a doutrina do pecado original à luz da teoria da evolução em

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Joseph Murray Hill, SJ
A DOUTRINA DO PECADO ORIGINAL À LUZ DA TEORIA
DA EVOLUÇÃO EM TEILHARD DE CHARDIN E KARL
RAHNER
Dissertação de Mestrado em Teologia
Orientador: Prof. Geraldo Luiz de Mori
BELO HORIZONTE
FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
2014
Joseph Murray Hill, SJ
A DOUTRINA DO PECADO ORIGINAL À LUZ DA TEORIA
DA EVOLUÇÃO EM PIERRE TEILHARD DE CHARDIN E
KARL RAHNER
Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia
da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Teologia.
Área de concentração: Teologia Sistemática
Orientador: Prof. Geraldo Luiz De Mori
BELO HORIZONTE
FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
2014
AGRADECIMENTO
Ao Prof. Dr. Geraldo de Mori pelo apoio, incentivo e sábia paciência ao longo da pesquisa.
À direção, professores e funcionários da FAJE, pela amizade, respeito e confiança em mim
depositados.
A Dr. Manuel Hurtado, João Renato Eidt, Karina Garcia Coleta e Cleiton Nery pela ajuda na
tradução dos textos.
A Ana Maria Castro, Rosanna Araujo Viveiros, Alex Pin, Robson Sosa, Alex Palmer e
Cleiton Nery, que leram os originais e corrigiram os erros linguísticos.
2
RESUMO
Esta dissertação tem como objeto de estudo a interpretação da doutrina do pecado
original à luz da teoria da evolução nos escritos de Teilhard de Chardin e Karl Rahner. A
doutrina do pecado original tem recebido várias críticas no século XX, especialmente em
relação a sua incoerência e incompatibilidade com a antropologia evolucionista. Esta pesquisa
dá um breve resumo da base bíblica da doutrina, seu desenvolvimento na tradição e sua
definição pelo Magistério, para identificar seus problemas principais em si mesmos e diante
da teoria da evolução. A partir dessas dificuldades, o estudo investiga a interpretação do
pecado original de Teilhard de Chardin e Karl Rahner, analizando como eles tentam resolver
os problemas e continuam fiéis ao testemunho bíblico e aos pontos centrais da doutrina
clássica. Atenção é dada ao desenvolvimento de uma antropologia que harmoniza os dados da
ciência com a fé cristã. Os dois autores dão contribuições importantes para a teologia cristã.
Contudo, o pensamento de Rahner fornece um melhor caminho para esclarecer o pecado
original dentro de uma antropologia evolucionista, especialmente sua concepção da situação
do pecado, que relaciona o primeiro pecado (peccatum originale originans) com o estado do
pecado original (peccatum originale originatum).
PALAVRAS-CHAVE
Teilhard de Chardin, Karl Rahner, pecado original, evolução, antropologia, Adão,
poligenismo, Cristo, graça, estado, concupiscência, transmissão, privação, responsabilidade
pessoal.
3
ABSTRACT
This dissertation has as its object of study the interpretation of original sin in the
writings of Teilhard de Chardin and Karl Rahner. The doctrine of original sin has received
various critiques in the 20th century, especially in relation to its incoherence and
incompatibility with an evolutionist anthropology. This study gives a brief overview of the
biblical foundation of the doctrine, as well as its development in the tradition and its
definition by the Magisterium, in order to identify its principal problems, in itself, and in
relation to the theory of evolution. On the basis of these difficulties, this study investigates the
explanations of original sin in Teilhard de Chardin and Karl Rahner, analyzing how they
attempt to overcome them and remain faithful to the biblical testimony and the central points
of the classic doctrine. Attention is paid to the development of an anthropology that
harmonizes the facts of science with the Christian faith. The two authors make important
contributions to Christian theology. However, the theology of Rahner offers a better way to
articulate original sin within an evolutionist anthropology, especially with respect to his
concept of the sinful situation, which connects the first sin (peccatum originale originans)
with the state of original sin (peccatum originale originatum).
KEY WORDS
Teilhard de Chardin, Karl Rahner, original sin, evolution, anthropology, Adam, polygenism,
Christ, grace, state, concupiscence, transmission, privation, personal responsibility.
4
ABREVIAÇÕES
ANET
PRITCHARD, Ancient near eastern texts.
AT
Antigo Testamento
CCC
Catecismo da Igreja católica.
CCEM
RAHNER, A cristologia dentro de uma concepção evolutiva do mundo.
CE
TEILHARD DE CHARDIN, Christologie et évolution.
CFF
RAHNER, Curso fundamental da fé.
CRG
TEILHARD DE CHARDIN, Chute, rédemption et géocentrie.
DH
DENZINGER, Compêndio dos símbolos.
FH
TEILHARD DE CHARDIN, Fenômeno humano.
TDOT
BOTTERWECK, Theological dictionary of the Old Testament.
NJBC
BROWN, New Jerome biblical commentary.
NT
Novo Testamento
RHPO
TEILHARD DE CHARDIN, Note sur quelques représentations historiques
possibles du péché original.
RPO
TEILHARD DE CHARDIN, Réflexions sur le péché original.
SA
RAHNER, The sin of Adam.
STh
AQUINO, Suma teológica.
5
SUMÁRIO
AGRADECIMENTO
2
RESUMO
3
ABSTRACT
4
ABREVIAÇÕES
5
INTRODUÇÃO
9
1 A DOUTRINA DO PECADO ORIGINAL: PASSADO E PRESENTE
15
1.1 As raízes do pecado original nas Escrituras
15
1.1.1 O pecado no Antigo Testamento
16
1.1.2 O pecado no Novo Testamento
18
1.1.3 Avaliação do testemunho bíblico
25
1.2 O desenvolvimento da doutrina na tradição
26
1.2.1 O pecado nos padres da Igreja antes e santo Agostinho
26
1.2.2 Santo Agostinho
28
1.2.3 A teologia ocidental depois de santo Agostinho
31
1.2.4 O Magistério da Igreja e o pecado original
33
1.2.5 A condição sine qua non da doutrina
35
1.2.6 As incoerências na doutrina do pecado original
36
1.3 A teoria da evolução e os problemas para a doutrina do pecado original
37
1.3.1 A teoria da evolução
37
1.3.2 Os problemas para a antropologia cristã
39
1.4 A status questionis na teologia contemporânea
41
1.4.1 Humani generis e o debate entre o monogenismo e o poligenismo
41
1.4.2 As reinterpretações da doutrina à luz da evolução
45
1.4.2.1 Teilhard de Chardin e a síntese científico-cristã
45
1.4.2.2 Os personalistas
47
1.4.2.3 Os situacionistas
48
1.5 Conclusão
50
6
2
TEILHARD DE CHARDIN SOBRE O PECADO ORIGINAL
53
2.1 Introdução
53
2.1.1 A interpretação das obras de Teilhard
2.2 A antropologia de Teilhard de Chardin
54
55
2.2.1 A origem dos homens dentro da evolução
55
2.2.2 O poligenismo
59
2.2.3 A noosfera
60
2.2.4 O ponto Ômega
62
2.2.5 A atividade de Deus dentro da evolução
62
2.3 Interpretação do pecado original de Teilhard de Chardin
65
2.3.1 A crítica da doutrina clássica do pecado original
65
2.3.2 O problema do mal no universo e o pecado original
66
2.3.3 O pecado original no ser humano
68
2.3.4 Justificativa: o argumento da redenção cósmica à universalidade do pecado
original em toda a criação material
2.4 Avaliação de Teilhard de Chardin
3
71
72
2.4.1 As respostas aos problemas da doutrina clássica à luz da evolução
72
2.4.2 Os problemas metafísicos e antropológicos
73
2.4.3 Os problemas com as afirmações teológicas
76
2.4.4 Os problemas com a interpretação da doutrina do pecado original
80
2.5 Conclusão
83
RAHNER SOBRE O PECADO ORIGINAL
85
3.1 Introdução
85
3.2 Antropologia de Rahner à luz da evolução
86
3.2.1 O método rahneriano
86
3.2.2 A evolução e a antropologia
89
3.2.3 Cristo e a evolução
91
3.2.4 Monogenismo e poligenismo
94
3.2.5 A relação de Rahner com Teilhard de Chardin
95
3.3 Interpretação do pecado original de Rahner
7
97
3.3.1 Peccatum originale originans: o pecado de Adão
97
3.3.1.1 Peccatum originale originatum: a situação do pecado e os pecados
pessoais
102
3.3.1.2 A liberdade e o ‘não’ a Deus
102
3.3.1.3 A co-determinação pela culpa alheia
104
3.3.1.4 O pecado original como a situação co-determinada pela culpa alheia
107
3.3.2 As consequências do pecado: a concupiscência e a morte
3.4 Avaliação de Rahner
109
114
3.4.1 As respostas aos problemas relacionados à doutrina do pecado original
114
3.4.2 As respostas aos problemas da doutrina em relação à evolução
116
3.4.3 O problema com a subjetividade transcendental e os pecados
118
3.4.4 O pecado original como a privação da graça e a presença universal da
autocomunicação de Deus
120
3.4.5 Rahner dá lugar suficiente para a ‘corrupção da natureza’?
3.5 Conclusão
123
124
CONCLUSÃO GERAL
126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
129
8
INTRODUÇÃO
Objetivo da pesquisa
É possível ter uma interpretação do pecado original coerente em si mesma e
compatível com a teoria da evolução? Esta pesquisa tentará responder a essa questão a partir
dos escritos de Pierre Teilhard de Chardin e Karl Rahner. O objetivo será analisar como eles
respondem aos problemas da doutrina do pecado original à luz da evolução. A análise tem
dois aspectos. O primeiro, como eles desenvolvem uma antropologia coerente com a evolução
e a fé cristã, e como eles explicam o pecado original dentro desta antropologia? O segundo
consiste em propor uma avaliação crítica das suas propostas à luz da teoria da evolução, da
doutrina do pecado original e das tensões inerentes à interpretação clássica. A tese é a
seguinte: em resposta à questão central, é realmente possível superar os problemas internos da
doutrina e harmonizá-la com uma antropologia evolucionista. Uma conclusão secundaria será:
Rahner oferece uma interpretação do pecado original mais sólida e consistente com a tradição
do que Teilhard.
Justificativa da escolha do tema
A doutrina do pecado original não é muito popular hoje no ambiente teológico. A
maioria dos teólogos duvidariam do valor de uma pesquisa sobre o assunto. Alguns preferem
que essa doutrina desvaneça. Essa situação representa uma grande mudança com relação aos
últimos 1500 anos da teologia ocidental, quando o pecado original foi aceito quase que
universalmente. Mas, nos séculos XIX e XX emergiu um questionamento da doutrina a partir
de três questões. Os novos métodos históricos da exegese bíblica levaram à questão: ela tem
fundamento bíblico? À luz da radicalização da doutrina pelo protestantismo e pelo
jansenismo, os intelectuais da época moderna, inclusive os teólogos, se perguntaram: ela é
consistente em si mesma? Finalmente, a adopção da teoria da evolução pela ciência e pela
sociedade em geral levou muitos a questionarem-se: ela contradiz à teoria da origem
evolucionista do ser humano? Essas três questões estimularam muito a discussão sobre
9
pecado original na teologia católica do século XX, até ao ponto em que as novas teologias
‘contextualizadas’ se tornaram dominantes e a doutrina foi esquecida. 1
Na Igreja hoje em dia os fieis dividem-se entre os que acreditam ainda numa
forma da doutrina clássica, com a história de Adão e Eva e a transmissão da corrupção a toda
a raça humana, e os que não acreditam na doutrina e reduzem o fenômeno do pecado aos
pecados pessoais e sociais. Eles percebem uma contradição entre a doutrina clássica e a
evolução e não encontram uma interpretação satisfatória na tradição ou na pregação da Igreja,
e às vezes perdem sua fé. 2 Além disso, o pecado original não ocupa um lugar significante na
pregação da Igreja. 3 Em geral, as pessoas não entendem a doutrina. Rahner articula essa
situação da teologia no mundo contemporâneo da seguinte forma, “os enunciados teológicos
não são formulados de tal forma que o homem possa compreender como é que eles visam
referir-se à compreensão de si mesmo que lhe dá sua própria experiência.”4 Como explicar a
fé cristã hoje para os fieis e para o homem pós-moderno?
Ao mesmo tempo, como Maldamé afirma, “falar do pecado original é tocar em
todos os pontos fundamentais da doutrina cristã.”5 Se Jesus é verdadeiramente o salvador da
humanidade (At 4,12), toda a humanidade necessita de salvação. Como se explica essa
verdade da fé sem recurso à doutrina do pecado original? Além disso, no século XX o ser
humano mostrou seu lado mais obscuro com tanta imoralidade, tanto em nível coletivo quanto
individual. Assim, podemos colocar a seguinte questão: existe uma possibilidade de uma nova
aceitação da pecaminosidade universal do ser humano e sua necessidade de ser salvo? É
possível que a doutrina, ao invés de ser uma vergonha para a Igreja Cristã, possa ser vista uma
interpretação iluminadora para o ser humano hoje? Ajudaria a explicar a fé cristã para nosso
mundo?
Portanto, a justificativa da escolha desse tema é entrar no debate sobre a
consistência da doutrina e sua compatibilidade com a evolução, para ver se é possível superar
esses problemas. Além disso, para tentar encontrar uma interpretação do pecado original
compreensível para as pessoas de hoje.
1
Numa nota pessoal, quando eu explico que minha pesquisa é sobre o pecado original, a maioria das pessoas
riem ou pelo menos zombam. Às vezes perguntam, ‘por que?’ e tentam explicar como de fato o pecado original
não existe.
2
Maldamé escreve sobre essa experiência em seu trabalho com universitários. MALDAMÉ, O pecado original,
p. 19.
3
RAHNER, Original sin, p. 329.
4
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 34.
5
MALDAMÉ, O pecado original, p. 15.
10
Justificativa da escolha de Teilhard de Chardin e Rahner
A escolha desses autores foi feita por quatro razões. Em primeiro lugar, os dois
levam a sério a ciência da evolução e a doutrina clássica do pecado original. Portanto, não
tentam dissolver o problema por meio da rejeição da ciência ou da doutrina. Em segundo
lugar, os dois desenvolvem uma metafísica e uma antropologia compatíveis com a teoria da
evolução, que eles usam como base para seus escritos sobre o pecado original. Esse
desenvolvimento é muito importante, porque muitos dos problemas e dos conflitos aparentes
existem no nível metafísico e antropológico, e podem contribuir a uma reflexão mais
profunda sobre o pecado original. A terceira razão, é que esses autores, em seus tempos,
possibilitaram um diálogo real da teologia católica com a teoria da evolução. Portanto, eles
são importantes do ponto de vista histórico. Finalmente, os dois têm sido muito influentes nos
debates sobre o assunto. Alguns cientistas e teólogos seguem Teilhard de Chardin em sua
interpretação do pecado original à luz da evolução, e outros seguem Rahner e os
situacionistas. É claro que os dois autores têm formado um quadro contemporâneo para a
investigação da doutrina. Então, há uma justificação de voltar a seus textos e ver se é possível
mudar o debate e encontrar uma nova síntese. Parece que Teilhard teve uma influência
importante no pensamento de Rahner, 6 então uma comparação entre os dois terá bastante
pontos de contato.
A metodologia
Teilhard de Chardin e Karl Rahner escreveram muitos livros e artigos. Esta
pesquisa se concentrará nos escritos diretamente ligados ao tema do pecado original, e focará
no pensamento maduro dos autores, encontrado em seus escritos posteriores. É necessário, no
entanto, considerar as perspectivas metafísicas e antropológicas dos dois autores como parte
da pesquisa. Para isso, estudaremos duas obras importantes, o Fenômeno humano, de Teilhard
de Chardin, e A cristologia dentro de uma concepção evolutiva do mundo, de Rahner.
Duas observações são importantes do ponto de vista do método. A primeira diz
respeito à explicação comum da teoria da evolução feita pelos cientistas. Elas serão assumidas
sem questionamento. Isso não exclui mais desenvolvimentos científicos na teoria da evolução
nem a possibilidade de mudanças nas atuais explicações dadas por ela. No que diz respeito à
6
Cf. EDWARDS, Teilhard’s vision, p. 233s.
11
investigação científica, esta pesquisa assumirá o que é o consenso comum do meio científico. 7
Em geral, os teólogos devem submeter-se aos cientistas nos assuntos científicos, da mesma
forma que os cientistas devem deixar aos teólogos a reflexão sobre Deus e a explicação da fé
cristã. Esta primeira observação não exclui, porém, a possibilidade de haver diferenças
filosóficas e metafísicas com relação aos cientistas, mas que não afetam a teoria da evolução.
Por exemplo, pode-se aceitar a teoria da evolução e toda a ciência sobre a origem e o
desenvolvimento dos humanos, mas não aceitar o materialismo e o reducionismo de alguns
cientistas, porque estas posições não são científicas, mas filosóficas.
A segunda observação diz respeito à doutrina do pecado original. Os textos
bíblicos, o decreto do Concílio de Trento sobre o pecado original e algumas declarações do
Magistério serão também assumidos como autoridades. A exposição feita no primeiro
capítulo será a referência para as interpretações justificáveis dos textos, que servem como um
critério de julgamento dos dois autores. Contudo, quando necessário, os dois autores
estudados serão confrontados com os textos bíblicos e as declarações do Magistério e a
interpretação clássica da doutrina.
Teilhard de Chardin e Rahner trabalham estes parâmetros do problema: a ciência
da evolução e a doutrina do pecado original. Então, os critérios do julgamento são: (1) é
compatível com a teoria da evolução (princípio científico)?; (2) é fiel aos textos bíblicos e às
declarações do Magistério sobre o pecado original (princípio doutrinal)?; (3) dá uma resposta
satisfatória aos problemas da interpretação clássica da doutrina (princípio teológicopastoral)?; (4) é coerente em si mesmo (princípio de coerência)? Esses critérios são
justificados não somente porque são requeridos para uma exposição clara dos conteúdos da
pesquisa, mas também porque são critérios que os autores aplicam em seus escritos, dão
forma aos textos, então não são extrínsecos.
As leituras de Teilhard e Rahner sobre o pecado original serão tomadas a partir
de uma perspectiva crítica. A pesquisa seguirá os textos detalhadamente de modo a dar
interpretação aos textos diretamente. Buscar-se-á dar a melhor interpretação dos autores, de
modo claro e consistente. Serão evitadas críticas fáceis e objeções baseadas em caricaturas de
seus pensamentos. Quando houver problemas, buscar-se-á salvar as proposições dos autores,
se for possível.
7
Por exemplo, esta pesquisa tomará o consenso científico sobre o poligenismo como um dado, e não investigará
as diferentes possibilidades dentro da ciência da evolução neste momento, por exemplo o adaptacionismo ou o
pluralismo, ou os argumentos da genética sobre a possibilidade da “Eva mitocondrial” e os argumentos sobre o
número mínimo de primatas necessários para a evolução dos humanos.
12
O plano da dissertação
As questões ligadas ao testemunho bíblico da doutrina e seu desenvolvimento na
tradição não podem ser desconhecidas. Então, o primeiro capítulo fará um percurso pelo
testemunho bíblico e pela tradição, para articular o que é justificável do ponto de vista bíblico
e dogmático, o que é realmente central para a fé cristã e o que são os problemas inerentes na
doutrina clássica. Além disso, o primeiro capítulo também dará uma análise dos problemas
criados pela teoria da evolução e um breve status questionis das respostas dos teólogos do
século XX, colocando Teilhard e Rahner, e suas posições históricas, no conjunto deste debate.
Os resultados dessa investigação, especialmente o resumo dos pontos centrais da doutrina,
suas dificuldades em si mesmas e seus problemas em relação à evolução, funcionarão como
os princípios de julgamento para a avaliação da teologia de nossos autores. O segundo
capítulo investigará a interpretação do pecado original à luz da evolução em Teilhard de
Chardin, dando uma exposição e depois uma avaliação de como ele supera os problemas. O
terceiro capítulo estudará a perspectiva de Rahner em diálogo com Teilhard, mostrando onde
Rahner desenvolve Teilhard e onde toma caminhos diferentes. Esse capítulo descreverá
também as contribuições particulares do teólogo alemão. Além disso, avaliará como ele evita
os problemas de Teilhard, resolve as dificuldades da doutrina clássica e a harmoniza com a
evolução. Explicitará, ainda, as limitações da interpretação de Rahner, especialmente em
relação a sua subjetividade transcendental. A nossa conclusão afirmará a tese desta pesquisa:
é realmente possível superar os problemas internos da doutrina e harmonizá-la com uma
antropologia evolucionista. A ideia rahneriana da influência sócio-cultural do pecado, que cria
uma ‘situação’ permanente para toda a humanidade através da historia, supera o problema da
transmissão e da universalidade do primeiro pecado e abre, portanto, espaço para a aceitar o
poligenismo sem negar a doutrina. Esta pesquisa apontará para novos desenvolvimentos
possíveis da mesma, especialmente sobre os detalhes da ‘situação’ do pecado, sua relação
com a privação da graça e sua relação com a concupiscência.8
8
Os textos em inglês foram traduzidos com a ajuda de João Renato Eidt e Karina Garcia Coleta, os textos em
francês por Cleiton Nery e Manuel Hurtado.
13
14
1 A DOUTRINA DO PECADO ORIGINAL: PASSADO E PRESENTE
A doutrina do pecado original recebeu muitas críticas nos séculos XIX e XX.
Teólogos e pensadores levantaram várias questões sobre ela: tem fundamento bíblico? É
consistente em si mesma? É contraditória com a ciência da evolução? Eles atacaram sua base
bíblica, sua consistência interna e sua incompatibilidade com a teoria da evolução. Os
teólogos do século XX, incluindo Teilhard de Chardin e Karl Rahner, tentaram responder a
essas questões. Este capítulo resumirá esses debates a fim de identificar os problemas mais
urgentes com relação ao pecado original. Seus objetivos são: 1) defender o fundamento
bíblico da doutrina; 2) explicar o desenvolvimento e a fraqueza da doutrina clássica do pecado
original; 3) explicar as dificuldades que surgem com relação a essa doutrina à luz da
evolução; 4) dar um breve status questionis dessa temática na teologia contemporânea.
O capítulo está dividido em quatro partes. A primeira dará uma breve exposição
do testemunho bíblico sobre o pecado e as bases bíblicas da doutrina aqui estudada. A
segunda explicará o desenvolvimento da doutrina na Tradição e no Magistério da Igreja,
isolando o que é realmente central à mesma e destacando seus problemas. A terceira analisará
os conflitos entre a teoria da evolução e a doutrina clássica do pecado original. A quarta dará
um breve status questionis sobre esta temática na teologia do século XX, que colocará
Teilhard de Chardin e Karl Rahner em relação às diversas respostas aos problemas levantados
pelo o pecado original no confronto com a teoria da evolução.
1.1 As raízes do pecado original nas Escrituras
Os novos métodos exegéticos introduzidos nos séculos XIX e XX questionaram
as interpretações clássicas que sustentavam a doutrina do pecado original. As análises
históricas e literárias dos textos bíblicos colocaram em dúvida a historicidade do relato de
Adão e Eva em Gn 2-3 e a interpretação doutrinal de Rm 5,12-21, e também debilitaram a
tradução in quo todos pecaram, de Rm 5,12, determinante na definição da doutrina. Isso
provocou um grande debate sobre o sentido desses textos e as implicações dos mesmos para o
pecado original. 1 Este capítulo tratará brevemente esses tópicos, e focará na questão da base
bíblica da doutrina, se é justificável ver nos textos uma fundação para uma teologia do pecado
original.
1
WIEDENHOFER, Principales formas, p. 528-29.
15
1.1.1 O pecado no Antigo Testamento
As culturas antigas da Mesopotâmia testemunham uma crença comum em torno
da universalidade do mal no ser humano.2 Por exemplo, um texto da Suméria do segundo
milênio AC diz que não existe uma pessoa sem pecado.3 Uma encantação Acadiana enfatiza
explicitamente que cada ser humano é pecador.4 Os autores bíblicos refletem a mesma ideia:
“Pode o homem ser justo diante de Deus? Um mortal ser puro diante do Criador?” (Jó 4,17);
“Quem pode dizer: ‘Tenho consciência pura, estou limpo de meu pecado? ’” (Pr 20,9); “Não
há quem não peque” (1Rs 8,46); “Não cites perante o tribunal teu servo, porque nenhum ser
vivo é justo diante de ti!” (Sl 143,2).
O Antigo Testamento começa a história do ser humano com uma série de mitos
que explicam a origem e o desenvolvimento do mal. O homem e a mulher começam num
estado de harmonia com Deus, com a natureza e entre si mesmos (Gn 2,5-25). Ao comer o
fruto proibido, esta harmonia fica destruída (Gn 3,7-24). A história primordial continua com
mais transgressões dos mandamentos de Deus e o crescimento da desordem. Primeiro, temos
ciúme, fratricida (Gn 4,1-16), depois acontece a vingança (Gn 4,23-24), seguida de relações
sexuais perversas entre seres celestiais e mulheres (Gn 6,1-4), a violência endêmica (Gn 6,1112), e, no final, o orgulho de construir uma torre para alcançar o céu (Gn 11,1-10).5 Com esse
fundo, a história de Abraão e do povo da promessa continua esta trajetória, mostrando a luta
entre a vontade de Deus e o coração desobediente do ser humano.
O conceito do pecado no AT não foca primeiramente a falta moral, mas a relação
entre Deus e o homem. Embora uma das palavras para o pecado em hebraico, chatah/hata,
signifique ‘errar o alvo’, a mesma é usada para dizer ‘pecar’, especificamente no sentido de
falhar diante de Deus.6 As duas outras palavras para pecado mostram claramente a concepção
relacional. Em hebraico, passa/pesa, significa ‘culpa’, ‘ofensa’ contra alguém, 7 e, o mais
2
Cf. COVER, Sin, sinners, p. 32-33.
“Never has a sinless child been born to its mother; a sinless workman has not existed from of old.” ANET, p.
590.
4
“Who is there who has not sinned against his god? Who that has kept the commandment for ever? All humans
who exist are sinful.” Citado em: COVER, Sin, sinners, p. 32.
5
Para uma interpretação da história do Javista a partir das categorias psicológicas, especialmente de angústia,
veja: DREWERMANN, Strukturen des bösen, cap. 1-2.
6
TDOT IV, p. 309ff.
7
TDOT XII, p. 133ff.
3
16
importante, ‘awon, com significado profundamente religioso, tem um campo semântico
amplo, sendo utilizado para designar ‘transgressão’, pecado’, ‘culpa’, ‘punição’.8
Os textos paradigmáticos do AT falam explicitamente desse sentido relacional do
pecado. Adão e Eva são desobedientes ao mandamento de Deus (Gn 3,8). O salmista lamenta,
“Contra ti, só contra ti pequei, pratiquei o mal diante de teus olhos” (Sl 51,6). Davi cometeu
adultério e enviou Urias para a morte, mas confessa, “Pequei contra o Senhor,” (2Sm 12,13) e
não contra um homem! Os profetas enfatizam uma infração da lei da aliança como uma
ofensa contra Deus (cf. Jr 11,6-10; Ez 16; Os 8,1-4). Para eles, a aliança é como um
casamento (Is 5; 50,1; 54,6; 61,10; 62,4s; Jr 2,2; Os 1-3). Então a infidelidade à aliança,
especialmente expressa na idolatria, é como adultério e prostituição (Jr 3,1-4, 20; Ez.16,8s.).
De fato, o pecado principal do AT é a idolatria (cf. Dt 30,17; Ez 6,2-14; 22,3-5). Lyonnet dá
uma boa síntese do testemunho do AT em sua definição do pecado: “[...] o pecado é
considerado essencialmente uma violação do mandamento de Deus, por meio dele o homem
se afasta de Deus, a única fonte da vida.”9 O fato de Deus ser ofendido faz com que somente
Ele possa tirar o pecado do ser humano (cf. Sl 51,7.9-10).10
As consequências do pecado são várias e sempre destrutivas. A ruptura da relação
com Deus é o primeiro efeito fundamental do pecado. Adão e Eva são expulsos do jardim e da
presença do Senhor (Gn 3,17-24). O fato de Deus ser a fonte da vida, faz com que sair de sua
presença cause a morte (Gn 2,17; 3,23-24; Sb 2,21-24).11 A consequência do pecado sempre é
o mal, “O mal persegue os pecadores” (Pr 13,21). Muitas vezes o pecado (‘awon) refere-se a
uma quase substância que afeta as pessoas e os lugares (cf. Sl 49,6).12 Os profetas veem o
pecado (chatta’th) como uma força que determina o curso da história negativamente, e leva à
destruição.13 A desobediência à aliança produz alienação de Deus (cf. Jr 14,10-13), que traz
outros males e mais pecado. A infidelidade a Deus causa a injustiça entre os homens (Is 1,21).
O pecado mesmo pune, “Teu crime te castigue, teu próprio voltar atrás te corrija. Reconhece e
vê como é ruim e amargo teres abandonado o Senhor, teu Deus” (Jr 2,19). Também, dentro da
aliança Deus pune o povo de Israel com a perda das bênçãos e a destruição (cf. Is 9,8-17; Jr
8
TDOT X, p. 546ff.
“[…] sin is considered to be essentially a violation of God’s commandment, whereby man turns away from
God, the sole source of life.” LYONNET, Sin, redemption, p. 12.
10
Ibid., p. 23.
11
Cover enfatiza isso, “Sin ruptured the relationship between the creator and the creature, and set in motion a
series of consequences which, if unchecked, would eventuate in the ‘death’ of the individual sinner.” COVER,
Sin, sinners, p. 38.
12
TDOT X, p. 551.
13
TDOT IV, p. 314.
9
17
25,8-14; Am 2,4-8). Jeremias lamenta a corrupção do coração do ser humano e grita por uma
cura (Jr 17,9).
