165 MARTELET, Teilhard de Chardin, p. 140. Na famosa acusação contra Deus feita por Ivan Karamazov, ele faz esta afirmação, “People talk sometimes of bestial cruelty, but that’s a great injustice and insult to the beasts; a beast can never be so cruel as a man, so artistically cruel. The tiger only tears and gnaws, that’s all it can do.” DOSTOEVSKY, The brothers Karamazov, p. 122-23. 167 A comunidade científica não aceitou essa ideia de Teilhard, mas não existe uma outra teoria que tenha apoio comum. 168 O debate foca muito na questão de que se a emergência de fato existe ou se se pode explicar tudo nos termos das leis da física num modo reducionista. Cf. CLAYTON, The re-emergence, p. ix-xiv. 166 83 história. Por fim, Teilhard supera o ‘quadro comum’ da doutrina, como Vandervelde chama, 169 e introduz um novo ‘quadro’, baseado numa visão do mundo evolucionista. Essa é sua grande contribuição à teologia cristã. Por outro lado, sua reinterpretação da doutrina, dentro desse ‘quadro’ não é aceitável teologicamente. A identificação do pecado original com o mal físico do universo destrói o coração da doutrina, que afirma a responsabilidade humana, e muda a dinâmica da salvação cristã a uma forma quase-gnóstica. Não dá conta da especificidade do mal moral e da responsabilidade humana por sua situação no mundo. Além disso, o pecado se torna inevitável, contra o testemunho bíblico, e o processo da redenção se torna uma extensão da evolução. Os temas clássicos da revolta contra Deus, do estado de pecado como alienação de Deus, da expiação do pecado, da nova criação em Cristo, da superação do mundo num momento escatológico, ficam obscurecidos. Em seu desejo de unidade, Teilhard ultrapassa o que é legítimo dentro da teologia cristã. As distinções entre os vários domínios, especialmente entre os processos naturais e as dinâmicas da graça, são essenciais. Ele trata os temas de modo tão geral e tão universal, que, pode-se dizer, os aspectos distintos parecem desaparecer. Ele tem um espaço dentro de sua exposição, o nível da noosfera, onde colocar os aspectos propriamente humanos, como as ações livres, as relações pessoais, os hábitos, a cultura, o movimento histórico, mas ele não desenvolve seu pensamento nessa direção. Infelizmente, Teilhard não teve a oportunidade de publicar seus escritos durante sua vida. Um debate aberto e respeitável teria ajudado muito no próprio desenvolvimento de suas ideias. Por isso, deve-se concordar com Gilson e Maritain no sentido de que a teologia de Teilhard não pode ser separada de sua vida pessoal, especialmente de sua vida espiritual. 170 Sua obra deve ser considerada como um poema, um imaginário, e não como um sistema teológico.171 Contudo, ele foi o primeiro a levar a sério a evolução dentro do mundo católico, e sua contribuição é na articulação de uma antropologia evolucionista compatível com a fé cristã. Os autores que vêm depois dele, principalmente Rahner e Schoonenberg, sintetizam melhor essa nova antropologia com a doutrina cristã. A questão para Rahner, que será tratado no próximo capítulo, é exatamente essa. Como harmonizar a antropologia evolucionista com a doutrina do pecado original? Teilhard contribui em parte para isso, mas Rahner tem que explicar o pecado original de modo a não perder o sentido da doutrina. Como ele faz isso? 169 VANDERVELDE, Original sin, p. 43. GILSON, Trois leçons, p. 736 ; MARITAIN, Le paysan, p. 178. 171 MARITAIN, Le paysan, p. 186 : « Quoi que Teilhard ait pu faire et quoi qu’il ait pu espérer, de telles idées ne pouvaient, en réalité, trouver leur expression que dans les fragments d’un vaste poème qu’il aurait écrit. » 170 84 3 RAHNER SOBRE O PECADO ORIGINAL 3.1 Introdução Rahner também ocupou-se com a questão do pecado original. Um de seus primeiros estudos sobre esse problema foi: Pecado como a perda da graça na literatura da Igreja primitiva (1936).1 Nesse estudo ele tenta explicar as consequências reais do pecado. Depois da encíclica Humani generis (1950), ele devotou dois artigos às questões ligadas a esse tema: A concepção teológica da concupiscencia (1951),2 Reflexões teológicas sobre o monogenismo (1952)3. Nesse período, ele defendeu o monogenismo e a interpretação clássica (neo-escolastica) do pecado original. Mas, seu pensamento evoluiu. Ele não se satisfazia com o conflito entre a visão ‘fixista’ da tradição cristã e a visão evolucionista da ciência moderna. Então, elaborou uma antropologia cristã que levava em conta a evolução em três obras, A antropologia: problema teológico (1958)4, A cristologia dentro de uma concepção evolutiva do mundo (1961), 5 e A unidade do espírito e da matéria no conhecimento cristão da fé (1963).6 Nessas obras entrou em diálogo com o pensamento de Teilhard de Chardin. A partir de então, retrabalhou a questão do pecado original, tentando explicá-lo num esquema poligenista, em dois artigos, O pecado original e evolução (1967), 7 e O pecado de Adão (1968).8 O fruto desse desenvolvimento é visto nos seguintes artigos de Sacramentum mundi: A evolução, O monogenismo e O pecado original (1969).9 Mais tarde, ele retrabalhou ainda o problema da concupiscência no estado da natureza caída, Breves observações teológicas sobre o ‘estado da natureza de queda’ (1971), 10 e finalmente, deu sua resposta definitiva sobre o assunto no Curso fundamental da fé (1976).11 A questão da relação entre a ciência e a fé continuou a ser importante para Rahner, e num longo artigo, A ciência natural e a fé 1 RAHNER, Sin as loss. Todas as datas colocadas no texto referem-se aos anos das publicações originais e não aos anos das traduções. As referências são as das edições usadas na pesquisa. 2 RAHNER, The theological concept. 3 RAHNER, Theological reflections. 4 RAHNER, A antropologia. 5 CCEM. 6 RAHNER, The unity of spirit. 7 RAHNER, Pecado original. 8 SA. 9 RAHNER, Sacramentum mundi II, IV. 10 RAHNER, Brief observations. 11 CFF, p. 114-44. 85 razoável (1981),12 tocou uma vez mais os pontos básicos da antropologia cristã dentro de um mundo em evolução. Esse capítulo não fará um estudo da gênese de seu pensamento, mas dará uma exposição da posição madura de Rahner. Por isso, privilegiará o artigo Cristologia dentro de uma concepção evolutiva do mundo para a parte da relação da teologia e a evolução, e o livro Curso fundamental da fé, e o artigo O pecado de Adão, para a parte teológica. Os outros artigos funcionarão como recursos úteis para explicar vários pontos específicos. Começará com a reinterpretação antropológica à luz da evolução, e depois a relação da evolução com a cristologia, e no final sua interpretação do pecado original. Concluirá com uma avaliação crítica dessa proposta, que utilizará os pontos definidos no fim do primeiro capítulo. Quando possível, uma comparação ou um contraste será feito entre a posição de Rahner e a de Teilhard, sempre atenta à influência do segundo sobre no primeiro. 3.2 Antropologia de Rahner à luz da evolução 3.2.1 O método rahneriano Rahner começa suas reflexões sobre a metafísica da evolução a partir de um ponto de vista diferente de Teilhard. Teilhard, enquanto geólogo e paleontólogo, foca os fenômenos empíricos no horizonte do universo total e tenta dar uma teoria científica que explica os fenômenos. Rahner, enquanto teólogo, trata a questão do ponto de vista da fé cristã. Consciente da posição de Teilhard, Rahner define claramente a diferença metodológica entre os dois: Tentamos evitar teoremas, que vos são familiares na linha de Teilhard de Chardin. Se nos encontramos com êle, muito bem. Não precisamos evitá-lo intencionalmente. Mas, em relação a ele, não nos sentimos nem dependentes nem obrigados a segui-lo. Não desejamos dizer mais do que qualquer teólogo poderia dizer, desde que faça teologia sobre as questões colocadas por essa moderna concepção evolutiva do mundo. Também é certo que teremos de trabalhar com certa abstração que decepcionará, talvez, ao especialista das ciências naturais. Seria compreensível que este esperasse indicações sobre uma determinada homogeneidade entre matéria e espírito, mais exatas do que as que oferecemos, e precisamente, a partir desses conhecimentos da ciência da natureza ou a partir das valorações deles próprios, que lhe são familiares. Se assim fizéssemos (como o faz Teilhard), deveria então nossa reflexão não somente ter as mesmas pretensões que esses conhecimentos de ciência natural, que a um pobre teólogo são acessíveis só em segunda mão, senão que teríamos, ainda, de suportar todas as dificuldades que inevitavelmente estão unidas a tais interpretações de resultados reais de ciências da natureza, os 12 RAHNER, Natural science. 86 quais não são indiscutíveis. Mas nos bastam as dificuldades que nestas questões a filosofia e a teologia já nos impõem. 13 Então, Rahner fica no nível da filosofia e da teologia e não tenta propor uma investigação científica, como Teilhard. Seu objetivo é mostrar a afinidade e não-contradição entre a ciência e a teologia. 14 O método teológico de Rahner está baseado em sua filosofia transcendental. Em vez de entrar numa exposição da filosofia de Rahner, sistematizada nos dois livros, O espírito no mundo e O ouvinte da Palavra, será melhor somente fazer um breve resumo. A investigação transcendental, que foi iniciada com Kant, busca as condições de possibilidade do conhecimento, sempre para chegar às estruturas a priori do sujeito, que transcendem qualquer experiência histórica e categorial. Weger dá uma lúcida descrição: para Rahner é manifesto que nós, homens, estamos, na nossa vida, relacionados com as ‘coisas’ concretas do nosso mundo de experiência, com a realidade ‘categorial’. Se Rahner, apesar disso, não deixa de postular uma realidade ‘apriorística’ no homem; se ele fala de uma realidade ‘transcendental’, e não apenas de uma realidade e de experiência ‘categorial’, que é que ele quer dizer com isso? – Apriorístico é, de fato, algo que o homem não começa a aprender só no momento de ele entrar em contato com o seu mundo de experiência. Apriorístico é, no homem, aquilo que não provém simplesmente do nosso mundo concreto, ao entrarmos em contato com ele, mas que (não necessariamente no tempo!) precede esse contato. É verdade, sem as experiências aposteriorísticas do homem, nunca poderíamos saber da nossa estrutura apriorística. Já nos referimos a essa relação de condições recíprocas [...] A finalidade do método transcendental consiste em deixar claro que o homem, na sua vida cotidiana, não está somente em contato com ‘os grãos de areia’, mas que também habita ‘na beira de um oceano infinito’. Por outras palavras: perguntar-se-á e será preciso mostrar que o saber e o conhecimento, as experiências e o agir do homem, tais como nós todos os praticamos, seriam simplesmente impossíveis, se só tivéssemos em mãos ‘os grãos de areia’ do nosso dia-a-dia. Há no homem algo de apriorístico e é só isto que lhe dá a simples possibilidade de se experienciar da maneira com que se experiencia na realidade.15 O método transcendental, em diálogo com Maréchal e Heidegger,16 leva Rahner à conclusão fundamental de que o sujeito transcendental tem uma dinâmica orientação para o ser absoluto, 13 CCEM, p. 88-89. Ibid., p. 87. 15 WEGER, Karl Rahner, p. 24, 25. 16 Muitos filósofos Católicos questionam Rahner por causa dessa orientação. McCool resume a reação de muitos nos Estados Unidos, “The most serious objection, however, which many American Thomists will present to the theology of Rahner is its great dependence on the a priori Thomism of Maréchal […]. To accept as the starting point of one’s philosophical reflection the content of human consciousness as such and to determine the end of philosophical investigation as the discovery of the a priori conditions of possibility for the data of consciousness is simply to initiate once more the critical reflection of Kant; and there is no reason to believe, in the opinion of many modern Thomists, that the logical result of such a critical reflection can be anything else than the adoption of the critical idealism of Kant himself.” McCOOL, The philosophy, p. 561. 14 87 que abre o horizonte infinito em que ele exerce sua inteligência e sua vontade. 17 Essa afirmação informa toda sua teologia. Rahner faz teologia do ponto de vista antropológico. Ele argumenta, num artigo, que a teologia hoje deve ser uma antropologia teológica. 18 Mas tal antropologia não nega o teocentrismo porque, “Desde que se considere o homem como absoluta transcendência orientada para Deus, o ‘antropocentrismo’ e o ‘teocentrismo’ da teologia não se contradizem, mas formam rigorosamente uma única coisa (expressa a partir de dois pontos de vista).”19 E a antropologia que Rahner menciona é a antropologia transcendental, que explica as condições de possibilidade do conhecimento e da ação no sujeito.20 Aplicado à teologia, ele explica que: Quando, portanto, pretendemos tratar toda a dogmática como antropologia transcendental isto significa que sobre qualquer objeto dogmático que inquirimos, nos perguntamos ao mesmo tempo sobre as necessárias condições que o seu conhecimento implica no teólogo, que demonstramos existirem de fato condições a priori para o conhecimento deste objeto; que estas condições já implicam e afirmam alguma coisa deste objeto, da maneira, do método e dos limites de seu conhecimento.21 Então, o teólogo tenta mostrar as condições no sujeito sugeridas pelos dogmas da fé. O que o conhecimento do dogma da encarnação revela sobre as estruturas a priori do crente? Isso significa que normalmente Rahner inicia sua reflexão com a experiência do ser humano,22 e tenta explicar a fé a partir disso, mas ele não esquece o dogma.23 Portanto, não faz somente investigações transcendentais, mas usa também outros argumentos e muitas vezes está preocupado com as questões dogmáticas em si mesmas. Portanto, a antropologia transcendental é central, mas não exclui outros modos teológicos de investigar e argumentar. Suas investigações sobre a evolução, estão, então, focadas na questão da humanização. Rahner desenvolve uma metafísica do devir e uma antropologia transcendental que se harmoniza com os dados científicos da evolução. Uma grande preocupação sua é a questão da criação da alma, que é um dogma da fé, mas não se harmoniza com a visão evolucionista. Então, no fundo, é tentar mostrar como o ser humano pode ser um produto da evolução e, ao mesmo tempo, um ser espiritual, com uma alma imortal criada por Deus. Ele 17 CFF, p. 46-54. RAHNER, Teologia e antropologia, p. 13-14. 19 Ibid., p. 13. 20 Ibid., p. 14. 21 Ibid., p. 15. 22 WEGER, Karl Rahner, p. 21 23 Sesboüé dá um bom resumo, “A principal preocupação de teólogo jamais será a de retomar somente as grandes questões da teologia em si mesmas, mas sempre a de se interrogar, a respeito de cada uma delas, sobre as condições de possibilidade de seu acolhimento pelo homem.” SESBOÜÉ, Karl Rahner, p. 65. 18 88 também explica a congruência entre o movimento da evolução, que produz o ser humano, e a salvação em Cristo. 3.2.2 A evolução e a antropologia Rahner explica o devir da evolução como um movimento de autotranscendência, com Deus como fundamento e como fim. Para ele, todo devir é um modo de autotranscendência, um movimento para um grau superior.24 Deus, como o ser absoluto e a causa de tudo, é o fundamento transcendental desse movimento, e, além disso, é imanente na causa finita e superior a essa causa finita. 25 Deus é ao mesmo tempo ‘acima’ e ‘dentro’, ou seja, ‘transcendente’ e ‘imanente’.26 Ele diz: A ativa auto-superação realizada no devir ocorre pelo fato de a causa ontológica absoluta e o primeiro fundamento desta auto-superação constituírem um momento interno do movimento evolutivo. Assim o devir é auto-superação ativa e não algo meramente passivo. Não é devir do ser absoluto, pois este permanece intato e inatingido, pairando ‘acima’ do devir como ‘movens immobile’, como momento interno do auto-movimento do devir que supera a si mesmo. 27 Então Rahner pode concluir que a causa finita ultrapassa a si mesma em devir e que isto é possível somente porque o ser absoluto é o fundamento e o fim de cada causa. 28 Com essa concepção Rahner não tem nenhum problema em explicar o processo de evolução no mundo. O desenvolvimento contínuo na biosfera implica a caraterística da possibilidade da autotranscendência em cada realidade individual. 