Em relação à origem e à transmissão do pecado, o AT fala pouco. A história da
transgressão de Adão e Eva não tem um grande significado para os Israelitas. Ez 28,12-19
explica os pecados e a punição de Tiro como uma repetição da expulsão do Éden, mas não
menciona Adão. Sb 2,23-24 faz uma alusão a Gn 3, quando declara que Deus criou o homem
para a incorruptibilidade, mas a morte entrou no mundo com a influência do diabo (cf. Sb
1,13-16). Estes textos não falam explicitamente do primeiro pecado em sua relação com os
pecados subsequentes. O salmista declara que ele foi concebido na iniquidade (Sl 51,5), mas
não renega sua responsabilidade com relação às suas transgressões (Sl 51,3-4). A literatura
hebraica preserva a ideia de que os filhos herdam a punição dos pecados de seus pais (Ex
20,4-5; 34, 6-7; Nm 14,18; Dt 5, 9-10; Jr 32,18; cf. 1Sm 15,2-3; 1Rs 21,28-29). Esta ideia tem
muito a ver com o conceito de personalidade corporativa e os atos coletivos do povo, que são
centrais na teologia pré-exílica (Dt 30,15-20; Js 6,1-2; Os 4,1-19; Am 2,4-8).14 No período
exílico, o questionamento sobre a injustiça dessa concepção leva a uma compreensão mais
individual do pecado e da punição (cf. Jr 31,29; Lm 5,7; Ez 18,2; Sl 109,14-15). Ao mesmo
tempo, os profetas exílicos afirmam também que os filhos imitam os pecados de seus pais (Is
65,6-7; Jr 3,25; 14,20; Ez 2,3). Isso faz com que exista uma continuação dos mesmos pecados
através das gerações.15 A afirmação mais completa, que reflete bem o pensamento bíblico, é,
“Pecamos como nossos pais, cometemos a iniquidade, praticamos o mal” (Sl 106,6). Esses
elementos formam a base do desenvolvimento da doutrina do pecado original, mas não existe
uma afirmação explícita da consequência do primeiro pecado nos descendentes.16
1.1.2 O pecado no Novo Testamento
O NT segue os pontos básicos da teologia do AT sobre o pecado. Como no AT,
no NT ‘pecado’ é uma atividade ou posição contra Deus, que inclui os atos imorais contra os
14
COVER, Sin, sinners, p. 36.
Sobre a solidariedade dos pais e dos filhos no pecado, veja: RUIZ DE LA PEÑA, El don de Dios, p. 55-56.
16
Dubarle conclui, “L’essentiel est que les auteurs bibliques ont reconnu une influence indépendante de la
volonté libre de l’homme s’exerçant sur sa condition religieuse. Il y a là sans doute un des éléments les moins
élaborés intellectuellement des enseignements bibliques sur la solidarité de l’homme avec son milieu, soit pour
le bien, soit pour le mal. Mais il y a là toutefois un apport à la doctrine du péché originel, dans la mesure où il est
supposé que des tares religieuses peuvent affecter un sujet sans acte peccamineux de sa part, ni même parfois
décision libre…..Ainsi l’Ancien Testament, pris dans son ensemble, discerne différents plans sur lesquels peut
s’établir ou se rompre le rapport avec Dieu. Et il admet que, au plan inférieur de la pureté rituelle, des causes
extérieres, indépendantes d’un mouvement personnel du cœur, peuvent entraîner une séparation d’avec Dieu.”
DUBARLE, Le péché originel dans l’Écriture, p. 38.
15
18
seres humanos. 17 Vários termos são usados para exprimir esta realidade, a grande maioria
vêm da LXX: ‘αµαρτια (hamartia – pecado), παραπτωµα (paraptoma/parabasis –
trespassar, transgressão), παρακουω (parakouw – desobedecer), αδικια (adikia – injustiça,
usualmente contra homens), ασεβεια (asebeia – impiedade, contra Deus), πονηρος (poneros
– maldade).18 Concordando com a tradição bíblica e judaica, os autores do NT acreditam que
todas as pessoas ‘pecam’ (por exemplo: Mt 6,12; Mc 1,4.15; Lc 11,4; Jo 1,29; At 2,28; Rm
3,23; Hb 2,17-18; 1Jo 1,8-10; Ap 1,5). Em Mateus, ’ανοµια (anomia – sem lei, injustiça)
corresponde mais ou menos ao Hebreu ‘awon, o estado contra Deus.19 Em João, hamartia não
significa um pecado, mas um estado, ou um poder, ligado ao ‘mundo’, que coloca o homem
fora de Deus.20 Como no AT, somente Deus pode perdoar o pecado. No NT, Jesus, como
instrumento de Deus, vem para salvar o mundo dos pecados (Mt 1,21; Lc 1,77; Jo 1,29; At
4,12; Rm 3,24-26; Hb 9,26-28).
A missão de Jesus está ligada especificamente com o problema do pecado no
mundo. Ele veio não para os justos mas para os pecadores (Mt 9,13). Ele veio para salvar os
perdidos (Lc 19,10). Por isso, ele tem a autoridade de perdoar os pecados (Mc 2,5-12). Uma
caraterística de seus seguidores é o perdão (Mt 18,21-22). Mas Jesus ensina que o pecado tem
que ser ultrapassado, não somente nos atos externos, mas também no coração (cf. Mt 23,2528), porque é no coração que o mal tem sua origem (Mt 15,10-20; Mc 7,14-23).21 Por isso, ele
prega o arrependimento (Mc 1,15), e aquele que se arrepender será salvo (cf. Lc 15). Ele
ensina um novo modo de agir com os outros (Mt 5,21-48), baseado numa pureza de coração
(Mt 5,8), que supera tudo o que causa o pecado (Mt 18,7-9).
De onde vem essa desordem no coração? Os Evangelhos não tratam esta questão,
mas existem alusões à ideia da queda.22 Jesus fala sobre a unidade original do homem e da
mulher no princípio, antes da dureza do coração (Mt 19,8; Mc 6-8). Em João, Jesus diz, “Vós
tendes como pai o diabo. Desde o princípio ele foi homicida e não se manteve na verdade” (Jo
8,44). Então, uma pessoa tem que nascer de novo no Espírito Santo para receber a vida eterna
(Jo 3,5-6). Mas, Jesus não concorda com a ideia de que o sofrimento físico seja sempre a
consequência do pecado (Jo 9,2-3; cf. Jó 31,3; Tb 3,3).
17
COVER, Sin, sinners, p. 40.
Ibid., p. 40-41.
19
LYONNET, Sin, redemption, p. 33.
20
Ibid., p. 39.
21
Dubarle vê na perícope sobre a impureza da comida uma noção do pecado original em embrião: “La parole sur
les aliments qui ne souillent pas doit donc aider à circonscrire la notion du péché originel qu’il est legitime de
découvrir insinuée par l’Evangile.” DUBARLE, Le péché originel dans l’Écriture, p. 117.
22
Ibid., p. 117.
18
19
No NT São Paulo possui a teologia do pecado mais desenvolvida. Para ele,
seguindo a tradição, o pecado é uma ofensa contra Deus.23 Segundo a carta aos Romanos, que
representa seu pensamento sistemático, Deus criou os seres humanos sem pecado (Rm 1,2021), mas eles trocaram a glória de Deus por imagens idolátricas, tornaram-se ignorantes e
perdidos (Rm 1,22-25). Por isso, “Deus os entregou às paixões vergonhosas [...], aos
sentimentos depravados, que os levam a cometer torpezas, a encherem-se de toda injustiça”
(Rm 1,26.28-29). Para Paulo, asebeia leva a adikia, ou seja, o esquecimento de Deus causa a
desordem nas relações humanas (Rm 1,26-32). A Lei não ajuda nessa situação porque todos
pecam (Rm 3,23; cf. 3,10-12), e por isso a Lei funciona para o reconhecimento do pecado
(Rm 3,20). O pecado começa como um ato e depois se torna um estado, um estar fora de
Deus, e finalmente passa a ser um poder acima do ser humano (Rm 3,9). Por isso, os seres
humanos necessitam de um salvador, Jesus. A mudança da escravidão do pecado à vida da
graça, é um tema que Paulo trata em Rm 6-7. 9.
Pode-se resumir as consequências do pecado em Paulo com duas palavras: σαρξ
(sarx) e a θανατος (thanatos). Para Paulo, sarx não significa a corporalidade, 24 mas a
fraqueza e a natureza perecível do ser humano,25 que, no nível moral, torna-se fonte de cobiça
e desordem, mostrada nos ‘atos da sarx’ (Gl 5,19-21). Estes atos da sarx incluem os pecados
do espírito, como a idolatria e o ciúme (Gl 5,20). Tais atos então não podem ser reduzidos à
esfera corporal, mas envolvem todo o ser humano. 26 Eles significam uma atitude, uma
disposição destrutiva diante do mundo e das outras pessoas.27 Paulo diz, “quando estávamos
na carne (sarx), as paixões do pecado, excitadas pela Lei, agiam em nossos membros e davam
frutos de morte” (Rm 7, 5). Aqui se vê que os pecados levam para a morte. O telos interno do
pecado é a morte.28 Paulo faz muitas vezes, em Romanos, a conexão entre o pecado e a morte
(5,12-21; 6,16.21; 7,5. 10. 23s). Além disso, como o ser humano é corporal e espiritual, a
morte aqui não somente tem a ver com o nível biológico, mas também com o nível
espiritual. 29
23
MORRIS, Sin, guilt, p. 877.
WRIGHT, Paul, p. 35.
25
LYONNET, Sin, redemption, p. 54.
26
MORRIS, Sin, guilt, p. 879.
27
DUNN, Theology of Paul, p. 120.
28
Ibid., p. 125; LYONNET, Sin, redemption, p. 55.
29
FITZMYER, Romans, p. 412. Acerca da morte em Paulo, Dubarle esclarece da seguinte forma: “Car ce que
Paul nomme la « mort », la misère humaine, religieuse, morale, physique, dépasse de beaucoup le décès avec les
circonstances douloureuses et tragiques dont il est grevé.” DUBARLE, Le péché originel dans l’Écriture, p. 156.
Existe uma congruência entre Paulo e o que o livro do Apocalipse chama ‘a segunda morte’ (Ap 2, 11; 20, 6. 14;
22, 8).
24
20
O texto fundamental para falar sobre a doutrina do pecado original é Rm 5,12-21.
Ainda hoje sua interpretação é muito controversa. Os exegetas continuam a discutir seu
propósito e sentido. Eles concordam que há uma alusão a Gn 3 e Sb 2,23-24,30 que visa à obra
de Cristo e não à de Adão. 31 O texto não menciona a natureza do pecado de Adão ou
explicitamente a ‘transmissão’ do pecado à humanidade. 32 O argumento toma a forma de a
minori ad maius: todos os efeitos da transgressão de Adão são superados na obediência, livre
dom, graça, justiça e vida de Jesus.33 Bultmann vê no fundo desse texto a tradição gnóstica do
homem original. Então, Adão e Cristo são tipos de homens diferentes, com origens diferentes,
dentro do esquema cosmológico e não da história da salvação.34 Käsemann rejeita essa base
para o texto35 e argumenta em favor de uma referência à ideia apocalíptica dos dois aeons,
presente na literatura Judaica, e da salvação interpretada em termos messiânicos.36 Então o
foco é cristológico e não antropológico, numa visão completamente escatológica. 37 O
contraste entre a primeira era, em Adão, e a era de Cristo, é colocado no nível históricosalvífico. Jesus inverteu os efeitos de Adão e se tornou a cabeça duma nova humanidade.
Fitzmyer e Wright continuam nessa linha, com algumas variações. 38 Grelot percebe a lógica
apocalíptica também e enfatiza a solidariedade universal dos homens em Adão. Através disso,
o domínio do pecado e da morte está acima do ser humano.39 As dificuldades do argumento
em Rm 5,12-21 e em Rm 1,18-32 levam Sanders a concluir que Paulo começou com o fato,
revelado em sua vida, que Jesus era o Salvador de todos, e construiu esses argumentos para
afirmar a universalidade do pecado a fim de justificar a necessidade de um Salvador
universal. Os argumentos não são satisfatórios do ponto de vista lógico, porque a conclusão é
decidida antes do raciocínio.40 Ele então chega à mesma conclusão de Käsemann do outro
lado, ou seja, para Paulo a cristologia informa a antropologia.
A questão do estado histórico de Adão em Paulo é importante para a doutrina do
pecado original. Alguns teólogos preferem interpretar o Adão do texto paulino em termos de
30
DUNN, Theology of Paul, p. 95.
CRANFIELD, Critical commentary, p. 269, 281.
32
Cf. FITMYER, Romans, p. 407; KÄSEMANN, Commentary on Romans, p. 147; KREITZER, Adam and
Christ, p. 13;
33
KREITZER, Adam and Christ, p. 13.
34
BULTMANN, Adam and Christ, p. 143-65.
35
Cranfield também concorda nesta rejeição. CRANFIELD, Critical commentary, p. 281 nota 2.
36
KÄSEMANN, Commentary on Romans, p. 141-42.
37
Ibid., p. 143.
38
FITZMYER, Romans, p. 406-07; WRIGHT, Paul, p. 31.
39
GRELOT, Péché originel et rédemption, p. 121-23.
40
SANDERS, Paul and palestinian Judaism, p. 475, 499-500.
31
21
uma personalidade corporativa, comum na teologia Judaica. 41 A referência no v. 14, do ‘tipo’,
dá mais força a essa interpretação. Mas, como Käsemann explica, a tipologia pressupõe a
história, e o contexto escatológico demanda mais do que um personagem mítico.42 Rejeitar a
historicidade de Adão em Paulo é quebrar o estrito paralelo entre o “um homem” (Rm 5,15.
16. 17. 18. 19) e o “um homem Jesus Cristo” (Rm 5,17). Por isso, Fitzmyer afirma que Paulo
trata de Adão como uma pessoa histórica. 43 Isto não significa que os cristãos estejam,
impreterivelmente, comprometidos com uma história que remonte à origem da humanidade
ancorada na imagem de um só casal, como será discutido abaixo.
A questão surge do sentido da afirmação segundo a qual o pecado de Adão causa
a morte. Parece claro que Paulo acredita numa relação causal entre o primeiro pecado e a
morte de todos (Rm 5,12. 15. 17). Com esta afirmação ele segue o pensamento Judaico. Na
literatura sapiencial, “Foi pela mulher que o pecado começou, e é por causa dela que todos
nós morremos.” (Eclo 25,24); “A morte, porém, por inveja do diabo entrou no mundo, e a
experimentarão os que a ele pertencem” (Sb 2,24). Na literatura Apocalíptica, “Quando Adão
pecou, a morte foi decretada contra os que nasceram dele” (2Ap.Br. 23,4);44 “Ele [Adão] o
transgressor [do mandamento de Gn 2,17], e imediatamente vós apontastes a morte para ele e
seus descendentes” (4Ez 3,7); 45 “O primeiro Adão, sobrecarregado com um coração
malicioso, transgrediu (o mandamento) e foi superado, como também todos aqueles que
descendem dele. Assim a doença se tornou permanente” (4Ez 3,21). 46 Além disso, como
muitos explicam, a morte é vista como um poder que entrou no mundo com Adão (cf. 1Cor
15,21). A morte, é como um efeito do pecado, não é somente física, mas profundamente
espiritual. 47
A tradução de Rm 5,12, que é o versículo central do argumento de Santo
Agostinho, ainda é problemática. Fitzmyer, em seu comentário, dá nada menos de onze
possibilidades de tradução de ’εφ ω (eph’hô) v. 12d.48 A questão é, a que se refere a cláusula
relativa hô (ω), e como cabe com eph (’εφ)? A ambiguidade da linguagem muda o foco da
41
KREITZER, Adam and Christ, p. 12.
KÄSEMANN, Commentary on Romans, p. 142.
43
FITZMYER, Romans, p. 407-08.
44
“When Adam sinned, death was decreed against those who were to be born (from him).” Citado em:
FITZMYER, Romans, p. 413.
45
“He transgressed it, and immediately you appointed death for him and his descendants.” Citado em:
FITZMYER, Romans, p. 413.
46
“The first Adam, burdened with a wicked heart, transgressed (the command) and was overcome, as were also
all who were descended from him. So the disease became permanent.” Citado em: FITZMYER, Romans, p. 413.
47
Cf. Ibid., p. 412.
48
Ibid., p. 413-16.
42
22
interpretação que depende das preferências teológicas. Agostinho discute o sentido do texto
em De peccatorum meritis et remissione e Contra duas epistolas Pelagianorum, e decide que
in quo (da tradução latina) refere-se a anthropou (Adão), ou seja, “em quem todos
pecaram.” 49 Embora essa interpretação seja possível conforme o Grego, 50 a maioria dos
exegetas contemporâneos rejeitam o in quo de Agostinho por várias razões51 e traduzem o v.
12d como διοτι (dioti), “porque todos pecaram”. 52 Essa interpretação cria um paralelo entre o
v. 12ab e o v. 12bc, em que Adão pecou e a morte entrou no mundo, todos pecaram e então a
morte espalhou-se a todos. Fitzmyer argumenta que esta interpretação não tem nenhum
paralelo na literatura Grega e os paralelos Paulinos são dúbios, e parece que contradizem os v.
12abc e o v. 15, que afirmam que o pecado e a morte entraram no mundo com Adão.53 Então,
tal interpretação perde o paralelo entre Adão e Cristo, que é central em 5,12-21.54 Bultmann
coloca o antecedente na morte (thanatos). Então diante da morte todos pecaram. Isso não cabe
bem no pensamento de Paulo. O pecado causa a morte, não a morte o pecado.55 Em geral,
Käsemann critica a tendência de colocar uma divisão entre o v. 12abc e o v.12d e de ver uma
transição do nível cósmico ao nível individual. Para ele, a antropologia é aqui uma projeção
da cosmologia, dentro do esquema apocalíptico. Paulo está falando sobre a manifestação das
forças introduzidas com Adão.56
Se existe um consenso entre alguns teólogos sobre o v. 12, o mesmo se aglutina
em torno da ligação entre o pecado de Adão e os pecados de todos. Muitos autores percebem
uma influência entre o pecado de Adão e a morte no v. 12abc e os pecados pessoais de todos
49
AUGUSTINE, On merit, I, 8; I, 10-11; AUGUSTINE, Against two letters, IV, 7.
Cf. CRANFIELD, Critical commentary, p. 274-76; FITZMYER, Romans, p. 413.
51
Por exemplo, Cranfield pensa que enos anthropou está distante demais de hô para ser o antecedente natural
(Ibid., p. 276); Fitzmyer concorda e afirma que se Paulo quisesse isso escreveria en hô (Romans, p. 414);
Käsemann rejeita in quo porque Paulo não pensa sobre a herança do pecado e da morte (Commentary on
Romans, p. 147-48).
52
CRANFIELD, Critical commentary, p. 269; DUNN, Theology of Paul, p. 95; DUBARLE, Le péché originel
dans l’Écriture, p. 128; cf. KÄSEMANN, Commentary on Romans, p. 148.
53
FITZMYER, Romans, p. 415-16.
54
Cranfield percebe esta crítica e responde que a passagem enfatiza a diferença entre Adão e Cristo e não
somente a similaridade, “therefore we have no right to insist that, because he saw the righteousness which we
have through Christ to be quite independent of our works, Paul must necessarily have held that the guilt which is
ours through Adam must also be quite independent of our actual sinning.” Ibid., p. 278.
55
Cf. FITZMYER, Romans, p. 414. É interessante que Santo Agostinho faz a mesma critica dessa interpretação
contra os pelagianos, que tentam superar a dificuldade desse texto para sua teologia por um argumento que
coloca o thanatos como o antecedente do quo (ω). AUGUSTINE, Against two letters, IV, 7. Parece que no
mundo da exegese bíblica o axioma de Coélet pode ser aplicado, “nada há de novo debaixo do sol.” (Ec 1,9).
56
KÄSEMANN, Commentary on Romans, p. 149-50. Grelot pensa nesta direção, focando na ideia do domínio
do Pecado e da Morte na vida humana. Mas, contra Käsemann e outros, ele não dá lugar à responsabilidade
pessoal ao pecado de Adão neste movimento. Para ele, o ‘pecado original’ é somente a condição existencial do
ser humano, privilegiando Rm 7 sobre o cap. 5. GRELOT, Péché originel et rédemption, p. 123, 125-26, 128.
50
23
no v. 12d, e traduzem eph’hô para refletir esta relação. 57 Fitzmyer prefere a tradução
consecutiva, ‘οστι (hoste): “com o resultado de que todos pecaram”. 58 Ele explica, “Paulo
está apresentando um resultado, a sequela à influência má de Adão para a humanidade por
causa da ratificação de seu pecado nos pecados de todos os indivíduos. Ele concederia assim
aos pecados individuais uma causalidade secundária ou uma responsabilidade pessoal para a
morte.” 59 Outra tradução, o valor elíptico causal de eph’ho em referência a Adão, nos
apresenta o mesmo sentido: “devido ao qual todos pecaram.” Todos são responsáveis por seus
pecados, mas também tem uma influência quase-causal (a força desta causalidade e a maneira
de entendê-la, varia entre autores) do pecado de Adão. 60 Esta interpretação harmoniza-se
melhor com a ideia de Paulo sobre o pecado como um poder (Rm 6,16-17; 7,13-14) e o
sentido escatológico da passagem. 61 Também tem um paralelo na literatura apocalíptica.
2Ap.Br. 54,15 diz, “Embora Adão tenha pecado primeiro e trazido a morte a todos os seres
humanos, mesmo assim cada um dos que dele nasceu, preparou sua própria alma para o futuro
tormento ou escolheu para si mesmo a glória que terá.” 62 À luz da visão escatológica,
Käsemann diz:
A inegável individualização do v. 12d dá profundidade ao que é dito sobre o
escopo do desastre [em v. 12abc], como reflexão ulterior no crente individual
dá profundidade existencial ao evento universal da salvação. A preocupação
de Paulo une o que para nós parece ser uma contradição lógica e o que de fato
se torna antitético no judaísmo: ninguém começa sua própria história e
ninguém pode dela ser exonerado. Cada um em sua própria conduta confirma
o fato de que encontra a si mesmo no mundo marcado pelo pecado e pela
morte e que é sujeito a uma pesada maldição [...] Ele [Paulo] não vê a pessoa
57
Flick e Alszeghy, Ladaria e Martelet aceitam esta influência como um ponto básico do texto. FLICK–
ALSZEGHY, El Hombre bajo, p. 65; LADARIA, Teologia del pecado, p. 74; MARTELET, Libre réponse, p.
68-69.
58
FITZMYER, Romans, p. 405.
59
“Paul is expressing a result, the sequel to Adam’s baleful influence on humanity by the ratification of his sin
in the sins of all individuals. He would thus be conceding to individual human sins a secondary causality or
personal responsability for death.” Ibid., p. 416.
60
KERTELGE, El pecado de Adán, p. 516. Os padres Gregos: Origenes (cf. RONDET, Le péché originel, p.
95), João Damasceno, Teofilato e João Crisóstomo preferem esta interpretação. Cf. CRANFIELD, Critical
commentary, p. 277. Dubarle também segue essa linha em sua própria maneira. DUBARLE, Le péché originel
dans l’Écriture, p. 133-34.
61
Käsemann enfatiza o sentido histórico-cósmico de Paulo aqui, a ideia é que todos vivem sob o reino do pecado
e da morte, a época escatológica antes de Cristo, e a responsabilidade pessoal é secundária dentro deste contexto
(Commentary on Romans, p. 149-50). Ele vê uma ambivalência entre destino e culpa individual no v. 12d,
traduzindo-o “em que circunstâncias todos pecaram”, também preservando a influência do pecado de Adão e a
responsabilidade pessoal (Ibid., p. 148).
62
“Though Adam sinned first and brought untimely death on all human beings, yet each one of those who were
born of him has either prepared for his own soul (its) future torments or chosen for himself the glories that are to
be.” Citado em: FITZMYER, Romans, p. 413: Cf. 2Ap. Ba. 54,19, “cada um de nós é seu próprio Adão.”
24
como alguém que pode ser isolado, mas como a manifestação do mundo
representado por ele. 63
Esse consenso parcial sobre Rm 5,12 mantém uma questão: como o pecado de Adão influi
nos pecados e na morte de todos? Essa é exatamente a questão que se coloca no coração da
discussão sobre a doutrina do pecado original.
1.1.3 Avaliação do testemunho bíblico
Pode-se concluir esse breve resumo do testemunho bíblico sobre o pecado com
quatro afirmações centrais em relação ao pecado original. Primeira, no fundo o pecado é uma
ofensa contra Deus e cria uma ruptura na relação com Ele. Segunda, a partir dessa ruptura, ou
como parte dela, surge a imoralidade, a discórdia humana, a fraqueza, a desordem, os atos da
sarx. Terceira, toda a humanidade está no estado de alienação de Deus por causa do primeiro
pecado e da continuação da transgressão contra Deus, tornando-se prisioneira do pecado da
sarx. Quarta, o ser humano é incapaz de superar sua situação. Flick e Alszeghy resumem bem
esses quatro pontos:
[...] na Bíblia está presente a convicção de que todos os homens pecam. A
universalidade do pecado se explica por meio de uma inclinação universal e
irresistível, da qual o homem é incapaz de se liberar por si mesmo. Aparece
então o paradoxo, que não recebe uma explicação ulterior, de como pode o
pecado pessoal de cada um ser ao mesmo tempo imputável e inevitável. O
impulso irresistível para o pecado é uma ausência da paz de Deus [...] É um
estado da maldição que pesa sobre a humanidade. 64
Portanto, pode-se concordar com Grossi e Sesboüé, que afirmar que a Escritura nada
menciona sobre os aspectos da doutrina do pecado original, “parece pelo menos uma grave
simplificação da questão.”65 Existe, pelo menos, uma base significante nas Escrituras para o
desenvolvimento da doutrina do pecado original. 66 Flick e Alszeghy nos apresentam uma
posição justificável, a saber: a partir da Escritura não se pode afirmar uma imputação do
63
“The undeniable individualizing in v. 12d gives depth to what is said about the scope of the disaster [in v.
12abc], as later reflection on the individual believer gives existential depth to the universal event of salvation.
Paul’s concern unites what seems to us to be a logical contradiction and what does in fact become antithetical in
Judaism: No one commences his own history and no one can be exonerated. Each in his own conduct confirms
the fact that he finds himself in a world marked by sin and death and that he is subject to the burdening curse
[…] He [Paul] does not view a person as a being who can be isolated but as a manifestation of the world
represented by him.” KÄSEMANN, Commentary on Romans, p. 149-50.
64
“[…] en la Biblia está presente la convicción de que todos los hombres pecan. La universalidad del pecado se
explica por medio de una inclinación universal e irresistible, de la que el hombre es incapaz de librarse. Aparece
entonces la paradoja, que no recibe una explicación ulterior, de cómo puede el pecado personal de cada uno ser
al mismo tiempo imputable e inevitable. El impulso irrefrenable hacia el pecado es un ausencia de la paz de Dios
[…] Es un estado de maldición, que pesa sobre la humanidad.” FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 81.
65
SESBOÜÉ, História dos dogmas II, p. 163.
66
Muitos teólogos concordam com essa conclusão. Pode-se levar como exemplos das escolas diferentes
Schoonenberg, da nouvelle theologie, e Labourdette, dos tomistas. SCHOONENBERG, Man and sin, p. 125,
139-40; LABOURDETTE, Le péché originel, p. 357-393.
25
pecado de Adão a todos os seus descendentes, nenhuma clara transmissão do pecado original
e nenhuma explicação da origem histórica da humanidade. 67
1.2 O desenvolvimento da doutrina na tradição
1.2.1 O pecado nos padres da Igreja antes de santo Agostinho
Os padres antes de Agostinho não discutem em detalhe a questão da origem e da
continuação do pecado, mas em geral repetem as fórmulas bíblicas. Melitão diz que a
desobediência do homem e da mulher no Éden resultou em condenação e, “legando a seus
filhos esta herança [...] a luxúria [...] a corrupção [...] a desonra [...] a escravidão [...] a tirania
[...] a morte [...] a perdição” que causou a imoralidade e a concupiscência na vida humana. 68
Justino explica que a raça humana caiu sob o poder da morte e do diabo por causa de Adão e
depois cometeu as transgressões pessoais também. 69 Ireneu afirma, seguindo o texto de Rm
5,12-21, que o homem teve pecado em si mesmo, e através da transgressão de um homem
muitos foram feitos pecadores (Rm 5,19). 70 A desobediência tornou-se a causa da morte
porque Adão tornou-se o primeiro deles que morrem.
71
Tertuliano, a partir de seu
traducianismo, afirma que a alma é o produto da semente com o corpo.72 A natureza, alma e
corpo, é originada de Adão e então é impura e corrupta, escrava do diabo.73 Santo Ambrósio
praticou o batismo das crianças, assegura que todas têm pecado hereditário, em sucessão do
pecado do primeiro homem, e a água do batismo lava isso e os pecados pessoais.74
Os padres Gregos mantêm uma ligação entre o pecado de Adão e os pecados
pessoais e a necessidade universal da salvação. Orígenes, em Peri Archon, explica o mal e a
67
FLICK–ALSZEGHY, El Hombre bajo, p. 83.
MELITÃO, Sobre a páscoa, no. 47-56, p. 83. Sesboüé afirma sobre Melitão que, “O mínimo é conceder que as
categorias da catequese de Melitão estão abertas à interpretação teológica do pecado original tal qual ela foi
compreendida depois dele, na época da polêmica pelagiana. Todos esses testemunhos relativos à catequese
batismal, ainda que permaneçam mais gerais e ainda pouco evoluídas teologicamente, levam à mesma
conclusão: há um rastro de pecado no homem, precisamente porque ele é filho de Adão.” SESBOÜÉ, História
dos dogmas II, p. 168.
69
JUSTIN, Dialogue with Trypho, 88, 4.
70
IRENAEUS, Against the heresies, III. 18, 7.
71
Ibid., III. 22, 4. O julgamento de Sesboüé é pertinente aqui, “O clima do pensamento de Ireneu sobre o pecado
na humanidade é, pois, bem menos trágico que o de Agostinho. Esse pecado não é uma catástrofe; é uma
peripécia, grave sem dúvida, mas quase inevitável e previsível, dada a fraqueza do homem no início; a peripécia
deixa o homem capaz de liberdade, e a salvação trazida por Cristo triunfa em honra do homem: ele até a integra,
de algum modo, na dinâmica do crescimento da humanidade em direção a Deus.” SESBOÜÉ, História dos
dogmas II, p. 171.
72
TERTULLIAN, Treatise on the soul, 27.
73
Ibid., 39-41. Cf. TERTULLIAN, On the flesh, 17,3.
74
AMBROSE, On the mysteries, n. 31-32.
68
26
corrupção a partir da livre decisão das naturezas racionais que caem fora de Deus aos níveis
mais e mais imperfeitos e materiais, 75 e faz alusões ao pecado de Adão como parte de uma
grande visão teológica da criação.76 Em seus comentários bíblicos ele defende o batismo das
crianças, mas parece ligar as consequências do pecado com a corporalidade. 77 Cirilo de
Jerusalém representa bem a perspectiva geral dos padres gregos. O ser humano caiu com
Adão sob a influência do diabo. 78 Mas, a alma é criada sem pecado e cada um peca
voluntariamente.79 A história do ser humano é uma revolta contínua contra Deus, de Caim ao
tempo dos profetas, até o tempo de Jesus.80 Então, todos precisam da salvação do pecado, que
Jesus oferece através da cruz.81 Atanásio distingue entre o estado natural, que é mortal, e a
graça de Deus que trouxe a imortalidade, que o ser humano rejeitou com o pecado.82 Portanto,
a queda é da graça ao estado natural. Mas, ele continua sua reflexão com a história do pecado
que trouxe a corrupção e o mal ao ser humano.83 Atanásio trata de todos os homens juntos
como uma pessoa coletiva. Em relação a Rm 5,12, São João Crisóstomo interpreta São Paulo
e diz que no pecado de Adão todos se tornaram mortais, e os pecados inumeráveis seguiram o
primeiro.84 São Gregório Nazianzeno segue a narrativa de Gênesis, em que o efeito do pecado
de Adão foi a expulsão de Paraíso, da árvore da vida e de Deus, com a punição da morte.
Existe uma sugestão que o ‘vestuário de pele’ (Gn 3,21) significa a carne mais pesada.85 Ele
também afirma que os pecados do ser humano se tornaram muitos, e uma ‘doença’ cresceu
através do tempo.86 São Gregório de Nissa enfatiza que a morte em consequência do primeiro
pecado é espiritual, uma alienação de Deus.87 Os descendentes de Adão compartilham, em seu
estado de exílio, o “hábito de pecar” que originou com esse mal e espalhou-se em todos.88
Ladaria resume o testemunho pré-agostiniano da seguinte maneira:
Sem pretender uma sistematização total da matéria, notamos algumas
direções: a união de todos os homens em Adão e em Cristo, com o peso posto
75
ORIGEN, De principiis, I. 6, 2.
RONDET, Le péché originel, p. 87-88.
77
Ibid., p. 90-91, 96-97.
78
CYRIL, Catechetical lectures, II, 4-5.
79
CYRIL, Catechetical lectures, IV, 19.
80
Ibid., XII, 5-7.
81
Ibid., XIII, 28.
82
ATHANASIUS, On the incarnation, 4.
83
Ibid., 5.
84
CHRYSOSTOM, Homilies on Romans, X, 2-5.
85
NAZIANZEN, Oration 38, n. 12.
86
Ibid., n. 13.
87
NYSSA, Against Eunomius, II, 13.
88
NYSSA, On virginity, 12. Por um argumento que São Gregório concorda substancialmente com Agostinho e
Trento, lê: McCLEAR, The fall of man, p. 175s.
76
27
sobretudo neste último; a ‘herança’ de Adão, que se manifesta em certa
‘corrupção’ da natureza que está em relação com o primeiro pecado: a morte,
a concupiscência, o pecado da ‘natureza’, mesmo com a imprecisão que esta
expressão possa ter; os pecados pessoais que se veem também, pelo menos
em certas ocasiões, como consequência do pecado de Adão; o batismo das
crianças, uma práxis que sem dúvida obriga a uma reflexão sobre seu sentido
e sobre a situação da criança antes e depois de recebê-lo, etc. 89
A ligação entre o pecado de Adão e os pecados pessoais, o estado de concupiscência e de
morte, a necessidade da graça de Cristo, esses parecem ser os elementos comuns da teologia
patrística antes de Agostinho.
1.2.2 Santo Agostinho
Santo Agostinho é o primeiro padre que desenvolve uma teologia do pecado em
relação a Adão e a toda a humanidade. Existe uma evolução em seu pensamento, que começa
com a controvérsia contra os maniqueístas e termina com a polêmica contra os pelagianos.
Embora os pontos básicos da doutrina apareçam na carta Ad Simplicium,90 somente com a
primeira obra anti-pelagiana, De peccatorum meritis et remissione, ele fala explicitamente do
“pecado original”. 91 Seu argumento principal é cristológico, baseado no testemunho das
Escrituras. Ele explica:
Pode-se concluir que merecem ser apontados como inimigos da graça de Deus
os que defendem que a natureza, em qualquer idade, não necessita de médico,
e que afirmam não ter sido ela corrompida no primeiro Adão [...] Com efeito,
desde o tempo em que por um só homem entrou o pecado no mundo (e pelo
pecado a morte), e assim passou a todos os homens; nele todos pecaram (Rm
5,12), toda a massa de perdição tornou-se possessão do corruptor. Assim,
ninguém, absolutamente ninguém desde então, se isentou ou se isenta ou se
isentará do pecado, a não ser pela graça do Redentor.92
Se Cristo é o salvador de todos, então todos precisam a salvação. Uma pessoa precisa da
salvação porque é pecadora. Então, todas as pessoas são pecadoras, incluindo as crianças. Se
as crianças não pecam pessoalmente, elas têm que receber um pecado por geração. De onde
vem esse pecado universal? De Adão. A lógica é clara.
89
“Sin pretender una sistematización total de la materia, señalemos algunas direcciones: la unión de todos los
hombres en Adan y en Cristo, con el peso puesto sobretodo en este último; la <herencia> de Adán, que se
manifiesta en la cierta <corrupción> de la naturaleza que se pone en relación con el primer pecado: la muerte, la
concupiscencia, el pecado de la <naturaleza>, aun con la vaguedad que esta expresión puede tener; los pecados
personales que se ven también, al menos en ciertas ocasiones, como consecuencia del pecado de Adán; el
bautismo de los niños, praxis que sin duda obliga a la reflexión sobre el sentido de este bautismo y sobre la
situación del niño antes y después de recibir-lo, etc.” LADARIA, Teologia del pecado, p. 85-86.
90
SAGE, Péché originel, p. 212.
91
AUGUSTINE, On merit, I, 9.
92
AUGUSTINE, On the grace of Christ, II, 34. A tradição vem de: AGOSTINHO, A graça, p. 299-300. A
tradução da citação de Rm 5,12 segue uma edição do português e não do latim de Agostinho. Na tradução,
porém, não se seguiu o texto de Agostinho. Por isso nós a corrigimos aqui.
28
O pecado original, para Agostinho, é o pecado de Adão, em quem todos pecaram.
Ele usa Rm 5,12, que na versão Latina dizia, “in quo omnes peccaverunt”, para justificar a
afirmação que todos estão implicados no pecado de Adão. Por isso, ele argumenta que o
pecado original é transmitido a todos por geração e não por imitação.93
Pode-se resumir a teologia de Santo Agostinho sobre o pecado original em sete
pontos centrais:
1. O pecado de Adão implica toda a humanidade porque é transmitido a seus descendentes por
propagação, portanto, todos estão ‘em pecado’ e necessitam da salvação de Cristo;94
2. As crianças que não pecaram pessoalmente ainda estão sob o pecado de Adão, e por isso não
estão num estado de inocência como Adão antes da queda;95
3. Então, o batismo é para a remissão dos pecados para todos, incluindo as crianças;96
4. Com a perda da graça de Deus, a morte corporal e espiritual é uma consequência do pecado de
Adão;97
5. A concupiscência, como lei do pecado e corrupção da natureza, especialmente nos membros e
no corpo, é uma consequência do pecado de Adão, sendo transmitida por geração;98
6. Nenhum adulto, desde Adão até Cristo, está sem pecado pessoal;99
7. Ninguém pode agir com a santidade e a justiça do reino sem a graça de Cristo;100
Portanto, para Agostinho, o ser humano herda três coisas do pecado de Adão: a culpa (porque
todos pecaram nele); a concupiscência (como a corrupção da natureza); e a morte (porque a
graça foi perdida). Somente a graça de Cristo no batismo pode tirar a culpa e levar para a vida
eterna. A concupiscência permanece na natureza depois do batismo, mas com a renovação da
pessoa na vida da graça, pouco a pouco será transformada até a regeneração final da
ressurreição. 101 Durante o debate contra os pelagianos, Agostinho desenvolve sua posição,
mas não muda seus pontos básicos.
Existem algumas tensões na síntese agostiniana da doutrina. A primeira, como o
pecado do primeiro homem pode ter uma grande consequência para todos os seus
descendentes? Por que os humanos que não pecaram recebem tanto a imputação da culpa,
lavada nas águas do batismo, quanto os efeitos do pecado, a corrupção e a morte? A segunda
93
Ibid., II, 38; II, 46; AUGUSTINE, On merit, I, 10-11.
AUGUSTINE, On merit, I, 10-11; I, 19; II, 43; AUGUSTINE, On the grace of Christ, II, 34.
95
AUGUSTINE, On merit, III, 2; AUGUSTINE, On nature and grace, 9; 75.
96
AUGUSTINE, On the grace of Christ, II, 21; AUGUSTINE, On marriage, I, 22.
97
AUGUSTINE, On merit, I, 8; I, 21; AUGUSTINE, On nature and grace, 25. É importante afirmar que
Agostinho entende que o corpo humano é naturalmente mortal e sujeito a corrupção, mas era preservado disso
por graça antes do pecado. Cf. AUGUSTINE, On merit, I, 21.
98
AUGUSTINE, On merit, II, 4; AUGUSTINE, On nature and grace, 3; 75; 81; AUGUSTINE, On marriage, I,
25.
99
AUGUSTINE, On merit, II, 8; II, 34; AUGUSTINE, On nature and grace, 42.
100
AUGUSTINE, On the grace of Christ, I, 27; AUGUSTINE, On nature and grace, 70. Aqui Agostinho não
exclui atos virtuosos no nível natural. Ele aceita que é possível ter virtude natural, limitada, sem a graça.
101
AUGUSTINE, On the grace of Christ, II, 44; AUGUSTINE, On marriage, I, 28.
94
29
tensão, como o ‘pecado original’ se transmite por geração? O que é este movimento? A
tradição católica não adotou a afirmação de Agostinho, dos escritos mais tardios, que diziam
que através da paixão do ato sexual o pecado original passa para os filhos. 102 Se o pecado
original não é parte da natureza humana e os pais transmitem biologicamente a natureza aos
filhos, como o pecado pode ser transmitido? Essa dificuldade é ainda mais problemática
quando se lembra que, segundo Agostinho, Deus cria a alma diretamente. Então, não faz parte
da transmissão biológica. Santo Agostinho percebeu esta dificuldade e evitou falar sobre
ela. 103 A terceira tensão que temos é tematizada da seguinte forma: como a concupiscência (a
corrupção da natureza) pode ‘quase’ causar os pecados pessoais e, ao mesmo tempo, se
afirmar que a pessoa é livre e responsável pelos pecados? A quarta tensão, por que a culpa do
pecado original, lavado no batismo dos cristãos, ainda passa para seus filhos? Agostinho
responde a essa pergunta várias vezes, dizendo que a natureza é gerada e a vida em Cristo é
re-generada, ou seja, o pecado original vem com a natureza e a graça da regeneração com o
Cristo.104 Esses quatro grandes problemas ainda são difíceis de ser superados, e na história
teológica escolas diferentes tomaram linhas diferentes para tentar evitar um ou outro
problema.
Os comentaristas contemporâneos têm várias reações à teologia de Agostinho.
Rondet argumenta que Santo Agostinho não é infiel ao pensamento de São Paulo, mas ao
mesmo tempo interpreta a significação do primeiro pecado diferente de Paulo. Agostinho vê
na alusão a Gn 3, em Rm 5,12, algo realmente histórico e não mítico e paradigmático. 105
Ladaria e Flick-Alszeghy percebem que o foco da preocupação de Agostinho não é a
afirmação da universalidade do pecado, mas a universalidade da salvação em Cristo.106 Grossi
e Sesboüé concordam com isso, contudo, ao mesmo tempo, fazem duas críticas. Primeira, a
ideia que todos pecaram em Adão e então recebem a culpa desse pecado é muito
problemática. Segunda, a ligação da concupiscência com a carne e a libido é exagerada. 107
Ruiz de la Peña critica Agostinho principalmente por causa da consequência de sua lógica, a
condenação das crianças não batizadas, e da tradução de uma noção ética, a culpa, para uma
que é ontológica, o pecado original. Isso cria uma visão bem pessimista do ser humano, e leva
102
AUGUSTINE, On marriage, I, 27.
Cf. AUGUSTINE, On merit, II, 59.
104
AUGUSTINE, On the grace of Christ, II, 44-45; AUGUSTINE, On marriage, I, 20-21.
105
RONDET, Le péché originel, p. 32.
106
LADARIA, Teologia del pecado, p. 90; FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 130.
107
SESBOÜÉ, História dos dogmas II, p. 157.
103
30
para distorções na história do Ocidente.108 Ricoeur argumenta que a noção de transmissão do
pecado é uma racionalização que mistura as categorias éticas com as categorias biológicas. O
sentido comum e interpessoal do pecado está perdido.109 Por isso, em relação à formulação de
Agostinho, Ricoeur diz que o ‘pseudoconceito’ de pecado original “é antignóstico em seu
fundo, mas quase-gnóstico em seu enunciado,” porque coloca o mal no nível da natureza. 110
Mas, pode-se concordar com a afirmação de Duffy, segundo a qual a ideia de Agostinho de
que o mal moral é a consequência da decisão livre do ser humano e não uma consequência
inevitável da natureza (contra os maniqueístas), e que o pecado é inevitável na vida humana
por causa de uma corrupção universal (contra os pelagianos), ou seja, o pecado é tanto
voluntário quanto inevitável. 111 Como se explica esse estado do ser humano sem o recurso ao
sentido biológico da transmissão do pecado?
1.2.3 A teologia ocidental depois de santo Agostinho
A tradição ocidental está marcada pela teologia do doutor de Hipona, mas também
desenvolve algumas novas explicações. Santo Anselmo, em seu tratado Sobre a concepção
virginal e o pecado original, reafirma que em Adão todos pecaram pelo fato que todos
existem de Adão e todos recebem a necessidade de pecar pessoalmente.112 Ao mesmo tempo,
o pecado original não é transmitido através da semente dos pais, porque não pode haver
pecado onde não há a vontade da alma racional. 113 Então, ele rejeita a teoria da transmissão de
Agostinho. Em vez disso, Anselmo explica que em Adão toda a natureza humana estava
presente. Quando Adão pecou, ele perdeu a graça original para ele e a natureza humana total.
Então, “[a natureza humana em Adão] contrai o pecado junto com a punição acompanhada
pelo pecado quando é propagada através de seu poder dado na reprodução natural.” 114
Anselmo fala sobre um ‘pecado da natureza’, que é a privação da justiça original que cada
pessoa deve ter por natureza. O pecado pessoal de Adão causou a privação para sua
108
RUIZ DE LA PEÑA, El don de Dios, p. 132-34.
RICOEUR, The symbolism of evil, p. 84.
110
RICOEUR, O ‘pecado original’, p. 228. Ricoeur explica que o pecado original se torna uma ‘mitologia
dogmática,’ que mistura os símbolos com os conceitos, “Antignóstico em sua origem e por intenção, já que o
mal permanece integralmente humano, o conceito de pecado original tornou-se por assim dizer gnóstico na
medida em que se racionalizou; ele constitui, doravante, a pedra angular de uma mitologia dogmática
comparável, do ponto de vista epistemológico, à da gnose.” Ibid., p. 236.
111
DUFFY, Our hearts of darkness, p. 600. Duffy confia bastante na interpretação de Ricoeur sobre a ‘vontade
servil.’ Veja: RICOEUR, O ‘pecado original’, p. 241.
112
ANSELMO, De la concepción, c. 7, p. 25.
113
Ibid., c. 3, p. 13; c. 7, p. 25.
114
“[humana natura quae sic erat in Adam tota] peccatum secum comitante poena peccati, quantumcumque per
datam propaganda naturam propagetur, trahit.” Ibid., c. 10, p. 33.
109
31
descendência. 115 Essa privação da justiça é a injustiça e uma ofensa contra Deus, então é uma
culpa (reatus). Para tirá-la do ser humano, é necessária a satisfação feita por Cristo. 116
Portanto, o pecado original não é a concupiscência ou a corrupção.117
Santo Tomás desenvolve a ideia anselmiana do pecado da natureza, mas dá mais
espaço para a concupiscência.118 Para o Aquinate, Deus criou o ser humano na graça da justiça
original, que ele define como o estado em que, “a razão estava submetida a Deus, as forças
inferiores à razão, e o corpo à alma.”119 Adão pecou e perdeu essa graça. Esse pecado implica
todo o ser humano porque toda a humanidade está presente em Adão como uma pessoa
coletiva, do mesmo modo que uma pessoa não peca somente com uma parte do corpo, já que
todo o corpo está implicado na culpa. Portanto, num sentido, toda a humanidade pecou em
Adão.120 Santo Tomás descreve Adão como uma causa universal, porque ele foi a fonte de
toda a natureza humana. 121 Nesse sentido, a transmissão do pecado original se dá pela
descendência física de Adão, ou seja, a geração da natureza humana. 122 A concupiscência é
um efeito secundário do afastamento de Deus e da perda da graça.123 Por isso, o Aquinate
define o peccatum originale originatum da seguinte maneira, “Assim, o pecado original é
materialmente a concupiscência, mas formalmente é a falta da justiça original.”124 Esses dois
elementos se reúnem no ‘hábito’ do pecado original como uma ‘segunda natureza,’ que é a
disposição desordenada da natureza.125 A corrupção da natureza, para Santo Tomás, é uma
consequência da perda da graça, porque o ser humano se afastou do Criador em direção da
criatura. As imperfeições morais e a morte são as consequências do fato que a natureza
humana é deixada a si mesma, fora da presença de Deus.126 Então, o ser humano por natureza
não é imortal127 ou perfeito moralmente.128
115
Ibid., c. 23, p. 61; c. 27, p. 71.
Ibid., c. 23, p. 63.
117
Ibid., c. 27, p. 71. Para uma exposição completa da teologia de Anselmo, veja: McMAHON, Anselm and the
guilt. Rondet identifica vários pensadores medievais que seguem Anselmo. Veja: RONDET, Le péché originel,
p. 181-89
118
RONDET, Le péché originel, p. 195-96.
119
STh. 1a. 95, 1. Para uma defesa da tese segundo o qual o estado de justiça original era um estado de graça e
não somente a perfeição da natureza, VAN ROO, Grace and original justice, p. 146-47.
120
AQUINAS, De Malo, IV, 1 corp.
121
Ibid., IV, 1 ad 18.
122
Ibid., IV, 2 corp.
123
Ibid., IV, 2 corp.
124
STh. 1a2ae. 82, 3. Cf. De Malo, IV, 2 corp.
125
STh. 1a2ae. 82, 1.
126
STh. 1a2ae. 87, 7.
127
STh. 1a. 97, 1.
128
STh. 1a. 95, 1-2.
116
32
A tradição depois de santo Tomás tende a enfatizar um ou outro aspecto de sua
síntese. A maioria dos teólogos medievais concordam com ele que a essência do pecado
original é a privação da graça. 129 Ao mesmo tempo, a devotio moderna, com seu foco na
experiência espiritual, tende a enfatizar a concupiscência como o pecado original. 130 Os
protestantes, especialmente Lutero, seguiram a devotio moderna e identificam a
concupiscência com o pecado original, 131 com algumas consequências importantes. Por
exemplo, segundo Lutero, o ser humano permanece pecador diante de Deus depois do
batismo, porque sua natureza corrupta permanece. 132 Na tradição católica, Baio e Jansênio
fazem a mesma identificação,133 e portanto têm visões bem parecidas com a dos protestantes.
Durante a época moderna, a discussão sobre o pecado original entre os católicos e os
protestantes, e entre os jesuítas e os jansenistas, basicamente foca na questão do nível da
corrupção da natureza humana e o efeito da graça de Cristo. Somente no século XX o debate
mudou. Passou-se a refletir sobre os novos problemas criados pela teoria da evolução.
1.2.4 O Magistério da Igreja e o pecado original
A síntese agostiniana do pecado original influenciou as decisões do Magistério da
Igreja. Primeiro, o XV sínodo de Cartago (418) condenou Pelágio e promulgou nove cânones
(DH 222-230), inspirados pelo pensamento de Agostinho.134 O papa Zózimo confirmou essas
decisões e escreveu uma carta, a Tractoria (DH 231), que reformulou algumas proposições do
sínodo.135 O segundo concílio de Orange (529), sob a presidência de Cesário de Arles, tentou
responder às tendências semipelagianas que se manifestavam ainda na Gália. Sesboüé explica
que os 25 cânones (DH 370-95), “propõem aqui, pois, como doutrina de fé, o ensinamento
agostiniano: o exercício do livre-arbítrio está ferido em consequência do pecado original.” 136
O concílio de Trento (1546-63), na formulação mais importante da história da Igreja, definiu
em cinco cânones a doutrina católica sobre o pecado original. Os cânones de Orange e de
Cartago foram referências importantes para os padres do concílio. Os dois primeiros cânones
129
VOLLERT, The two senses, p. 22.
SESBOÜÉ, História dos dogmas II, p. 195-96.
131
RONDET, Le péché originel, p. 201.
132
SESBOÜÉ, História dos dogmas II, p. 199.
133
Ibid., p. 213, 215.
134
Ibid., p. 142. É importante notar que o primeiro sínodo de Cartago, em 411, que condenou Celéstio, um
discípulo de Pelágio, não teve a presença de Agostinho. Então ele não começou a polêmica pelagiana.
SESBOÜÉ, História dos dogmas, p. 140-41.
135
Ibid., p. 159-60.
136
Ibid., p. 186.
130
33
(DH 1511-12) reformularam os cânones 1o e 2o de Orange, 137 e o cânone 4o (DH 1514)
retomou o cânone 2o do concílio de Cartago. 138 A teologia de Agostinho está detrás da
formulação de Trento.139
Em breve, os cânones de Trento condenam quem que afirma que:
1. Depois de sua transgressão, Adão não perdeu “a santidade e a justiça” e não incorreu na
“indignação de Deus,” e na morte e na “escravidão sob o poder” do diabo, e que o Adão
inteiro não “mudou para pior, no corpo como na alma” (DH 1511);
2. “A prevaricação de Adão não prejudicou nem a ele nem à sua descendência”, e “que perdeu
somente para si e não também para nós a santidade e a justiça recebidas de Deus;” ou que,
“manchado pelo pecado de desobediência, ele transmitiu a todo o gênero humano ‘só a morte’
e as penas do corpo, e não também o pecado, que é a morte da alma [e cita Rm 5,12]’” (DH
1512);
3. O pecado de Adão não é transmitido para todos “por propagação, não por imitação,” e, “pode
ser tirado com as forças da natureza humana ou com outro remédio que não os méritos do
único mediador, nosso Senhor Jesus Cristo” (DH 1513);
4. As crianças não “devam ser batizadas recém saídas do útero materno”, ou que as crianças,
“não herdam de Adão nada do pecado original que seja necessário purificar com o banho da
regeneração para conseguir a vida eterna; e em consequência, para elas a forma do batismo
para a remissão dos pecados não deve ser considerada verdadeira, mas falsa” (DH 1514);
5. A graça de Jesus Cristo, conferida no batismo, não tira “a condição de réu <proveniente> do
pecado original, ou sustenta que tudo o que tem verdadeiro e próprio caráter de pecado não é
tirado, mas apenas rasurado ou não imputado” (DH 1515).140
Os pontos básicos são claros. O pecado de Adão (peccatum originale originans) perdeu para
ele e sua descendência a santidade e incorreu na morte. Esse pecado é transmitido por
propagação a todos os seus descendentes (peccatum originale originatum) e somente pode ser
tirado através da graça de Cristo no batismo. Essa graça do batismo tira realmente o pecado
original, embora a concupiscência permaneça depois, mas não como pecado (DH 1515).141
A interpretação dos cânones do Trento fica sujeita ao debate. Ladaria aponta o
fato que Trento não diz muita coisa nova em relação ao pecado original, visto o uso dos
cânones de Orange e Cartago. Ladaria sumariza a afirmação central como, “Esta situação de
pecado na qual o homem nasce é prévia à sua vontade, deriva de um ‘pecado original
originante’, que o concilio identifica com o pecado de Adão, cabeça do gênero humano, do
137
Ibid., p. 203-04.
Ibid., p. 206-07.
139
Ibid., p. 209.
140
Para um comentário dos três primeiros cânones a partir de seu contexto histórico, veja: VANNESTE, Alfred.
Le décret du concile, p. 695-726.
141
Esses três pontos correspondem ao resumo de Flick e Alszeghy: “Los teólogos están convencidos de que el
concilio de Trento define: a) la realidad del pecado original originante (como un hecho único, cometido en un
momento determinado del tiempo por el primer padre de la humanidad); b) la existencia del pecado original
originado en todos los hombres (comprendido como un estado que implica la privación de la santidad y la
justicia, en la que había sido constituida la humanidad antes del primer pecado, y la necesidad de un verdadero y
auténtico perdón, que ha de obtenerse de Cristo en el bautismo); c) la supresión completa de este pecado en el
bautismo.” FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 27.
138
34
qual todos descendemos.”142 Mas, fora da frase, “por propagação e não por imitação”, uma
frase anti-pelagiana de Agostinho, 143 Trento não define o modo de transmissão do pecado
original. 144 O concílio define o pecado original primeiramente como uma perda da graça, que
leva para a morte, e não como a concupiscência. 145 Além disso, Sesboüé observa que,
“Utilizando os textos de santo Agostinho na linha dos concílios precedentes, Trento não se
obriga a emitir seu parecer sobre as interpretações que lhes são dadas de diversas partes para
sustentar diferentes teses.” 146 A teologia de Agostinho é uma referência importante para
Trento, mas não se pode reduzir a doutrina do Trento ao pensamento de Agostinho.
1.2.5 A condição sine qua non da doutrina
Da exposição acima, a questão sine qua non da doutrina parece mais clara. O
debate na literatura sobre o que é essencial à doutrina foca na interpretação dos textos da
Escritura, especialmente Gn 3 e Rm 5, 12-21, e nos cânones de Trento. Essa breve exposição
mostra que pelo menos existem três proposições centrais: 147 o pecado de Adão o levou a
perder a graça para ele e sua descendência, com a morte como uma de suas implicações;148
existe uma ligação do pecado de Adão (peccatum originans) com os pecados inevitáveis de
todos os seres humanos (explicado de modos diferentes, mas quase sempre com uma
referência à concupiscência);149 e a necessidade da graça e da salvação de Cristo para todos.150
A doutrina tenta explicar essas convicções de modo consistente e razoável. Mas não existe um
consenso sobre outras três questões importantes: o modo de transmissão do pecado original, 151
em que sentido a humanidade está implicada na culpabilidade do pecado de Adão (por
participação ou por natureza ou por imputação etc.);152 e o nível da corrupção da natureza
142
“Esta situación de pecado en la que el hombre nace es previa a su voluntad, deriva de un <pecado original
originante>, que el concilio identifica con el pecado de Adán, cabeza del genero humano, del que todos
descendemos.” LADARIA, Teologia del pecado, p. 104.
143
AUGUSTINE, On merit, I. 10-11. Para um commentario, veja: VANNESTE, Alfred. Le décret du concile, p.
719.
144
LADARIA, Teologia del pecado, p. 100; BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 124; DUFFY, Our hearts
of darkness, p. 615.
145
VANNESTE, Alfred. Le décret du concile, p. 712; FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 27; SESBOÜÉ,
História dos dogmas II, p. 202, 205.
146
SESBOÜÉ, História dos dogmas II, p. 209.
147
O resumo aqui apresentado tem como inspiração a pesquisa detalhada do artigo de Gaudel. Cf. GAUDEL,
Péché originel, p. 584s.
148
GAUDEL, Péché originel, p. 584-85; 597.
149
Ibid., p. 591.
150
Ibid., p. 589.
151
Gaudel, em seu artigo no Dictionnaire de théologie catholique, fala sobre o mistério da propagação, que
ainda não tem uma resposta comum. Ibid., p. 589.
152
Ibid., p. 591.
35
(somente o pessimismo protestante e jansenista está excluído). 153 A tradição favorece a
interpretação de uma transmissão que se dá através da geração da natureza humana, mas o
formulário de Trento “por propagação e não por imitação” é ambíguo. Muito depende do que
exatamente é transmitido: a culpa do pecado? Uma natureza corrupta? Uma natureza
‘natural’, sem a graça da justiça original? Então, um teólogo ainda tem espaço para pensar e
explicar a doutrina?
1.2.6 As incoerências na doutrina do pecado original
A síntese clássica da doutrina, brevemente esboçada acima, levanta várias
questões. Connor explica algumas delas:
Como podemos explicar o fato de que o único pecado de um homem é a única
explicação para a condição da privação em cada outro homem? Pela inclusão
virtual de todos os homens nesse único homem? Pela imputação jurídica? Por
alguma forma da ‘personalidade corporativa’? Como sabemos, nenhuma
dessas teorias têm provado tudo satisfatoriamente. Como podemos explicar a
transmissão dessa condição pecaminosa? Podemos aceitar que a nãotransmissão da graça, que o ser humano deve ter pelo decreto de Deus, é a
transmissão positiva da culpa? Em qual sentido a privação da graça pode ser
chamada ‘pecaminosa’ no indivíduo quando ele não a acolhe pessoalmente?
Esses e outros problemas incomodaram os teólogos durante séculos.154
Connor identifica três problemas: como o pecado de Adão pode ter um efeito universal?
Como esse pecado é transmitido? Como uma pessoa recebe a culpa do pecado de outra?
Pode-se demarcar esses problemas da seguinte maneira: o ‘efeito universal’, a ‘transmissão’ e
a ‘responsabilidade pessoal’. Pelo fato de constituírem parte da herança comum da doutrina,
qualquer interpretação deve responder a eles, ou pelo menos explicá-los. Há que se
acrescentar ainda outro problema, o da ‘concupiscência’ em relação ao primeiro pecado. O
pecado de Adão causou uma corrupção da natureza humana? Se sim, como e até que ponto?
Os quatro problemas são interligados, ou seja, são aspectos distintos do mesmo desafio, que é
o de explicar a relação entre o pecado do Adão (peccatum originans) e o estado do pecado de
todos (peccatum originatum). Os teólogos contemporâneos tentam responder a essas questões,
sobretudo a partir das interrogações levantadas pela teoria da evolução.