29 Com a explicação da possibilidade da autotranscendência do ser, a evolução parece como um exemplo a posteriori dessa condição a priori do ser em geral. Além disso, o ‘mais’, que é possível no devir, tem 24 Para um resumo desse conceito, veja: VORGRIMLER, Karl Rahner, p. 200-207. Weger explica o modo dessa causa, “O princípio de causalidade metafísica, ou seja, uma causa metafísica, de que Rahner, neste contexto, não cessa de falar, é algo que não se pode conceber segundo o modelo de causalidade intramundana. Pode, por conseguinte, ser circunscrito como uma causa não-indicável categorialmente, não-verificável empiricamente, e, no entanto, uma verdadeira causa que faz com que eu, ou qualquer outra realidade, seja capaz de realizar o que de fato se realiza. A causalidade metafísica é, portanto, o agir transcendental de Deus.” WEGER, Karl Rahner, p. 86. 26 CCEM, p. 96. 27 RAHNER, A antropologia, p. 81. 28 Fields ajuda a resumir o argumento, “The preapprehension [of being] provides the warrant, therefore, for Rahner’s central thesis in the metaphysics of becoming. The movement from potency to act is never merely a manifestation of what is ontologically immanent in the changed substance. In change, an agent not only realizes its immanent potency, it transcends its nature by positing ontological novelty. As the paradigmatic case of human cognition shows, in knowledge the subject realizes in itself the self-presence of Being, which causes the subject’s self-transcendence. This is caused in turn by the active immanence of absolute Being in the cognitive dynamism. Because absolute Being is by definition infinitely intelligible, its causal immanence in the agent’s dynamism explains how change can produce in the agent an ontological increment that transcends the agent’s finite essence.” FIELDS, Being as symbol, p. 60. 29 RAHNER, Natural science, p. 38. 25 89 que ser concebido de um modo contínuo e sequencial, como a teoria da evolução propõe, porque o limite do que pode devir é determinado, não pelo ser absoluto, que é infinito, mas pelo ser material, que é limitado intrinsicamente (a matéria é o princípio da limitação). Os saltos para ‘mais’ ser são, de fato, pequenos porque o ser material é limitado e não ilimitado.30 A fé cristã só tem que enfatizar, diante do cientista, a causalidade de Deus como um objeto de conhecimento no fenômeno da evolução, não como causa material, mas como causa transcendental.31 Dentro dessa concepção, Rahner reinterpreta a hominização e a ‘criação’ da alma humana. O argumento é o seguinte. Cada devir é um ato de autotranscendência. A causa finita pode produzir mais do que ela é. Deus é a condição para a possibilidade dessa autotranscendência porque é a imanente causa do movimento que também transcende à causa finita. A matéria é de certo modo o espírito limitado e ‘condensado’.32 Então, a criação da alma pode ser vista como um exemplo especial de devir como autotranscendência. Os pais humanos, como as causas finitas, são as causas do completo ser humano,33 incluindo a alma. Deus é a causa transcendental do movimento imanente na causa finita, então ele é a ‘causa’ da alma também, mas como condição de possibilidade da causalidade da causa finita. Então, na origem da alma, Deus não é uma causa ocasional, mas tem uma relação transcendental, como toda a causalidade finita. Além disso, ele afirma: os pais são causa do homem todo. Eles são, portanto, causa também da alma. São causa da alma, entenda-se, sempre à luz da ideia de ação por nós anteriormente exposta! Com isto, não só não fica excluído, mas, ao contrário, fica positivamente afirmado que os pais só podem ser causa do filho, na medida em que eles dão origem ao novo homem, mediante a força de Deus, força esta que possibilita a sua auto-superação e que é intrínseca ao seu agir, sem, contudo, pertencer à constituição de sua essência.34 Portanto, a atividade de Deus não é uma intervenção ocasional e externa. Ele é o fundamento transcendental que permite as evoluções do ser e a auto-superação do agente, de que a ‘criação’ da alma é um exemplo especial. 35 30 RAHNER, The unity of spirit, p. 176. RAHNER, Natural science, p. 39. 32 RAHNER, A antropologia, p. 53; The unity of spirit, p. 168. 33 RAHNER, A antropologia, p. 89. 34 Ibid., p. 88-89. 35 VORGRIMLER, Karl Rahner, p. 205. 31 90 3.2.3 Cristo e a evolução Rahner argumenta que o movimento de autotranscendência no cosmo, que se torna consciente de si mesmo no ser humano, não deve terminar no mundo. Ele pensa que, “essa tomada de consciência do cosmos no homem, em sua totalidade e liberdade individuais, que o mesmo realiza, deve ter também um resultado definitivo.”36 Por que? Porque Deus não somente cria algo outro que ele mesmo, mas também dá a si mesmo a este outro.37 O plano da criação tem como finalidade a autocomunicação de Deus à criatura. 38 O processo da autotranscendência permite a aparição do espírito no mundo. Os seres espirituais, conscientes e orientados ao ser absoluto, emergem do processo como um novo nível da realidade. Como espirituais, são abertos a receber a autocomunicação de Deus. 39 Então, o processo da evolução, segundo o plano de Deus, encontra seu fim no ser espiritual, que tem para seu fim a autocomunicação de Deus. Esse fim é também um movimento da transcendência, mas não é um movimento da evolução. Para Rahner, essa autocomunicação de Deus tem que ser histórica. Ele explica: Essa história da autoconsciência do cosmos é sempre também necessariamente uma história da intercomunicação desses sujeitos espirituais, porque o fato de o cosmos tomar consciência de tais sujeitos espirituais deve significar, antes de tudo, e necessariamente, um encontro recíproco desses mesmo sujeitos, nos quais o todo está cada vez presente a si mesmo, e cada vez de uma maneira particular, visto que se assim não fosse, o tomar consciência de si ao invés de unir, dividira. Autocomunicação de Deus é, pois, uma abertura à liberdade e à autocomunicação das plurais subjetividades cósmicas. Esta autocomunicação se dirige, pois, por necessidade, a uma história livre da humanidade, e pode somente acontecer em aceitação livre por parte desses sujeitos livres, e em uma história comum.40 Basicamente, o cosmos é histórico, e os seres espirituais são constituídos historicamente, interconectados, e exercem suas liberdades no tempo. Então, a autocomunicação de Deus deve acontecer dentro do cosmos e da história, e não pode ser completamente a-histórica e acósmica.41 Ela tem um início histórico, e solicita a resposta livre dos seres espirituais.42 Nesse 36 CCEM, p. 104. Ibid., p. 105. 38 Rahner explica que, “Supomos, portanto, que a meta do mundo é a autocomunicação que Deus lhe faz de si mesmo, que todo o dinamismo que Deus imprimiu ao devir do mundo em autotranscendência [...] deve propriamente considerar-se como sendo desde sempre um começo e uma partida para esta autocomunicação de Deus.” Ibid., p. 108. 39 Ibid., p. 108. 40 Ibid., p. 108-09. 41 VORGRIMLER, Karl Rahner, p. 203. 42 CCEM, p. 109. 37 91 sentido, ela está mediada no tempo por causas finitas, como um evento ou uma palavra.43 O evento histórico que faz Deus presente em sua plenitude é a encarnação. Nosso autor coloca Cristo como a absoluta e definitiva manifestação histórica de Deus para toda a humanidade. Ele argumenta que a ideia de um salvador não deve ser mais dessa, “pessoa histórica que, aparecendo no espaço e no tempo, significa o começo da absoluta autocomunicação de Deus, que a inaugura para todos como um fato irrevogável, que a anuncia como presentemente acontecendo.”44 Jesus satisfaz essa descrição como o Logos encarnado, que ao mesmo tempo é uma pessoa histórica, um homem verdadeiro, 45 e a presença absoluta de Deus.46 Por isso, Rahner pode afirmar que Jesus é o clímax da história mesma, porque permite a transcendência do espírito em Deus.47 Pelo fato de Rahner entender o processo da evolução como autotranscendência, é fácil para ele mostrar a continuidade entre a evolução e a salvação. A natureza autotranscende através da ação transcendental de Deus. O ser espiritual, o ser humano, transcende a si mesmo na ação transcendental de Deus, que Rahner chama de autocomunicação de Deus. As linhas gerais da atividade nas duas esferas são as mesmas. Por isso, ele afirma: Temos pois todo o direito de considerar criação e encarnação, não como duas ações de Deus ‘ad extra’, independentes e justapostas, resultantes de duas iniciativas separadas uma da outra, mas sim como dois momentos e fases, no mundo real, de um processo que é uno, ainda que diferenciado internamente, pelo qual Deus se aliena de si mesmo e se expressa naquilo que é diferente dele. 48 Então a encarnação em Cristo leva para a realização do movimento da autotranscendência da evolução porque permite a transcendência do espírito em Deus, e a emergência do espírito é o fim da evolução. Essa posição leva à questão: qual é, então, a diferença entre a criação e a redenção? Possuem basicamente a mesma dinâmica? Em que sentido, então, Rahner salva o sobrenatural e a gratuidade da graça? Rahner percebe e responde a essa questão. Ele afirma que, “Não temos, penso eu, uma dificuldade especial em representar-nos a história do mundo e do espírito como a história de uma autotranscendência até a vida de Deus, que em sua última e suprema fase é idêntica a 43 Ibid., p. 121. Ibid., p. 109. 45 Ibid., p. 111. 46 Ibid., p. 122. 47 Ele afirma explicitamente que, “o salvador, que nós apreendemos como ponto culminante da história do cosmos.”Ibid., p. 114. 48 CCEM, p. 113-14. 44 92 uma absoluta autocomunicação divina, o que indica o mesmo processo visto a partir de Deus.”49 Existe uma unidade na história da autotranscendência da evolução e da salvação em Deus. Ao mesmo tempo, somente os seres espirituais, que têm a possibilidade de receber a auto-comunicação de Deus, são sujeitos da ação salvífica de Deus. 50 Rahner não cai na afirmação que Cristo salva o macaco. Nesse sentido, a criação e a salvação são distintas.51 Além disso, ele discute a questão de saber em qual sentido a encarnação pode ser o fim e a culminação da evolução. Rahner afirma que a encarnação sempre permanece como “um degrau particular, absolutamente novo, na hierarquia das realidades do mundo.” 52 Portanto, é sobrenatural. Ao mesmo tempo, pode-se afirmar também que a encarnação é o fim e a culminação do desenvolvimento do universo. 53 Por que? Porque a evolução, como a autotranscendência, alcança seu fim para os seres espirituais na autocomunicação de Deus. Ele argumenta que a encarnação é necessária para a divinização da criatura espiritual, porque quando a autocomunicação absoluta de Deus à criatura alcança a sua consumação na criatura, existe uma união hipostática. 54 A absoluta autocomunicação de Deus à criatura implica necessariamente, em sua consumação, uma ‘encarnação’. Então, se o fim da criação é a autocomunicação de Deus, e essa comunicação necessariamente implica uma ‘encarnação’, a encarnação é o fim da criação. Se a criação é um processo do desenvolvimento, uma evolução, o fim dessa evolução é a encarnação.55 Ao mesmo tempo, Rahner não cai nos mesmos problemas que Teilhard: confundir os processos físicos e a ação redentora de Cristo. Ele vê a encarnação como o ponto de encontro do movimento da evolução e da atividade graciosa de Deus. Ele sumariza: tínhamos apontado já implicitamente essa união hipostática ao considerarmos a história do cosmos e do espírito chegando ao ponto no qual acontece a absoluta autotranscendência do espírito em direção a Deus e a absoluta autocomunicação de Deus, por meio da graça e da glória, a todos os sujeitos espirituais.56 49 Ibid., p. 115. Ibid., p. 115. 51 A questão em qual sentido a criação como o dom da existência é uma ‘autocomunicação’ de Deus, que é o ser absoluto, não deve preocupar o leitor aqui. A autocomunicação de Deus, interpretada por Rahner, no evento Cristo e na graça leva para a união do ser espiritual com Deus. A criação dos seres não é uma união com Deus, exceto quando uma pessoa adota a posição panteísta. Rahner claramente não é um panteísta, então a criação e a autocomunicação não devem ser a mesma ação de Deus. 52 Ibid., p. 117. 53 CCEM, p. 117. 54 Ibid., p. 120. 55 Ibid., p. 117-18. Weger chega à mesma conclusão, “ao conceito de uma ‘auto-excedência ativa’ da realidade criada. Este conceito, de uma autotranscendência (que significa precisamente essa auto-excedência), por sua vez, encontra o seu ponto culminante na cristologia” WEGER, Karl Rahner, p. 79. 56 CCEM, p. 119. 50 93 O cosmos ascende e Deus descende. Cristo é o ponto onde o seres espirituais autotranscendem através da autocomunicação de Deus. Portanto, embora a autocomunicação de Deus seja o fim do movimento da criação, esta não pode ser reduzida a esse movimento, porque é um novo e distinto dom de Deus. 57 Rahner enfatiza que a graça e a encarnação permanecem dons livres de Deus e distintos dos processos físicos.58 3.2.4 Monogenismo e poligenismo Rahner, como teólogo, preocupou-se com a questão do monogenismo e do poligenismo. Em seu primeiro artigo sobre o assunto, ele defendia o monogenismo do ponto de vista teológico, mas afirmando que não é um dogma de fé. 59 Mais tarde, num artigo de 1967, ele defende a possibilidade de manter a doutrina do pecado original com o poligenismo. 60 Ele conclui que o Concílio de Trento, “não pretendia apresentar uma definição do monogenismo,” e, “O monogenismo não é um dogma definido pela Igreja.”61 Além disso, ele defende que, “no estado atual da teologia e das ciências é impossível provar como certo que o poligenismo não seja compatível com a doutrina ortodoxa do pecado original.”62 Antes de entrar na discussão sobre o pecado original, seria útil explicar como Rahner cria espaço para a compatibilidade do poligenismo com a fé cristã. Em primeiro lugar, sua metafísica da hominização permite a pluralidade dos primeiros homens. A aparição do ser humano no mundo não é o resultado de um ato especial de Deus. Representa, ao contrário, um momento especial do mesmo processo da autotranscendência da criação através da evolução. A criação da alma é nada mais nada menos que a ação transcendental de Deus na criação, que alcança o nível do espírito. Então, é co-extensiva com a evolução. Nesse sentido, não precisa haver dois primeiros humanos no início; pode ser um grupo ou vários grupos alcançando o mesmo nível de autotranscendência. 57 Vandervelde percebe a tensão sobre esse ponto também e conclui no mesmo modo, “The association of the history of salvation with the process of evolution must by no means be interpreted as entailing a reduction of the former with the latter. As we shall see, basic distinctions between natural and historical development (human freedom), and between ‘natural’ historical development and salvific historical development (divine freedom) are maintained. The recognition of these distinctions, however, has not prevented the transposition of a basic feature of the evolutionary process to the realm of salvation history, namely, continual upward development. This remnant of an evolutionary conception constitutes the overall framework of salvation history as conceived by both Rahner and Schoonenberg. That evolutionary motif becomes evident by examining their conception of the basic structure of evolution and by comparing that conception to their delineation of the general pattern of salvation history.” VANDERVELDE, Original sin, p. 129. 58 CCEM, p. 117. 59 RAHNER, Reflections on monogenism, p. 233-34, 243. 60 RAHNER, Pecado original e evolução, p. 53-65. 61 Ibid., p. 55. 62 Ibid., p. 56. 