153
Ibid., p. 597. Essas três questões correspondem, mais ou menos, a três dos quatro temas da controvérsia atual
sobre o pecado original identificados por Flick-Alszeghy. FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 27-28.
154
“How are we to explain the fact that the single sin of one man is the sole explanation for a condition of
deprivation in every other man? By the virtual inclusion of all men in this one? By juridical imputation? By
some form of "corporate personality"? As we know, none of these theories have proven fully satisfactory. How
are we to account for the transmission of this sinful condition? Can we seriously hold that the non transmission
of grace, which by God's decree man should have, is the positive transmission of guilt? In what sense can the
deprivation of grace be called "sinful" in the individual when not personally willed by the individual? These and
other problems have vexed theologians for centuries.” CONNOR, Original sin, p. 215.
36
1.3 A teoria da evolução e os problemas para a doutrina do pecado
original
A doutrina do pecado original entrou numa grande crise com o advento e a
aceitação comum da teoria da evolução. Antes da publicação da Origem das Espécies, de
Darwin, em 1859, a grande maioria das pessoas nas sociedades ocidentais acreditava na
criação direta e imediata do ser humano por Deus. A visão da humanidade seguiu a narrativa
básica da criação por Deus – um momento da inocência no paraíso – o pecado e a queda – a
corrupção moral e a mortalidade. A maioria considerava Adão e Eva os primeiros humanos
históricos. 155 Mas, com a teoria da evolução, toda essa narrativa foi questionada. Com a
publicação de O Descendente do Homem (1871), Darwin não deixou nenhum dúvida que o
ser humano era o resultado de um processo biológico que começou com outros animais mais
primitivos e passou para a etapa dos primatas antes de chegar ao ser humano. Como
Baugartner diz, “Estas duas imagens do homem, a da teologia e da ciência pareciam
impossíveis de conciliar.” 156As técnicas da ciência e a complexidade das dificuldades que
surgem merecem um breve excursus.
1.3.1 A teoria da evolução
A teoria científica da evolução declara que os humanos vieram dos primatas
através de um lento movimento da transformação.157 O processo consiste numa luta para a
sobrevivência entre as espécies e dentro das populações das espécies. Através de uma maior
facilidade para a sobrevivência, baseada na genética, o processo de ‘seleção natural’158 causa a
lenta evolução das populações, até, eventualmente, se tornarem espécies distintas. A evolução
não precisa de nenhuma intervenção direta de Deus; é completamente natural. O ser humano é
um produto desse processo, das mesmas linhas genéticas dos primatas. Neste sentido, os
humanos são animais, do mesmo feito que os outros animais, e têm os mesmos antepassados
arcaicos dos macacos contemporâneos.
155
É interessante notar que, mesmo que tentassem repensar o ser humano num modo não-Cristão, os filósofos
iluministas mantiveram esta estrutura básica. Esse é o caso da antropologia de Rousseau, em seu Segundo
Discurso sobre a desigualdade.
156
« Ces deux images de l’homme, celle de la théologie et celle de la science, semblaient impossibles à
concilier. » BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 116. Cf. também : RONDET, Le péché originel, p. 7.
157
Cf. por exemplo, DOBZHANSKY, Mankind evolving, p. 168-69.
158
Cf. AYALA, La teoría de la evolución, p. 63-119.
37
Uma pergunta muito importante para a teologia é a da origem do gênero homo
sapiens. Para a doutrina do pecado original, a questão central é: em qual sentido a
humanidade inteira tem uma origem comum? Os cientistas propõem dois modelos básicos
para a evolução do homo sapiens, monofiletismo ou polifiletismo. Dobzhansky explica os
dois, “Se a humanidade viva é descendente de uma única forma ancestral (monofileticamente)
ou de várias formas (polifileticamente), essa disputa é, há muito tempo, inconclusa.”159 Até
agora, a evidência aponta à única origem hipótese (monofilétismo). 160 Contudo, os dois
modelos aceitam que o homo sapiens é uma só espécie com uma só raiz e uma só origem.
Dobzhansky explica:
Todos os homens pertencem à mesma espécie. A humanidade é uma entidade
biologicamente com sentido, tal como é uma entidade culturalmente,
sociologicamente e filosoficamente. A antiga questão, se a espécie humana
tem uma origem monofilética ou polifilética não tem mais o mesmo sentido
que antes.161
Esta pesquisa pressuporá o monofiletismo como a teoria comum da origem humana, embora,
essa opção não resolva a questão de saber se a único filo humano tem seu começo com um
grupo (poligenismo) ou com só um homem e uma mulher (monogenismo).
A ideia do monogenismo 162 ocupa um lugar central na tradição Cristã, mas não se
harmoniza bem com a teoria da evolução. O processo da evolução ocorre no nível das
populações e não entre indivíduos separados. 163 Como os teólogos percebem, a evolução
implica, quase que necessariamente, o poligenismo.164 A ideia de um homem e uma mulher
como os pais de toda a humanidade, simplesmente não é provável, ou mesmo possível, dentro
da evolução, e as teorias científicas não propõem tal noção. O otimismo de alguns cristãos
sobre o estudo genético que propõe uma ancestral de todos os homens, a assim chamada ‘Eva
Mitocondrial’, não é justificável. A Eva Mitocondrial não pode ser identificada com a Eva do
Gênesis. 165 De fato, um estudo do DNA do núcleo, que é mais importante, mostra que a
diversidade nos genes que existem hoje sugerem que o número mínimo de população humana
159
“Whether living mankind is descended from a single ancestral form (monophyletically) or from several forms
(polyphyletically) has long been inconclusively disputed.” DOBZHANSKY, Mankind evolving, p. 188.
160
FOLEY, Os humanos, p. 159-62.
161
“All men belong to the same species. Mankind is a biologically meaningful entity, just as it is an entity
culturally, sociologically, and philosophically. The old question, whether the human species is monophyletic or
polyphyletic in origin has, as shown in the foregoing chapter, no longer the same meaning it once had.”
DOBZHANSKY, Mankind evolving, p. 192.
162
Baumgartner dá uma breve definição, « Le monogénisme, au sens théologique, est la doctrine selon laquelle
tous les hommes descendent, par voie de génération, d’un couple primitif unique. Le polygénisme admet une
pluralité de couples. » BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 115.
163
DOBZHANSKY, Mankind evolving, p. 180-81.
164
Cf. BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 117; LABOURDETTE, Le péché originel, p. 169-70.
165
Para uma explicação da Eva Mitocondrial, veja: FOLEY, Os humanos, p. 162-64. 166-67.
38
necessária para permitir esta diversidade é de 4.000 indivíduos reproduzindo, ou seja, uma
população de 15.000 no total.166
Em conclusão, hoje em dia o poligenismo é a teoria da origem dos humanos que
goza do consenso da comunidade científica. Os teólogos devem trabalhar com as teorias
científicas aceitas pela grande maioria da comunidade científica. Embora não rejeite o
monogenismo ou a possibilidade de reconciliar o monogenismo teológico com o poligenismo
científico, esta dissertação aceitará o poligenismo como um fato dado pela ciência e avaliará
as propostas teológicas à luz disso.
1.3.2 Os problemas para a antropologia cristã
Essa explicação científica da origem do ser humano desafia o conceito tradicional
cristão da origem e da essência dos seres humanos. Uma crença fundamental do cristianismo
é que o homem e a mulher são especiais na criação de Deus, porque foram criados à sua
imagem e semelhança (Gn 1,28). Os humanos têm almas imateriais e foram criados por uma
relação íntima com Deus. À luz da evolução, no entanto, os humanos não parecem especiais,
mas somente animais mais complexos e avançados no processo da evolução. A própria ideia
de uma alma espiritual não combina bem com o desenvolvimento gradual dos humanos a
partir dos primatas. Então, há um conflito de antropologias. Os humanos são animais
complexos ou seres espirituais à imagem de Deus? Se alguém aceita a segunda perspectiva,
quando então os primatas se tornaram humanos? Em um momento ou lentamente? Essas
questões desafiam a teologia cristã.167
Além disso, há três grandes problemas para a doutrina do pecado original. De
novo Connor os formula bem:
A evolução apresenta a doutrina do pecado original com uma série de
questões interessantes. É o Adão tradicional, especialmente possuindo dons
preternaturais clássicos, um ‘parêntese maravilhoso’ na teoria evolucionista
(progressiva) mais perfeita do mundo? A teoria científica mais favorável, a do
poligenismo (a emergência original de um número dos seres humanos), se não
for do polifiletismo (a emergência original de vários grupos distintos de seres
humanos), deve ser rejeitada no campo do pensamento teológico? Como um
teólogo explica a unidade da família humana, um pressuposto para a
universalidade do pecado original, em vista dessas hipóteses? Num contexto
166
AYALA, The myth of Eve, p. 1935.
Infelizmente, por causa do espaço, este estudo não pode tratar a questão da criação da alma, que é muito
importante no debate sobre a evolução.
167
39
poligenístico, como um teólogo explicaria a transmissão do pecado original,
como resultado de uma herança física do pai de todos (Adão)?168
Pode-se assim nomear três dificuldades. A primeira é a do ‘paraíso-problemático’. A narrativa
cristã da criação-paraíso-queda, parece ser contra os dados científicos,169 porque nunca existiu
um paraíso ou um ser humano perfeito.170 A segunda é a do ‘monogenismo-problemático’.
Parece que, para manter a unidade de todos os seres humanos com Adão e também a
transmissão do pecado original por geração, a doutrina tem que ser baseada no monogenismo,
que contradiz os dados científicos. A terceira é a da ‘transmissão-problemática’. A questão da
transmissão do pecado por “propagationem, non imitationem” (DH 1513) também ignora a
teoria da evolução. Herdamos nossos genes e outras coisas epigenéticas, 171 mas não os efeitos
de nossas ações. Existe um nível de herança que inclui as consequências das ações e as coisas
espirituais (por exemplo a mancha na alma)? De fato, a herança biológica pode explicar o
problema da concupiscência, sem recurso a um pecado primitivo, através da redução da
tendência a uma certa consequência do fato biológico da competição e do egoísmo animal.
Precisa preservar ou distinguir entre a tendência ao mal e os instintos animais, ou pode
identificar os dois e então rejeitar a ideia que a concupiscência é uma consequência do
pecado?
Pode-se ver as conexões entre esses três problemas com os quatro em relação à
consistência da doutrina. Por um lado, a evolução foca a questão da explanação do peccatum
originale originans, ou seja, a possibilidade de um primeiro pecado e a unidade do gênero
humano. Por outro lado, a doutrina clássica tem mais dificuldades com o peccatum originale
originatum, a transmissão do pecado e a imposição aos descendentes das consequências dos
atos dos antepassados. Mas, a transmissão é um problema central que toca os dois lados. Seria
possível explicar o pecado original de um modo que se harmonize com a evolução, sendo
consistente com a exegese bíblica, e resolvendo as tensões com seus pontos básicos? Guiados
168
“Evolution presents the doctrine of original sin with a number of interesting questions. Is the traditional
Adam, particularly as endowed with the classical preternatural gifts, a "marvelous parenthesis" in the otherwise
progressively more perfect evolution of the world? Is the scientifically more favorable theory of polygenism (the
original emergence of a number of human beings), if not polyphyletism (the original emergence of several
disparate groups of human beings), to be rejected out of hand on theological grounds? How does the theologian
explain the unity of the human family, a presupposition for the universality of original sin, in view of these
hypotheses? In a polygenistic context, how would a theologian explain the transmission of original sin, related as
it has been to direct physical generation from the first father of all?” CONNOR, Original sin, p. 217.
169
DUFFY, Our hearts of darkness, p. 608.
170
Rondet acha que esta é a questão mais importante no conflito: « Pour aller droit au cœur de la question, est il
nécessaire, pour être orthodoxe, de tenir comme vérité catholique tout ce que la théologie nous a dit d’Adam et
de ses privilèges ? Comment faut-il interpréter les chapitres de la Genèse que racontent la création et la chute de
l’homme ? » Rondet, Le péché originel, p. 15.
171
Cf. JABLONKA, Evolution in four dimensions, cap. 4-6.
40
pelo princípio de que uma contradição entre a verdade da fé e a verdade da ciência não pode
existir, Flick e Alszeghy dizem que, “[...] a partir dos anos 50 começaram na teologia católica
alguns intentos que não se contentam em propor adaptações episódicas, mas que tentavam
uma reinterpretação radical do dogma do pecado original, embora conservando sua
substância.”172 Como os teólogos fizeram isso?
1.4 A status questionis na teologia contemporânea
1.4.1 Humani generis e o debate entre o monogenismo e o poligenismo
Embora a primeira reação à teoria da evolução no mundo católico fosse defensiva,
lentamente uma apropriação positiva começou a se dar. Pierre Teilhard de Chardin, como
paleontólogo, foi um dos primeiros a tratar a doutrina cristã dentro do mundo em evolução. 173
Mas só nos anos quarenta um debate forte começou a se dar sobre a relação entre a evolução e
a doutrina cristã. Rondet escreve:
Em nossos dias, o dogma do pecado original tem sido um ponto de
discórdia entre a ciência e a teologia. Em 1946 foi travada na França e
em outros lugares uma batalha em relação às teorias evolucionistas. Em
seguida, os ânimos se abrandaram. Em 1950, a encíclica Humani
Generis fechou várias portas à pesquisa, mas ela abriu outras e desde
então, na unidade da fé, se levantou problemas como o do
poligenismo. 174
A Encyclica Humani generis (1950) teve uma mensagem mista sobre o debate.
Por um lado aprovou, com algumas precauções, a discussão sobre a teoria da evolução e as
tentativas de harmonizar a fé com os dados científicos (n. 35-36). Por outro, questionou a
possibilidade de reconciliar o poligenismo com a doutrina do pecado original (n. 37). Desde a
Humani generis, os teólogos têm se posicionado sobre isso, desenvolvendo novas formas de
interpretar a doutrina à luz de evolução Uma das questões mais prementes foi sobre a
necessidade ou não de afirmar, a partir da Sagrada Escritura e da Tradição, o monogenismo.
172
“[...] a partir de los años 50 empezaron en la teología católica algunos intentos que no se contentaban con
proponer adaptaciones episódicas, sino que tendían a una reinterpretación radical del dogma del pecado original,
aunque conservando su substancia.” FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 29.
173
Já em 1920 ele escreveu um artigo sobre a queda e a redenção à luz da evolução. Veja: TEILHARD DE
CHARDIN, Fall, redemption, p. 36-44.
174
« De nos jours, le dogme du péché originel a été comme une pomme de discorde entre la science et la
théologie. Vers 1946, on a bataillé en France et ailleurs autour des théories évolutionnistes. Puis les passions se
sont calmées. En 1950, l’Encyclique Humani generis a fermé plusieurs portes à la recherche, mais elle en a
entrouvert d’autres et depuis lors, dans l’unité de la foi, on a soulevé de nouveau des problèmes comme celui du
polygénisme. » RONDET, Le péché originel, p. 15.
41
Por isso, os teólogos e exegetas investigaram as interpretações dos textos bíblicos e
magisteríais sobre esse problema.
A questão da historicidade da narrativa de Gn 2-3 ocupa tanto os exegetas quanto
os teólogos. Os estudos literários concluem que o gênero literário parece mítico. A maioria
aceita que a narrativa é uma projeção ao passado, numa forma mítica, da situação atual do ser
humano e do pecado.175 A expulsão do paraíso responde à pergunta, ‘de onde vem o pecado?’
Funciona mais como uma etiologia do que como um fato histórico. Por isso, muitos teólogos
interpretam o paraíso do ponto do visto escatológico, e veem uma imagem do fim do ser
humano, segundo o plano de Deus, no início de sua história.176 Mas, Dubarle tenta superar a
antítese histórico-mítica com uma interpretação que afirma que o autor está falando sobre um
patrimônio do mal herdado dos antepassados, mas num modo mítico, através da imaginação
da fé:
No texto atual, não se trata apenas de mostrar o homem, criatura de Deus, mas
confrontado com o sofrimento e a morte. Há, além disso, uma explicação do
presente pelo passado, segundo o princípio, certo aos olhos do autor, de uma
herança moral passando dos antepassados aos descendentes. Pode-se,
portanto, falar de mito a propósito do relato do Éden, mas lembrando que o
mito foi ajustado para ter um lugar na imagem do passado da humanidade.
Pode-se falar de história, mas sem esquecer que esta imagem do passado foi
formada não por memórias efetivas de testemunhas, mas pela imaginação e
pela fé. 177
Portanto, com Dubarle, pode-se dizer que o valor histórico de Gn 2-3 não se encontra no fato
de ser uma história, mas por ser um mito sobre um evento que aconteceu no passado, segundo
o qual o ser humano pecou. Nessa linha, Flick e Alszeghy descrevem o gênero como um
‘compositum mixtum’. 178 Então, a questão dos detalhes da origem histórica da humanidade, a
partir deste texto, parece sem resposta.179
175
RONDET, Le péché originel, p. 20-21; MARTELET, Libre réponse, p. 52-53; LADARIA, Teologia del
pecado, p. 35. 62.
176
MARTELET, Libre réponse, p. 39; BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 158 ; LADARIA, Teologia del
pecado, p. 41-42 ; SMULDERS, A visão de Teilhard, p. 207.
177
« Dans le texte actuel, il ne s’agit pas seulement de montrer l’homme, créature de Dieu, mais
confronté avec la souffrance et la mort. Il y a, de plus, une explication du présent par le passé, selon le
principe, certain aux yeux de l’auteur, d’un héritage moral passant des ancêtres aux descendants. On
peut donc parler de mythe à propos du récit de l’Éden, mais en se rappelant que le mythe a été
aménagé pour tenir une place dans un tableau du passé de l’humanité. On peut parler d’histoire, mais
sans oublier que ce tableau du passé a été constitué non par des souvenirs effectifs des témoins, mais
par l’imagination et la foi. » DUBARLE, Le péché originel perspectives, p. 159.
178
FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 49-50.
Embora alguns pensam que o texto seja uma história popular com redação religiosa, que ensina
implicitamente o monogenismo (LABOURDETTE, Le péché originel, p. 19), outros o negam enfaticamente
como Baumgartner, que diz, « il n’est pas possible de tirer directement de l’Ancien Testament un argument en
faveur du monogénisme. », BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 119.
179
42
Sobre a interpretação de Rm 5,12-21 em relação ao monogenismo, uma conclusão
semelhante teve o consenso dos teólogos. Fitzmyer dá um resumo da maioria:
Paulo, contudo, não soube nada sobre o Adão da história. O que ele sabe
sobre Adão, derivou do livro do Gênesis e da tradição Judaica que se
desenvolveu do Gênesis. ‘Adão’ para Paulo é o Adão do livro do Gênesis; ele
é um indivíduo literário, como Hamlet, mas não simbólico, como ‘cada
homem’ [...] Os teólogos questionaram se Paulo ensinava em 5,12-21 uma
forma do monogenismo por causa de sua ênfase que Adão era ‘um homem’ e
sua historicização de Adão [...] O poligenismo é então um desenvolvimento
moderno da teoria da evolução. Leva-nos muito além da perspectiva de Paulo;
portanto o que Paulo diz em 5,12-21 não pode ser usado para resolver tal
problema. 180
Então, perante a ideia do autor, Paulo fala sobre Adão a partir dos textos Judaicos, ou seja,
como um indivíduo literário. A afirmativa sobre Adão é uma referência com relação a seu
significado na tradição Judaica (o patriarca da humanidade, o começo de um aeon, etc.) e não
uma referência à sua própria história e à origem da humanidade. Portanto, a partir das obras
paulinas, a questão dos detalhes sobre a origem histórica da humanidade, o monogenismo ou
o poligenismo, fica ainda sem resposta. Usar Paulo para decidir este tópico é aplicar mal os
textos bíblicos.
Sobre a questão da afirmação do monogenismo no texto de Trento, o consenso
dos teólogos é que isso está fora da intenção do decreto. Labourdette argumenta que Trento
pronunciou-se claramente em favor da historicidade de Adão.181 Mas Vanneste responde que
isso é um pouco exagerado. Os padres de Trento aceitaram ingenuamente a historicidade de
Gn 2-3 e então não se preocuparam com a questão de se Adão era uma pessoa histórica ou
representava um grupo. Portanto, eles não se pronunciaram sobre esse assunto.182 Além disso,
Vanneste argumenta que, “Mesmo para aqueles que consideram Adão como um tipo literário
ou uma figura mítica, este primeiro cânone mantém seu significado e seu próprio objeto,
porque dá uma descrição do estado de Adão depois de seu pecado que é, obviamente, para
explicar as consequências deste pecado em nós.”183 Baumgartner e Connor concordam com
180
“Paul, however, knew nothing about the Adam of history. What he knows about Adam, he has derived from
Genesis and the Jewish tradition that developed from Genesis. ‘Adam’ for Paul is Adam in the Book of Genesis;
he is a literary individual, like Hamlet, but not symbolic, like Everyman […] Theologians have queried whether
Paul was teaching in 5:12-21 a form of monogenism because of his emphasis on Adam as ‘one man’ and his
historicization of Adam […] Polygenism is thus a modern development of teaching about evolution. It goes far
beyond Paul’s perspective; hence what Paul says in 5:12-21 cannot be used to solve such a problem.” Ibid., p.
410. Grelot concorda com isso. Veja: GRELOT, Péché originel et rédemption, p. 127. As palavras monogenismo
e poligenismo serão tematizadas em outro momento – abaixo.
181
LABOURDETTE, Le péché originel, p. 33-34.
182
VANNESTE, Alfred. Le décret du concile, p. 716.
183
“Même pour celui qui considère Adam comme un type littéraire ou une figure mythique, ce premier canon
garde son sens et son objet propre, car la description plus ample qu’il donne de l’état d’Adam après son péché
vise, de toute évidence, à expliquer les suites de ce péché en nous. » Ibid., p. 716.
43
essa conclusão e mantêm que a questão do monogenismo ainda permanece aberta depois de
Trento.184 Para não entrar nos debates sobre a hermenêutica das definições conciliares, esta
pesquisa adotará essa conclusão para seus objetivos.
Seria um erro pensar que nenhum teólogo tenha defendido a Humani generis e o
monogenismo. O dominicano Labourdette escreveu um livro onde tenta justificar a doutrina
clássica à luz da evolução. 185 Ele afirma a criação especial do ser humano e seu destino
sobrenatural, 186 mas coloca essa criação dentro do mundo em evolução, que promove uma
preparação para a possibilidade de um animal que poderia receber a criação direta da alma,
tornando-se humano. 187 Contudo, ele afirma que, “[...] esta unidade [da raça humana em
Adão] é explicitamente ensinada nas Escrituras; ela também está implicitamente revelada nos
dois dogmas do pecado original e da redenção [de Trento].”188 Ele mantém a necessidade de
ter tanto a unidade do gênero humano quanto a unidade do primeiro pecado. Mas, ele não é
ignorante do possível conflito com a ciência, e percebe que o poligenismo está implícito na
teoria da evolução. 189 Ele sintetiza os dois lados, a ciência poligenista e a teologia
monogenista. Para o teólogo dominicano a queda é a perda da graça da justiça original, 190 e a
criação da alma acontece diretamente por Deus, 191 a história da salvação fica fora da
perspectiva científica, e portanto, não a contradiz. 192 Ele pode assim manter os dados da
doutrina clássica e os da evolução sem contradição. Mas, ele não tem que reinterpretar os
pontos básicos da doutrina e então ele não responde aos problemas da responsabilidade
pessoal e da transmissão.
184
BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 124; CONNOR, Original sin, p. 223-24.
LABOURDETTE, Le péché originel.
186
Ibid., p 141.
187
Ibid., p 146-47.
188
«[…] cette unité [de la race humaine en Adam] est explicitement enseignée par l’Ecriture; elle est en outre
implicitement révélée dans les deux dogmes du péché originel et de la Rédemption [du Trente]. » Ibid., p 157.
189
Ibid., p 162, 164.
190
Ibid., p 177.
191
Ibid., p 163.
192
Labourdette explica, « la loi normale de l’évolution des vivants est de se faire par polygénèse, sinon même
par hologénèse, et c’est effectivement cette loi qui a présidé à l’apparition des diverses espèces vivantes. Mais
que Dieu, librement, soit intervenu pour fonder, au milieu d’un « buissonnement » d’hominiens, toute l’humanité
historique sur un seul couple originel, lui seul sait si c’est vrai, et lui seul en l’absence de tout témoin et de tout
document, pouvait nous le révéler. Or nous croyons qu’il l’a révélé, et nous conclurons simplement que, sur ce
point de nos origines, notre foi est plus affirmative que notre science. Que les « essais d’hominisation », dans la
perspective que nous tracions plus haut, aient été multiples, c’est sans doute un fait; mais l’intervention de Dieu
qui a donné à la fois l’âme spirituelle et la vie surnaturelle, une vie surnaturelle engagée dans une histoire, n’a
effectivement porté que sur un seul couple. » Ibid., p 164-65.
185
44
Essa síntese continua popular ainda hoje na Igreja católica, presente de certo
modo no Catecismo de 1993 (CCC, 374-79, 390, 400),193 e tem seus defensores.194 Contudo, a
maioria dos teólogos favoreceram uma reinterpretação da doutrina à luz da evolução e não
somente de uma reconciliação entre as duas, ou seja, aceitaram o poligenismo e não
defenderam o monogenismo.
1.4.2 As reinterpretações da doutrina à luz da evolução
Existe muita variedade nas representações do pecado original, 195 embora seja
possível identificar três grandes linhas na teologia católica.
1.4.2.1 Teilhard de Chardin e a síntese científico-cristã
A primeira proposta é inspirada no pensamento de Teilhard de Chardin. O sábio
Jesuíta identifica o pecado com a imperfeição natural do universo no processo da unificação,
do qual os seres humanos também são sujeitos.196 O segundo capítulo dará uma exposição
completa dessa proposta.
Schmitz-Moormann e Haught sistematizam os princípios de Teilhard do ponto de
vista teológico.197 Schmitz-Moormann argumenta que, pelo fato de que a corrupção exista em
cada nível do universo e cada entidade tem a possibilidade de se desintegrar, então existe a
‘liberdade’ em todos os movimentos para permanecer, desenvolver-se ou destruir-se. No nível
193
O Catecismo não fala sobre a evolução ou de monogenismo nesses parágrafos, mas afirma a doutrina clássica
do ser humano criado na graça da justiça original, com a alma criada diretamente por Deus, e o primeiro pecado
de Adão e Eva como “um evento primordial” no começo da história humana, e a transmissão do pecado original
por geração em virtude da unidade do gênero humano em Adão.
194
Kemp recentemente propôs um argumento muito similar ao de Labourdette, ou seja, de um monogenismo
teológico dentro de um poligenismo biológico, “That account can begin with a population of about 5,000
hominids, beings which are in many respects like human beings, but which lack the capacity for intellectual
thought. Out of this population, God selects two and endows them with intellects by creating for them rational
souls, giving them at the same time those preternatural gifts the possession of which constitutes original justice.
Only beings with rational souls (with or without the preternatural gifts) are truly human. The first two
theologically human beings misuse their free will, however, by choosing to commit a (the original) sin, thereby
losing the preternatural gifts, though not the offer of divine friendship by virtue of which they remain
theologically (not just philosophically) distinct from their merely biologically human ancestors and cousins.
These first true human beings also have descendants, which continue, to some extent, to interbreed with the nonintellectual hominids among whom they live […] Throughout this process, all theologically human beings would
be descended from a single original human couple (in the sense of having that human couple among their
ancestors) without there ever having been a population bottleneck in the human species. This scenario
accommodates both the genetic evidence and theological doctrine (if that it be) of monogenesis.” KEMP,
Science, theology, p. 231-32.
195
Dois bons resumos mais amplos das propostas recentes são CONNOR, Original sin, e McDERMOTT,
Theology of original sin.
196
TEILHARD DE CHARDIN, Reflections on original sin, p. 197.
197
SCHMITZ-MOORMANN, Die erbsünde.
45
humano, essa liberdade manifesta a si mesma no livre arbítrio de cada pessoa. Mas, porque o
erro e a fraqueza são inevitáveis num universo material em evolução, o pecado, como um ato
escolhido contra o movimento progressivo do universo, é também inevitável. Isso é
estatisticamente necessário na tensão entre a matéria e o processo evolutivo. 198 Haught
concorda com isso, mas dá mais espaço para a responsabilidade humana, 199 que escolhe a
atração do ‘múltiplo’ em vez da unificação no ‘Ômega-Deus’. 200 Ele dá mais espaço também
para a história e os dados bíblicos. 201 Para os dois, a redenção é universal e significa a
destruição da morte, e a dinâmica da salvação de Cristo é basicamente a luta contra o
‘múltiplo’ para a unificação no ponto Ômega. 202
A outra maneira de desenvolver o pensamento de Teilhard vem não dos teólogos
mas dos biólogos. Nas últimas décadas, vários biólogos viram uma homogeneidade entre o
comportamento dos animais e o dos humanos. A sócio-biologia tenta criar modelos e teorias
para explicar essas atividades em conformidade com os princípios da evolução. Então, em vez
de colocar o princípio fundamental do pecado na desintegração do universo, alguns propõem
uma explanação puramente biológica. Os instintos de preservação e de reprodução e as
dinâmicas sociais entre as populações explicam os ‘pecados’ humanos. Domning fala sobre o
‘egoísmo original’ que é o instinto de preservação de si mesmo que todos os seres vivos
possuem. 203 Quando os animais se tornam livres, como no caso do ser humano, abre-se o
espaço para a responsabilidade pessoal e então, para o pecado. 204 Em termos similares,
Peterson fala sobre a ‘queda para cima’, em relação ao ‘pecado original’, 205 e o ‘pecado’ do
ser humano é um produto inevitável do animal que se torna livre e responsável. Williams
adota uma posição muito similar, mas foca no conflito natural entre os indivíduos como o
lugar da imoralidade. 206 Os três têm um método similar ao de Teilhard: o de reinterpretar a
doutrina à luz dos dados científicos, empíricos e teóricos.207
Em geral essas propostas sofrem de uma falta do conhecimento bíblico e teológico
sobre a doutrina do pecado original. Por exemplo, uma investigação mais profunda dessas
198
Ibid., p. 199-215.
HAUGHT, Deeper than Darwin, p. 174.
200
Ibid., p. 175.