94 Em segundo lugar, Rahner defende a unidade essencial e histórica do ser humano. Ele pensa que tal unidade é necessária para manter a doutrina do pecado original. Mas pensa também que tal unidade é possível ainda com uma origem poligenística do ser humano. Ele explica: se pode afirmar esta unidade corporal-histórica da humanitas originans sem a concentrar num só par. Mesmo no caso de ter surgido poligeneticamente, a humanidade constitui uma unidade histórica do ponto de vista corporal: na unidade real (quer dizer, formada através de realidades reais e não por meio de uma operação mental) do espaço físico da existência, que não se deve imaginar como sendo um ‘lugar’ vazio; através da unidade real da população animal, da qual provém a humanidade e na qual apenas a pressão da seleção se pode considerar como una, quer dizer, a tendência evolutiva que leva à humanização; através da unidade do biótipo concreto, unicamente no qual os homens se podem manter e reproduzir, sendo indiferente o facto de terem sido duas ou mais pessoas que constituíram a primeira humanidade; através da intercomunicação humana-pessoal concreta que, em todo o caso, não é só uma consequência mas um momento constitutivo da unidade corporalhistórica do homem como tal – se é realmente verdade que ‘cultura’ (língua, etc.) pertence à ‘natureza’ do próprio homem, não sendo só um luxo, sem o qual o homem poderia existir biologicamente; finalmente, através da unidade da determinação a um fim sobrenatural e a Cristo, determinação que não se refere primariamente à humanidade como una, mas que radicaliza esta unidade. 63 Portanto, o poligenismo não destrói a unidade do ser humano. Uma humanitas originans pode ser tanto de um individuo quanto de um grupo de indivíduos.64 Discutiremos como esse ponto o ajuda a manter a linha de transmissão do primeiro pecado para toda a humanidade. 3.2.5 A relação de Rahner com Teilhard de Chardin Essa exposição da antropologia e da cristologia de Rahner, em relação com a evolução, permite uma comparação com a visão de Teilhard. Em primeiro lugar, vê-se as similaridades entre os dois pensadores. Os dois interpretam a atividade criativa de Deus como contínua na evolução do universo. Eles dão uma explanação do devir consistente com a teoria da evolução, as categorias de espírito-matéria, e os princípios metafísicos da causalidade. Os dois argumentam que a evolução move na direção do espírito e da consciência. Eles explicam a emergência do ser humano dentro desses princípios científicos e metafísicos. Também, aceitam o poligenismo e explicam a hominização de modo consistente com os dados científicos. Finalmente, os dois colocam Cristo como o fim do movimento do desenvolvimento do mundo. Mas, também existem diferenças importantes. 63 64 RAHNER, Pecado original e evolução, p. 58-59. SA, p. 257. 95 A primeira diferença: para Teilhard o devir é o resultado da atividade da energia radial e a maior explicitação do ‘dentro’ das coisas. Para Rahner, o devir é a autotranscendência dos seres. Para Teilhard, a maior complexificação recebe sua explanação da energia radial, que é um princípio fundamental no universo. O devir é a explicitação da estrutura fundamental do ser. Em Rahner, o devir é realmente uma superação da estrutura antecedente, não seu resultado. Por isso, Rahner pode afirmar que o espírito emerge do processo do universo como um ser novo, realmente maior, que não existia antes. A matéria não pode tornar-se espírito.65 Em Teilhard, o universo se atualiza a si mesmo, não supera a si mesmo. Para Rahner, o movimento é de elevação e não de convergência, como Teilhard. Por isso ele evita os problemas ligados com a questão da convergência, discutidos no segundo capítulo. A segunda diferença: o lugar de Cristo no processo da evolução é diferente em nossos autores. Em Teilhard, Cristo é o princípio cósmico que unifica o universo, então está intimamente ligado com a evolução. Ele é uma força no processo, como aquele que atrai, e é realmente o ponto de união para que a evolução progrida. Para Rahner, Cristo é o fim da evolução somente no sentido de que a evolução é dirigida para o espírito e o espírito tem como seu fim a união com Deus. Cristo é que torna possível essa união. Então, toda a evolução não termina em Cristo, mas somente os seres espirituais, o mais alto fim da evolução, que recebe a graça de Cristo. Para ele, essa graça ultrapassa toda a criação. A terceira diferença: Rahner não faz as mesmas afirmações de Teilhard sobre a convergência do universo. O conceito da autotranscendência coloca a ênfase na superação pelo espírito dos processos físicos e não a união de todas as coisas. Por isso, o teólogo alemão pode dar mais espaço para a liberdade, que se determina a si mesma e não somente participa no movimento do universo. Isso é muito importante para a doutrina do pecado original, que coloca a responsabilidade humana como chave de interpretação da situação humana. Em resumo, os dois pensadores tentam resolver os mesmos problemas e encontram respostas similares, mas também têm conclusões bastante diferentes. Agora é tempo de ver como Rahner interpreta a doutrina do pecado original à luz da evolução. 65 RAHNER, Hominisation, p. 57. 96 3.3 Interpretação do pecado original de Rahner Rahner se preocupou em desenvolver uma interpretação da doutrina do pecado original coerente com a tradição da Igreja.66 Mais do que Teilhard, ele discute a questão das definições dos concílios, especialmente Trento,67 e a base bíblica da doutrina. 68 Ele aceita que Rm 5,12 contenha uma afirmação do pecado original, tal como Trento subsequentemente o definiu.69 Mas ele também pensa que entre os textos da Escritura e os da definição de Trento existe espaço para interpretar seu significado exato. Então, sua exposição mantém um pé na Escritura e na Tradição e o outro nas legítimas explicações do como e do porquê da doutrina do pecado original. Rahner argumenta que os pontos básicos que cada teólogo tem que aceitar são: 1) o primeiro pecado fez com que os primeiros humanos e também a humanidade perdessem a graça da justiça original; 2) o primeiro pecado constitui uma ‘herança’ de pecado para a humanidade, transmitido per propagationem, sem ser definido o modo exato dessa transmissão; 3) o estado de pecado, da ausência da graça, é universal no ser humano, e então precisa da salvação em Cristo.70 Essa parte começará com a exposição do peccatum originale originans, e depois a relação do primeiro pecado com o estado de pecado original no ser humano, do peccatum originale originatum. Logo, discutirá a interpretação das consequências clássicas do primeiro pecado, a concupiscência e a morte. Finalmente, aplicará os problemas identificados no primeiro capítulo à interpretação de Rahner, para ver se ele realmente os supera. 3.3.1 Peccatum originale originans: o pecado de Adão Rahner faz uma análise detalhada da questão do pecado de Adão, ou seja, do peccatum originale originans.71 Ele começa, como sempre, com os dados da antropologia e desenvolve uma interpretação que dá conta da tradição e do poligenismo, e que é consistente e razoável. O primeiro ponto importante para a antropologia é que o ser humano é um ser histórico. Ele é constituído historicamente, com um passado definido e um futuro projetado, e em relação com os outros numa co-existência. Então, a constituição do ser humano no mundo está determinada, num sentido, pelo passado. Uma pessoa não entra no mundo a66 SA, p. 248. RAHNER, Pecado original e evolução, p. 55; RAHNER, Original sin, p. 231. 68 SA, p. 250-51; RAHNER, Original sin, p. 230-31. 69 SA, p. 250-51. 70 RAHNER, Original sin, p. 231. 71 SA, p. 247-62. 67 97 historicamente, mas num tempo e lugar, numa família e povo. Também Rahner enfatiza que essa história é una, porque o ser humano tem um começo na história. 72 Esse ‘começo’ da humanidade tem que ter uma significação especial. Ele explica: [...] para uma antropologia de caráter existencial-ontológico, especialmente uma que seja teológica, ‘começo’ é, inicialmente, não o primeiro momento de toda uma série de momentos que se seguem, mas a base de sua própria natureza singular, sobre a qual se encontra toda a história. Uma base que, por ter sido proposta pelo próprio Deus e pela singularidade do livre ato do qual foi extraída pura e definitiva, é em si mesmo sui generis [...] O que chamamos de pecado original (considerado como o pecado ‘de Adão’) pertence à constituição inicial daquele começo definitivo que é retirado de nós e nunca se repete, e a verdadeira natureza do que é apenas gradualmente revelado à luz do futuro que é Cristo.73 O começo da humanidade não é meramente o primeiro momento de uma série de momentos mais ou menos iguais, do ponto de vista da significação para a história humana. O primeiro momento do exercício da liberdade, livre de qualquer outra forma de influência humana e realmente ‘inocente’, no sentido de simples e puro e sem conhecimento do mal, determina a trajetória da humanidade, tanto socialmente quanto moralmente. Para Rahner, os primeiros atos dos primeiros humanos criam a ‘situação’ em que seus descendentes agem. 74 O plano de Deus para a humanidade era que a geração biológica seria uma mediação da graça. O plano de Deus sempre funciona dentro dessa dinâmica histórica do ser humano. O fim da humanidade é a união com Deus, e essa união é realizada através da graça da autocomunicação de Deus à humanidade, que é mediada historicamente. Também, do lado da humanidade, o individual é derivado historicamente, através da geração.75 Então, pelo fato que a graça é dada à raça humana total, a geração do ser humano foi uma mediação dessa graça. Rahner explica: [...] segundo a vontade de Deus e a especificação intrínseca concedida à raça humana por tal vontade em si, a descendência do homem individual de uma única raça humana e seu início divinamente ordenado tinha que ser, se não a base, pelo menos o meio direto, no qual esta santidade justificadora do homem fosse comunicada a ele e que é anterior a sua existência pessoal, tendo, portanto, a força de uma modalidade existencial. Isto porque essa 72 Ibid., p. 253. “[…] for an anthropology that is existential-ontological in character, and especially one that is theological, ‘beginning’ is from the outset not the first moment in a whole series of moments following one upon another, but rather the basis, of its very nature unique, on which the whole of history rests, a basis which, in virtue of the fact that it has been posited by God himself, and of the uniqueness of the free act which educed it from sheer ultimacy, is itself sui generis […] what we call original sin (considered as the sin ‘of Adam’) belongs to the initial constitution of that ultimate beginning which is withdrawn from us and never recurs, and the true nature of which is only gradually revealed in the light of the future which is Christ.” SA, p. 254. 74 Ibid., p. 260. 75 Ibid., p. 255. 73 98 santidade foi planejada como dom e direito sobre a humanidade como um todo pelo criador da raça humana, o qual graciosamente desejou ‘criá-la’.76 Portanto, a descendência humana deve ser uma mediação da graça, em que um indivíduo, em recebendo a natureza humana de seus pais, também recebe, pela vontade de Deus, a graça da santidade, porque essa graça é dada para toda a humanidade. O fato que essa graça, que deve estar presente no ser humano, não esteja presente, aponta a uma culpa no começo da humanidade. Em nossa situação histórica, a graça da santidade não é recebida como um dom dado em conjunção com a natureza na geração. Existimos numa situação que não deve ser, e experimentamos essa situação em nossa ‘concupiscência’ e pecado pessoal. 77 Essa ausência da graça tem que ter uma explanação. Rahner reflete, “Poderia se questionar: houve, antes de mim, um ‘Adão’ pecador cuja ação teria sido a causa de minha situação concupiscente, ou sou eu mesmo ‘Adão’ sem qualquer luz direcionada à minha existência por uma interpretação baseada em uma causa buscada no passado mais distante?”78 A situação do pecado leva para uma explanação etiológica: de onde vem o pecado? Rahner argumenta que a fé católica não pode deixar de lado a explanação histórica, que aponta a uma culpa no começo. Ele diz: [...] a única razão possível para a não existência de algo que, de acordo com a vontade de Deus, deveria existir é a culpa pessoal. Mas já que o ato da culpa no nível moral e pessoal não é aquele dos próprios descendentes, e já que obviamente um ato pessoal deste tipo não pode ser “herdado por” outros ou “imputado a” eles, segue-se que esta culpa que constitui a não existência daquilo que, como dissemos, deveria existir, é a culpa daquela parte da humanidade da qual o restante foi originado.79 Então, uma culpa no começo quebrou o plano de Deus em que a geração teria sido uma mediação da graça. Além disso, Rahner enfatiza que essa culpa tem que ter existido no começo da humanidade para ter esse efeito, porque o começo tem uma significação especial 76 “[…] according to the will of God and the intrinsic specification imparted to the human race by this in itself, the descent of the individual man from the single human race and its divinely ordained beginning had to be if not the basis, then at least the direct medium, in which that justifying holiness of man was communicated to him which is prior to his own personal existence, and therefore has the force of an existential modality. This is because this holiness was intended as a gift to, and claim upon, humanity as a whole by the Creator of mankind, who graciously willed to ‘raise’ it.” SA, p. 256. 77 RAHNER, Brief theological observations, p. 49. 78 “Was there, it might be asked, before me a sinful ‘Adam’ whose action was the cause of my concupiscent situation or am I myself ‘Adam’, without any light really being thrown on my existence by an interpretation based on a cause sought in the most distant past?” Ibid., p. 49. 79 “[...] the only possible reason for the non-existence of something which, according to God’s will, should exist can be personal guilt. But since the guilty act at the moral and personal level is not that of the descendants themselves, and since obviously a personal act of this kind can neither be ‘inherited by’ others or ‘accounted to’ them, it follows that this guilt which constitutes the non-existence of that which, as we have said, should exist, is the guilt of that part of humanity from which the rest originated.” SA, p. 257. Num outro lugar Rahner enfatiza o objetivo etiológico da proposta do primeiro pecado. RAHNER, Brief theological observations, p. 49. 99 como a determinação da orientação do ser humano total. 80 O começo da liberdade foi único, não condicionado pelas decisões anteriores, então não é igual com os atos que vieram depois. Então o pecado do começo foi único também, determinou a situação da humanidade universalmente, porque a humanitas originans é uma para todos. Portanto, Rahner rejeita qualquer interpretação da doutrina que vê o primeiro pecado em termos meramente mitológicos ou psicológicos (como uma ‘projeção’ por exemplo). Para ele, o primeiro pecado, embora escondido permanentemente de nossa vista, não é um mito, mas um evento real. 81 Isso não significa que Rahner afirme um estado de paraíso no começo da humanidade. Esse momento original da liberdade não implica um estado perfeito de harmonia. Rahner rejeita essa ideia e prefere pensar que o início da história da liberdade e o início do pecado são mais ou menos o mesmo momento. Ele argumenta que, “A primeira autorealização da liberdade da criatura humana deve, portanto, ter sido um ato culpável e o ponto de partida da história.”82 A afirmação de um estado histórico antes do pecado não deve ser concebida como um estado humano, porque a humanidade começa com a liberdade, e com a liberdade começa o pecado. Por outro lado, essa identificação do começo da liberdade com o começo do pecado não nega a afirmação de que essa primeira decisão é única e sui generis, porque ainda não é condicionada por uma decisão anterior e não age dentro de uma ‘situação’ histórica. Em consequência dessa concepção, Rahner identifica o estado do pecado original com o estado da ausência da graça. Ele define o estado do pecado original (peccatum originale originatum) como a ausência dessa graça que fazia parte do plano de Deus. Sua definição é: A ausência desta santidade que é uma modalidade existencial concedida pela própria santidade de Deus antes das condições concretas da existência individual, porquanto planejada para ser mediada através da descendência humana, mas na verdade não é – essa ausência é denominada de estado do pecado, significa o pecado original (peccatum originale originatum).83 O estado do pecado original não é pensado em referência à corrupção da natureza ou à concupiscência, mas somente com a ausência da graça, o aspecto ‘formal’ do pecado original (na definição tomista). Nesse sentido, a atividade de Cristo, como salvador, é precisamente a 80 SA, p. 260. Ibid., p. 262. 82 “The very first self-realization of creaturely human freedom must therefore have been a culpable act and the starting point of history.” RAHNER, Brief theological observations, p. 49-50. 83 “The absence of that holiness which is an existential modality imparted by God’s own holiness prior to the concrete conditions of individual existence, inasmuch as this was intended to be mediated through human descent but in fact is not so – this is rightly called a state of sinfulness, and it is this that is meant by original sin (peccatum originale originatum).” SA, p. 256. 81 100 de comunicar essa graça a toda a humanidade, porque toda a humanidade precisa da salvação.84 Em relação à questão da transmissão do pecado original, o pecado de Adão não é transmitido por geração, e a corrupção do pecado não é transmitida tampouco. Em realidade, nada é transmitido exceto a ausência da graça, que devia estar lá, que de fato não é uma transmissão no sentido estrito, mas somente a privação de uma transmissão da graça que teria existido sem o primeiro pecado.85 Rahner enfatiza que a culpa do primeiro pecado também não é transferida através da geração. Então, o peccatum originale originatum é pecado e culpa somente em sentido analógico, e de fato não é uma culpa para a humanidade. 86 Não somos culpáveis pelo pecado de Adão. Portanto, nosso autor rejeita a ideia da culpa coletiva em relação ao pecado original. 87 Sobre os pecados pessoais, o primeiro pecado tem uma relação única. O estado da privação da graça, que é o estado do pecado original, não é simplesmente a acumulação dos pecados dos homens através da história. 88 É um ‘estado’ precisamente porque o pecado foi feito ‘no começo’ e criou uma situação de privação da graça. Os pecados pessoais têm um sentido diferente, porque são feitos numa situação de pecado. Mas, a universalidade do pecado pessoal, ou seja, que todas as pessoas são pecadoras pela decisão pessoal e não somente pelo estado do pecado original, Rahner explica através da afirmação que a situação de pecado, antes da decisão pessoal da pessoa, é ratificada num sentido através da decisão pessoal. 89 Existe uma participação no estado do pecado, num sentido, que liga a pessoa com o estado não somente ‘por geração’, mas também por sua decisão livre. Essa relação, entre a situação de pecado e a decisão pessoal, será o tópico da próxima secção. Finalmente, Rahner discute sobre a compatibilidade de sua concepção com o poligenismo. Esse primeiro pecado como a decisão livre do ser humano no estado original, pode ser concebido dentro de um grupo e não somente com um homem, porque o grupo também seria um.90 Rahner aceita que essa decisão pode ser dos indivíduos todos juntos ou de 84 Ibid., p. 260. Ibid., p. 258. 86 Ibid., p. 257. Para uma explicação desse ponto, veja: VANDERVELDE, Original sin, p. 175-76. 87 SA, p. 258. 88 Ibid., p. 257-58. 89 SA, p. 260. 90 Ibid., p. 261. 85 101 um indivíduo dentro do grupo que afeta todo o grupo.91 É fácil imaginar o grupo agir junto no pecado.92 Se fosse um indivíduo, ele explica como teria o efeito universal: Se por um lado, o ser humano é inevitavelmente pessoal e comunicativo ao mesmo tempo, e ambos os aspectos mutuamente se condicionam, e se, além disso, o humanitas originans em cada demonstração constitui uma unidade, e como tal deve ser distinguida da humanitas originata, e se por suas decisões pessoais livres iniciais isto especifica a situação existencial da humanitas originata em múltiplas formas, então é perfeitamente concebível que a decisão de um indivíduo dentro desta unidade (e um que por meio disso faça sua parte em especificar esta humanitas originans) possa realmente cumprir a função desta humanitas originans como graça mediadora.”93 Um indivíduo dentro do grupo pode afetar, através de sua decisão livre, a situação dos outros primeiros homens porque estavam interconectados pessoalmente e moralmente. Pelo fato que a humanitas originans foi uma e determinou para todos os homens sua situação, uma origem poligenista é aceitável. 94 A constituição da ‘situação’ da liberdade é o foco da próxima secção. 3.3.2 Peccatum originale originatum: a situação do pecado e os pecados pessoais A grande proposição que justifica a teologia do pecado original de Rahner é que a livre decisão de um humano pode determinar a situação em que um outro exerce sua liberdade. A ação dos primeiros humanos determina a situação de pecado na qual todos os seus descendentes agem. Como isto é possível? O que acontece com a ação para explicar a constituição de uma situação para outros? Rahner responde a essa pergunta com a explanação da liberdade, do pecado e da co-determinação pela culpa alheia. 3.3.2.1 A liberdade e o “não” a Deus A liberdade, para Rahner, é a capacidade do sujeito definir-se a si mesmo. Ele não trata da liberdade em termos de decisão entre opções diferentes. As decisões individuais da liberdade são orientadas para o único fim do sujeito, e neste sentido, são subordinadas ao ato central: a autorrealização. Ele explica: 91 Ibid., p. 261; RAHNER, Pecado original e evolução, p. 63. RAHNER, Pecado original e evolução, p. 63; veja também: RAHNER, Brief theological observations, p. 49. 93 “If on the one hand man is inevitably personal and communicative at the same time, and both aspects mutually condition one another, and if further the humanitas originans on any showing constitutes a unity, and as such is to be distinguished from the humanitas originata, and if by its initial free personal decisions it specifies the existential situation of the humanitas originata in manifold ways, then it is perfectly conceivable that the decision of one individual within this unity (and one who thereby plays his part in specifying this humanitas originans) can actually fulfil the function of this humanitas originans as mediating grace.” SA, p. 261. 94 RAHNER, Pecado original e evolução, p. 64-65. 92 102 a liberdade possui um único ato, ou seja, a auto-realização do próprio sujeito individual, auto-realização que sempre e em toda parte deve ser mediada objetivamente por atos singulares realizados no mundo e na história, mas que, no entanto, visa uma só coisa e uma só coisa realiza: o sujeito uno na totalidade singular de sua história.95 Por isso, a liberdade não é caraterizada pelas mudanças de direção. Existe um movimento constante que determina a realização do sujeito. Por isso, ele diz que, “A liberdade é a capacidade de o sujeito uno decidir sobre si próprio como todo uno.” 96 Essa decisão da autorealização estabelece o definitivo do sujeito, que não muda. Então, a liberdade é uma faculdade do eterno para o sujeito.97 A significação disso para a doutrina do pecado original é óbvia. Se a ação livre decide uma direção definitiva da realização do sujeito, uma direção pecaminosa de uma livre escolha não pode ser mudada simplesmente. Além disso, a liberdade é transcendental. Para Rahner, não se encontra sua liberdade como um objeto no mundo.98 O sujeito sempre está presente a si mesmo na sua liberdade, mas somente pode ‘ver’ sua liberdade nos atos categoriais, porque não pode ser objetivado. 99 Mas a liberdade não é reduzida aos atos categoriais, pois é aberta para um horizonte de transcendência absoluta.100 É transcendental porque ultrapassa a categorialidade e é a condição de possibilidade dos atos categoriais livres. 101 Embora seja transcendental, a liberdade sempre é exercida na história. Rahner afirma que, “É claro que a liberdade, que é mediada de maneira humana, histórica e objetiva, e na personalidade concreta, sempre é também liberdade com referência a um objeto categorial. A liberdade se exerce através da mediação do mundo do outro e, sobretudo, através da pessoa do outro.”102 Cada ato da liberdade é constituído historicamente e orientado diretamente a um objeto categorial. Então, a situação da história afeta o exercício da liberdade, um ponto muito importante para a concepção do pecado original de Rahner, que será explicado abaixo. Uma parte da história é relacionada às outras pessoas, tanto como influências imediatas do sujeito, quanto como relacionadas à cultura ou ao passado. A liberdade não existe acima do mundo e entra somente para agir, mas é realmente embutida no mundo. 95 CFF, p. 120. Ibid., p. 119. 97 Ibid., p. 120-21. 98 Ibid., p. 121. 99 Ibid., p. 122-23. 100 Ibid., p. 123. 101 Ibid., p. 124. 102 CFF, p. 123. 96 103 O horizonte da liberdade coloca o sujeito diante de uma decisão: ‘sim’ ou ‘não’ a Deus. Rahner afirma que, “a liberdade de dispor de si é liberdade que se refere ao sujeito como todo, liberdade para construir o definitivo, e liberdade que se exerce em livre e absoluto ‘sim’ ou ‘não’ ao Aonde e Donde da transcendência, que chamamos ‘Deus’.”103 A liberdade existe dentro do horizonte transcendental. Esse horizonte é “o Donde e o Aonde de nosso movimento espiritual,” 104 porque, sem um fundo transcendental a liberdade não seria livre mas circunscrita dentro dos objetos físicos e sem orientação para o infinito e o absoluto. Ela não poderia determinar definitivamente o sujeito. Então, o horizonte, tanto cria essa capacidade quanto a realiza. Ao mesmo tempo, a liberdade não é forçada a escolher o absoluto do horizonte transcendental. Pode escolher rejeitar esse absoluto. O termo da transcendência absoluta é Deus. 105 Então, no final, a liberdade encontra uma decisão de ‘sim’ ou ‘não’ a Deus. A definição do pecado dentro dessa concepção é exatamente o ‘não’ a Deus. Esse sim ou não a Deus é sempre mediado e categorial. Rahner mantém sua afirmação que cada ato da liberdade é mediado na história. Embora o termo da transcendência absoluta esteja presente ao sujeito, na experiência não é imediato. Ele explica, “Mesmo no ato deste ‘sim’ ou ‘não’ temático a Deus, este ‘sim’ não se refere imediatamente ao Deus da experiência originária e transcendental, mas ao Deus da reflexão temática e categorial, a um Deus em conceitos [...] mas não imediata e exclusivamente ao Deus da presença transcendental.” 106 O fato dessa mediação do sim ou não a Deus abre espaço para uma influência externa e histórica nessa decisão. A decisão sim ou não nunca acontece somente no sujeito transcendental, isolado das outras pessoas e do mundo histórico. Além disso, não precisa ser completamente explícita. Pode estar escondida dentro dos atos cotidianos.107 Esses pontos são importantes de serem lembrados na questão do pecado original. 3.3.2.2 A co-determinação pela culpa alheia O ser humano exerce sua liberdade numa ‘situação’, determinado pelos outros e pela história. Rahner faz essa afirmação acima na questão sobre o primeiro pecado. Mas agora pode-se entender melhor a razão disso. O sujeito é uma pessoa histórica, condicionada intrinsecamente pela história, as relações, a cultura, etc. A liberdade sempre escolhe entre os 103 Ibid., p. 123. Ibid., p. 123. 105 Para uma explanação da relação entre o sujeito transcendental e Deus, veja: SESBOÜÉ, Karl Rahner, p. 6465. 106 CFF, p. 123-24. 107 Ibid., p. 127. 104 104 objetos categoriais, que são determinados pelo contexto, pelas outras pessoas e pela história. Esse é o campo do exercício da liberdade. Essa situação, o sujeito “já encontra feita e criada, que se lhe impõe e que, em última análise, é o pressuposto de sua liberdade.”108 Por exemplo, um pobre da favela tem que escolher entre a realidade que ele encontra em seu ambiente, que é determinada pela história dos pais e do povo, pela situação econômica, pelas decisões políticas, e pelas pessoas em sua família e seu bairro. Sua liberdade se realiza nessa ‘situação’. Essa situação não é meramente extrínseca ao sujeito, mas entra realmente no exercício de sua liberdade. Rahner argumenta que, “a liberdade inevitavelmente assume o material com que se realiza como momento intrínseco, constitutivo e por si mesma originariamente co-determina no definitivo da existência que se possui a si mesma livremente.”109 Não é que o pobre somente mora na favela, mas internamente essa não afeta os objetos da escolha e os atos da liberdade. A situação condiciona a liberdade não somente como o material, mas também como uma influência em sua intenção e seu fim, e no horizonte de sua experiência. Ao mesmo tempo, a situação não controla a liberdade. Rahner fala da ‘codeterminação’ da liberdade, porque a liberdade ainda se realiza e fica ‘livre’ dentro da situação. Rahner enfatiza a co-determinação pelas liberdades das outras pessoas como aquela que constitui o mundo do sujeito. Ele diz, “essa situação determinada pelo mundo das relações sociais é inevitavelmente plasmada também, para o indivíduo em sua livre subjetividade e em sua decisão histórica particular, pela história da liberdade de todos os outros homens.” 110 O ambiente e o contexto do sujeito são, no fim, determinados pelas decisões das outras pessoas. Regressar ao passado e mover de cada lado para ver todas as decisões que afetam a situação do sujeito em cada momento. O ‘mundo pessoal’, que realmente inclui cada pessoa passada e presente, co-determina a livre decisão do sujeito, tanto externamente quanto internamente. A história humana é universal e una. Por isso, as culpas das outras pessoas co-determinam a livre decisão do sujeito. Se as ações das pessoas formam a situação em que a liberdade se realiza, as culpas dos outros também determinam a situação, tanto externamente quanto internamente, do exercício da liberdade. E, como Rahner aponta, essa afirmação está confirmada em nossa experiência no mundo pessoal. Ele conclui: 108 Ibid., p. 133. Ibid., p. 134. 110 Ibid., p. 134. 109 105 Toda a experiência do homem aponta no rumo da afirmação de que no mundo realmente existem objetivações de culpas pessoais, que, enquanto material da decisão livre de outras pessoas, constituem ameaça para elas, influenciam tentadoramente sobre elas e tornam penosa a decisão da liberdade. E, visto que o material da decisão da liberdade se torna sempre um momento interno do ato livre, também a boa ação finita da liberdade, à medida que não consegue totalmente reelaborar e transformar este material, em virtude dessa situação culposamente co-determinada, permanece por sua vez sempre ambígua, carregada de repercussões que propriamente não podem ser visadas, porque conduzem a trágicos impasses e mascaram o bem visado na própria liberdade. 111 Cada pessoa cresce e age dentro de uma situação marcada pelo pecado, que se torna, através da assimilação interna dessa situação, determinada pela culpa. Rahner dá um exemplo que ilumina bastante sua concepção. Refere-se à situação do mercado das bananas: ao comprar uma banana, a pessoa não reflete sobre o fato de que seu preço está vinculado a muitos pressupostos. Entre estes pode eventualmente estar a sorte miserável dos que colhem a banana, sorte que pode ter sido codeterminada pela injustiça social, pela exploração ou por secular e iníqua política comercial. A pessoa que compra a banana passa a participar aqui e agora dessa situação de culpa em seu próprio proveito. Onde termina a responsabilidade pessoal pelo aproveitamento dessa situação co-determinada pela culpa? Onde começa?112 Esse exemplo mostra como um objeto externo, uma banana, está ‘contaminado’, pode-se dizer, pelo pecado. Então, comprar essa banana é aprovar, ou pelo menos participar, na culpa dessa situação. Também existem outras maneiras de co-determinação que têm uma influência muito mais interior. Por exemplo, ideias aprendidas, relações pessoais, a situação da família e especialmente os pais, os grupos de amizade, a cultura mesma, e mais. Essas coisas formam a pessoa intimamente e são marcadas pela culpa. O que é muito importante para essa concepção é que a culpa dos outros não fica somente fora do sujeito, mas realmente co-determina o exercício de sua liberdade. Rahner argumenta que essa situação da culpa é universal, permanente e original. Ele explica: essa co-determinação da situação de todo homem pela culpa alheia é um dado universal, permanente, e, em consequência, também original [ênfase minha]. Para o indivíduo humano não existem ilhas, cuja natureza já não esteja codeterminada pela culpa de outros, direta ou indiretamente, próxima ou remotamente. Como também não existe para a humanidade na história concreta deste mundo nenhuma possibilidade real, ainda que como ideal 111 112 CFF, p. 136. Ibid., p. 138. 