201
Ibid., p. 175.
202
Para um resumo, veja: McDERMITT, Theology of original sin, p. 497-98.
203
DOMNING, Original selfishness, p. 105.
204
Ibid., p. 118.
205
PETERSON, Falling up, p. 273s.
206
WILLIAMS, Doing without Adam, p. 143.
207
Somente Domning reconhece explicitamente uma influência de Teilhard em sua proposta. Veja: DOMNING,
Original selfishness, p. 172s.
199
46
fontes revelaria que um pecado não é simplesmente um ato imoral, mas uma rejeição de Deus.
No desejo de conformar a fé cristã com a ciência, emergem algumas distorções da fé cristã.
Por isso, a maioria dos teólogos buscaram outras respostas para o problema.
1.4.2.2 Os personalistas
Vanneste tenta reinterpretar o pecado original de modo ‘personalista’. Ele reduz o
pecado original à universalidade dos pecados atuais, rejeitando a ideia do pecado ‘da
natureza’. 208 Por isso, ele interpreta o desenvolvimento da doutrina no tempo de Santo
Agostinho como a afirmação da necessidade universal da redenção em Cristo, “O pecado
original é a necessidade de cada homem para a redenção de Cristo.”209 O argumento central de
Agostinho contra os pelagianos, na justificação do batismo das crianças, é que elas precisam
da graça de Cristo, e por isso elas têm que estar num estado do pecado.210 Para Vanneste, esse
estado do pecado é o fato delas não estarem ‘em Cristo.’211 A questão da concupiscência é
secundária e deve ser entendida através de uma analogia com a habituação dos pecados
pessoais.212 Ele rejeita a herança do pecado, a narrativa clássica da queda, e as tentativas de
explicar o pecado em termos quase-científicos ou psicológicos.213 Por isso Vanneste não trata
da evolução ou do poligenismo.
Flick e Alszeghy oferecem uma terceira opção personalista para o pecado original.
Ao contrário de Vanneste, eles se preocupam mais com a evolução e a solidariedade de todos
os seres humanos no pecado. Eles afirmam que, “O pecado original é uma alienação dialogal
com Deus, isso é, a incapacidade de amar Deus sobre todas as coisas, dependente de um
pecado cometido no começo da história e solidário com todos os demais pecados do
mundo.”214 O ser humano, como pessoa, é criado para um diálogo com Deus, e deve orientarse para Deus como sua opção fundamental, ‘com todo o seu coração’ (cf. Dt 6,4-6). No
momento dos primeiros humanos, o convite para esse diálogo, que era a oferta da vida da
graça, foi rejeitado. Eles perderam a oportunidade para um novo nível de vida e entraram num
208
VANDERVELDE, Original sin, p. 262.
“Original sin is the need of every man for redemption by Christ.” VANNESTE, Toward a theology, p. 209.
210
Ibid., p. 211.
211
Ibid., p. 212.
212
Ibid., p. 213.
213
Ibid., p. 213.
214
“El pecado original es la alienación dialogal con Dios, esto es, la incapacidad de amar a Dios sobre todas las
cosas, dependiente de un pecado cometido al comienzo de la historia y solidario con todos los demás pecados del
mundo.” FLICK–ALSZEGHY, El Hombre bajo, p. 263.
209
47
estado contrário a Deus. 215 O estado do pecado original é o de uma incapacidade para o
diálogo vertical com Deus, que existe antes de qualquer decisão pessoal.216 Porque todos os
seres humanos existem em solidariedade uns com os outros, todos crescem no estado de
privação da graça e no ‘pecado do mundo’.217 Em relação ao poligenismo e à evolução, a
transmissão desse estado acontece não porque todos são descendentes do Adão histórico
(Flick e Alszeghy aceitam o poligenismo), mas porque o pecado do Adão histórico (eles
aceitam um primeiro pecado histórico) afeta todos os que estão em solidariedade com ele,
uma concepção similar a uma personalidade corporativa.218 A concupiscência é secundária e é
entendida em relação à incapacidade para um diálogo com Deus.219 Através da renovação em
Cristo, é possível superar a concupiscência e ter uma opção fundamental por Deus.220
Os personalistas tocam dois pontos muito importantes sobre a doutrina do pecado
original, a centralidade da graça e não da concupiscência, e a distinção, em Flick e Alszeghy,
entre o pecado como uma opção fundamental diante de Deus e os atos pecaminosos. Mas, os
problemas com a evolução ainda continuam. Vanneste ignora o problema, e a resposta de
Flick e Alszeghy falha em responder às dificuldades. Sua defesa do primeiro pecado, significa
que eles são afetados das mesmas dificuldades em relação a sua influência universal e a
transferência da responsabilidade para outros que enfraquecem a doutrina clássica. Além
disso, a questão ainda permanece: se a solidariedade humana é suficiente para explicar a
transmissão? Eles não desenvolvem isso. A antropologia cristã ainda não se harmoniza bem
com a evolução.
1.4.2.3 Os situacionistas
Os situacionistas focam suas articulações na história do ser humano e do pecado, e
tentam responder ao problema da origem e da transmissão dentro deste quadro. Rahner
constrói sua resposta baseado na ideia que cada liberdade humana é co-determinada pela
culpa alheia, que é uma situação universal, permanente e, portanto, original. 221 O terceiro
capítulo apresentará sua proposta com mais detalhes.
215
Ibid., p. 361.
Ibid., p. 332-33.
217
Ibid., p. 369.
218
Ibid., p. 378-79.
219
Eles definem a concupiscência como, “la dificultad para escoger cualquier bien o para influir en cualquier
tendencia a reforzar el amor de Dios.” Ibid., p. 414.
220
Ibid., p. 415.
221
CFF, p. 136.
216
48
Schoonenberg desenvolve as contribuições de Rahner a partir de uma reflexão da
Sagrada Escritura.222 Ele também descreve o estado de pecado do ser humano em termos de
uma ‘situação’.223 Ele define a situação como, “[...] a totalidade das circunstâncias na qual
alguém ou algo permanece num certo momento, a totalidade das circunstâncias
predominantes num certo ambiente.”
224
Cada pessoa é ‘situada’ existencialmente e
historicamente, e a situação afeta suas ações. Ele usa este conceito para explicar a frase
bíblica do ‘pecado do mundo’ (Jo 1,29). As atitudes más e os pecados dos outros, da
comunidade, da sociedade, combinam para criar o ‘pecado do mundo’, que é a situação em
que cada pessoa existe. No fundo, ele percebe aqui uma rejeição da graça de Deus e uma
usurpação do mundo.225 A leitura de Schoonenberg lhe permite explicar a influência de todos
os pecados da humanidade na situação das pessoas, não reduzindo o pecado original ao
pecado de Adão.226 O pecado do mundo, segundo ele, explica a transmissão do pecado em
termos históricos, e, então, evita a dificuldade de defender a herança do pecado de um modo
quase-biológico.227 Finalmente, Schoonenberg pode reconciliar a ideia de pecado do mundo
com o poligenismo e a antropologia evolucionista, porque o pecado do mundo tem uma
história de desenvolvimento. 228 A situação de pecado do mundo, como universal, também
destaca a necessidade da redenção em Cristo para todos.229
A influência da proposta de Schoonenberg é muito ampla na teologia católica.
Com algumas distinções, a maioria dos teólogos adota as linhas gerais de sua reflexão.
Rondet, utilizando o conceito da ‘situação’, vê uma unidade da humanidade na história da
salvação, com Adão como um representante da coletividade, e o pecado original como a
totalidade dos pecados pessoais que imprimem à natureza humana. 230 Baumgartner conecta a
ideia da privação da graça, que aliena o ser humano de Deus, com a desordem moral do ser
humano. 231 Para explicar a transmissão do pecado, ele aproveita a noção da ‘situação’ de
222
Para entender a relação entre Schoonenberg e Rahner, veja: VANDERVELDE, Original sin, p. 58-59, 84-85.
Basicamente, Schoonenberg articula o conceito da ‘situação’ histórica do ser humano a partir da filosofia
existentialista de Rahner e da Sagrada Escritura.
223
SCHOONENBERG, Man and sin, p. 104.
224
“[…] the totality of the circumstances in which somebody or something stands at a certain moment, the
totality of the circumstances prevailing in a certain domain.” Ibid., p. 104-05.
225
Ibid., p. 110.
226
Ibid., p. 177.
227
Ibid., p. 186-87.
228
Ibid., p. 188-89.
229
Ibid., p. 190.
230
RONDET, Le péché originel, p. 316, 321, 323
231
BAUMGARTNER, Le péché originel, p. 162.
49
Schoonenberg.232 Dubarle enfatiza a privação da graça no estado do pecado original, e usa o
pecado do mundo para explicar sua transmissão e a solidariedade da humanidade no
pecado.233 Martelet utiliza as ideias do pecado do mundo e da história do pecado infectando a
pessoa dentro de uma visão Ireneísta do mundo,234 com mais força no pecado de Adão como o
pecado inaugural e especial. 235 Ladaria aceita o pecado do mundo como a situação que
transmite o pecado original, e, com Martelet, enfatiza a importância do primeiro pecado como
o início do movimento da história pecaminosa. 236 A teologia da libertação desenvolve as
ideias de Schoonenberg, não para a doutrina do pecado original, mas para nomear a situação
do mal no mundo, encarcerado nas ‘estruturas’ de pecado.237 Weger ocupa a mesma escola do
pensamento de Schoonenberg, mas segue mais a antropologia de Rahner em sua
interpretação.238
Pode-se concluir que a proposta comum dos teólogos hoje é a dos situacionistas.
Ela reconcilia os dados bíblicos e as tensões da doutrina com a teoria da evolução. O pecado
do mundo é fácil de se entender e de se ver hoje. Contudo, sua proposta tem recebido algumas
críticas. Schoonenberg reduz a geração do pecado a um patrimônio cultural. Flick e Alszeghy
argumentam que uma sociedade pecaminosa não impede o próprio desenvolvimento pessoal,
e também uma alta virtuosidade, mesmo com um sacrifício pessoal e os projetos para o bem
comum. 239 Então, a ‘situação’ realmente explica o coração da doutrina, a escravidão ao
pecado? Entraremos nessa discussão no terceiro capítulo.
1.5 Conclusão
Os resultados desta investigação são os seguintes. Pode-se afirmar, pelo menos, que a
doutrina do pecado original desenvolve aspectos importantes do testemunho bíblico sobre o
pecado. Além disso, a teologia de Agostinho não fica isolada das afirmações básicas da
doutrina, e recebeu a aprovação, apenas parcial, do Magistério. Mas, a concepção clássica tem
quatro problemas ainda não resolvidos (o efeito universal, a transmissão, a responsabilidade
pessoal e a concupiscência). Além disso, a evolução levanta outros problemas (o paraíso, o
232
Ibid., p. 163-64.
DUBARLE, Le péché originel perspectives, p. 110-111, 129-30.
234
MARTELET, Libre réponse, p. 70-71.
235
Ibid., p. 68-69.
236
LADARIA, Teologia del pecado, p. 127-28.
237
Por exemplo, cf. GUTIERREZ, Teología de la liberación, p. 112.
238
WEGER, Theologie der erbsünde, p. 478-82.
239
FLICK–ALSZEGHY, El hombre bajo, p. 192.
233
50
monogenismo, e também a transmissão). As diversas respostas a essas dificuldades revelam a
complexidade do tópico mas também os recursos possíveis para o teólogo que quer encontrar
uma interpretação que é bíblica, fiel à doutrina, consistente em si mesma e compatível com a
evolução. Com esses seis problemas claramente articulados, estamos numa posição para
avaliar as posições de Teilhard de Chardin e Karl Rahner.
51
52
2 TEILHARD DE CHARDIN SOBRE O PECADO ORIGINAL
2.1 Introdução
A reflexão de Teilhard sobre o pecado original tem uma história turbulenta. Que
este tema tenha ocupado sua mente é notável pelo fato de que ele o considerou em seus
escritos desde o começo de sua vida literária até o fim, sobretudo em: A queda, redenção e o
geocentrismo (1920), Sobre algumas representações possíveis do pecado original (1922) e
Reflexões sobre o pecado original (1947), e tratou o problema da queda e da história de Adão
e Eva em dois outros lugares: Cristologia e a evolução (1933), e Cristo o evolutor (1942), e
falou sobre o monogenismo em O fenômeno humano (1940), Monogenismo e monofiletismo
(1950) e A continuação ao problema da origem humana (1953).1 Mas sua teoria não foi bem
recebida e, por isso, nenhuma dessas obras foram publicadas durante sua vida. A primeira
reflexão, de 1920, escrita do ponto de vista do geólogo, levantou uma denúncia de seus
superiores e uma petição para assinar uma declaração.2 Depois disso, estes escritos foram
distribuídos somente de forma privada.
Embora sua proposta parecesse contra a doutrina clássica do pecado original, ele
não a mudou. Ao contrário, ele a desenvolveu e a refinou com o tempo. Por que? Porque
como cientista ele acreditava que a doutrina clássica, a história literal de Adão e Eva, a queda
e o monogenismo eram incompatíveis com a evolução. Ele diz:
Quando se busca viver e pensar, com a alma moderna, o cristianismo, as
primeiras resistências que se encontra vêm sempre do pecado original. Isso é
verdade primeiro do pensador, para quem a representação tradicional da
queda impede decididamente o caminho a todo progresso no sentido de uma
ampla perspectiva do mundo. É de fato para salvar a letra da narrativa da falta
que se dedicaram os que dependem a realidade concreta do primeiro casal.3
Segundo nosso autor, diante de um mundo cada vez mais formado pela visão da ciência
moderna, era necessário reinterpretar a doutrina do pecado original à luz da evolução para
manter a credibilidade do cristianismo.
1
Todas as datas são tomadas da cronologia das obras de Teilhard em GRUMETT, Teilhard de Chardin, p. 27781.
2
SMULDERS, A visão de Teilhard, p. 18.
3
« Lorsqu’on cherche à vivre et à penser, de toute âme moderne, le Christianisme, les premières résistances que
l’on rencontre viennent toujours du Péché originel. Ceci est vrai d’abord du chercheur, pour qui la représentation
traditionnelle de la Chute barre décidément la route à tout progrès dans le sens d’une large perspective du
Monde. C’est en effet pour sauver la lettre du récit de la Faute qu’on s’acharne à défendre la réalité concrète du
primier couple. » CE, p.98.
53
2.1.1 A interpretação das obras de Teilhard
Os textos de Teilhard não são fáceis de interpretar. São escritos científicos ou
teológicos? São reflexões pessoais ou refletem suas experiências místicas? Martelet diz que o
pensamento de Teilhard não é um sistema, mas uma reflexão sobre o ser humano, a evolução
e Cristo, e que Teilhard é um profeta que inspira a Igreja nesta época.4 Vaz percebe uma
intenção apologética em Teilhard, que tenta “mostrar que o problema da mensagem do
Cristianismo, como seus dogmas fundamentais da Encarnação, da Redenção, da Consumação
final, pode encontrar seu lugar orgânico dentro da visão científica moderna.” 5 De Lubac
argumenta que Teilhard não foi um teólogo ou filósofo, mas um místico, que refletiu
profundamente sobre os fenômenos do universo e as descobertas da ciência, em busca de uma
síntese maior.6 Nesse sentido, seus escritos são únicos. Por isso, este capítulo, embora tente
dar uma síntese da reflexão de Teilhard sobre o pecado original, tem que ter cuidado para não
interpretar suas ideias de modo rigorosamente teológico.
O objetivo de Teilhard é articular uma visão universal da realidade. Smulders
explica:
Teilhard está convencido de que esta separação entre a ciência e a fé não pode
ser a última palavra. Ele se acha colocado no coração da ciência natural
moderna, vê como esta tende a se tornar uma ciência universal, portanto, uma
visão e uma concepção do mundo. Esta tendência provém da própria natureza
da ciência, que tem por objeto ‘a busca até o fim’, que não descansará
enquanto não houver apreendido em uma só visão a totalidade dos
fenômenos. Conhecimento é visão da unidade. Esta tendência a se realizar
numa concepção do universo, conforme a natureza da ciência e a do homem,
não deve, pois, ser má, mesmo se ela recorre a uma concepção da ciência um
pouco mais ampla.7
Teilhard não absorve a teologia dentro da ciência ou a ciência dentro da teologia, mas
desenvolve uma visão que dá conta das duas e as harmoniza através de uma série de
princípios comuns. Nesse sentido, seu pensamento representa uma reinterpretação da ciência
e da teologia cristã, no intuito de articular uma teoria completa que dê conta da totalidade dos
fenômenos. Teilhard tenta superar qualquer tipo de dualismo ou conflito entre a visão
científica e a visão cristã do mundo.8
O pensamento de Teilhard começa com a teoria da evolução. Seu enfoque
consiste em olhar a realidade em todos os seus níveis, cósmico, humano e divino, como
4
MARTELET, Teilhard de Chardin, p. 24.
VAZ, Universo científico, p. 103.
6
DE LUBAC, La pensée religieuse, p. 115-19.
7
SMULDERS, A visão de Teilhard, p. 34-35.
8
VAZ, Universo científico, p. 104.
5
54
processo de transformação da criação.9 Ele diz, “[a evolução] é uma condição geral à qual
devem obedecer e satisfazer doravante, para serem concebíveis e verdadeiras, todas as teorias,
todas as hipóteses, todos os sistemas. Uma luz que ilumina todos os fatos, uma curvatura que
todos os traços devem acompanhar, eis o que é a Evolução.” 10 Ele constrói uma visão
fenomenológica, metafísica, antropológica e teológica através desta chave conceitual.
Portanto, ele não trata a questão do pecado original do ponto de vista bíblico ou mesmo
teológico, mas do ponto de vista evolucionista. Primeiro ele desenvolve uma metafísica e uma
antropologia que deem conta da evolução. Depois ele mostra como as crenças básicas do
cristianismo podem ter uma certa congruência com esta visão. Por isso, temos que explicar
brevemente esta metafísica e esta antropologia de nosso autor antes de entrar na discussão
sobre o pecado original. 11
2.2 A antropologia de Teilhard de Chardin
2.2.1 A origem dos homens dentro da evolução
A irrupção do ser humano na terra é o resultado do processo da evolução. Através
da evidência do ambiente, da morfologia e da estrutura do grupo,12 Teilhard conclui que, “ele
[ser humano] emerge filéticamente aos nossos olhos, exatamente como qualquer outra
espécie.”13 Ele não tem dúvida que o ser humano é um produto da evolução e compartilha o
mesmo filo com os primatas.14 Isso é um fato indiscutível da ciência. 15 Mas como, então, um
animal racional pode emergir de um processo meramente biológico?
A diferença aparente entre o ser humano e os outros animais tem sua explanação
na metafísica da evolução. Teilhard admite que para a ciência positivista o ser humano ainda
não tem seu espaço próprio no universo. A física e a biologia podem explicar os aspectos
físicos e biológicos do ser humano, mas ainda falta a explicação da inteligência e da
consciência de si mesmo. 16 Mas nosso autor pode responder à pergunta: como o ser humano
9
Aqui Smulders concorda, “Para Teilhard a evolução é um fato inconcluso.” Ibid., p. 42.
FH, p. 235.
11
Esta exposição privilegiará Le Phénomène Humain porque representa o pensamento mais desenvolvido e
sistematizado de Teilhard sobre esses assuntos.
12
FH, p. 193-94.
13
Ibid., p. 193.
14
Ibid., p. 195.
15
TEILHARD DE CHARDIN, Le Christ évoluteur, p. 164.
16
FH, p. 167.
10
55
inteligente pode ser um produto de um mecanismo biológico? Pelo processo da
complexificação e da energia radial a emergência é possível.
Contra o fíxismo da física dos séculos XVIII e XIX, Teilhard propõe um universo
em processo de complexificação. Ele explica que:
A Evolução da Matéria reduz-se, nas teorias atuais, à edificação gradual, por
complicação crescente, dos diversos elementos reconhecidos pela FísicoQuímica. Em baixo de tudo, para começar, uma simplicidade ainda indecisa,
indefinível em termos de um formigueiro de corpúsculos elementares,
positivos e negativos (protões, neutrões, electrões, fotões...), cuja lista
aumenta sem cessar. Depois, a série harmónica dos corpos simples, que se
estendem do Hidrogénio, ao Urânio, pelas notas da gama atómica. E, em
seguida, a imensa variedade dos corpos compostos, cujas massas moleculares
vão subindo até um certo valor crítico acima do qual, como veremos, se passa
para a Vida. Nem sequer um termo desta longa série que possa deixar de ser
olhado, com base em boas provas experimentais, como um composto de
núcleos e electrões. Esta descoberta fundamental, a saber, que todos os corpos
derivam, por ordenação, de um só tipo inicial corpuscular, é o clarão que
ilumina aos nossos olhos a história do Universo. À sua maneira, a Matéria
obedece, desde a origem, à grande lei biológica (a que constantemente nos
referimos), de <complexificação>.17
Deste fenômeno, ele deduz a lei da complexificação, que é fundamental no movimento do
universo. É uma lei porque sem ela não se pode explicar porque existe o processo do
crescimento para corpos cada vez mais complexos e sistemas cada vez mais complicados.
Essa evolução da matéria Teilhard chama de cosmogênese. Segundo nosso autor, os
fenômenos que provam conclusivamente a realidade dessa lei são a vida e a consciência.
Porém, a lei da complexificação não é suficiente para explicar a emergência da vida e da
consciência.
Teilhard identifica uma força no universo que causa a emergência: a energia
radial. Ele explica que:
A essência do Real, dizia eu então, poderia muito bem ser representada pelo
que o Universo contém, num dado momento, de ‘interioridade’; e, neste caso,
a Evolução nada mais seria, no fundo, senão o aumento contínuo, no decurso
da Duração, desta Energia ‘psíquica’, ou ‘radial’, sob a Energia mecânica ou
‘tangencial’, praticamente constante à escala da nossa observação. Qual será,
aliás, acrescentava eu, a função particular que liga experimentalmente uma à
outra, nos seus respectivos desenvolvimentos, as duas Energias, radial e
tangencial, do Mundo? A ordenação, evidentemente: a ordenação, cujos
progressos sucessivos são acompanhados interiormente, como podemos
verificar, por um aumento e um aprofundamento contínuo de consciência.18
A partir disso, Teilhard tem os fundamentos para explicar a emergência da vida e da
consciência. Elas são o resultado da contínua evolução da matéria através da ‘energia radial,’
17
18
FH, p. 25-26.
Ibid., p. 143.
56
que organiza, complexifica e conscientiza os seres.19 A energia radial funciona como a força
da lei da complexificação-conscientização. Porém, a matéria que está organizada tem que ter
a potência para o ser vivo e a consciência. Por isso, Teilhard desenvolve uma concepção
ampla da matéria.
Para explanar a emergência da vida e da consciência, Teilhard coloca a vida e a
consciência no fundo de todas as coisas. Ele argumenta isso através de uma analogia com o
descobrimento da radiação. A descoberta das propriedades da radiação conduziu ao fato que
ela é um aspecto universal de toda a matéria, “Qualquer corpo irradia.”20 Do mesmo modo,
um fenômeno que parece local e excepcional, como o rádio, pode ter, “em virtude da unidade
fundamental do Mundo, um valor e raízes ubiquistas.”21 A consciência aparece somente com
o ser humano. Teilhard conclui, “portanto, entrevista neste único clarão, ela [a consciência]
possui uma extensão cósmica e, como tal, aureola-se de prolongamentos espaciais e temporais
indefinidos.” 22 Esse fato explica como a consciência emerge. Estava lá antes. Da mesma
maneira ele conclui que, “Numa perspectiva coerente do Mundo, a Vida supõe
inevitavelmente, e a perder de vista antes dela, a Pré-Vida.”23 Por isso, nosso autor rejeita o
materialismo como uma explicação insuficiente.24 Ele também acha que colocar a consciência
como somente um epifenômeno leva à perda da verdade da unidade do universo.25 O universo
tem a consciência como um princípio fundamental, o espiritual no fundo de tudo e, com isso,
a pré-vida. A evolução é a explicitação desses aspectos universais.
O processo da cosmogênese leva para a emergência da vida e da consciência. A
energia radial impulsiona as substâncias químicas da terra para uma maior organização e
ordenação até o momento em que elas voltam para si mesmas e alcançam uma unidade e
interiorização maior. A complexificação e a conscientização acontecem ao mesmo tempo. A
célula aparece nas águas da terra e cria a biosfera.26 A pré-vida em todos os seres do universo
explica a emergência da vida, e a pré-consciência em todos, ou seja, a consciência primitiva,
explica a emergência da consciência humana.
19
Ibid., p. 56.
Ibid., p. 34.
21
Ibid., p. 35.
22
FH, p. 35.
23
Ibid., p. 36.
24
Ibid., p. 32.
25
Numa afirmação típica do pensamento de Teilhard, ele escreve, “Não só o Pensamento a fazer parte da
Evolução como uma anomalia ou um epifenômeno; mas a Evolução tão redutível e identificável a uma marcha
para o Pensamento que o movimento na nossa alma é a expressão e a medida dos próprios progressos da
Evolução.” Ibid., p. 237.
26
Ibid., p. 63.
20
57
O mesmo processo promove a emergência da auto-consciência. Teilhard acredita
que os seres vivos mais primitivos são conscientes, num sentido amplo,27 evidenciado pelo
fato da organização em si mesma e da unidade de suas atividades. A evolução da vida segue a
lei da complexificação, que é ao mesmo tempo a ampliação da consciência. Dentro desse
movimento Teilhard aponta o sistema nervoso como central, onde a espécie, com um sistema
mais complexo, é também mais consciente. Ele conclui que, “temos todas as razões para
pensar que também nos animais existe um certo dentro, aproximativamente mensurável pela
perfeição de seu cérebro.” 28 A complexificação do cérebro causa um crescimento da
consciência, até o momento em que a consciência torna-se consciente de si mesma. 29 Mas
aqui Teilhard corre o risco de reduzir o ser humano ao um mero animal, sem distinção. A
forte continuidade evita a clara descontinuidade. Por isso, ele contrabalança sua posição.
Teilhard enfatiza que a descontinuidade entre o primata e o ser humano é uma
‘mudança de estado’. Ele argumenta que a continuidade no nível morfológico (corporal e
fisiológico) esconde o grande avanço no nível da reflexão.30 Ele explica que:
Do ponto de vista experimental, que é o nosso, a Reflexão, como a própria
palavra o indica, é o poder adquirido por uma consciência de se dobrar sobre
si mesma e de tomar posse de si mesma como de um objeto dotado de sua
própria consistência e do seu próprio valor: já não só conhecer – mas
conhecer-se a si próprio; já não só saber – mas saber que se sabe. Com esta
individualização de si próprio no fundo de si próprio, o elemento vivo, até aí
espalhado e dividido sobre um círculo difuso de percepções e de atividades,
acha-se constituído, pela primeira vez, em centro puntiforme onde todas as
representações e experiências se enlaçam e se consolidam num conjunto
consciente de sua organização. [...] O ser reflexivo, precisamente em virtude
da sua inflexão sobre si mesmo, torna-se de repente susceptível de se
desenvolver numa esfera nova. Na realidade, é outro mundo que nasce.
Abstração, lógica, opções e invenções ponderadas, matemáticas, arte,
percepção calculada do espaço e da duração, ansiedades e sonhos do amor.31
Além disso, o passo para a reflexão é um grande salto, num único ‘momento’, que implica
uma mudança de estado. Ele favorece a analogia da ebulição que explica essa ‘mudança de
estado’. Como um líquido se torna gás através de ebulição, o passo para a reflexão representa
27
Cf. Ibid., p. 36.
Ibid., p. 144. Essa citação apoia a proposta de Grummett de que a concepção da evolução de Teilhard segue a
linha de Lamarck e não a de Darwin. Ele diz, “The true context for Teilhard’s study of evolution, crucially, is
Lamarckian…..Lamarck argued that all action is governed by a primoridial sentiment intérieure situated within
an overarching teleology provided by a universal power which orders the universe in accordance with divine
will. These beliefs are broadly identifiable as elements of Aristotelian and scholastic natural law theory. If
Lamarck preserves them, then Teilhard reappropriates them for theology in order to compensate the deficiencies
in Darwinianism.” GRUMMETT, Teilhard de Chardin, p. 199-200.
29
FH, p. 169.
30
Ibid., p. 167, 173, 176.
31
Ibid., p. 169-70.
28
58
um novo nível do ser, um novo nível da energia que aconteceu num momento.32 Ele rejeita
então a possibilidade de um intermédio entre a pré-reflexão e a reflexão.33 Esse salto não tem
que ser outro, em termos de evolução, que uma mutação,34 ou, em termos de química, uma
mudança de estado. De fato, Teilhard pode afirmar tanto a continuidade corporal quanto a
descontinuidade espiritual entre os primatas e o ser humano.35
2.2.2 O poligenismo
O desenvolvimento de uma antropologia baseada na teoria da evolução leva à
rejeição do monogenismo. O fato de Teilhard aceitar que o ser humano é um produto da
evolução como as outras espécies, 36 o leva a concluir que, “O Homem entrou [no mundo] sem
ruído,” 37 ou seja, sem uma grande transformação ou intervenção no universo. Segue
logicamente que, “o <primeiro homem> é, pois, e não pode deixar de ser, uma multidão: e a
32
Teilhard explica plenamente, “Quando a água, sob pressão normal, atinge 100 graus, se continuamos a
aquecê-la, o primeiro acontecimento que se segue – sem mudança de temperatura – é a tumultuosa expansão das
moléculas libertadas e vaporizadas. – Quando, ao longo do eixo ascendente de um cone, as secções se sucedem,
com uma área constantemente decrescente, chega o momento em que, com mais uma deslocação infinitesimal, a
superfície se esvanece, tornando-se ponto. – Assim, graças a estas vagas comparações, podemos imaginar no seu
mecanismo o passo crítico da Reflexão. No fim do Terciário, havia mais de 500 milhões de anos que a
temperatura psíquica subia no mundo celular. De Ramo para Ramo, de Camada para Camada, os sistemas
nervosos, como vimos, iam-se pari passu complicando e concentrando. Finalmente construíra-se, da parte dos
Primatas, um instrumento tão admiravelmente dúctil e rico que o passo imediatamente seguinte não podia ser
dado sem que o psiquismo animal todo inteiro se encontrasse como que refundido e consolidado sobre si mesmo.