106 assintótico, de algum dia superar de forma definitiva essa determinação da situação de liberdade pela culpa.113 Primeiro, a situação é universal, porque o pecado marca a história humana total. Não existem ilhas, como ele diz, onde a influência da culpa não penetre. Segundo, a situação é permanente, porque é impossível para uma pessoa ou algumas pessoas superar essa situação. Cada decisão já é co-determinada pela culpa, então cada tentação de superar essa situação será marcada por isso. Terceiro, a situação tem que ser original, porque sua universalidade e sua permanência implicam que estava sempre inserida na origem da história, tão longa quanto concebe-se a história humana como uma história.114 Se não fosse original, a situação não seria universal, mas particular a um grupo ou linha da história. Se não fosse original, a situação não seria permanente, mas aberta para a recuperação do momento antes da culpa. De novo, o argumento aqui é etiológico, pois tenta dar uma explicação para a situação do pecado. 3.3.2.3 O pecado original como a situação co-determinada pela culpa alheia Agora pode-se perceber como nosso autor define o pecado original. Como peccatum originale originans é a culpa original que determina a situação co-determinada pela culpa da humanidade, que a discussão acima explica. Nosso autor aumenta sua discussão do artigo no Curso fundamental da fé com um argumento mais exato sobre a existência de um pecado ‘original’, que é necessário para explicar a universalidade e permanência da situação co-determinada pela culpa. 115 Como peccatum originale originatum, ou seja, o estado do pecado original em cada pessoa, Rahner define, no Curso fundalmental da fé, da seguinte maneira: “somos pessoas que inevitavelmente temos de exercer nossa liberdade subjetivamente metidos em situação que se acha co-determinada por objetivações da culpa, e 113 CFF, p. 136. Ibid., p. 137. 115 Sesboüé aponta que o argumento aqui é etiológico (SESBOÜÉ, Karl Rahner, p. 107). Vandervelde explica em mais detalhe, “Although the primordial fall represents the ontic ground of the universal situational Existential of original sin, the noetic ground of that fall is the universality of original sin. This inescapable circle is given with Rahner’s conviction that no source of information exists that provides ‘direct’ knowledge of the beginning and a definitive fall. Therefore, only an indirect route remains open. The entire reality of original sin, including a definitive fall, is derived by etiological retrospection from the present experience of reality, specifically, from the experience of the presence and absence of grace. The definitive fall is derived from the fact that every man experiences the privation of grace as his situational Existential. From the fact that no one receives grace simply as a member of the human race, i.e., via his physical-historical descent, and from the fact that grace ought to have been received in this way, Rahner concludes that this absence of grace must have been caused by guilt, else a privation of grace counter to God’s will is impossible. Since the situational privation of grace is not the fault of those who incur it as Existential, this privation must have been cause by previous generations. Finally, since this privation is an inescapable, universal Existential, it must have been caused by a fall at the beginning of human history.” VANDERVELDE, Original sin, p. 238-39. 114 107 de forma tal que essa co-determinação é parte permanente e inevitável de nossa situação.”116 Estamos num estado de pecado no sentido em que somos co-determinados pela culpa alheia, que não podemos evitar ou superar. A questão da relação entre os pecados dos outros, especialmente os primeiros humanos, e nossa situação co-determinada pela culpa, recebe sua resposta. Sua concepção da liberdade, determinada por objetos categoriais e condicionadas pelos outros e pela história, explica como as culpas dos outros podem determinar a situação da liberdade do sujeito. 117 Tanto exteriormente quanto interiormente a liberdade é co-determinada pela situação, que é constituída pelo ‘mundo pessoal’. Portanto, nosso autor pode ligar claramente o primeiro pecado com a situação de toda a humanidade e os pecados dos outros com a situação real de cada pessoa.118 De novo Rahner rejeita qualquer transmissão do pecado mesmo e da herança biológica do ‘pecado original’ sem contradizer a afirmação de Trento. Ele enfatiza que, “não nos é imputado o pecado de Adão. Uma culpa pessoal de um ato originário de liberdade não pode vir a ser transmitida.”119 Nós não recebemos a culpa do primeiro pecado na qualidade moral. Além disso, não existe nenhuma transmissão biológica do pecado ou das corrupções como as consequências do pecado. 120 Ao mesmo tempo, Rahner não nega a afirmação de Trento que o pecado original é transmitido por “propagação e não imitação.” A ‘transmissão’ é pelo fato que cada pessoa nasce numa situação de pecado como parte da história humana. A unidade da história humana permite-lhe afirmar que essa situação do ‘pecado original’ é transmitido ‘por propagação’, porque cada ser humano existe na mesma história humana e, neste sentido, ‘herda’ a situação de pecado. 121 A co-determinação da liberdade pela culpa alheia não é uma forma de imitação, porque uma pessoa pode rejeitar a culpa objetivada na situação e ela é ainda co-determinada pela culpa. Finalmente, a situação co-determinada pela culpa alheia representa a perda da graça da justificação. Rahner não esquece, no Curso fundamental da fé, sua afirmação sobre o 116 CFF, p. 138. Sesboüé fala sobre a solidariedade entre as liberdades. SESBOÜÉ, Karl Rahner, p. 105. 118 Vandervelde define o conceito de pecado original de Rahner como, “original sin may be defined as the situational privation of sanctifying grace that renders every human being (analogously) guilty from the moment of birth.” VANDERVELDE, Original sin, p. 147. 119 CFF, p. 139; SESBOÜÉ, Karl Rahner, p. 106. 120 CFF, p. 138. 121 Sobre esse ponto Rahner explica, “A natureza do pecado original deve ser entendida corretamente a partir da compreensão do resultado que a culpa de determinado homem ou determinados homens acarreta para a situação da liberdade de outras pessoas. Porque, dada a unidade do gênero humano, o fato de o homem achar-se metido no mundo e na história e, por fim, a necessidade de toda situação originária de liberdade estar mediada no mundo, dá-se necessariamente tal resultado.” CFF, p. 140. 117 108 pecado original como um estado de perda da graça, uma graça que devia ser. Para ele, “essa culpa pessoal nos inícios da história do gênero humano é rejeição da absoluta oferta que Deus faz de si mesmo.”122 Essa rejeição causa “a falta de semelhante autocomunicação divina” 123, essa graça da ‘justificação’ que, “santifica o homem antes da boa decisão livre de sua parte,”124 que estava presente desde o início de sua existência. Então, essa situação assume o caráter de algo que não deveria ser, e nesse sentido é ‘pecado’, mas somente no sentido análogo. Mas Rahner é rápido em explicar que, “Essa auto-oferta de Deus permanece sempre válida e não é revogada, não obstante a culpa dos inícios da humanidade, e se mantém propter Christum e em vista dele, ainda que não esteja mais presente por causa e a partir de ‘Adão’.”125 Essa afirmação resume o que nosso autor explicou em seu artigo sobre o pecado de Adão. A partir do primeiro pecado, o ser humano perdeu a graça da autocomunicação de Deus como a original situação existencial do ser humano, mas não como a oferta escatológica dada em Cristo. 3.3.3 As consequências do pecado: a concupiscência e a morte Rahner trata das consequências tradicionais do primeiro pecado, a concupiscência e a morte, de maneira a evitar os conflitos com a antropologia evolucionista. Tanto a concupiscência, no sentido clássico de Agostinho, que a vê como a tendência para o mal na corrupção da natureza humana, quanto a morte, foram concebidas como efeitos, ou seja, punições, do primeiro pecado. A questão da morte não é problemática, porque Rahner aceita que mesmo sem o primeiro pecado, o ser humano teria morrido.126 Essa é uma extensão da afirmação da tradição que o ser humano, como corporal, é mortal. A experiência existencial da morte teria sido diferente para o ser humano sem pecado,127 mas o fato da mortalidade não é uma consequência do pecado. Sobre a concupiscência, nosso autor a reinterpreta a fim de excluir dela a ideia tanto da herança de uma natureza corrupta quanto da idealização do estado do ser humano antes do pecado. O primeiro passo dessa reinterpretação é a redefinição do conceito de concupiscência. Nosso autor enfatiza que a concupiscência não é um pecado em si mesmo, 122 CFF, p. 141. Ibid., p. 141; RAHNER, Brief theological observations, p. 40-41. 124 CFF, p. 141. 125 Ibid., p. 141. 126 CFF, p. 143; RAHNER, Theological concept, p. 379. 127 RAHNER, Brief theological observations, p. 49. 123 109 sem sua ratificação pela liberdade humana, e então não é a essência do pecado original. 128 Além disso, a concupiscência não é a tendência desordenada para o mal. Para ele, a concupiscência teológica é, “[...] uma concupiscência involuntária que antecipa a decisão livre e a ela resiste.”129 Quando existe um movimento espontâneo dentro da pessoa antes de sua decisão livre, esse movimento é a ‘concupiscência’ no sentido teológico. É a resistência à decisão livre. Esse movimento vem da ativação do apetite, que é natural e involuntário.130 Além disso, a concupiscência não é somente ‘carnal’, mas inclui a parte espiritual do ser humano. Pelo fato que cada ato cognitivo e conativo do ser humano é necessariamente sensitivo e espiritual, porque envolve tanto as partes corporais (os sentidos e a imaginação) quanto as partes espirituais (o intelecto e a vontade),131 não se pode reduzir a concupiscência teológica aos desejos ‘carnais’. Os objetos de desejo podem ser insensíveis, como o orgulho, e os objetos sensíveis ativam a parte espiritual do ser humano e não somente o corpo. Além disso, existem apetites espirituais também, que podem resistir a uma decisão livre, por exemplo numa tentação contra a fé ou a esperança. Por isso, nosso autor diz, “não há clareza quanto ao motivo pelo qual a concupiscência deva ser concebida como uma ‘rebelião’ justamente do homem ‘mais baixo’ contra o ‘mais elevado’[...] há tanto perigo nas alturas luciferianas do espírito quanto nas profundezas escuras do puramente sensível.” 132 Então, Rahner conclui que a concupiscência é uma tendência sensível-espiritual, dirigida a um objeto sensível ou um objeto que transcende a experiência imediata.133 Finalmente, Rahner coloca a concupiscência na tensão entre a natureza e a pessoa. O ser humano é orientado para o bem absoluto, que é Deus.134 Então cada decisão para um bem particular tem que ser em vista do bem absoluto.135 Mas o movimento espontâneo dos apetites é orientado para um bem particular. Portanto, a pessoa tem que decidir sobre o bem particular, que é dado pelos apetites, à luz do bem absoluto.136 Deve haver uma integração entre os atos espontâneos e a decisão livre em que, “a livre decisão deve compreender, transfigurar e transfundir o ato espontâneo, de forma que sua própria realidade também não 128 Ibid., p. 41. “[…] an involuntary concupiscence anticipating free decision and resisting it.” RAHNER, Theological concept, p. 353. 130 Ibid., p. 359. 131 RAHNER, Theological concept, p. 353. 132 “Thus it is by no means clear why concupiscentia should be conceived of as a ‘rebellion’ precisely of the ‘lower’ man against the ‘higher’ […] there is just as much danger from the Luciferan heights of the spirit as from the dark depths of the purely sensitive.” Ibid., p. 354. 133 Ibid., p. 359. 134 Ibid., p. 360. 135 Ibid., p. 360. 136 Ibid., p. 360-61. 129 110 seja mais puramente natural, mas pessoal.”137 Mas, às vezes existe uma resistência dos atos espontâneos à decisão livre, ou seja, da natureza à pessoa, e a pessoa não pode integrar os atos espontâneos dentro de sua decisão livre. Essa é, para Rahner, a concupiscência. É natural mas não pessoal e impede a integração do sujeito para seu fim último, Deus. Com essa concepção, Rahner argumenta que a concupiscência é neutra com relação à moralidade. A resistência à decisão livre dos atos espontâneos pode ser contra as decisões boas mas também contra as decisões más. Ele explica: Como um ato espontâneo precede cada ato pessoal do homem, quer direcionado para o bem ou o mal, e em cada um dos atos pessoais a pessoa nunca absorve completamente e assume pessoalmente o que está na base de seus atos espontâneos e aquilo que precede o ato pessoal, segue-se que o dualismo da natureza e pessoa em sua forma especificamente humana, que chamamos concupiscência, é algo que atua tanto no caso de uma boa decisão da liberdade humana contra o desejo espontâneo da natureza por um bem moralmente negativo, quanto no caso de uma livre decisão ruim contra uma inclinação natural para algo moralmente bom. Tanto a boa decisão moral quanto a ruim se deparam com a resistência, solidez e impenetrabilidade da natureza. A concupiscência no sentido teológico se mostra, por exemplo, quando um homem se envergonha no ato de mentir e também quando a ‘carne’ se recusa a seguir a disposição do ‘espírito’ para o bem. 138 O aspecto central da concupiscência é a resistência dos atos espontâneos dos apetites contra a decisão livre da pessoa. A resistência pode ser contra uma boa decisão, então é má, ou contra uma má decisão, e então é boa. É a desintegração da natureza com a pessoa, e não a tendência para o mal, que é a concupiscência. Então, o dom da ‘integridade’ consiste no domínio habitual da pessoa sobre a natureza. Quando os atos espontâneos, apesar de continuar espontâneos e afetar a pessoa ‘passivamente’, são formados completamente pela atividade da pessoa, em termos de não permitir alguns movimentos acontecerem e também com a força de assimilar outros movimentos que sejam resistentes mas podem ser assumidos no dinamismo da ação, a pessoa está em estado de integração.139 Esse estado não é para evitar o mal, mas para dispor a pessoa a fazer uma completa autodeterminação existencial que inclui toda a dinâmica natural e 137 “thus that the free decision should comprehend, transfigure and transfuse the spontaneous act, so that its own reality too should no longer be purely natural but personal.” RAHNER, Theological concept, p. 365. 138 “Because a spontaneous act precedes every personal act of man, whether it be directed to good or evil, and because in every one of them the person never wholly absorbs and personally assumes what it is on the basis of its spontaneous acts and what is given prior to it, it follows that the dualism of nature and person in its specifically human form, which we call concupiscence, is something which is at work both in the case of a good decision of man’s freedom against the spontaneous desire of nature for a morally negative good, and also in the case of a bad free decision against a natural inclination to something morally good. Both the good and the bad moral decision encounter the resistance, the solidity and the impenetrability of nature. Concupiscence in the theological sense shows itself for instance just as much when a man blushes in the act of lying as when the ‘flesh’ refuses to follow the willingness of the ‘spirit’ for the good.” Ibid., p. 365-66. 139 Ibid., p. 367-68. 111 pessoal do sujeito.140 É para unir a pessoa em sua totalidade na ação de autodeterminação. Em relação à graça da integridade que Adão recebeu, Rahner explica: Consequentemente, a integridade foi dada a Adão não apenas para evitar um perigo maior do pecado, mas também para possibilitar um compromisso completo de seu ser com uma decisão pessoal direcionada ao bem [...] O dom da integridade, podemos dizer, tornou possível ao homem, desde o início, fazer o que deseja com todo seu coração e sua força, e nenhum de seus poderes seriam capazes de se recusar a seguir tal vontade, total ou parcialmente. 