Ora o movimento não parou, pois nada, na estrutura do organismo, o impedia de avançar. Ao Antropóide, levado
‘mentalmente’ a 100 graus, foram pois acrescentadas mais algumas calorias. No Antropóide, quase chegado ao
vértice do cone, exerceu-se um último esforço ao longo do eixo. E mais não foi preciso para que todo o
equilíbrio interior se invertesse. O que não era ainda senão superfície centrada tornou-se centro. Devido a um
acréscimo ‘tangencial’ ínfimo, o ‘radial’ voltou-se sobre si mesmo e, por assim dizer, saltou até ao infinito para a
frente. Aparentemente, quase nada de mudado nos órgãos. Mas, em profundidade, uma grande revolução: a
consciência jorrando efervescente, num espaço de relações e de representações supra-sensíveis; e,
simultaneamente, a consciência capaz de se aperceber a si própria na simplicidade concentrada das suas
faculdades – tudo isto pela primeira vez.” FH, p. 173-74.
33
Ibid., p. 178.
34
Ibid., p. 187. O cérebro representa um exemplo perfeito do processo de ‘cosmogênese’ que Teilhard propõe. O
cérebro se torna cada vez mais complexo nos seres vivos, e concordante, eles se tornam mais conscientes. A lei
da complexificação e a lei da conscientização são equivalentes. Por isso, Teilhard pode afirmar com os
materialistas, “Em fim de contas, é verdade, toda a metamorfose hominizante se reduz, do ponto de vista
orgânico, a uma questão de melhor cérebro.” (FH, p. 176). Mas, no mesmo tempo, porque a complexificação
material não esgota a totalidade dos fenômenos presentes na evolução do universo, e especialmente na
hominização, ele adiciona, “a passagem à reflexão é verdadeiramente uma transformação crítica, uma mutação
de zero para tudo, nós não podemos imaginar, neste nível preciso, um indivíduo intermediário.” (FH, p. 177). A
energia tangencial existe em conjunto com a energia radial.
35
Ibid., p. 175.
36
Num lugar o cientista jesuíta afirma claramente que, «[…] personne ne doute plus, parmi les gens compétents,
que l’Homme ne soit apparu sur notre planète, à la fin du Tertiaire, en conformité avec les lois générales de la
spéciation. » TEILHARD DE CHARDIN, Une suite au problème, p. 275.
37
FH, p. 195.
59
sua juventude é feita de milhares e milhares de anos.” 38 A evolução não acontece com
populações minúsculas, mas somente com grupos relativamente grandes. De fato, Teilhard
argumenta que o monogenismo não pode ser uma teoria científica. Um casal primordial é
indiscernível cientificamente e historicamente. 39 O monogenismo e o poligenismo são
propostas teológicas e não científicas. 40 A biologia não pode refutar o monogenismo, a
existência de Adão e Eva, mas as leis da especiação tornam a hipótese inaceitável. 41
Contudo, Teilhard propõe a unidade filética do ser humano. Ele diz, “se a ciência
do Homem nada pode afirmar diretamente pró ou contra o monogenismo... em contrapartida,
ela se pronuncia decididamente, ao que parece, em favor do monofiletismo (um único filo).”42
Teilhard considera que a evidência antropológica e paleontológica apontam para o fato de
que, “Todas as linhagens humanas, neste caso, se reuniriam geneticamente, para baixo.”43 O
ser humano não é uma mistura de duas ou mais linhas dos primatas, mas o resultado da
evolução de uma só linha. Portanto, o ser humano é uma família com uma história e uma
origem. As implicações teológicas para essa afirmação se tornarão evidentes mais adiante.
2.2.3 A noosfera
Teilhard chama o novo nível da realidade que emerge com a auto-consciência a
noosfera. Com a consciência de si mesmo, os instintos e as atividades animais passam por
uma metamorfose. O instinto sexual torna-se amor e a moral sexual, o instinto de preservação
da vida, guerra e competições na sociedade; o instinto de alimentação, gosto de apreender,
devorar e cozinhar; a inclinação de ver, o prazer da investigação e a pesquisa; o desejo de
aproximação, a vida em sociedade e a moralidade. 44 Então, o novo nível não pode ser
reduzido ao biológico. Ultrapassa o biológico, e por isso precisa-se das outras ciências, como
38
Ibid., p. 195.
“Nas profundidades do tempo em que se situa a hominização, a presença e os movimentos de um casal único
são positivamente inapreensíveis, indiscerníveis para o nosso olhar directo, qualquer que seja o aumento. De
modo que se poderia dizer que há lugar, neste intervalo, para tudo o que venha a exigir uma fonte
transexperimental de conhecimento.” Ibid., p. 195.
40
Depois da Encíclica Humani generis Teilhard escreve uma breve clarificação desse debate onde ele diz, « Par
suite de l’impossibilité de fait où se trouve (et se trouvera sans doute toujours) la Science de grossir assez
fortement le passé paléontoligique pour distinguer des individus, - c’est-à-dire de discerner, très loin en arrière,
autre chose que des populations, le mono- et polygénisme sont en réalité des notions purement théologiques,
introduites pour raisons dogmatiques, mais extra-scientifiques par nature (en tant qu’expérimentalement
invérifiables). » TEILHARD DE CHARDIN, Monogénisme et monophylétisme, p. 247.
41
Ibid., p. 248.
42
FH, p. 198.
43
Ibid., p. 198.
44
Ibid., p. 187.
39
60
a psicologia e a sociologia. Além disso, essa noosfera também evolui através da história,
evidenciada, no progresso da civilização humana.45
Na visão de Teilhard, a noosfera cresce e se espalha na terra. Ele diz que:
Em volta da centelha das primeiras consciências reflexivas, os progressos de
um círculo de fogo. O ponto de ignição alargou-se. O fogo ganha terreno.
Finalmente, a incandescência envolve todo o planeta. Uma única
interpretação, um único nome se encontram à medida deste grande fenômeno.
É verdadeiramente uma camada nova, a ‘camada pensante’, exatamente tão
extensiva, mas muito mais coerente ainda, como veremos, do que todas as
camadas precedentes, que, após ter germinado no Terciário declinante, se
expande desde então por cima do mundo das Plantas e dos Animais: fora e
acima da Biosfera, uma Noosfera.46
Então, a emergência do pensamento no processo da evolução significa a elevação do cosmos
e do bios no ser humano. Porém, o ser humano não é o centro, mas o mais alto, da síntese
cósmica.47
A elevação do cosmo não pára com a consciência do ser humano, mas continua a
uma super-vida. O caráter da noosfera consiste na transferência e comunicação das ideias e
práticas através da educação e da imitação.48 Nesse sentido, ela é a continuação do mesmo
processo de evolução no nível da consciência. Teilhard chama esse movimento noogênese,
que é parte da grande cosmogênese. 49 A noosfera tem uma direção também, evidente no
desejo do ser humano desenvolver o mundo, a si mesmo e seu conhecimento. O ser humano
avança pelo fato que ele tem uma esperança pelo melhor.50 Mas, essa esperança não acaba
neste mundo. O pensamento busca um progresso universal e duradouro,51 que não encontra na
terra. Esse desejo então é inútil, ou existe um nível que o satisfaz. Teilhard percebe que, “a
Vida, levada até ao seu grau pensante, não pode continuar sem que, por estrutura, exija subir
cada vez mais alto.”52 Por isso ele conclui que, “há para nós, no futuro, sob qualquer forma,
pelo menos coletiva, não só sobrevivência, mas sobrevida.”53
45
Ibid., p. 187-88. Teilhard descreve a evolução da civilização, baseado na evidência da paleontologia, no
capítulo II da segunda parte, ‘O Desdobramento da Noosfera’, p. 201-27.
46
FH, p. 190-91.
47
Ibid., p. 241. Smulders enfatiza esse ponto: SMULDERS, A visão de Teilhard, p. 57. 88.
48
FH, p. 243.
49
Ibid., p. 247.
50
Ibid., p. 250.
51
Ibid., p. 251.
52
Ibid., p. 252.
53
Ibid., p. 253. Num outro lugar Teilhard afirma mais claramente, « Par sa fraction axiale, vivante, l’Univers
dérive, simultanément et identiquement, vers le super-complexe, le super-centré, le super-conscient. »
TEILHARD DE CHARDIN, Le Christ évoluteur, p. 166.
61
2.2.4 O ponto Ômega
Teilhard imagina o futuro da cosmogênese como uma convergência de todo o ser,
através da consciência humana e da noosfera, no ponto Ômega. A noosfera tem a tendência de
unificar o ser humano. Depois de uma olhada na evidência, ele diz que, “Antropologicamente,
etnicamente, socialmente, moralmente, nada se compreende do Homem [...] enquanto não se
vir que, no seu caso, a ‘ramificação’, na medida em que ela subsiste, já não opera senão com
um fim e sob formas superiores de aglomeração e de convergência.”54 Mas, ele não para aí. A
unificação do ser humano só representa uma parte do movimento, que engloba todo o
universo. Nosso autor explana que:
O agrupamento geral em que, por ações conjugadas do Fora e do Dentro da
Terra, encontra-se empenhada, neste momento, a totalidade das potências e
das unidades pensantes – a reunião em bloco de uma Humanidade cujos
fragmentos se soldam e se interpenetram sob os nossos olhos apesar e mesmo
à proporção dos esforços que fazem para se separarem [...] não vejo outra
maneira coerente, e portanto científica, de agrupar esta imensa sucessão de
fatos senão interpretando no sentido de uma gigantesca operação
psicobiológica – como uma espécie de megassíntese, - a ‘superordenação’ a
que todos os elementos pensantes da Terra se acham hoje individualmente e
coletivamente submetidos. 55
A ‘megassíntese’ não dissolverá toda a individualidade em sua unificação. Além disso, o
ponto da convergência, o ponto Ômega, será pessoal, ou seja, hiperpessoal, que unificará as
pessoas espirituais. 56
2.2.5 A atividade de Deus dentro da evolução
A questão da criação, da ação de Deus, não aparece muito nos escritos mais
científicos e filosóficos de Teilhard. No Fenômeno Humano Teilhard evoca Deus somente em
relação ao ponto Ômega. 57 De Lubac comenta isso dizendo que o gênero desse livro é
fenomenológico, que somente deduz as conclusões mais metafísicas para explicar o
fenômeno.58 De fato, Teilhard usa esse método em vários de seus escritos.59 O seu motivo
apologético e sua formação científica provavelmente explicam a razão dessa escolha. No
54
FH, p. 264.
FH, p. 265-66.
56
Ibid., p. 284-85. Vaz sumariza bem o significado do ponto Ômega, “Vemos, então, que, na concepção
teilhardiana, o Ponto Ômega concentra em si várias direções de pensamento: ele é Deus, se o pensamos do ponto
de vista do universo e da possibilidade da Revelação. Ele é Cristo, se o pensamos do ponto de vista da presença
de Deus na Evolução e Cristo prolongando também na atividade salvífica da Igreja, se o pensamos como sentido
definitivo da Evolução, a partir da Encarnação.” VAZ, Universo científico, p. 114.
57
Ibid., p. 283s.
58
DE LUBAC, La pensée religieuse, p. 97.
59
Por exemplo, a reflexão: TEILHARD DE CHARDIN, Comment je crois, p. 117s.
55
62
entanto, ele possui duas obras nas quais reflete, especificamente, a questão da criação: Sobre
a noção da criação transformativa (1920) e O Deus da evolução (1953). Destas obras podese auferir um entendimento sobre a ação de Deus em seu sistema.
Teilhard rejeita qualquer forma estática de criação. Ele critica as categorias
escolásticas de creatio et eductio, baseadas numa visão do universo fixo, como insuficientes
para descrever a transformação do universo à luz do processo da evolução. 60 Nessa
concepção, Deus deixa em movimento o universo que somente pode reproduzir seu mesmo
estado através do tempo. As causas secundárias não têm a força para causar a passagem de
um nível de ser para o outro.61 Tal concepção não dá conta da realidade de um universo em
evolução. Além disso, ele propõe uma fusão das duas categorias, ou seja, uma criação
transformativa. Ele afirma que:
Não há um momento em que Deus cria, e um momento em que as causas
segundas se desenvolvem. Sempre há somente uma ação criativa (idêntica
com a conservação) que continuamente eleva as criaturas para o mais ser, em
favor de sua atividade segunda e seus avanços anteriores. Concebida dessa
maneira, a criação não é a intrusão periódica da Causa Primeira: é um ato coextensivo a toda a duração do universo. Deus cria desde a origem dos tempos,
e, vista de dentro, sua criação (mesmo sua criação inicial?) tem a figura de
uma transformação.62
A criação é contínua e transformativa. Ele não descreve aqui exatamente a relação entre a
causa primeira e as causas secundárias, mas parece que as causas secundárias mediam a
atividade de Deus. 63 Surge, então, a questão da relação entre Deus e a criação.
Teilhard rejeita qualquer desconexão entre Deus e a criação. Uma consequência
de uma evolução cósmica, segundo nosso autor, é que Deus não pode ficar com a causa
eficiente e, em consequência, independente estruturalmente da criação. Num universo em
evolução, “Deus só é concebível (estruturalmente, dinamicamente) na medida em que, como
uma espécie de causa “formal”, Ele coincide (sem se confundir) com o centro de
60
TEILHARD DE CHARDIN, Sur la notion de transformation créatrice, p. 31.
Aqui ele responde a uma versão da metafísica escolástica. Está fora do escopo desta pesquisa investigar em
qual sentido Teilhard é correto em sua interpretação da escolástica.
62
« Il n’y a pas un moment où Dieu crée, et un moment où les causes secondes développent. – Il n’y a jamais
qu’une action créatrice (identique à la Conservation) qui soulève continuellement les créatures vers le plus-être,
à la faveur de leur activité seconde et de leurs perfectionnements antérieurs. La Création ainsi comprise n’est pas
une intrusion périodique de la Cause première : elle est un acte coextensif à toute la durée de l’Univers. Dieu
crée depuis l’origine des temps, et vue du dedans, sa création (même initiale ?) a la figure d’une
Transformation. » TEILHARD DE CHARDIN, Sur la notion de transformation créatrice, p. 31.
63
Smulders defende a continuidade com a tradição nesse ponto, “a criação é fonte permanente e profunda que
alimenta incansavelmente o desenvolvimento próprio do cosmos. Ela traduz igualmente o antigo dogma da
criação. Mas ela lhe dá uma nova forma de representação, colocando no centro a influência permanente e
ininterrupta da ação criadora de Deus, sempre presente na doutrina, mas pouco explicitada na antiga
representação.” SMULDERS, A visão de Teilhard, p. 73-74.
61
63
convergência da cosmogênese.” 64 No pensamento de Teilhard, a teleologia e o fim do
universo têm prioridade sobre sua protologia e começo.65 Ele privilegia a ação de Deus como
o final do movimento, como o atrator similar ao Motor Principal de Aristóteles, e a criação
como um movimento de síntese, em que Deus prepara o múltiplo para a união com o um. 66
Mas nessa citação ele coloca Deus no meio das coisas, como uma causa formal, e enfatiza sua
imanência. Existe uma tentação de desmoronar a atividade criativa de Deus e a atividade
própria dos processos criados. Porém, ele não elabora sua concepção desta relação, portanto
devemos nos contentar com as linhas gerais deste estudo.67
À luz disso, Teilhard não precisa propor uma intervenção especial de Deus para
explicar o ‘espiritual’ no ser humano. Ele é um produto ‘natural’ do processo da evolução. O
processo da conscientização é co-extensivo com a cosmogênese do universo. O espiritual, se
chama o ‘dentro’, é intrínseco de cada ser,68 e, com o movimento de complexificação, tornase cada vez mais explícita até o ser humano, ou seja, o animal consciente de si mesmo. Esta
afirmação parece negar a ‘criação’ da alma diretamente por Deus. 69 Contudo, Teilhard
responderia, Deus não é uma causa extrínseca do universo, mas o cria e o transforma
continuamente. Deus cria em e através das causas secundárias. Segundo ele, não há dicotomia
entre Deus e a causa secundária. Então, ele pode afirmar que Deus cria a alma e que a alma é
produto da evolução.70
64
« Dieu n’est plus concevable (ni structurellement, ni dynamiquement) que dans la mesure où, comme une
sorte de cause « formelle », il coïncide (sans se confondre) avec le Centre de convergence de la Cosmogénèse. »
TEILHARD DE CHARDIN, Le Dieu de l’évolution, p. 288.
65
Por exemplo, em Le Phénomène humain, ele não trata diretamente da origem do universo, mas dedica a última
parte, três capítulos, à convergência do universo e à consumação final. Smulders procede do mesmo modo, pois
Deus só aparece no fim do movimento do universo. SMULDERS, A visão de Teilhard, p. 89.
66
Teilhard explica essa síntese da seguinte forma, « Créer, même pour la Toute-Puissance, ne doit plus être
entendu par nous à la manière d’un acte instantané, mais à la façon d’un processus ou geste de synthèse. L’Acte
pur et le « Néant » s’opposent comme l’Unité achevée et le Multiple pur. Ceci veut dire que le Créateur ne
saurait, en dépit (ou mieux en vertu) de ses perfections, se communiquer immédiatement à sa créature, mais qu’il
doit la rendre capable de le recevoir. Pour pouvoir se donner au Pluriel, Dieu doit l’unifier à sa mesure. Des
origines du Monde à Lui, la constitution du Plérôme se traduit donc nécessairement à nos esprits par une
progressive marche de l’esprit. » CE, p. 101-02.
67
O debate sobre sua concepção da criação na literatura secundária não toca explicitamente a tema dessa
pesquisa. Smulders encontra problemas com a concepção da matéria de Teilhard (SMULDERS, A visão de
Teilhard, p. 98-100). De Lubac tenta salvar algumas proposições dúbias em resposta a algumas críticas (DE
LUBAC, La pensée religieuse, p. 283-286).
68
Teilhard argumenta que, “portanto, entrevista neste único clarão, ela [a consciência] possui uma extensão
cósmica e, como tal, aureola-se de prolongamentos espaciais e temporais indefinidos.” FH, p. 35.
69
Cf. por exemplo, STh. 1a. 90, 2, e também uma afirmação recente do magistério, Humani generis 36 (DH
3896).
70
De Lubac defende essa concepção de Teilhard contra críticas, « On ne dira pas, simpliciter, que l’homme, en
tant qu’être particulier naissant à sa place marquée dans l’Univers, est créé tout entier ex nihilo, puisque – aussi
bien d’après la lettre de la Genèse que d’après la doctrine de l’évolution – la matière de son corps lui est fournie
par des éléments préexistants. Quant à son âme, spirituelle, « parfaitement centrée », et relativement
indépendante du corps qu’elle anime, elle ne constitue pas un être à elle seule : principe d’unité de l’être humain,
64
2.3 Interpretação do pecado original de Teilhard de Chardin
2.3.1 A crítica da doutrina clássica do pecado original
Teilhard critica diretamente a doutrina do pecado original. Para ele, a história de
Adão e Eva, que continua sendo o base da doutrina em seu tempo, é incompatível com a
ciência. A exposição feita acima mostra claramente que a ideia da criação especial do ser
humano, um único casal no começo, um paraíso terrestre e a origem da morte com o primeiro
pecado, são completamente inaceitáveis dentro da perspectiva científica. 71 De fato, ele
enfatiza:
Na verdade, a impossibilidade de fazer entrar Adão e o paraíso terrestre
(imaginados literalmente) em nossas perspectivas científicas é tal que me
pergunto se em seu único homem, hoje, é capaz de combinar simultaneamente
seu olhar sobre o mundo geológico evocado pela ciência, e o mundo
normalmente contado pela história ‘santa’.72
Além disso, ele acha que a doutrina tradicional está baseada numa perspectiva estática do
mundo. É uma resposta ao problema do mal num universo fixo. Ela, não se harmoniza,
portanto, com um mundo que evolui. 73 Teilhard rejeita, então, a exposição tradicional da
doutrina e busca uma interpretação compatível com a ciência e fiel à tradição católica.
Ele vê duas opções para um teólogo cristão consciente dessa contradição. A
primeira é minimizar a queda e a influência do primeiro pecado como explanação na história
biológica. 74 Então, os dons preternaturais são minimizados, a extensão do paraíso é reduzida,
e as consequências do pecado, como a morte, afetam somente o ser humano.75 A queda não
aparece na história antropológica porque é muita pequena. Mas, Teilhard rejeita esta
interpretação porque, segundo ele, contradiz o conteúdo tradicional da doutrina, que de um
lado é uma resposta ao problema do mal no mundo, e do outro, a afirmação da universalidade
da redenção em Cristo (Ef 4,10). Ele acredita que, “O espírito da Bíblia e da Igreja é claro: o
mundo inteiro foi corrompido pela queda, e tudo foi redimido. A glória, a beleza, a atração
elle ne peut apparaître que « dans l’exercice d’un acte d’union », c’est-à-dire qu’en agissant sur un sujet d’action
à sa mesure, cette action consistant à « unifier autour d’elle un univers qui, sans elle, retomberait en pluralité ». »
DE LUBAC, La pensée religieuse, p. 287.
71
CRG, p. 49-51; RHPO, p. 62-63.
72
« En vérité, l’impossibilité de faire rentrer Adam et le Paradis terrestre (imaginés littéralement) dans nos
perspectives scientifiques est telle que je me demande si un seul homme, aujourd’hui, est capable d’accommoder
simultanément son regard sur le Monde géologique évoqué par la Science, et sur le Monde communément
raconté par l’Histoire Sainte. » RHPO, p. 63. Ele afirma algo similar noutro lugar: « la Chute originelle n’est pas
localisable à un moment, ni en un lieu déterminés. » TEILHARD DE CHARDIN, Le Christ évoluteur, p. 174.
73
CE, p. 99.
74
CRG, p. 51; RHPO, p. 64.
75
CRG, p. 51-52; RHPO, p. 64.
65
irresistível do Cristo, irradiam em última análise, de sua realeza universal.”76 Por isso, ele
busca uma alternativa que maximalize o significado da queda.
2.3.2 O problema do mal no universo e o pecado original
Teilhard liga o pecado original com o mal físico. Ele diz, “[...] o pecado original,
tomado em sua generalidade, não é uma doença especificamente terrestre, nem relacionada à
geração humana. Ele simboliza simplesmente a inevitável chance do mal (Necesse est ut
eveniant scandala) ligada à existência de todo ser participado.”77 Em vez de minimizar a
queda, ele a universaliza. Não se pode ver o momento da queda de Adão e Eva porque quando
se vê, “À perda de vista, atrás, dominado pelo Mal físico [...] o Mundo nos é revelado em
estado de pecado original.” 78 Então, o problema do mal é tão grande que não se pode
distinguir entre o mal no ser humano e o mal no universo. Eles são co-extensivos. Mas,
sugere-se a questão: o que é a caraterística do mal no universo, segundo Teilhard?
Em sua fenomenologia, o mal significa a desordem, a falha e a corrupção do ser.
A morte, que na doutrina clássica é um efeito do primeiro pecado, é uma caraterística de toda
a matéria, e começa com o átomo. A desintegração e a decomposição, que são a morte num
sentido amplo, “estão inscritas na natureza físico-química da matéria.”79 Mas essa se estende
ao nível da vida, no sofrimento da carne, e da consciência, na angústia do espírito.80 A matéria
não é perfeita ou imortal. Então, está condicionada pelo mal.
Dentro do universo em evolução, a corrupção e o mal são inevitáveis
estatisticamente. Teilhard explica que:
se nos patenteia um tipo particular do Cosmos onde o Mal (não por acidente –
o que seria pouco – mas pela própria estrutura do sistema) surge
necessariamente, e em quantidade ou com uma gravidade tão grandes quanto
se queira, na esteira da Evolução. Universo que se enrola, dizia eu – Universo
que se interioriza: mas também, do mesmo passo, Universo que lida, Universo
que peca, Universo que sofre.... Ordenação e centração: dupla operação
76
« L’esprit de la Bible et de l’Église est manifeste : tout le Monde a été corrompu par la Chute, et tout a été
racheté. La gloire, la beauté, l’attraction irrésistible du Christ, rayonnent en définitive de son universelle
royauté. » CRG, p. 52.
77
«[…] le péche originel, pris dans sa généralité, n’est pas une maladie spécifiquement terrestre ni liée à la
génération humaine. Il simbolise simplement l’inévitable chance du Mal (Necesse est ut eveniant scandala)
attachée à l’existence de tout être participé. » Ibid., p. 53.
78
« A perte de vue, en arrière, dominé par le Mal physique […] le Monde se découvre à nous en état de péché
originel. » RHPO, p. 63.
79
« Inscrite dans la physico-chimie même de Matière » RPO, p. 221-22.
80
FH, p. 346.
66
conjugada que, tal como a ascensão de um pico ou a conquista do ar, não
pode objetivamente efectuar-se senão no caso de ser rigorosamente paga.81
Nosso autor concebe a evolução como um processo de organização e de complexificação que
resulta em muitos erros para cada sucesso. Quando as moléculas se reúnem, às vezes não se
encaixam perfeitamente. Quando os seres vivos se reproduzem, às vezes ocorrem erros. E, no
fim, cada ser complexo se decompõe, e cada ser vivo morre, por causa da fragilidade da
organização e da natureza da matéria. A evolução tem muitas perdas estatisticamente
determinadas. 82 Mas, por que existe essa limitação no processo da evolução? Por que a
complexidade não segue linhas certas e infalíveis?
A resposta a esse problema encontra-se na metafísica de Teilhard, na luta entre o
múltiplo e o ‘Um’ e o movimento da unificação. O mal tem que ser o oposto de Deus, o bem
universal. Dos atributos de Deus, Teilhard enfatiza sua unidade. 83 Se Deus é um, então o
oposto de Deus é o não-um, a multidão. 84 Criar, para nosso autor, significa um ato de
unificação.85 O problema é que tem que haver um ser primeiro que possa ser unificado. Deus
tem que criar uma multidão para unificá-la. Mas, criar a multidão implica criar, como um
efeito secundário, o mal. 86 Portanto, o mal, como multiplicidade, é um efeito inevitável da
criação. Ele resume:
Mas, em um mundo que emerge lentamente da matéria, não é mais preciso
imaginar um acidente primordial crítico para explicar o surgimento do
Múltiplo e de seu satélite inevitável: o Mal ... O Múltiplo? Mas ele tem,
acabamos de ver, a seu lugar natural na base das coisas, uma vez que ele
representa, como o oposto de Deus, as potencialidades difusas do Ser
participado: não os restos de um vaso quebrado, mas o barro elementar do
qual tudo vai ser amassado. O Mal? Mas ele aparece necessariamente na
unificação do Múltiplo, pois ele é a expressão mesma de um estado de
pluralidade incompletamente ainda organizada.87
81
FH, p. 347.
RPO, p. 227. Do ponto de vista biológico essa afirmação tem sentido. Os biólogos trabalham no campo das
probabilidades. A contingência dos processos biológicos e a complexidade dos fatores que afetam as mudanças
tornam impossível uma certeza analítica sobre o que acontecerá. Também, em algumas reações químicas e
processos radioativos, as probabilidades são o máximo que um cientista pode saber. Aqui Teilhard está
aplicando esse fato ao problema do mal no universo.
83
De Lubac argumenta sobre esse ponto, afirmando que Teilhard constrói sua metafísica dos axiomas sobre a
unidade de Deus e a ação da criação. DE LUBAC, La Pensée Religieuse, p. 282 : «Deus creat uniendo, - creari
est uniri, - plus esse est plus, a pluribus, uniri : ce genre d’axiomes le séduisait, et il en venait à rêver de
construire une métaphysique, sa métaphysique, que serait « une métaphysique de l’union ». » À luz disso,
Grummett defende uma interpretação neoplatônica de Teilhard. Cf. GRUMETT, Teilhard de Chardin, p. 13-15.
Martelet concorda: MARTELET, Et si Teilhard, p. 28.
84
CE, p. 101. Num lugar Teilhard diz que o ‘Múltiplo’ é a fonte do mal: La Lutte contre la multitude, p. 117.
85
TEILHARD DE CHARDIN, La Lutte contre la multitude, p. 114.
86
CE, p. 101.
87
« Mais dans un Monde qui émerge peu à peu de la matière, plus n’est besoin d’imaginer un accident
primordial pour expliquer l’apparition du Multiple et de son satellite inévitable : le Mal… Le Multiple ? Mais il
a, nous venons de la voir, sa place naturelle à la base des choses, puisqu’il représente, aux antipodes de Dieu, les
82
67
Mas, essa afirmação significa que Deus é o autor do mal? Nosso autor responde que o mal é o
produto secundário da criação e não uma parte da intenção principal. Além disso, Deus está
criando continuamente, unificando a multidão e, então, superando o mal. Aqui pode-se ver o
significado da posição de uma criação transformadora dentro da visão de Teilhard. O valor da
criação justifica seu sofrimento com o mal? Ele responde que só se pode saber disso no final,
então é preciso confiar na sabedoria de Deus.88
2.3.3 O pecado original no ser humano
Dessa concepção do mal, o pecado no ser humano é simplesmente a extensão do
mal universal no nível da consciência. Teilhard afirma que o pecado original, como o mal no
ser participado no estado da multiplicidade e da corruptibilidade, existe por todo o tempo e
em todos os lugares do universo.89 Quando o ser chega ao nível da vida, esse mal se manifesta
na morte e no sofrimento. Quando a vida chega ao nível da consciência, o mal se manifesta no
pecado e no mal moral. 90 Tanto o mal é inevitável no ser criado quanto o pecado é inevitável
no ser humano.91 Portanto, o pecado original passa de um ato para um estado,92 que Teilhard
descreve como uma fraqueza original causada pelo fato de “[...] ser nascido a partir do
Múltiplo.”93
Segue-se logicamente que a história do paraíso, do primeiro pecado e da queda
recebe uma reinterpretação radical. Nosso autor rejeita então o monogenismo. Segundo ele,
Adão e Eva não existiram historicamente como primeiro casal. 94 A imagem do paraíso em
Gênesis significa não um estado perfeito ou uma graça especial, mas a situação de cada ser
virtualités diffuses de l’Être participé : non pas les débris d’un vase brisé, mais l’argile élémentaire dont tout sera
pétri. Le Mal ? Mais celui-ci apparaît nécessairement au cours de l’unification du Multiple, puisqu’il est
l’expression même d’un état de pluralité incomplètement encore organisée. » CE, p. 102-03.
88
RPO, p. 228.
89
Ibid., p. 222.
90
Ibid., p. 227.
91
Ibid., p. 228.
92
Ibid., p. 228.
93
«[…] la fait naître à partir du Multiple. » CE, p. 103. Ladaria resume a posição de Teilhard do seguinte modo:
“el pecado original seria, en el plano del hombre, el resultado de los desordenes que aparecen por ley estadística
en todo sistema en via de organización, como un subproducto necesario de la unificación a partir de lo múltiple.
El mal, el dolor físico, la falta moral, se introducen en el mundo en virtud del ser participado. Por ello, el pecado
original seria una realidad de orden transhistorico, más que un elemento de la serie de los acontecimientos
históricos; expresaría la ley perenne de la falta de la humanidad en cuanto se encuentra in fieri. Cristo, por el
contrario, seria el que sobrepasa en sí y en todos nosotros las resistencias a la unificación y a la ascensión
espiritual que hallamos en la materia […] El pecado tiene, por tanto, raíces y formas primarias en todos los
niveles del universo, aunque aparezca como tal sólo cuando existe la libertad.” LADARIA, Teologia del pecado,
p. 123.
94
CRG, p. 54.
68
humano diante da oferta de Deus. Nosso autor explica que, “Adão e Eva são imagens da
humanidade se movendo em direção a Deus. A bem-aventurança do Paraíso terrestre é a
salvação constantemente oferecida a todos, mas recusada por muitos.”95 O primeiro pecado é
nada mais do que, “[...] a crise moral que verdadeiramente acompanhou na Humanidade a
primeira aparição da inteligência.”96 Teilhard não dá muita importância a esse momento, tão
pequeno no movimento da evolução. A queda, então, antecipa o pecado e não o segue. O
pecado é a consequência da queda do Um no Múltiplo, no começo do ato da criação. Mas,
sugere-se a questão: qual é o papel dos atos pecaminosos nessa visão?
Nos escritos posteriores, Teilhard abre mais espaço para os pecados pessoais na
dinâmica do mal no ser humano. Nos escritos anteriores, ele se contentava em afirmar que os
pecados são inevitáveis no processo de complexificação e de unificação do ser. Mas, na
última reflexão sobre o assunto, ele desenvolve um pouco o significado dos pecados para a
humanidade. 97 Ele caracteriza o estado do pecado original como algo “[...] afetando a massa
humana como um todo, como resultado de uma poeira de erros espalhados ao longo do tempo
na humanidade.” 98 Então, o estado não é meramente individual, mas tem a ver com os
pecados da humanidade coletivamente considerada.
Ele dá também espaço para a diferenciação entre os pecados. Afirma que os
primeiros pecados, embora menos conscientes, tiveram mais eficácia no filo humano, e os
pecados cometidos pelo mesmo grupo da população teriam mais efeito nos indivíduos do
grupo. Ademais, um pecado final, com o máximo de consciência, seria particular. 99 Embora
Teilhard não desenvolva essas ideias sobre os efeitos dos pecados pessoais nos outros,
antecipando aqui os situacionistas, ele os conecta com o crescimento da noosfera. Mas, podese dizer pelo menos que ele não esquece completamente o nível histórico e cultural do
pecado.
Sobre a questão da transmissão do pecado original, a concepção de Teilhard
supera a dificuldade completamente. O ser participado, pelo fato de ser múltiplo, próprio do
processo de transformação, o torna sujeito ao mal. Então, cada ser humano, pelo fato de ser
parte do múltiplo e ser incompleto (no processo de unificação) encontra-se no estado de mal
95
« Adam et Ève, ce sont images de l’Humanité en marche vers Dieu. La béatitude du Paradis terrestre, c’est le
salut constamment offert à tous, mais refusé par beaucoup. » RHPO, p. 68.
96
«[…] la crise morale qui vraisemblabement a accompagné dans l’Humanité la première apparition de
l’intelligence. » Ibid., p. 68.
97
Pode-se especular que ele está respondendo a algumas críticas à sua concepção aqui.
98
«[…] affectant la masse humaine dans son ensemble, par suite d’une poussière de fautes disséminées au cours
du temps dans l’Humanité. » RPO, p. 228.
99
Ibid., p. 229, nota 1.
69
e peca inevitavelmente. Ele não precisa de uma explanação da transmissão ou da ‘herança’ do
pecado de uma geração para outra. O mal, a morte, a corrupção e o pecado são partes do ser
humano desde o começo. Teilhard pode falar sobre a herança, mas no sentido biológico. E,
com sua rejeição do monogenismo, a herança é coletiva. O ‘filo’ do homo sapiens é comum a
todos. Neste sentido, diz ele, “A única correção feita, de fato, sendo substituída por uma
‘matriz’ e uma herança coletivas o seio de nossa mãe Eva.”100 Essa ‘matriz’ inclui a herança
do pecado? Num texto onde antecipa a objeção sobre a questão do batismo, nosso autor
afirma que, “[...] cada nova alma despertando para a vida se encontra solidariamente
contaminada pela influência totalizada de todas as faltas passadas, presentes (e futuras)
inevitavelmente espalhadas.”101 Não fica claro em que esta influência consiste, mas pode-se
dizer, à luz da exposição acima, que a contaminação do pecado, para Teilhard, é nada mais
nada menos que a corrupção e a divisão co-extensivas de um ser material em processo de
evolução. O pecado é somente a expressão dessa corrupção no nível da consciência. Como
uma divisão biológica afeta o organismo, uma divisão social afeta a comunidade. Ele não
desenvolve esse ponto, então deve-se ficar com essas linhas gerais. 102
Essa concepção do pecado original necessita de uma identificação entre criação e
redenção. Nos três artigos sobre o pecado original, Teilhard conclui da mesma maneira, com
uma breve interpretação da relação entre a criação, a queda e a redenção, em que ele afirma:
“Todos os quatro [criação, queda, encarnação, redenção] se tornam co-extensivas com a
duração e a totalidade do Mundo; são, num sentido, as fases (realmente distintas mas
fisicamente ligadas) da mesma operação de Deus.”103 A criação transformativa é o movimento
de elevação e de unificação na megassíntese do Ponto Ômega. O mal é a disposição da
corrupção e da divisão na multidão dos seres criados e a inevitável falha do processo de
unificação. Então, a criação é o ato contínuo da superação do mal nos seres criados. A queda
significa o primeiro momento desse ato, a geração da multiplicidade. A redenção, que implica
a encarnação para Teilhard, significa o momento final desse ato, a convergência do universo
no Ponto Ômega. O ser humano é o meio entre a multiplicidade original e a unidade final, que
acontecerá através da conscientização e da super-conscientização do universo. Então o pecado
é o mal consciente que existe entre o mal original e a síntese final.
100
«[…] le seul correctif apporté, en somme, étant de remplacer par une « matrice » et un hérédité collectives le
sein de notre mère Ève. » RPO, p. 229.
101
«[…] chaque nouvelle âme s’éveillant à la Vie se trouve solidairement contaminée par l’influence totalisée de
toutes les fautes passées, présentes (et à venir) inévitablement répandues. » Ibid., p. 228.
102
A literatura secundária não trata sobre esses breves textos. Por exemplo, veja MALDAMÉ, O pecado
original, p. 191-94.
103
RHPO, p. 69 ; Cf. CRG, p. 57; RPO, p. 229-30.
70
2.3.4 Justificativa: o argumento da redenção cósmica à universalidade do pecado
original em toda a criação material
Teilhard oferece um argumento para justificar sua reinterpretação da doutrina. A
premissa central consiste na extensão cósmica da redenção em Cristo. Os argumentos para
essa premissa são os seguintes. Primeiro, a Sagrada Escritura afirma que Jesus é o Senhor da
criação. 104 Ele se refere aos textos de Ef 4,10, “Aquele que desceu é também quem subiu
acima de todos os céus, para preencher todas as coisas”;105 Co 1,17, “Ele é antes de tudo e
tudo subsiste nele [in quo omnia constant]”;106 e Rm 8,22, “sabemos que toda a criação até
agora geme e sente dores de parto” [até a consumação final em Cristo]. 107 Segundo, sua
fenomenologia do mundo, que percebe uma convergência, sugere um elemento que atrai e
unifica os três níveis: a matéria, a consciência e Deus. Cristo cumpre essa função.108 Terceiro,
a ideia da encarnação, a unificação de Deus com o universo, satisfaz o desejo religioso
primitivo para a união com o transcendente, expresso muitas vezes numa forma de
panteísmo.109 Portanto, a extensão dessa encarnação a todo o universo completa a imperfeição
da divisão entre Deus e a criação que continuaria se Cristo ficasse no nível particular e não se
tornasse universal. Quarto, a ligação entre a redenção e o processo evolutivo do universo, que
é possível somente se Cristo é cósmico, permite explicar a fé cristã ao mundo científico.110
O argumento, baseado nessa premissa, é o seguinte:
1. O raio do poder de Cristo é universal e cósmico (todos aceitam);111
2. O raio do poder de Cristo é o raio da redenção (por definição);
3. O raio da redenção é somente o que precisa ser redimido, o pecado e o pecado original (todos
aceitam);
4. Proposta: O pecado está confinado à nossa visão moderna da cosmogênese histórica, o pecado
original aconteceu num lugar particular com uma pessoa particular (a doutrina clássica);
5. Conclusão primeira: o raio do poder de Cristo é limitado à humanidade e a história humana,
sem nenhuma dimensão universal ou cósmica 112 (segue de 2, 3 e 4);
6. Contradição: essa conclusão contradiz o n. 1, que o raio do poder de Cristo é universal e
cósmico (contra 1);113
104
CRG, p. 52.
Ibid., p. 52, 56; TEILHARD DE CHARDIN, Panthéisme et christianisme, p. 88.
106
CRG, p. 57; TEILHARD DE CHARDIN, Panthéisme et christianisme, p. 87; Le Christ évoluteur, p. 168;
Christianisme et évolution, p. 210.
107
RHPO, p. 69; TEILHARD DE CHARDIN, Panthéisme et christianisme, p. 88.
108
TEILHARD DE CHARDIN, Le Dieu de l’évolution, p. 289-91.
109
TEILHARD DE CHARDIN, Comment je crois, p. 148-49; Panthéisme et christianisme, p. 88-91.
110
CE, p. 109-13; TEILHARD DE CHARDIN, Christianisme et évolution, p. 207-210.
111
O Cristo é o mediador e a cabeça da criação. Seu poder se estende a toda a criação (Rm 9,5; Co 1,17, etc.).
Cf. RPO, p. 222.
112
RPO, p. 223.
113
Teilhard usa Co 1,17 para justificar esta conclusão. RPO, p. 222.
105
71
7. Conclusão segunda: a proposta 4 tem que ser incorreta, e o pecado tem que ser universal a fim
de que o raio do poder de Cristo seja universal: “[...] estamos ainda obrigados (desta vez não
devido à universalidade revelada pela influência crística) a refletir sobre o fenômeno da queda,
para ver como ela poderia ser concebida e imaginada, não como um fato isolado, mas como
uma condição geral que afeta toda a História.”114
Basicamente, Teilhard coloca, contra a particularidade do pecado original, o princípio do
Cristo universal. Sua reinterpretação dá à redenção em Cristo um papel cósmico, e, segundo
ele, é mais fiel ao testemunho Bíblico do que a doutrina clássica.
2.4 Avaliação de Teilhard de Chardin
2.4.1 As respostas aos problemas da doutrina clássica à luz da evolução
Essa reinterpretação do pecado original responde diretamente às dificuldades
encontradas à luz da evolução. Primeiro, o ‘paraíso-problemático’, recebe sua resposta na
rejeição da narrativa clássica. O ser humano é um animal que evoluiu dos primatas. O paraíso
nunca existiu. Essa imagem representa, para Teilhard, a salvação oferecida por Deus.
Segundo, essa concepção evita o ‘monogenismo-problemático’ com a aceitação do
poligenismo. O ser humano é uma só espécie, com uma só história, mas que evoluiu como um
ramo, um grupo relativamente grande, e não de um só casal. Mas, isso não causa uma
dificuldade para a herança do pecado original porque, em terceiro lugar, a ‘transmissãoproblemática’ se torna irrelevante pois o pecado não é tratado como uma categoria quasebiológica. A natureza humana, no estado de transformação contínua, inevitavelmente comete
erros, tanto biológicos quanto morais, no processo de complexificação e de conscientização.
Esses ‘erros’ formam parte dos processos biológicos, explicados naturalmente pela ciência.
No nível da noosfera, os erros morais fazem parte do patrimônio cultural da humanidade. O
pecado não tem um papel especial ou relevante nesse processo. Então, não é necessário
propor uma transmissão quase-biológica e quase-espiritual do mesmo. A corrupção, ligada a
um ser material no processo de unificação, é natural. O pecado é um efeito disso, não sua
causa.
Em relação aos problemas com a doutrina tradicional, também a concepção de
Teilhard tem suas respostas. Ele supera a dificuldade do ‘efeito universal’, por causa da
desconexão entre o estado de imperfeição e o pecado. A imperfeição humana não tem
114
«[…] nous voici encore obligés (non plus cette fois par suite de l’universalité révélée de l’influence
christique) de réfléchir sur le phénomène de la Chute, pour voir comment celui-ci pourrait bien être conçu et
imaginé, non plus comme un fait isolé, mais comme une condition générale affectant la totalité de l’Histoire. »
RPO, p. 222-23.
72
nenhuma relação com os primeiros pecados. Eles não têm uma consequência terrível e
universal para o ser humano. Por isso, a dificuldade da ‘responsabilidade pessoal’ não
aparece. Nenhuma pessoa sofre as consequências negativas do pecado de um antepassado.
Todos estão no mesmo estado de luta contra o Múltiplo, que é a condição de toda a criação e
não está limitada ao ser humano. A dificuldade da ‘transmissão’ já recebe sua explanação. A
dificuldade da concupiscência também se dissolve, porque é somente a experiência existencial
da resistência da natureza humana ao movimento de unificação. Então, parece que Teilhard
supera tanto os problemas da doutrina, em relação à evolução, quanto os problemas de sua
própria consistência. É possível que essa explanação finalmente resolva as contradições que
afligiram a doutrina nos últimos cem anos? Aqui surge a grande questão: Teilhard mantém os
elementos centrais da doutrina?
2.4.2 Os problemas metafísicos e antropológicos
Do ponto de vista da ciência, é possível questionar a realidade da convergência do
universo. O argumento de Teilhard aponta para a convergência do universo a partir da
investigação do fenômeno humano.115 Mas, uma olhada para o universo como é descrita hoje
pelas ciências leva a uma conclusão diferente. Os astrofísicos diriam que o universo está se
expandindo sem nenhuma evidência física de convergência. De fato, o universo parece ser
dirigido por um movimento de divergência a partir de um ponto singular, o ‘Big Bang’, e é
mais ‘múltiplo’ (pelo menos fisicamente) hoje do que no tempo passado. Além disso, o
processo de evolução leva a uma maior complexidade e também a uma maior diversidade.
Cada ser vivo se torna cada vez mais adaptado e especializado em seu ambiente. A imagem
da evolução é a dos ramos de uma árvore, e não a de um cone côncavo.116 Além disso, a
evolução somente funciona com a variação nos seres vivos. Sem uma variação entre as
espécies e dentro das espécies não pode haver uma seleção natural. Novamente, a
convergência não parece ser a direção do movimento. Teilhard é consciente desse fato, mas
percebe uma outra dinâmica de unificação presente ao mesmo tempo. Por que o fenômeno da
115
Vaz considera a ideia da convergência do universo central no pensamento de Teilhard: “Na interpretação do
cosmos moderno, o surgimento do Ponto Ômega como ponto de convergência e a possibilidade de inserir nesta
visão convergente do universo evolutivo a perspectiva cristã, é, precisamente, o que constitui a contribuição
própria de Teilhard.” VAZ, Universo científico, p. 100.
116
Faça uma comparação entre os esquemas de Teilhard, FH, p. 202, e uma típica árvore filogenética, que
mostra a ramificação das espécies, encontrado num livro de biologia.
73
complexificação da evolução implica uma convergência? 117 Nosso autor não justifica essa
conexão. Essas reflexões levam alguns autores a duvidar da base científica das afirmações de
Teilhard. Maritain argumenta que sua ciência foi dominada pela filosofia e pela teologia. 118
Gilson fala sobre uma « pseudo-science teilhardienne ».119
A convergência que Teilhard enxerga acontece no nível da consciência, mas aqui
também pode-se questionar sua afirmação. O foco no nível da consciência, a noosfera, leva
realmente a uma convergência? Teilhard percebe na interação social do ser humano a
formação de um organismo coletivo.120 Pode-se concordar que os povos do mundo estão se
relacionando uns com os outros, como também que o conhecimento do mundo está se
multiplicando e a comunicação entre as pessoas está crescendo, especialmente hoje com a
internet e as novas tecnologias. Mas, uma maior interconexão é a mesma coisa que
convergência? A rede pode expandir-se sem ter um ponto central. Além disso, a tendência
nas sociedades avançadas vai na direção de as pessoas se tornarem mais independentes e
individualistas. A unidade social da polis Grega, da raça Europeia, do povo indígena, da igreja
confessional, da nação moderna, é cada vez mais parte do passado. A noosfera tecnológica
parece mais atomizada, mais complexa, mas não mais unida. Em geral, os fenômenos são tão
variados e complexos que é difícil perceber uma direção do movimento. A proposta de
Teilhard de um Ponto Ômega à distância não encontra apoio claro à luz dos fatos.
Teilhard está consciente da ambiguidade desses fenômenos e propõe o princípio
do amor para superar a dificuldade. Em certo ponto, ele reflete, “Ficamos aflitos e inquietos
ao verificar que as tentativas modernas de colectivização humana não têm outro resultado,
contrariamente às previsões da teoria e à nossa expectativa, senão o rebaixamento e a
escravização das consciências.”121 A noosfera não parece simplesmente unificar seus agentes
como um fato de sua existência. Por isso, ele propõe a energia do amor como a força da união
no nível da noosfera. 122 O amor que começa na família, depois cresce na relação entre amigos,
e depois estende-se para o país, sempre com uma tendência a tornar-se universal. Por quê?
Porque o amor é a única maneira de expressar o desejo para o total, o ‘sentido do Todo’
117
A divergência física e biológica é significante porque Teilhard não exclui esses níveis da síntese no Ponto
Ômega. Ele acha que a convergência não acontece somente para os seres conscientes, mas é constitutiva do
universo inteiro, tornada possível através do nível consciente. FH, p. 283-85.
118
MARITAIN, Le paysan, p. 166 : « En réalité la science des savants a été totalement dépassée, - bien plus,
entraînée et absorbée dans un grand torrent de méditation chercheuse où science, foi, mystique, théologie et
philosophie à l’état diffus, sont inextricablement mêlées et confondues. »
119
GILSON, Trois leçons, p. 734.
120
FH, p. 262-63.
121
FH, p. 291.
122
Ibid., p. 292-93.
74
dentro do ser humano. 123 Nosso autor afirma que, “[um amor universal] é ainda a única
maneira completa e final de podermos amar.”124 Mas, de onde vem esse ‘sentido do Todo’, ou
seja, o desejo para a união?
Em seu pensamento, Teilhard privilegia a unidade e não a pluralidade. Num
escrito, ele descreve dois tipos de pessoas, as monistas e as pluralistas. Ele explica que:
[...] existem basicamente duas classes de espíritos, e apenas duas: uns que não
ultrapassam (nem sentem a necessidade de ultrapassar) a percepção do
múltiplo – tão ligado por sinal em si mesmo para que este apareça; e outros,
para os quais a percepção deste mesmo múltiplo termina necessariamente em
alguma unidade. Os pluralistas e os monistas. Aqueles que não veem, e os que
veem. 125
É claro que Teilhard é um membro do segundo grupo. Sua preocupação, e pode-se dizer sua
predisposição intelectual, é para a unidade. 126 Além disso, esse ‘sentido do todo’ e o desejo de
união foram particularmente presentes nele, e parecem influenciar bastante seu ponto de vista.
Sua explicação do universo privilegia a unidade. Combina isso com seu compromisso com a
evolução e sua visão do universo concebido como um grande movimento de unificação. Mas,
a realidade do universo justifica isso? Suas tendências intelectuais e desejos subjetivos são
realmente universais ou Teilhard projeta um pouco esses aspectos subjetivos no universo? É
difícil dizer, à luz da física e da biologia contemporânea e da noosfera na sociedade
tecnologicalizada, que o universo se move na direção da convergência e da união. Os
fenômenos são ambíguos e então suas afirmações são inconclusivas. Parece que Teilhard
projeta seu desejo um pouco aqui, e vê o que ele quer ver.
Essa preocupação com a unidade causa algumas dificuldades em sua antropologia.
Teilhard, focado nos grandes movimentos do universo, descreve o ser humano como uma
criatura meramente reduzida ao processo da evolução. Por exemplo, para dar conta da
emergência do ser humano, o animal racional, Teilhard coloca o princípio da consciência no
123
Ibid., p. 292.
Ibid., p. 293.
125
«[…] il y a au fond deux classes d’esprits, et deux seulement : les uns que ne dépassent (ni ne sentent le
besoin de dépasser) la perception du multiple, - si lié d’ailleurs en soi-même qu’apparaisse celui-ci ; et les autres,
pour qui la perception de ce même multiple s’achève forcément dans quelque unité. Les pluralistes et les
monistes. Ceux qui ne voient pas, et ceux qui voient. » TEILHARD DE CHARDIN, Comment je crois, p. 122.
Longe de ser uma categorização meramente anedótica, é possível que ela tenha uma base psicológica e ainda
neurológica. Por exemplo, veja o síntese de McGilchrist sobre as duas esferas do cérebro, com uma das
diferenças que a esfera direita mantém uma visão ampla e unida e a esquerda foca nos detalhes e tende dividir os
fenômenos. As duas classes de Teilhard poderiam ser os que privilegiam uma ou outra esfera do cérebro.
McGILCHRIST, The master, p. 42-43.
126
Os exemplos dessa tendências são numerosos. Por exemplo, FH, p. 16-19. 286-93; CE, p. 102; TEILHARD
DE CHARDIN, Panthéisme et christianisme, p. 87, 91; Comment je crois, p. 146-47; Le Christ évoluteur, p.
173; Christianisme et évolution, p. 216.
124
75
fundo de todos os seres. Nisso, ele parece adotar uma posição perto do pampsiquismo,127 mas
ele claramente rejeita o panteísmo e distingue bem entre Deus e sua criação.128 Contudo essa
consciência no fundo do ser significa que o ser humano está determinado pelas mesmas leis
que governam as moléculas. Ele parece ser somente uma grande molécula, uma mônada
maior. Ele é um passo no processo. Num certo sentido, Teilhard reduz o universo, e o ser
humano, a um processo da complexificação e conscientização. Em vez de valorizar o ser
humano, de certo modo Teilhard o desvaloriza, porque o processo domina sobre o indivíduo.
Portanto, Teilhard não dá lugar suficiente para a liberdade humana dentro da
evolução e no movimento para o Ponto Ômega. Essa grande dinâmica da transformação, que
é nada mais do que a ação da criação contínua, parece necessária e independente da escolha
humana. Sua consciência é sujeita às energias e às leis do universo. A liberdade não entra
aqui. Onde está a responsabilidade? Onde estão os novos horizontes abertos com a razão e a
liberdade? Eles são secundários. De Lubac tenta responder a esse problema na exposição de
Teilhard com alguns textos que mostram o lugar da liberdade na evolução. Cada pessoa tem
uma opção que determina sua destinação. 129 Mas a opção presente para um indivíduo é
participar ou não no processo.130 Mas essa escolha é bem limitada. A evolução continuará, e
cada rejeição da participação será somente uma falha a mais no movimento para a unificação.
Por isso, de Lubac aceita que esse aspecto é um dos limites da obra teilhardiana.131 Quando a
questão é sobre o pecado, essa lacuna ficará bem clara.
2.4.3 Os problemas com as afirmações teológicas
A criação-redenção dinâmica de Teilhard não dá espaço para o tema bíblico do
fim do mundo e da nova criação. Em vários textos, difíceis de interpretar, Teilhard toma uma
127
Rideau nota sua afinidade com a metafísica de Leibniz, Schelling e Bergson, mas interpreta o dehors e o
dedans de cada ser como uma explicação da discussão clássica da relação entre a matéria e o espírito. RIDEAU,
La pensée, p. 174-75. Grumett nota as críticas que Teilhard fez à Monadologia de Leibniz e argumenta evitando
o problema do pampsiquismo com uma clara distinção entre a matéria e o espírito, embora eles estejam unidos.
GRUMETT, Teilhard de Chardin, p. 34-36.
128
Por exemplo, uma rejeição explícita do panteísmo, « Plus heureux dans sa tentative « unitarienne » que le
Panthéiste qui, sous prétexte d’unifier les êtres, les confond, c’est-à-dire, anéantit en fait, par le monisme, le
mystère et la joie de l’Union, le Chrétien, qui a compris la fonction universelle exercée par le Dieu incarné est
vraiment parvenu à la position centrale et inexpugnable d’où fait rayonner sa foi et son espérance du haut de la
possession du Monde. » TEILHARD DE CHARDIN, Panthéisme et christianisme, p. 91. Grumett dá um
julgamento balanceado nesse ponto, em favor de uma intepretação não-panteísta de Teilhard. GRUMETT,
Teilhard de Chardin, p. 117-18. A forte ênfase personalista nos últimos capítulos de Le Phénomène Humain
mostra que ele concebe a união com Deus como sendo uma comunhão e não uma fusão. FH, p. 282ff.
129
DE LUBAC, La pensée religieuse, p. 156.
130
Ibid., p. 157.
131
DE LUBAC, A oração, p. 142-43.
76
linha em que a ação da redenção em Cristo é uma continuação dos processos físicos e
biológicos. Por exemplo, ele diz:
A esta generalização do Cristo Redentor em um verdadeiro "CristoEvoluidor" (Aquele que carrega, com os pecados, todo o peso do mundo em
progresso) ; a esta elevação do Cristo histórico a uma função física universal;
a esta identificação última da cosmogênese com uma cristogênese, pôde-se
objetar que elas arriscam fazer desaparecer no super-humano, de volatilizar
no cósmico a humana realidade de Jesus.132
Esse tipo da afirmação é difícil de justificar do ponto de visto cristológico. Cristo parece
basicamente uma força da evolução, e a redenção é nada mais do que o movimento da
evolução, que é a complexificação e a conscientização. Isso é difícil de harmonizar com o
testemunho bíblico da redenção, focado não no movimento do cosmo mas na pessoa histórica
de Jesus, no povo de Israel e na Igreja. Mesmo os textos que fazem alusões a um significado
cósmico da salvação em Cristo enfatiza a descontinuidade entre o estado presente do mundo e
o novo mundo. Paulo, que Teilhard cita em seu apoio, testemunha claramente sobre isso: “as
criaturas foram sujeitas à vaidade” (Rm 8,20) e portanto não alcançarão seus fins
naturalmente, por isso “passa a aparência (σχηµα) deste mundo” (1Co 7,31; cf. 1Jo 2,17), e
em relação ao ser humano, “ao se desfazer a tenda que habitamos – nossa casa terrestre –
teremos nos céus uma casa preparada por Deus e não por mãos de homens, uma casa eterna”
(2Co 5,1), “os mortos ressuscitarão incorruptos, e nós seremos transformados. Porque é
preciso que este corpo corruptível se revista de incorrupção” (1Co 15,52-53). O livro do
Apocalipse concorda: “Vi um céu novo e uma terra nova, porque o primeiro céu e a primeira
terra haviam desaparecido e o mar já não existia” (Ap 21,1). Jesus mesmo fala, “passarão o
céu e a terra” (Mt 24,35). O que justifica a identificação da criação e da redenção, ou seja, de
Cristo e a evolução?
Além disso, pode-se questionar a afirmação de que o Cristo Cósmico é o redentor
de toda a criação. Essa proposição, que é central no argumento de Teilhard, pois justifica sua
reinterpretação da doutrina do pecado original, não tem a firmeza que ele acredita. Dos quatro
argumentos acima, a convergência do universo foi colocada em dúvida, e o desejo primitivo
para a união pareceu mais uma tendência pessoal de Teilhard do que um fato antropológico, e
também a necessidade apologética de explicar a fé cristã ao mundo científico não pode ser um
132
« A cette généralisation du Christ-Rédempteur en un véritable « Christ-Évoluteur » (Celui qui porte, avec les
péchés, tout le poids du Monde en progès) ; à cette élévation du Christ historique à une fonction physique
universelle ; à cette identification ultime de la Cosmogénèse avec une Christogénèse, on a pu objecter qu’elles
risquent de faire s’évanouir dans le sur-humain, de volatiliser dans le cosmique l’humaine réalité de Jésus. » CE,
p. 211. Essa afirmação não é isolada. Cf. CE, p. 207; Panthéisme et Christianisme, p. 84-87; Le Christ évoluteur,
p. 168, 170-72, especialmente : « Le Christ-Rédempteur, autrement dit, s’achevant, sans rien atténuer de sa face
souffrante, dans la plénitude dynamique d’un CHRIST-ÉVOLUTEUR. » p. 172.
77
argumento teológico para um Cristo cósmico. Assim, somente ficam os textos da Escritura em
apoio à sua posição. Mas eles não necessariamente apoiam a interpretação de Teilhard. Os
exegetas percebem duas influências em Co 1,17, a tradição helenística do judaísmo da ação
da sabedoria na criação (Pv 8,22-31; Sb 7,22; 9,2-4)133 e a ideia estoica da mediação do logos
na criação.134 Nos dois casos, o sentido seria sobre a atividade do filho preexistente, antes da
encarnação.135 Na teologia clássica, o Filho não deixa de ser parte da Trindade no momento da
encarnação. Portanto, o Filho continua a ser o Criador, o Logos, depois da encarnação, em sua
natureza divina. Consideremos, portanto, a importante distinção entre a economia do Filho e a
economia do Cristo. Cristo, o homem-Deus, não criou o mundo qua homem, mas só qua
Deus-Filho. Então, Cristo, esse homem-Deus, não é o “in eo omnia constant” porque omnia já
existia antes dele.136 Rm 8,22 se refere à expectativa para a salvação final, que, para Paulo, é a
salvação da morte. O contexto é escatológico e suas imagens são apocalípticas,137 referindo-se
a um ato definitivo em que “libertados do cativeiro da corrupção para participarem da
liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (Rm 8,21). Sem dúvida, Paulo não fala sobre um
processo natural ou evolutivo. Ef 4,10 deve ser interpretado no contexto escatológico
também, como uma referência à entronização do Messias, com sua presença em ‘todas as
coisas’, entendida através da Igreja, o corpo de Cristo (um tema importante na carta), e os
dons do espírito que o Messias dá (Ef 4,8.12).138 Simplesmente, a visão escatológica do Novo
Testamento não é a de uma evolução em Cristo.