141 Esse compromisso total, em termos bíblicos, é amar com todo a seu coração. O bem, no final, é Deus. Portanto, seria possível, para Adão, com integridade, decidir amar Deus com todo o seu coração.142 O estado de concupiscência, em consequência, é a situação existencial de desintegração da pessoa, ou seja, o conflito entre a natureza e a pessoa. Para Rahner, “Há muito no homem que sempre permanece no fato concreto de alguma maneira impessoal; impenetrável e não-iluminado para sua decisão existencial; meramente suportado e não realizado livremente. É esse dualismo entre a pessoa e a natureza [...] que nós chamamos concupiscência no sentido teológico.”143 Pelo fato que a pessoa não é completamente livre em relação às suas dinâmicas naturais, ela é desintegrada. Ela não pode dispor de si mesma totalmente por ou contra Deus, o termo absoluto de sua vontade, numa decisão de autodeterminação.144 Trata-se então de um estado contraditório, no qual o ser humano está orientado para o bem absoluto, mas não pode escolher esse bem com todo o seu ser.145 Essa contradição e resistência da natureza contra a pessoa é a concupiscência. Além disso, Rahner não fala de uma concupiscência ‘desordenada’ ou ‘corrupta’, porque esse estado vem da natureza metafísica do ser humano como espírito na matéria, que não se pode excluir 140 Ibid., p. 369. “Hence integrity was given to Adam not so much for the sake of avoiding a greater danger of sin, as for making possible an exhaustive engagement of his being in a personal decision directed to the good […] The gift of integrity, we may say, made it possible for man from the first really to do from his whole heart and with all his strength what he wished to do, and none of his powers could refuse to follow this will, wholly or in part.” Ibid., p. 372, 274. 142 Ibid., p. 373-74; RAHNER, Brief theological observations, p. 47-48. Vandervelde explica, “The status integritatis of primordial man is seen by both Rahner and Schoonenberg, not as a state, but as a dynamic possibility. ‘Paradise’ is not a condition of pristine harmony, but an eschatological goal. Pre-fall integrity is the experience of being positively directed to that goal – not without resistance, but without the added resistance introduced by sin.” VANDERVELDE, Original sin, p. 205. 143 “There is much in man which always remains in concrete fact somehow impersonal; impenetrable and unilluminated for his existential decision; merely endured and not freely acted out. It is this dualism between person and nature, in so far as it arises from the dualism of matter and spirit and not from man’s finitude, the dualism of essence and existence and the real distinction of his powers given with it, that we call concupiscence in the theological sense.” RAHNER, Theological concept, p. 369. 144 RAHNER, Brief theological observations, p. 47. 145 Ibid., p. 48-49. 141 112 naturalmente, e essa natureza pode resistir à decisão boa ou má, então é bivalente do ponto de visto ético.146 Ao mesmo tempo, à luz da experiência da autocomunicação de Deus, que é um existencial permanente do ser humano, a pessoa experimenta sua concupiscência como algo que não deve ser, então como um ‘mal’ pré-pessoal. 147 À luz dessa exposição, se pode ver como Rahner responde aos problemas relacionados à ideia da concupiscência como uma consequência do pecado. Primeiramente, ele argumenta que a concupiscência é natural, inevitável para um ser composto de espírito e matéria. Então, não é desordenada no sentido clássico, como uma tendência para o mal. Em segundo lugar, o primeiro pecado não causou essa ‘desordem.’ ‘Adão’148 perdeu a graça da integridade, que colocou o ser humano em seu estado natural de tensão entre a natureza involuntária e a pessoa livre. Em terceiro lugar, não existe nenhum conflito entre a visão evolucionista do ser humano e a doutrina da concupiscência. Os primeiros humanos não eram perfeitos e sua natureza, que nós recebemos, não mudou depois do pecado. O fato de não podermos ver a situação originária da existência e do contexto dos primeiros humanos, tanto cientificamente quanto teologicamente, não exclui a afirmação teológica sobre a graça oferecida a eles. Em quarto lugar, a questão da morte também recebe sua resposta. A morte é natural, e não o resultado do pecado. Mas a experiência da morte na realidade existencial do ser humano é algo que contradiz a oferta absoluta da autocomunicação de Deus. Então, o ser humano experimenta a morte à luz da oferta de Deus como algo que não devia ser. Por isso Rahner afirma que a morte como um existencial é meramente a experiência mais radical da concupiscência. 149 Finalmente, a concupiscência não está ligada à co-determinação da situação da liberdade pela culpa alheia. Rahner não faz nenhuma conexão entre os pecados dos outros e a concupiscência. Seu lugar em relação ao pecado original está ao lado da perda da primeira graça, e não na ‘transmissão’ do pecado. 3.4 Avaliação de Rahner 3.4.1 As respostas aos problemas relacionados à doutrina do pecado original 146 RAHNER, Theological concept, p. 369-70, 371. RAHNER, Brief theological observations, p. 52-53. 148 Aqui e em geral ‘Adão’ nesse contexto representa os primeiros humanos que pecaram, e não o primeiro homem da visão monogenista. 149 RAHNER, Brief theological observations, p. 48. 147 113 A interpretação de Rahner tem respostas aos quatro grandes problemas levantados pela doutrina clássica do pecado original. Em relação ao ‘efeito universal’ do primeiro pecado, Rahner responde com sua concepção da singularidade do primeiro momento da liberdade. Os primeiros humanos, quando se tornaram livres, ou seja, sujeitos transcendentais, a primeira atualização de sua liberdade foi diferente das subsequentes, porque não era condicionada pelas outras escolhas e orientou a história total do ser humano, que é una. Deus ordenou à geração do ser humano ser uma mediação da graça, não por causa de uma razão intrínseca à geração, mas pelo plano da salvação. O pecado dos primeiros humanos rejeitou esse plano. Portanto, para nosso autor, o primeiro pecado, no início da humanidade, tem um efeito universal porque foi a primeira atualização da liberdade, que condicionou universalmente os outros atos da liberdade, e porque quebrou o plano de Deus com relação à geração, que era determinada a ser uma mediação da graça. Essa resposta é bem razoável. No lado da liberdade, faz sentido dizer que o primeiro ato livre tenha uma significação especial como não-condicionado, e afete os atos subsequentes universalmente, pelo fato da unidade da história humana. Mas Rahner não entra num esclarecimento desse condicionamento especial dos atos livres pelo primeiro pecado. Seria interessante desenvolver mais esse aspecto, se é possível pensar como o primeiro pecado afetou a história. Do lado da perda da graça, também a resposta é satisfatória. Embora necessite de uma explanação ‘ad hoc’ sobre o plano de Deus desde o começo, pelo menos explica porque o mesma graça não é dada às gerações subsequentes. A segunda questão tratada por Rahner tem a ver com a noção de transmissão do pecado original. Ele rejeita tanto a transmissão do pecado a modo de imputação quanto a modo de herança da corrupção do pecado. Não existe nenhuma transmissão do pecado original, somente pelo fato que o estado da humanidade depois desse pecado, com a privação da graça per propagationem, é o que não devia ser, que é ‘pecado’ no sentido análogo. Claro que uma privação de algo não é por transmissão, especialmente quando é a graça, que vem de Deus. Pelo fato que a concupiscência, na concepção de Rahner, não é uma corrupção mas somente o estado da natureza sem a graça da integridade, ele não precisa descrever uma transmissão quase-biológica da corrupção da natureza. Pode-se dizer que a co-determinação pela culpa alheia é uma espécie de transmissão, mas num modo explicável segundo o conhecimento da influência externa e interna na liberdade. Não cai nas dificuldades da teologia da transmissão do pecado original de Santo Agostinho, por exemplo. 114 Essa rejeição da transmissão resolve o terceiro problema também, o da responsabilidade pessoal em relação ao pecado original. O primeiro pecado não é transmitido em seu caráter moral. Nenhuma pessoa é culpável pelo pecado de ‘Adão’. Nenhuma pessoa recebe uma condenação pelo pecado original. Também a pessoa não recebe as punições do primeiro pecado. A concupiscência e a morte são naturais, e não punições. De fato, o estado sem a graça de ‘Adão’ não representa uma punição da pessoa, porque a oferta da autocomunicação de Deus ainda está presente para ela, mas somente de um modo diferente. A única herança negativa é a co-determinação pela culpa alheia, mas essa é a consequência da natureza humana, que é histórica e comum. As ações boas são parte dessa herança também. Essa co-determinação toca a responsabilidade pessoal, mas a pessoa ainda é livre e responsável em sua decisão. Então, não representa um problema para nosso autor explicar. Sobre esse ponto, Rahner mostra sua criatividade como teólogo. A transmissão sempre tem sido o problema mais difícil para essa doutrina. Sua rejeição e o desenvolvimento da ideia da co-determinação pela culpa da situação da liberdade é magistral. Ele consegue explicar como o pecado de uma pessoa pode influenciar outra pessoa sem recurso a nenhum ‘quase-conceito’ (como diz Ricoeur) da transmissão biológica do pecado original. Além disso, sua descrição dessa co-determinação é bem consistente. É claro que o objeto mesmo (as bananas, por exemplo), a compreensão do objeto (através de conceitos, linguagem, símbolos e valores culturais etc.), e a escolha do objeto (com a influência das razões dos outros, das preferências dos outros, das relações com os outros, do exemplo dos outros etc.) são todos afetados pelos outros. Existe realmente uma ‘situação’ na qual a liberdade age. É difícil criticar essa ideia. De fato, mais estudo é necessário a fim de desenvolver essa percepção e refinar seus aspectos mais importantes. Trataremos o problema da concupiscência abaixo. Aqui pelo menos pode-se questionar se Rahner integra sua concepção suficientemente. Os três grandes elementos, a privação da graça, a concupiscência e a situação co-determinada pela culpa não parecem estar suficientemente integrados. Nosso autor não fala sobre nenhuma influência da situação do pecado na concupiscência da pessoa.150 Também, o que é a relação entre a privação da graça e a situação do pecado? A situação muda a orientação do ser humano em relação a Deus? Essas questões abrem novos horizontes de estudo. 150 Vandervelde percebe esse ponto também. A concupiscência, no sentido rahneriano, não é diretamente parte da situação do pecado. VANDERVELDE, Original sin, p. 206-07. 115 Em comparação com a proposta de Teilhard, a proposta de Rahner parece mais em conformidade com a doutrina clássica, que dá conta da gravidade do pecado para o ser humano. Teilhard coloca o pecado como parte inevitável do processo de evolução no nível da noosfera, e a transmissão como o resultado da materialidade do ser humano. Para Rahner, o pecado não é inevitável e ele enfatiza que não pode identificar a concupiscência com a materialidade. Ele critica as tendências dualistas e gnósticas da tradição,151 mais perceptíveis em Teilhard. 3.4.2 As respostas aos problemas da doutrina em relação à evolução Consciente da dificuldade de reconciliar a doutrina do pecado original e a evolução, nosso autor desenvolve sua interpretação exatamente para superar os conflitos entre os duas. Sobre o primeiro problema, o do paraíso, nós vimos acima que ele rejeita a ideia como uma mitologização da história. Sua aceitação da emergência do ser humano através do processo da evolução, sem nenhuma intervenção especial de Deus, permite-lhe explicar o primeiro pecado dentro da história científica e antropológica sem problemas. Ele argumenta que o nascimento do ser humano como sujeito transcendental coincidiu com a decisão livre para dizer ‘não’ a Deus. Ele não admite nenhum tempo significante entre esses dois momentos. Então, um estado de inocência no paraíso não existiu historicamente. Quando o ser humano se tornou livre, mais ou menos no mesmo momento, o primeiro pecado aconteceu. 152 Pelo fato que esse evento não tem nenhuma significação para a história biológica do ser humano, não existe nenhuma contradição entre essa afirmação e a evolução. 153 A graça dos primeiros humanos, como a autocomunicação de Deus, foi co- 151 Por exemplo, nosso autor critica uma interpretação neoplatonista da ‘sarx’ de São Paulo: “Only an interpretation which had not yet completely eliminated Gnostic or Neoplatonist tendencies with their a priori categories (and this is definitely the case with St Augustine) could have explained St Paul’s purely religious concepts in the sense of a philosophy for which the ontologically less perfect is also eo ipso what is religiously further from God and the spirit is always something more divine, in such a way that the opposition of the flesh to God and to the law of the holy pneuma (which is not just ‘spirit’ as meant by a philosophical anthropology) is transposed into an opposition of man’s sensibility (in the metaphysical sense) to his intellectuality. If these two elements (concupiscence precisely for what is evil, concupiscence as pure sensibility) are taken together, it is easy to see why such a concept of concupiscence, even against the will of those who so conceive it, tends to endanger the unexactedness of the gift of integrity.” RAHNER, Theological concept, p. 355-57. 152 Claro que essa afirmação não implica que a primeira decisão tenha sido um pecado, ou que não houvesse algum tempo em que o ser humano se tornou consciente de sua liberdade. Pode-se pensar um período, meses ou anos, do ‘despertar’ do sujeito. O primeiro pecado tem que ser um pecado consciente diante de Deus e não somente um erro moral inculpável. 153 A questão da relação entre o primeiro pecado, a história do pecado, que é propriamente teológica, e a antropologia histórica e a história da civilização humana é um ponto de contenção. Pelo menos podemos dizer que as ações livres dos seres humanos determinam sua história e a história da raça. Então, existe uma 116 extensiva com a aparência do sujeito transcendental, e permaneceu depois, não como um existencial antes da escolha livre, mas como o fim do movimento da liberdade. Rahner não explica diretamente a relação da graça da integridade com a autocomunicação de Deus, mas pode-se inferir que o primeiro momento do sujeito transcendental foi um momento de integração, não como um hábito da natureza, mas pelo fato que a graça da autocomunicação de Deus estava presente antes da escolha livre. Se os primeiros humanos a aceitassem, teriam crescido na integração, amando a Deus com todo o coração.154 Então, a graça da integração existiu antes da escolha livre, mas não foi aceita. Portanto, não existiu um estado de integração plena antes do pecado.155 Sobre os problema do monogenismo e da transmissão, já o tratamos acima. Rahner aceita o poligenismo e explica a doutrina à luz disso. Ele não tem nenhuma dificuldade em aceitar que os primeiros humanos pecaram juntos, ou mesmo que uma pessoa pecou e isso influenciou o grupo total. Ele enfatiza a unidade do ser humano, com uma origem, embora poligenista, com uma história. Isso é coerente com as teorias da evolução porque, como vimos no primeiro capítulo, o consenso dos cientistas hoje favorece o monofiletismo poligenista. Além disso, Rahner argumenta que o poligenismo é melhor como base para explicar o pecado original, porque é mais razoável para a raça humana total determinar a situação da humanidade a partir de somente uma pessoa ou de duas pessoas. Os primeiros humanos agiram juntos, então receberam a perda da graça juntos. Parece que essa resolução dos conflitos entre a evolução e o pecado original é superior à proposta por Teilhard. Para superar as dificuldades da doutrina da evolução, Teilhard a reinterpreta de um modo mais radical, que deixa de lado os pontos centrais, e podese dizer verdadeiros, da tradição. O mais importante é que Teilhard nega a ideia do primeiro pecado como algo especial e diminui a responsabilidade do ser humano por sua falta, em que o ‘pecado’ é inevitável na dinâmica cósmica de um ser no ‘múltiplo’ em seu movimento para sobreposição aqui. Mas um antropólogo não pode identificar uma decisão livre como um pecado, mas somente descrevê-la através dos conceitos e teorias da antropologia. Então, as perspectivas permanecem distintas. 154 Rahner prefere entender a integração da natureza com a pessoa como um processo de direcionamento das forças naturais para o fim de amar a Deus com todo o coração e não como uma ausência do movimento da concupiscência. Ele usa o exemplo do medo de Jesus no jardim, que mesmo com a graça da integração resistiu à decisão de sofrer, mas que Jesus integrou em sua decisão de modo que no final sua natureza estava unida com sua pessoa. A luta levou à integração. Essa é a maneira como Rahner pensa a primeira integração possível dos primeiros humanos. Cf. RAHNER, Theological concept, p. 367-68. 155 É possível pensar que os primeiros humanos tivessem uma certa integração da natureza em si mesma, mas a integração da natureza com a pessoa foi possível, para nosso autor, somente através da escolha livre. Essa conclusão está baseada no fato que para Rahner, um ‘estado’ é o resultado da escolha livre da pessoa, e não uma coisa dada inerentemente. Cf. RAHNER, Brief theological observations, p. 45. Então um aspecto do primeiro momento foi a questão de se o sujeito integraria sua natureza na decisão livre de aceitar a autocomunicação de Deus. 117 o ponto de união. Rahner mantém o primeiro pecado como pecado e a responsabilidade da humanidade pela situação pecaminosa. Ele harmoniza isso com o poligenismo e não precisa usar um conceito de transmissão quase-biológico para explicar a influência desse primeiro pecado na humanidade. Ele também mantém a importância da graça, que Teilhard não trata diretamente, e a parte ‘formal’ (no sentido tomista) do pecado original, a perda da graça, sem recurso à noção de um paraíso primitivo. Portanto, Rahner está mais em concordância com a tradição, mas nada menos aceitável do ponto do visto científico. 3.4.3 O problema com a subjetividade transcendental e os pecados Rahner tem recebido críticas à sua concepção do pecado dentro da antropologia da subjetividade transcendental. Ele argumenta que um pecado é um ‘não’ ao termo absoluto do horizonte transcendental, que é Deus. Highfield argumenta que essa concepção é quase contraditória e então instável. Ele explica: Na pronúncia ‘não,’ nós pretendemos um mundo sem Deus, sem estruturas objetivas e sem leis, um mundo no qual somos absolutos.156 Isso não pode ser. É intrinsicamente, ontologicamente impossível. Independentemente do esforço, não podemos nos tornar um ‘não’ a Deus. Portanto, o ‘não’ não pode estabelecer algo definitivo intrinsicamente. A natureza criada permanece como uma isca, tentando repensar e conformar livremente a nosso verdadeiro ser e destino. O conceito do livre e definitivo ‘não’ é, portanto, um elemento inconsistente e instável no pensamento de Rahner.157 A liberdade humana é transcendental, condicionada em seu fundo e em seu fim pelo Absoluto, então cada decisão livre tem que se dar dentro desse horizonte. A liberdade não pode agir fora de seu horizonte. Então cada ato da liberdade, de fato, é uma afirmação desse horizonte transcendental; é um ‘sim’ ao fundo e fim que tornam possível o ato livre em si mesmo, que é Deus. Mas, o pecado como ‘não’ a Deus é exatamente uma rejeição de Deus, uma rejeição do fundo e fim do horizonte transcendental, ou seja, a tentação de escolher uma realidade fora do horizonte, fora de Deus. Mas tal decisão não seria possível dentro do 156 É significante que Santo Agostinho defina o pecado nesses termos, como uma tentação do ser humano se torna a si mesmo absoluto: “For man’s true honor is God’s image and likeness in him, but it can only be preserved when facing him from whom its impression is received. And so the less love he has for what is his very own the more closely can he cling to God. But out of greed to experience his own power he tumbled down at a nod from himself into himself as though down to the middle level. And then, while he wants to be like God under nobody, he is thrust down as a punishment from his own half-way level to the bottom, to the things in which the beasts find their pleasure.” AUGUSTINE, On the trinity, XII. 16, p. 331. 157 “By uttering "no," we intend a world without God, without objective structures and laws, a world in which we are absolute. This cannot be. It is intrinsically, ontologically impossible. Regardless of the effort, we cannot become a "no" to God. Therefore the "no" cannot establish something intrinsically definitive. Created nature remains as a lure, tempting us to reconsider and to freely conform to our true being and destiny. The concept of the free and definitive "no" is, therefore, an inconsistent and unstable element in Rahner's thought.” HIGHFIELD, The freedom, p. 494. 118 horizonte, porque não pode rejeitar e afirmar a mesma coisa ao mesmo tempo. Então, tem que ser uma decisão fora do horizonte. Isso é impossível para a liberdade, então o ‘não’ não pode ser um ato livre. Mas Rahner afirma que o ‘não’ a Deus é uma decisão livre. Então, existe uma contradição.158 Nosso autor percebe essa dificuldade e concede que existe uma contradição aqui: a possibilidade transcendental do ‘não’ da liberdade vive de todo ‘sim’ necessário; todo conhecer e todo agir livre vive daquele Aonde e Donde da transcendência. Contudo devemos deixar que este ‘não’ comporte semelhante impossibilidade e contraditoriedade real em si: que este ‘não’, fechando-se, diga realmente ‘não’ ao horizonte transcendental da nossa liberdade e, assim fazendo, viva de um ‘sim’ dito a este Deus.159 Mas ele não tenta resolver essa contradição, mas deixa o problema como parte do mistério do pecado. Deve-se aceitar isso como teólogo? Highfield identifica outra dificuldade com essa concepção. Ele pergunta, “como o pecado real pode ser perdoado e o pecador real ser resgatado, se o pecado é o definitivo e inextirpável por definição?” 160 Ele não encontra uma resposta a essa questão dentro da teologia de Rahner. Segundo ele, a tentação de harmonizar uma noção existencialista da liberdade, que pode determinar a si mesma absolutamente num modo quase divino, 161 e a tradição cristã, não é um sucesso, mas cria essas inconsistências.162 Também surge a questão da relação entre os objetos categoriais e o termo absoluto do horizonte nos atos da liberdade. Nosso autor diz que o ‘não’ a Deus sempre é mediado através de objetos categoriais da experiência histórica.163 Além disso, cada ato da 158 Sesboüé também vê esse conflito entre o ‘não’ a Deus e a negação da liberdade, SESBOÜÉ, Karl Rahner, p. 104. 159 CFF, p. 128. 160 “How can real sin be forgiven and the real sinner be redeemed, if sin is definitive and ineradicable by definition?” HIGHFIELD, The freedom, p. 499. 161 Ibid., p. 505. 162 Highfield conclui, “I believe we find exposed here one of the seams where Rahner has unsuccessfully attempted to sew together traditional dogma and his metaphysical anthropology. On the one hand, he finds the existentialist view of freedom—a radical openness and a capacity for definitive self-creation—helpful in explaining the traditional doctrine of sin. It helps us understand how humans can become sinners before God and be held responsible for their evil decisions. On the other hand, the tradition also holds that sinners are redeemable and that God forgives real sin. Here the former concept of freedom becomes a liability. How can real sin be forgiven and the real sinner be redeemed, if sin is definitive and ineradicable by definition? Rahner does not resolve this difficulty, and he leaves himself exposed to the charge of inconsistency. The traditional doctrine that real sinners are redeemable forces him to use the same terms to describe guilt (sin) in this discussion of redemption as he does in his studies on freedom and the nature of sin (i.e., a free "no" to the self-communication of God). But, through subtle linguistic shifts, these terms are given another meaning, a meaning which approximates what Rahner calls "sin in an analogous sense.' The "free no" here obviously means a categorial act which is conditioned by the situation of finitude and original sin. Only in this way is it understandable how God could go "beyond it" and make it possible to revise this "no". But where then is the "forgiveness of sins"?” Ibid., p. 499-500. 163 CFF, p. 123-24. 119 liberdade é, “um ‘sim’ ou um ‘não’ atemático dito a Deus, da experiência transcendental originária.”164 Então, o ‘não’ a Deus não precisa ser explícito, mas pode ser implícito. 165 De fato, ele argumenta que o pecado pode ser escondido do ator, “este ‘não’ pode acontecer escondido em algo de muito simples, numa situação em que algo de muito insignificante no mundo media essa relação para com Deus.”166 Contudo, o testemunho bíblico parece dar uma outra visão do pecado. No AT, um pecado é relacional, representa um ato contra Deus (Sl 50,6). No NT, o pecado é condicionado pela consciência da falta, num sentido.167 Em João, só os que veem têm pecado (Jo 9,41; 15,22). O pecado não é imputado sem a lei, segundo Paulo (Rm 3,20; 5,13.20). Na tradição, a ignorância invencível desculpa um ato mal da culpabilidade porque é involuntário.168 Portanto, num sentido forte, não se pode pecar por acidente. Na concepção de Rahner, cada ato livre tem que ser um ‘sim’ ou um ‘não’ a Deus porque cada ato age dentro do horizonte transcendental, que condiciona o movimento numa direção. O sujeito vai na direção de Deus, o termo absoluto, ou contra essa direção. Não existem outras opções. Mas, isso não parece harmonizar-se com a concepção bíblica da liberdade e do pecado. A subjetividade transcendental tem profundidade, o movimento do sujeito através do horizonte transcendental para o absoluto, mas parece plano, sem graus ou obstáculos. Cada decisão parece o mesmo, com o mesmo nível de liberdade. Onde fica o lugar dos hábitos, que restringem o horizonte da liberdade, e orientam as decisões numa direção? Os objetos categoriais parecem como janelas transparentes que o sujeito atravessa para o fim absoluto, e não como termos mesmos das ações. Falta algo aqui, para explicar a experiência do pecado e para distinguir entre um tipo de pecado e outro. 3.4.4 O pecado original como a privação da graça e a presença universal da autocomunicação de Deus A concepção da graça em Rahner também parece problemática. Por um lado, ele argumenta que o pecado original é um estado de privação da graça. Por outro, ele afirma que a presença da oferta da autocomunicação de Deus permanece depois do primeiro pecado, e o 164 Ibid., p. 124. Ibid., p. 124. Para mais explicação, SESBOÜÉ, Karl Rahner, p. 104. 166 CFF, p. 127-28. 167 TENNANT, The concept of sin, p. 29. 32. 168 Por exemplo: STh. 1a.2ae. 73, 3. 165 120 estado da natureza elevada, como uma situação da liberdade humana, também permanece. 169 Ele explica essa aparente inconsistência em que a graça continua presente de outra maneira, escatologicamente em Cristo e não originalmente em Adão. 170 Então existe uma simultaneidade dialética da falta da graça e da oferta constante de Deus,171 e pode-se dizer que o ser humano é simul justus et peccator. 172 De fato, pode-se falar sobre dois existenciais, o do pecado e o do sobrenatural. 173 Pode-se então perguntar, se a oferta da graça permanece transcendentalmente, se a graça é realmente uma situação existencial permanente do ser humano, então em qual sentido existe esse estado de privação da graça?174 Não parece haver privação nisso.175 Vandervelde oferece uma explanação excelente desse problema. Ele faz uma distinção entre dois tipos de situação, um histórico e outro transcendental. Ele diz: Para esclarecer esta aparente justaposição contraditória da situacional presença e ausência da graça, uma distinção da ideia de situação é obrigatória. Visto que a universal graça-existencial ou graça-situação é real, não obstante a situação histórica, cultural ou familiar específica, ela é convenientemente descrita como uma situação transcendental (ou existencial). A distinção exata, porém intrincada, entre situação espaço-temporal e transcendental pode ser traduzida de maneira mais compreensível ao se pensar, respectivamente, na ‘atmosfera’ e no ‘horizonte’ da existência humana. Ambos representam distintas realidades situacionais. Com a ajuda desta distinção, o pecado original pode ser definido mais precisamente como privação espaço-temporal da graça. Tal privação representa uma negação da presença espaço-temporal planejada da graça. A graça foi planejada para estar presente como a atmosfera da existência humana. A graça de Deus não foi feita para ser comunicada puramente de maneira transcendental – via o horizonte humano – de forma que a presença da graça como a atmosfera envolvendo o indivíduo precisasse ser criada mais uma vez por este indivíduo, isto é, por sua resposta positiva ao horizonte. Antes, Deus deseja comunicar-se a si mesmo de maneira transcendental e espaço-temporal, de forma que cada ser humano aja como mediador espaço-temporal, histórico, da graça para seus semelhantes. Cada ser humano desempenha este papel mediador não apenas para seus contemporâneos, mas também para as futuras gerações. Na verdade, a mediação histórica acontece de maneira mais incisiva no que pode ser chamado de o menor elo da história, a família, especificamente na relação pais e filhos. A entrada do pecado no mundo traz consigo uma ruptura desta 169 RAHNER, Brief theological observations, p. 45-46. CFF, p. 141, 143; RAHNER, Original sin, p. 333. 171 SA, p. 258-59. 172 RAHNER, Brief theological observations, p. 51-52. 173 Sobre a existencial sobrenatural como algo permanente que orienta o sujeito, veja GARCÍA-ALÓS, El existencial sobrenatural, p. 225-226. 174 Vandervelde percebe o mesmo problema. VANDERVELDE, Original sin, p. 214. 175 Vandervelde explica, “the idea of a situational lack of grace flatly contradicts the conception of the universal (situational!) presence of grace that is held by all the situationalists. That presence of grace, in fact, constitutes an ineradicable Existential, an ontological determinant, an irreversible aspect of the situation of every human being. The lack of grace that constitutes original sin, therefore, does not involve or affect this universal Existential (or situation) of grace.” VANDERVELDE, Original sin, p. 148. 170 121 comunicação espaço-temporal da graça, uma perturbação na atmosfera da existência humana, pois em seu sentido mais profundo, o pecado implica uma rejeição à graça de Deus. O efeito de tal resistência à graça é uma privação espaço-temporal da graça para o semelhante. Embora Deus continue a orientar o ser humano à graça, e a situá-lo pela graça de maneira transcendental, a mediação espaço-temporal da graça é impedida. O amor gracioso de Deus e a resistência pecaminosa do ser humano coexistem, resultando no fato de que cada ser humano está numa situação simultaneamente determinada por uma presença transcendental da graça e por uma ausência espaço-temporal da graça.176 Essa explanação entende bem o pensamento de Rahner e claramente resolve a dificuldade. A diferença está no nível da mediação, que se encontra no espaço e no tempo, e é categorial, não transcendental. A orientação transcendental do ser humano não pode mudar, porque é inerente à natureza do sujeito transcendental. 177 A mediação histórica de Cristo tenta superar a privação histórica de graça por causa do pecado original. Contudo, a interpretação da existência humana fica bem complicada: uma privação categorial da graça e uma presença transcendental da graça; duas situações existenciais co-extensivas (do pecado e do sobrenatural); duas mediações categoriais em conflito (da culpa e de Cristo); e um só fim transcendental com uma possibilidade da negação final. Essa articulação seria difícil de explicar para os fieis e os não cristãos do mundo. 176 “To clarify this seemingly contradictory juxtaposition of the situational presence and absence of grace, a distinction within the idea of situation is mandatory. Because the universal grace-Existential or grace-situation is real regardless of the specific historical, cultural or familiar situation, it is aptly described as a transcendental situation (or Existential). The exact but rather abstruse distinction between the spatiotemporal and the transcendental situation may be rendered more comprehensible by thinking, respectively, of the ‘atmosphere’ and of the ‘horizon’ of human existence. Both of these represent (distinct) situational realities. With the aid of that distinction, original sin can be defined more precisely as a spatiotemporal privation of grace. That privation represents a negation of the intended spatiotemporal presence of grace. Grace was intended to be present as the atmosphere of human existence. God’s grace was not meant to be communicated purely transcendentally – via man’s horizon – so that the presence of grace as the atmosphere enveloping the individual would need to be created anew by that individual, i.e., by his positive response to the horizon. Rather, God wishes to communicate Himself transcendentally and spatiotemporally, so that each human being is to act as spatiotemporal, historical mediator of grace for his fellowman. Each human being plays this mediating role not only for his contemporaries but also for future generations. In fact, this historical mediation takes place most incisively in what might be called the smallest link of history, the family, specifically in the relation of parent to child. The entrance of sin into the world brings with it a disruption of this spatiotemporal communication of grace, a disturbance in the atmosphere of human existence, for in its deepest sense, sin entails a rejection of God’s grace. The effect of such resistance to grace is a spatiotemporal privation of grace for one’s fellowman. Although God continues to orient man to, and situate man by grace transcendentally, the spatiotemporal mediation of grace is thwarted. God’s gracious love and man’s sinful resistance coexist, with the result that each human being is situated simultaneously by a transcendental presence of grace and by spatiotemporal lack of grace.” VANDERVELDE, Original sin, p. 148-49 177 É interessante que Vandervelde ainda não aceita essa explicação como suficiente para justificar a transmissão da graça historicamente através da Igreja. Tal mediação da graça, nos sacramentos por exemplo, não supera a situação do pecado original, que permanece como um existencial. Mas, se permanece, então a graça mediada pela Igreja é insuficiente como um remédio pelo pecado original. Portanto, por que a mediação da Igreja é necessária? Se a graça é presente transcendentalmente através do horizonte, e não é possível superar a situação do pecado original, por que se precisa da mediação da Igreja? O que concretamente essa mediação faz pela salvação da pessoa? Segundo o autor, a lógica da posição enfraquece a importância da Igreja e a mediação da graça, mesmo a do Cristo histórico. VANDERVELDE, Original sin, p. 254-56. 122 3.4.5 Rahner dá lugar suficiente para a ‘corrupção da natureza’? A concepção teológica da concupiscência usada nessa exposição do pecado original não dá espaço para a ideia da corrupção da natureza por causa do pecado. Nosso autor argumenta que a concupiscência é bivalente em relação aos bens morais, e não mostra como os atos de pecado afetam a disposição do sujeito. Claro, pode-se aceitar que a concupiscência não é a corrupção, mas o estado da natureza. De fato, o consenso da teologia medieval é exatamente esse, que depois do primeiro pecado e da perda da graça, o ser humano retornou ao estado natural, com a concupiscência, (com os apetites não completamente sujeitos à razão) e a morte. Mas, a tradição, baseada no AT, e especialmente em São Paulo (por exemplo Rm 7), também faz uma conexão entre os atos do pecado e a corrupção moral do sujeito. Além disso, a grande tradição moral das virtudes e vícios, a habituação nas pessoas, a ‘segunda natureza’ dos escolásticos, e o desenvolvimento espiritual do sujeito através da oração e da prática religiosa nos padres do deserto e nos escritos clássicos sobre a vida espiritual, falam sobre a corrupção da natureza e a luta contra a disposição pecaminosa da natureza humana. Não é somente a resistência da natureza contra a decisão livre da pessoa. De fato, a tradição que segue Santo Agostinho, especialmente a tradição protestante, enfatiza a concupiscência como a tendência para o mal, que é exatamente o que a doutrina tenta explicar. É problemático que nosso autor negue esse aspecto da teologia Cristã sobre o pecado original. Em relação a esse assunto, Teilhard preserva melhor o sentido do pecado original, porque para ele é a fraqueza do ser humano. Volta de novo a questão da subjetividade transcendental. Dentro dessa concepção da liberdade, é difícil explicar hábitos, os graus da voluntariedade nas decisões e os ‘afetos desordenados’ que Santo Inácio descreve. Uma vontade concebida como um apetite, por exemplo em Santo Tomás,178 e não como transcendental, dá mais espaço para a variação na orientação da liberdade e para os hábitos. Também, tal concepção seria mais fácil de harmonizar com a evolução, porque pode explicar a liberdade humana com mais continuidade conforme o que é voluntário no animal. Parece que a vontade dos animais é a do modo de um apetite, que escolhe entre os bens particulares dos sentidos. O livre arbítrio do ser humano escolhe entre os bens particulares, mas em relação com o bem universal, através da 178 STh. 1a.2ae. 6, 1-2. 123 deliberação do intelecto.179 É possível que tal concepção seja mais atraente aos cientistas. O grande salto para a liberdade transcendental de Rahner enfatiza demais a descontinuidade? Finalmente, pode-se questionar por que Rahner não faz uma conexão entre a situação co-determinada pela culpa e o desenvolvimento de uma concupiscência corrupta? Se distingue entre a concupiscência como a tendência natural, e a concupiscência como a disposição adquirida, pode-se argumentar que a tendência para o mal (a concupiscência no sentido agostiniano) não é uma herança pela geração (então não uma transmissão da natureza corrupta), mas são os hábitos formados como o resultado do desenvolvimento pessoal dentro da situação co-determinada pela culpa na história. Existe uma oportunidade aqui de se reapropriar de alguns aspectos da tradição sobre o pecado original que Rahner rejeita. Ele pode argumentar que a situação co-determinada pela culpa afeta o desenvolvimento moralespiritual do sujeito, que resulta na corrupção no nível da ‘segunda natureza’, os hábitos e as disposições. Então, ele preservaria a conexão entre o primeiro pecado e a concupiscência como a tendência para o mal, mas sem nenhuma herança biológica. Isso ajudaria a explicar por que Deus permite a privação da graça, pelo fato de que a situação do pecado afeta a disposição dos seres humanos para aceitar a mesma. Também ajudaria a explicar por que a ‘concupiscência’ continua depois da aceitação da graça de Cristo e do batismo. Desse modo, a graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa. Isso é um trabalho do tempo, para o que foi desenvolvido através do tempo, configurada na tarefa da vida espiritual e do movimento da santificação. 3.5 Conclusão Em resumo, pode-se fazer duas conclusões principais. A primeira, a teologia de Rahner é, em geral, bem mais sólida do que a visão de Teilhard. Ele não confunde os processos físicos e a atividade redentora de Cristo. Ele não identifica o pecado com a limitação material do ser humano. Ele dá mais espaço para a liberdade e para a responsabilidade do ser humano pela ação do pecado. Ao mesmo tempo, esses pontos não forçam Rahner a sacrificar a compatibilidade com a evolução. Ele desenvolve uma metafísica e uma antropologia consistentes com a teoria da evolução e harmoniza essa antropologia com a doutrina do pecado original. Rejeita o ‘quadro clássico’ da doutrina sem extinguir a importância do primeiro pecado, da universalidade do efeito desse pecado para a humanidade 179 STh. 1a. 83, 1; 1a.2ae. 10, 2. 124 e da necessidade da salvação de Cristo. Portanto, ele supera as dificuldades da doutrina do pecado original à luz da evolução, como Teilhard, mas ao mesmo tempo mais fiel a os dados teológicos da doutrina. A segunda, Rahner oferece uma interpretação da doutrina que ultrapassa seus problemas inerentes. Explica a razão do porquê o primeiro pecado ter um efeito universal e, ao mesmo tempo, como não somos culpados pelos pecados dos antepassados. Também ele evita uma transmissão quase-biológica do pecado original, mas preserva uma ‘transmissão’ social do pecado através da ‘situação’ co-determinada pela culpa alheia. Enfim, Rahner dá uma interpretação da doutrina que é consistente e razoável. Contudo, existem algumas questões com sua interpretação. Notamos a crítica de Highfield sobre a inconsistência da concepção rahneriana do pecado, a complexidade de sua concepção dos existenciais da privação da graça e do sobrenatural, e a falta de preocupação com a concupiscência enquanto a tendência para o mal. Essas dificuldades centram-se nas implicações da subjetividade transcendental. Para superá-las, seria possível assimilar as percepções preciosas de Rahner sem aceitar esse aspectos antropológicos de seu pensamento? 125 CONCLUSÃO GERAL Na introdução começamos com a questão: é possível ter uma interpretação do pecado original coerente em si mesma e compatível com a teoria da evolução? O primeiro capítulo nos ajudou a definir como responder a essa questão. Uma breve síntese do testemunho bíblico mostrou que, embora o mito de Gn 2-3 não retrate a história do primeiro casal, e Rm 5,12 não necessariamente coloca toda a humanidade na culpabilidade do pecado de Adão, as ideias da universalidade do pecado no ser humano, do estado do pecado como alienação de Deus, e da influência dos pecados do passado nas ações das pessoas do presente estão firmemente presentes nos textos do AT e do NT. O salto sobre o desenvolvimento da doutrina na tradição demonstrou que santo Agostinho não foi sozinho entre os padres da Igreja a afirmar a universalidade do pecado e a necessidade da salvação para toda a humanidade. Sua reflexão sobre o pecado original foi uma continuação da tradição, e depois dele a Igreja continuou desenvolvendo-a e aprofundando-a na idade média, até a definição de Trento. No final, definimos três proposições essenciais para a doutrina: o pecado de Adão levou à perda da graça para ele e sua descendência; existe uma ligação entre o pecado de Adão e os pecados inevitáveis de todos os seres humanos; a necessidade da graça e da salvação de Cristo para todos. Contudo, a doutrina clássica criou quatro dificuldades para a teologia: ‘universalidade’, ‘responsabilidade’, ‘transmissão’ e ‘concupiscência’. Com isso, o problema da consistência recebeu sua articulação. Também no primeiro capítulo foram identificados os conflitos entre a doutrina clássica e a teoria da evolução: o paraíso problemático, o monogenismo problemático, e a transmissão problemática. Depois disso tratou-se de ver como avaliar se nossos autores realmente superaram as dificuldades para nos dar uma resposta à questão. O segundo capítulo analisou a proposta de Teilhard. Ele tentou responder às dificuldades acima indicadas, colocando o mal no nível cósmico, como a imperfeição inevitável de um universo no processo da evolução e unificação. O pecado do ser humano é inevitável no encontro entre a imperfeição material e a livre responsabilidade das pessoas conscientes. Embora essa concepção harmonize-se bem com a evolução, não permanece fiel à tradição e aos pontos fundamentais da doutrina. O terceiro capítulo demonstrou como Rahner evitou os problemas de Teilhard e ainda harmonizou o pecado original com a antropologia evolucionista. Ele manteve a 126 importância do primeiro pecado para a humanidade e explicou sua influência a partir do conceito de ‘situação’ do pecado que co-determina a liberdade da pessoa. Ao mesmo tempo, rejeitou a ideia do paraíso, aceitou o poligenismo, e explicou a ‘transmissão’ sem recorrer a um conceito quase-biológico. Enfim, ele superou tanto os problemas com a consistência da doutrina quanto seus conflitos com a evolução. Portanto, a partir do terceiro capítulo, podemos chegar a estas conclusões. Na afirmação da tese desta pesquisa, é realmente possível superar os problemas internos da doutrina e harmonizá-la com uma antropologia evolucionista. Ao lado da consistência, a ideia da ‘situação’ de pecado ajuda a superar o problema da transmissão e da universalidade do primeiro pecado. Também, não necessita afirmar a responsabilidade de toda a humanidade no primeiro pecado. Ao lado da evolução, pode-se rejeitar a ideia do paraíso e aceitar o poligenismo sem negar a doutrina. Uma antropologia evolucionista é compatível com a ideia do primeiro pecado e da influência sócio-cultural dele a toda a humanidade. Por isso, a tese secundária também recebe sua afirmação: a interpretação da doutrina de Rahner preserva melhor os dados da tradição e é mais sólida teologicamente do que a posição de Teilhard. Ao mesmo tempo, a posição de Rahner não escapou a algumas críticas. Principalmente, vimos que sua reflexão sobre a subjetividade transcendental criou algumas tensões em sua interpretação do pecado, especialmente a dificuldade em reconciliar a contradição entre a rejeição de Deus do ato livre no horizonte transcendental que ao mesmo tempo afirma Deus como o fundo e o fim do horizonte. Também, a questão da complexidade das duas situações humanas e da teologia da graça levanta dificuldades. Além disso, Rahner evita a ideia da concupiscência como tendência para o mal, que poderia ser uma limitação em sua visão à luz da experiência humana. A partir dessas conclusões, e das limitações da teologia de Rahner, pode-se articular algumas direções para novos estudos. Primeira, a teologia católica e o Magistério da Igreja devem trabalhar dentro de uma antropologia evolucionista e aprovar o poligenismo e rejeitar a ideia do paraíso. O futuro da teologia deve estar em harmonia com as teorias sustentadas pela ciência. Segundo, outros estudos devem desenvolver a ideia da ‘situação’ do pecado e a influência dos atos dos outros na liberdade de cada um. A pesquisa sobre a formação moral das crianças, a influência cultural, a ideologia, a ação coletiva, a coerção sutil, e muitos outros assuntos podem aprofundar nosso conhecimento da situação do pecado e de sua transmissão social. Terceira, em relação à teologia de Rahner, seria possível aproveitar suas ideias sobre o pecado original, mas sem o peso da antropologia transcendental? As 127 dificuldades com sua interpretação muitas vezes encontram razões em sua antropologia transcendental. É tempo agora de apropriar-se de aspectos da teologia de Rahner sem sua filosofia transcendental? Deve-se dedicar mais estudo a essa questão. Quarta, a questão da relação entre a privação da graça e a imoralidade, ou seja, a perda da relação direta com Deus e a desordem pessoal e social do ser humano, deve ser um tópico a mais na investigação. Tal relação tem fundamento na bíblia, especialmente nos profetas e em Paulo, e parece tocar o coração do problema existencial do ser humano ‘em pecado’. Sem Deus, não se pode superar essa situação. Então, em qual sentido a relação com Deus realmente muda a situação da pessoa? Existe algo aqui que ajudaria a explicar a importância da fé em Deus para uma maior virtude e da mediação de Cristo e da Igreja para a salvação? Finalmente, a questão da concupiscência, especialmente em relação à ‘situação do pecado’ e à privação da graça, precisa de mais atenção. Rahner não dá espaço suficiente para isso. A percepção de Agostinho, entendida corretamente, pode esclarecer sobre a experiência do pecado e da importância em viver a vida cristã. A relação íntima com Cristo, os sacramentos, a oração, a comunidade cristã e as tradições possibilitam a superação da tendência para o mal. A ideia da concupiscência como adquirida, e não herdada, por causa da situação do pecado, poderia integrar a ‘transmissão social’ do pecado original com a ‘corrupção da natureza’, que faz parte do testemunho comum da tradição. Enfim, esta pesquisa respondeu a uma questão e se deparou com outras cinco. Pelo menos podemos terminar com uma nota positiva. A grande tarefa dos teólogos do século passado, neste caso Teilhard de Chardin e Rahner, foi a de enfrentar os problemas com a doutrina do pecado original, aos quais responderam com fidelidade e criatividade. Seus escritos deixaram para nós uma base sólida para nossas pesquisas, a fim de encontrar uma interpretação da fé Cristã para o mundo atual. 128 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Fontes Primárias RAHNER, Karl. A Antropologia: Problema Teológico. São Paulo: Editora Herder, 1968. _________. A Cristologia dentro de uma Concepção Evolutiva do Mundo. In: Teologia e Antropologia. São Paulo: Edições Paulinas, 1969, p. 85-134. _________. 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