Existem outras dificuldades dessa proposta do Cristo cósmico. O Cristo de
Teilhard parece ter pouca relação com o Jesus dos evangelhos. Nunca nos evangelhos Jesus
dá a si mesmo o lugar de centro do universo físico e do fim do processo da criação. Sua
preocupação é com o arrependimento do povo e a proclamação do evangelho (Mc 1,15), não a
noosfera e a super-conscientização do ser humano. Sobre isso, Gilson diz:
[...] sinto-me confirmado de que, no Evangelho, Jesus de Nazaré é outra coisa
que o “germe concreto” do Cristo Ômega. Não é que falte à nova função do
Cristo grandeza e nobreza, mas ela é diferente da antiga. Nós nos sentimos
133
NJBC, p. 879; FABRIS, As cartas, p. 60-61.
BARTH, Colossians, p. 198.
135
Barth explica, “the idea of preexistence is a necessary ingredient, since the text deals with the agent of
creation.” Ibid., p. 203. Ele também rejeita qualquer interpretação de Cristo como um homem arquétipo num
modo gnóstico (Ibid., p. 237-38).
136
Gilson percebe o mesmo ponto. GILSON, Trois leçons, p. 732.
137
FITZMYER, Romans, p. 509.
138
Cf. BARTH, Ephesians 4-6, p. 434-35, 476-77.
134
78
como diante de um túmulo vazio: nos tiraram nosso Senhor e não sabemos
onde o puseram. 139
Maritain concorda. Sobre o Cristo cósmico, a questão, “[...] É ainda o Cristo do Evangelho?
[...] Mas sua fé no Cristo do Evangelho era muito forte - e sua fé no mundo também - para
que ele não estivesse interiormente seguro que a questão colocada só poderia ser resolvida
pela afirmativa.”140 Apesar de Teilhard enfatizar a necessidade do Jesus histórico no processo
de cosmogênese, identificado com a cristogênese,141 sua afirmação não resolve o problema.
Qual a função do Jesus histórico nesse movimento? É a mesma função com a qual Jesus
identifica sua missão nos evangelhos? Gilson e Maritain diriam não. Eles entendem uma
confusão nas categorias, especialmente a mistura da atividade de Cristo com os processos
cósmicos.142 Ou seja, para eles a teologia de Teilhard parece uma distorção da fé cristã a partir
de conceitos científicos e metafísicos.
Vaz tenta responder às críticas de Maritain e Gilson e defender Teilhard. Primeiro,
Teilhard utiliza o método fenomenológico porque ele é um cientista realista,143 e tenta uma
síntese a partir dessa perspectiva. A crítica segundo a qual Teilhard confunde os níveis do
conhecimento, o físico com o nível cósmico, só pode, afirma Vaz, “ser feita a partir de uma
concepção da divisão do conhecimento racional inspirada em Aristóteles e à qual,
efetivamente, o pensamento de Teilhard teria dificuldade em se sujeitar.”144 Gilson e Maritain
buscam no fundo tratar Teilhard dentro de suas filosofias e não nos termos próprios do
paleontólogo jesuíta. Grumett concorda com Vaz e argumenta que Teilhard distingue
claramente entre Cristo e o processo da evolução.145 Segundo, Vaz argumenta que o Jesuíta
139
«[…] je me sens assuré que, dans l’évangile, Jésus de Nazareth est tout autre chose que le « germe concret »
du Christ Oméga. Ce n’est pas que la nouvelle fonction du Christ manque de grandeur et de noblesse, mais elle
est autre que l’ancienne. Nous nous sentons un peu comme devant un tombeau vide : on nous a enlevé notre
Seigneur et nous ne savons où ils l’ont mis. » GILSON, Trois leçons, p. 733.
140
«[…] « Est-ce bien encore le Christ de l’Évangile ? » […] Mais sa foi en le Christ de l’Évangile était trop
forte, - et sa foi au monde aussi, - pour qu’il ne fût pas intérieurement assuré que la question posée ne pouvait se
résoudre que par l’affirmative. » MARITAIN, Le paysan, p. 183.
141
« Si vraiment c’est par le Christ-Oméga que tient l’Univers en mouvement, c’est en ravanche de son germe
concret, l’Homme de Nazareth, que le Christ-Omega tire (théoriquement et historiquement) pour notre
expérience, toute sa consistance. Les deux termes sont intrinsèquement solidaires, et ils ne peuvent varier, dans
un Christ vraiment total, que simultanément. » CE, p. 211.
142
MARITAIN, Le paysan, p. 181-83 ; GILSON, Trois leçons, p. 716-17.
143
VAZ, Universo científico, p. 14-15. 21.
144
Ibid., p. 24.
145
Grumett tenta defender a concepção de Cristo Cósmico de Teilhard: “Teilhard regards Christ as completing
and redeeming the evolutionary process and therefore as irreducible to that process. David Fergusson provides,
in fact, an accurate description of Teilhard’s position in his apparently critical observation that Teilhard’s view
of the parousia, and the transformation of the whole of nature and redemption of evolution that are associated
with it, is ‘not a realization of immanent natural forces…. But a divine transfiguring of the cosmos intimated in
the resurrection of Jesus from the dead.’” GRUMETT, Teilhard de Chardin, p. 226. É duvidoso que essa resposta
seja suficiente. A transformação que Teilhard descreve é parte do processo da evolução, e não uma nova ação
divina. Cristo pode ser independente do processo da evolução, mas ele fica como seu motor e sua força. O
79
francês foi um místico, portanto sua teologia deve ser interpretada à luz de sua experiência
pessoal. Nessa perspectiva, ele conclui que é uma “visão profundamente tradicional,
integralmente ortodoxa,”146 baseada em São Paulo e semelhante à de Gregório de Nissa e
Máximo Confessor.147
Esse debate pode ser decidido somente a partir de uma interpretação correta dos
textos. Contudo, a questão como interpretar a teologia de Teilhard não é o foco desse estudo.
Mas, pelo menos podemos concluir, com de Lubac, sempre de modo equilibrado e sem igual
em seu conhecimento de nosso autor, que Teilhard sofre de uma metodologia limitada, que
fica no plano fenomenológico e objetivo e não abre para reflexões propriamente existenciais
ou teológicas. 148 Adiciona a isso a força de sua experiência pessoal de Deus, que influi
completamente em sua visão, e seus escritos, que ele não publicou, ficam misturados com
reflexões científicas e místicas, com afirmações meio metafísicas e teológicas. Por isso, a
confusão das categorias, que Gilson e Maritain percebem, cria uma grande dificuldade de
interpretar o sentido teológico das afirmações. Algumas afirmações e aspectos da estrutura da
síntese parecem problemáticos. Como se podem interpretar tais afirmações? Temos que
deixar esta questão e focar somente na questão relevante para este estudo: se Cristo não é
cósmico e sua redenção não se estende a toda a criação incompleta, em que sentido pode-se
interpretar o pecado original como a imperfeição inevitável do múltiplo no processo da
evolução?
2.4.4 Os problemas com a interpretação da doutrina do pecado original
A primeira dificuldade, mencionada acima, é a quase-identificação do pecado
original com o mal físico do universo. Se Ricoeur critica Santo Agostinho pela articulação do
conceito do pecado original per generationem como quase-gnóstico,149 pode-se dizer o mesmo
da identificação em Teilhard sobre o pecado original com os erros inevitáveis da evolução do
múltiplo no movimento para a união. A concepção de Teilhard coloca o mal no ser humano,
em sua matéria corruptível, sempre visto no nível cósmico.150 Quando se pergunta ‘de onde
vem o mal moral?’, a resposta de Teilhard tem que ser, ‘do múltiplo no processo de
problema não é somente que ele é indistinguível da evolução, mas que sua ação redentora é nada mais que a
ampliação do processo, como Gilson explica, « non pas que le Christ est l’Evolution, mais que l’Evolution est le
Christ. » GILSON, Trois leçons, p. 732.
146
Ibid., p. 25.
147
Ibid., p. 21.
148
DE LUBAC, A oração, p. 137-39. 149.
149
RICOEUR, Original sin, p. 276.
150
Rondet enfatiza essa tendência no pensamento de Teilhard. RONDET, Le péché originel, p. 306.
80
unificação’.151 Então, o pecado é inevitável e a responsabilidade termina em Deus, o Criador,
e não na criatura. Deus luta contra o mal no contínuo ato de unificação, e o ser humano é livre
em suas decisões para o ‘múltiplo’, mas as condições vêm de Deus, e o ser humano parece
desamparado frente a elas. 152 O fato de que Teilhard valoriza muito a matéria e o método
científico de investigação, que são atitudes realmente anti-gnósticas, mostram que ele não
propõe nem um dualismo nem um gnosticismo. Mas, como Ricoeur, entre outros, mostrou, a
doutrina foi concebida como anti-gnóstica e coloca a responsabilidade pelo mal no ser
humano e não num processo cósmico ou num deus.153 Teilhard transforma o pecado original
num processo natural, e identifica o mal moral com o mal físico. Logo, destrói o objetivo da
doutrina.
Além disso, a identificação entre o mal moral e o mal físico tem vários outros
problemas. Primeiro, os dois têm sido distinguidos habitualmente na tradição cristã,
começando com algumas afirmações de Jesus (Lc 13,1-5; Jo 9,3).154 O mal moral não vem do
mal físico, e o mal físico não é a consequência do mal moral. Se não se distingue os dois,
existe a tentação de cair numa teologia infantil da retribuição,155 ou de absolver as pessoas de
uma responsabilidade moral porque seus erros são inevitáveis. Rondet vê em Teilhard uma
confusão entre o pecado original e a concupiscência. A fraqueza da carne, que tem um
aspecto natural, não é o pecado original originans, o ato que começou o mal moral. 156 Ladaria
concorda com isso. A limitação humana não é uma opção negativa diante de Deus.157 Além
disso, Teilhard confunde a morte biológica com a morte como consequência do pecado. A
tradição testemunha que o ser humano, como um ser corporal, é mortal naturalmente. A
preservação da morte no jardim era por graça. A morte causada pelo pecado é a morte da
151
Teilhard escreveu uma reflexão com o título ‘La Lutte contre la multitude’ (1917), onde ele faz afirmações
fortes sobre a origem do mal no múltiplo, que é material. Por exemplo : « la Multitude est au principe de tous
nos maux. La Multitude nous heurte de dehors et nous corrompt…… La Multitude, encore, règne au-dedans de
nous, parmi les vies mal disciplinées que se groupent en notre organisme, toujours prêtes à lutter entre elles, ou
bien à nous déserter pour revenir à la masse commune. Elle sévit à la limite du corps et de l’âme, en cette région
de lent décollement où l’esprit se dégage de la chair, celle-ci toute absorbée dans les nécessités et les soins de la
vie phylétique, celui-là tout frémissant de se fixer dans l’Absolu pressenti. » TEILHARD DE CHARDIN, La
Lutte contre la multitude, p. 117. Ele escreve de uma maneira menos mítica nos escritos maduros, mas essa visão
permanece. A literatura secundária trata do múltiplo como uma categoria fundamental no sistema de Teilhard.
Cf. DE LUBAC, La pensée religieuse, p. 283; GRUMETT, Teilhard de Chardin, p. 118; MARTELET, Teilhard
de Chardin, p. 68, 132-33.
152
MARTELET, Teilhard de Chardin, p. 136.
153
RICOEUR, Original sin, p. 268-70.
154
Cf. sobre isso, MARITAIN, Le paysan, p. 183.
155
Cf. RICOEUR, The symbolism of evil, p. 31ff.
156
RONDET, Le péché originel, p. 301.
157
LADARIA, Teologia del pecado, p. 124.
81
alma, como Trento afirmou (DH 1512).158 Então, quando Teilhard liga a morte biológica com
o pecado original, ele tem que interpretar a redenção como uma superação da morte biológica
e não como a nova vida da graça em Cristo. Martelet critica Teilhard nesse ponto, e a
fraqueza de sua interpretação do mito Adâmico. 159 De novo, a falta existe na ausência da
responsabilidade humana. Vaz, que sempre defende Teilhard, concorda com Martelet. Ele diz
que, sobre o problema do mal, nós encontramos, “as insuficiências do pensamento de
Teilhard.”160
A segunda dificuldade dessa concepção do pecado é que ela não dá conta do
aspecto relacional do pecado como um estado de alienação de Deus. Teilhard explica um
aspecto do testemunho bíblico, que todo o ser humano peca e tem uma inclinação para o mal,
mas não o aspecto da revolta contra Deus, que é central no AT. Para sua metafísica, é
impossível estar alienado de Deus. Cada ser humano está convergindo para o ponto Ômega,
que é Deus. A convergência não pode ser quebrada ou rompida pelos atos humanos. Como
tal, o ser humano não pode desobedecer à lei da gravidade. Porém, uma pessoa pode rejeitar
sua evolução e não participar no movimento para a superconsciência, mas parece que toda a
criação vai ser unida no Ponto Ômega, com ou sem sua participação ativa. Além disso, o
pecado, para Teilhard, não tem um claro sentido de uma rejeição de Deus. Deus está por trás e
o movimento evolucionista está adiante. Essa exposição pode explicar a experiência do
pecado descrito nas Escrituras?
A terceira dificuldade consiste na diminuição da importância da responsabilidade
humana no pecado. Como mencionado acima, o coração da doutrina do pecado original é a
responsabilidade humana pelo pecado e suas consequências. O estado de corrupção e do
‘pecado’, na doutrina clássica, é o resultado dos atos livres do pecado. Em Teilhard, os
pecados são a consequência do estado da fraqueza, de um ser material no processo de
evolução.161 O ser humano não tem nenhuma responsabilidade, tanto historicamente quanto
teologicamente, para sua situação.162 É inevitável. 163 A decomposição dos átomos e a revolta
dos atos humanos parecem aspectos do mesmo processo em níveis distintos.164 Como Martelet
158
Veja as referências capítulo I, especialmente, como exemplos: São Gregório de Nissa (NYSSA, Against
Eunomius, II, 13) e Santo Tomás (STh. 1a. 97, 1).
159
MARTELET, Teilhard de Chardin, p. 138-39.
160
VAZ, Universo científico, p. 27.
161
LEYS, Teilhard de Chardin, p. 202.
162
Ladaria critica Teilhard por isso. Cf. LADARIA. Teología del pecado, p. 124.
163
CRG, p. 53.
164
RPO, p. 221-22.
82
indica, aqui se perde a gravidade do pecado. 165 Não pode explicar os horrores da história
humana, a crueldade que supera qualquer atividade meramente animal. 166
2.5 Conclusão
Ao lado da antropologia, a contribuição de Teilhard é significativa. Ele
desenvolve uma antropologia dentro da perspectiva evolucionista. A velha visão ‘fixista’,
baseada no mito Adâmico, não dá conta das descobertas da ciência. Ele explica como o ser
humano emerge dos primatas e como o progresso da cultura e da sociedade cabe dentro da
evolução. Ele salva tanto a unidade da humanidade quanto a especialidade de suas potências
que distinguem o ser humano do resto da criação. Em geral, a ênfase na unidade do ser
humano com o mundo é uma boa correção à visão do humanismo, que coloca o ser humano
acima de tudo. Com um grande conhecimento da pesquisa em paleontologia e antropologia
científica, Teilhard propõe uma teoria antropológica bastante credível para o mundo atual.
Então, pode-se definir alguns pontos mais valiosos para esse estudo. Primeiro, a
emergência do ser humano no mundo aconteceu segundo as leis da evolução do mesmo modo
que a evolução de todos os seres vivos. Teilhard dá uma explicação com sua teoria da
complexificação e da energia radial. Pode-se perguntar se essa energia de fato existe. 167 A
explicação da emergência ainda é controversa no mundo científico,168 mas pode-se dizer que
Teilhard oferece uma possibilidade ou pelo menos mostra como uma teoria pode ser fiel à
tensão continuidade-descontinuidade. Segundo, essa emergência não nega a novidade do ser
humano. Esse ponto é fundamental para uma antropologia cristã. Terceiro, Teilhard evita
qualquer intervenção miraculosa na criação do ser humano, o que passa a ser considerado
uma vantagem. A questão da criação direta da alma não é necessariamente negada, mas não é
necessária. Quarto, a afirmação do poligenismo e do monofiletismo ajuda a teologia cristã a
sair da perspectiva do monogenismo, que é um obstáculo à credibilidade da fé. Com isso, a
reinterpretação do símbolo do paraíso como uma idealização da oferta constante da salvação
supera a dificuldade latente na doutrina do pecado original de interpretar um mito como
165
MARTELET, Teilhard de Chardin, p. 140.
Na famosa acusação contra Deus feita por Ivan Karamazov, ele faz esta afirmação, “People talk sometimes of
bestial cruelty, but that’s a great injustice and insult to the beasts; a beast can never be so cruel as a man, so
artistically cruel. The tiger only tears and gnaws, that’s all it can do.” DOSTOEVSKY, The brothers Karamazov,
p. 122-23.
167
A comunidade científica não aceitou essa ideia de Teilhard, mas não existe uma outra teoria que tenha apoio
comum.
168
O debate foca muito na questão de que se a emergência de fato existe ou se se pode explicar tudo nos termos
das leis da física num modo reducionista. Cf. CLAYTON, The re-emergence, p. ix-xiv.
166
83
história. Por fim, Teilhard supera o ‘quadro comum’ da doutrina, como Vandervelde
chama, 169 e introduz um novo ‘quadro’, baseado numa visão do mundo evolucionista. Essa é
sua grande contribuição à teologia cristã.
Por outro lado, sua reinterpretação da doutrina, dentro desse ‘quadro’ não é
aceitável teologicamente. A identificação do pecado original com o mal físico do universo
destrói o coração da doutrina, que afirma a responsabilidade humana, e muda a dinâmica da
salvação cristã a uma forma quase-gnóstica. Não dá conta da especificidade do mal moral e da
responsabilidade humana por sua situação no mundo. Além disso, o pecado se torna
inevitável, contra o testemunho bíblico, e o processo da redenção se torna uma extensão da
evolução. Os temas clássicos da revolta contra Deus, do estado de pecado como alienação de
Deus, da expiação do pecado, da nova criação em Cristo, da superação do mundo num
momento escatológico, ficam obscurecidos. Em seu desejo de unidade, Teilhard ultrapassa o
que é legítimo dentro da teologia cristã. As distinções entre os vários domínios, especialmente
entre os processos naturais e as dinâmicas da graça, são essenciais. Ele trata os temas de modo
tão geral e tão universal, que, pode-se dizer, os aspectos distintos parecem desaparecer. Ele
tem um espaço dentro de sua exposição, o nível da noosfera, onde colocar os aspectos
propriamente humanos, como as ações livres, as relações pessoais, os hábitos, a cultura, o
movimento histórico, mas ele não desenvolve seu pensamento nessa direção.
Infelizmente, Teilhard não teve a oportunidade de publicar seus escritos durante
sua vida. Um debate aberto e respeitável teria ajudado muito no próprio desenvolvimento de
suas ideias. Por isso, deve-se concordar com Gilson e Maritain no sentido de que a teologia de
Teilhard não pode ser separada de sua vida pessoal, especialmente de sua vida espiritual. 170
Sua obra deve ser considerada como um poema, um imaginário, e não como um sistema
teológico.171 Contudo, ele foi o primeiro a levar a sério a evolução dentro do mundo católico,
e sua contribuição é na articulação de uma antropologia evolucionista compatível com a fé
cristã. Os autores que vêm depois dele, principalmente Rahner e Schoonenberg, sintetizam
melhor essa nova antropologia com a doutrina cristã. A questão para Rahner, que será tratado
no próximo capítulo, é exatamente essa. Como harmonizar a antropologia evolucionista com a
doutrina do pecado original? Teilhard contribui em parte para isso, mas Rahner tem que
explicar o pecado original de modo a não perder o sentido da doutrina. Como ele faz isso?
169
VANDERVELDE, Original sin, p. 43.
GILSON, Trois leçons, p. 736 ; MARITAIN, Le paysan, p. 178.
171
MARITAIN, Le paysan, p. 186 : « Quoi que Teilhard ait pu faire et quoi qu’il ait pu espérer, de telles idées
ne pouvaient, en réalité, trouver leur expression que dans les fragments d’un vaste poème qu’il aurait écrit. »
170
84
3 RAHNER SOBRE O PECADO ORIGINAL
3.1 Introdução
Rahner também ocupou-se com a questão do pecado original. Um de seus
primeiros estudos sobre esse problema foi: Pecado como a perda da graça na literatura da
Igreja primitiva (1936).1 Nesse estudo ele tenta explicar as consequências reais do pecado.
Depois da encíclica Humani generis (1950), ele devotou dois artigos às questões ligadas a
esse tema: A concepção teológica da concupiscencia (1951),2 Reflexões teológicas sobre o
monogenismo (1952)3. Nesse período, ele defendeu o monogenismo e a interpretação clássica
(neo-escolastica) do pecado original. Mas, seu pensamento evoluiu. Ele não se satisfazia com
o conflito entre a visão ‘fixista’ da tradição cristã e a visão evolucionista da ciência moderna.
Então, elaborou uma antropologia cristã que levava em conta a evolução em três obras, A
antropologia: problema teológico (1958)4, A cristologia dentro de uma concepção evolutiva
do mundo (1961), 5 e A unidade do espírito e da matéria no conhecimento cristão da fé
(1963).6 Nessas obras entrou em diálogo com o pensamento de Teilhard de Chardin. A partir
de então, retrabalhou a questão do pecado original, tentando explicá-lo num esquema
poligenista, em dois artigos, O pecado original e evolução (1967), 7 e O pecado de Adão
(1968).8 O fruto desse desenvolvimento é visto nos seguintes artigos de Sacramentum mundi:
A evolução, O monogenismo e O pecado original (1969).9 Mais tarde, ele retrabalhou ainda o
problema da concupiscência no estado da natureza caída, Breves observações teológicas
sobre o ‘estado da natureza de queda’ (1971), 10 e finalmente, deu sua resposta definitiva
sobre o assunto no Curso fundamental da fé (1976).11 A questão da relação entre a ciência e a
fé continuou a ser importante para Rahner, e num longo artigo, A ciência natural e a fé
1
RAHNER, Sin as loss. Todas as datas colocadas no texto referem-se aos anos das publicações originais e não
aos anos das traduções. As referências são as das edições usadas na pesquisa.
2
RAHNER, The theological concept.
3
RAHNER, Theological reflections.
4
RAHNER, A antropologia.
5
CCEM.
6
RAHNER, The unity of spirit.
7
RAHNER, Pecado original.
8
SA.
9
RAHNER, Sacramentum mundi II, IV.
10
RAHNER, Brief observations.
11
CFF, p. 114-44.
85
razoável (1981),12 tocou uma vez mais os pontos básicos da antropologia cristã dentro de um
mundo em evolução.
Esse capítulo não fará um estudo da gênese de seu pensamento, mas dará uma
exposição da posição madura de Rahner. Por isso, privilegiará o artigo Cristologia dentro de
uma concepção evolutiva do mundo para a parte da relação da teologia e a evolução, e o livro
Curso fundamental da fé, e o artigo O pecado de Adão, para a parte teológica. Os outros
artigos funcionarão como recursos úteis para explicar vários pontos específicos. Começará
com a reinterpretação antropológica à luz da evolução, e depois a relação da evolução com a
cristologia, e no final sua interpretação do pecado original. Concluirá com uma avaliação
crítica dessa proposta, que utilizará os pontos definidos no fim do primeiro capítulo. Quando
possível, uma comparação ou um contraste será feito entre a posição de Rahner e a de
Teilhard, sempre atenta à influência do segundo sobre no primeiro.
3.2 Antropologia de Rahner à luz da evolução
3.2.1 O método rahneriano
Rahner começa suas reflexões sobre a metafísica da evolução a partir de um ponto
de vista diferente de Teilhard. Teilhard, enquanto geólogo e paleontólogo, foca os fenômenos
empíricos no horizonte do universo total e tenta dar uma teoria científica que explica os
fenômenos. Rahner, enquanto teólogo, trata a questão do ponto de vista da fé cristã.
Consciente da posição de Teilhard, Rahner define claramente a diferença metodológica entre
os dois:
Tentamos evitar teoremas, que vos são familiares na linha de Teilhard de
Chardin. Se nos encontramos com êle, muito bem. Não precisamos evitá-lo
intencionalmente. Mas, em relação a ele, não nos sentimos nem dependentes
nem obrigados a segui-lo. Não desejamos dizer mais do que qualquer teólogo
poderia dizer, desde que faça teologia sobre as questões colocadas por essa
moderna concepção evolutiva do mundo. Também é certo que teremos de
trabalhar com certa abstração que decepcionará, talvez, ao especialista das
ciências naturais. Seria compreensível que este esperasse indicações sobre
uma determinada homogeneidade entre matéria e espírito, mais exatas do que
as que oferecemos, e precisamente, a partir desses conhecimentos da ciência
da natureza ou a partir das valorações deles próprios, que lhe são familiares.
Se assim fizéssemos (como o faz Teilhard), deveria então nossa reflexão não
somente ter as mesmas pretensões que esses conhecimentos de ciência
natural, que a um pobre teólogo são acessíveis só em segunda mão, senão que
teríamos, ainda, de suportar todas as dificuldades que inevitavelmente estão
unidas a tais interpretações de resultados reais de ciências da natureza, os
12
RAHNER, Natural science.
86
quais não são indiscutíveis. Mas nos bastam as dificuldades que nestas
questões a filosofia e a teologia já nos impõem. 13
Então, Rahner fica no nível da filosofia e da teologia e não tenta propor uma investigação
científica, como Teilhard. Seu objetivo é mostrar a afinidade e não-contradição entre a ciência
e a teologia. 14
O método teológico de Rahner está baseado em sua filosofia transcendental. Em
vez de entrar numa exposição da filosofia de Rahner, sistematizada nos dois livros, O espírito
no mundo e O ouvinte da Palavra, será melhor somente fazer um breve resumo. A
investigação transcendental, que foi iniciada com Kant, busca as condições de possibilidade
do conhecimento, sempre para chegar às estruturas a priori do sujeito, que transcendem
qualquer experiência histórica e categorial. Weger dá uma lúcida descrição:
para Rahner é manifesto que nós, homens, estamos, na nossa vida,
relacionados com as ‘coisas’ concretas do nosso mundo de experiência, com a
realidade ‘categorial’. Se Rahner, apesar disso, não deixa de postular uma
realidade ‘apriorística’ no homem; se ele fala de uma realidade
‘transcendental’, e não apenas de uma realidade e de experiência ‘categorial’,
que é que ele quer dizer com isso? – Apriorístico é, de fato, algo que o
homem não começa a aprender só no momento de ele entrar em contato com
o seu mundo de experiência. Apriorístico é, no homem, aquilo que não
provém simplesmente do nosso mundo concreto, ao entrarmos em contato
com ele, mas que (não necessariamente no tempo!) precede esse contato. É
verdade, sem as experiências aposteriorísticas do homem, nunca poderíamos
saber da nossa estrutura apriorística. Já nos referimos a essa relação de
condições recíprocas [...] A finalidade do método transcendental consiste em
deixar claro que o homem, na sua vida cotidiana, não está somente em contato
com ‘os grãos de areia’, mas que também habita ‘na beira de um oceano
infinito’. Por outras palavras: perguntar-se-á e será preciso mostrar que o
saber e o conhecimento, as experiências e o agir do homem, tais como nós
todos os praticamos, seriam simplesmente impossíveis, se só tivéssemos em
mãos ‘os grãos de areia’ do nosso dia-a-dia. Há no homem algo de
apriorístico e é só isto que lhe dá a simples possibilidade de se experienciar da
maneira com que se experiencia na realidade.15
O método transcendental, em diálogo com Maréchal e Heidegger,16 leva Rahner à conclusão
fundamental de que o sujeito transcendental tem uma dinâmica orientação para o ser absoluto,
13
CCEM, p. 88-89.
Ibid., p. 87.
15
WEGER, Karl Rahner, p. 24, 25.
16
Muitos filósofos Católicos questionam Rahner por causa dessa orientação. McCool resume a reação de muitos
nos Estados Unidos, “The most serious objection, however, which many American Thomists will present to the
theology of Rahner is its great dependence on the a priori Thomism of Maréchal […]. To accept as the starting
point of one’s philosophical reflection the content of human consciousness as such and to determine the end of
philosophical investigation as the discovery of the a priori conditions of possibility for the data of consciousness
is simply to initiate once more the critical reflection of Kant; and there is no reason to believe, in the opinion of
many modern Thomists, that the logical result of such a critical reflection can be anything else than the adoption
of the critical idealism of Kant himself.” McCOOL, The philosophy, p. 561.
14
87
que abre o horizonte infinito em que ele exerce sua inteligência e sua vontade. 17 Essa
afirmação informa toda sua teologia.
Rahner faz teologia do ponto de vista antropológico. Ele argumenta, num artigo,
que a teologia hoje deve ser uma antropologia teológica. 18 Mas tal antropologia não nega o
teocentrismo porque, “Desde que se considere o homem como absoluta transcendência
orientada para Deus, o ‘antropocentrismo’ e o ‘teocentrismo’ da teologia não se contradizem,
mas formam rigorosamente uma única coisa (expressa a partir de dois pontos de vista).”19 E a
antropologia que Rahner menciona é a antropologia transcendental, que explica as condições
de possibilidade do conhecimento e da ação no sujeito.20 Aplicado à teologia, ele explica que:
Quando, portanto, pretendemos tratar toda a dogmática como antropologia
transcendental isto significa que sobre qualquer objeto dogmático que
inquirimos, nos perguntamos ao mesmo tempo sobre as necessárias condições
que o seu conhecimento implica no teólogo, que demonstramos existirem de
fato condições a priori para o conhecimento deste objeto; que estas condições
já implicam e afirmam alguma coisa deste objeto, da maneira, do método e
dos limites de seu conhecimento.21
Então, o teólogo tenta mostrar as condições no sujeito sugeridas pelos dogmas da fé. O que o
conhecimento do dogma da encarnação revela sobre as estruturas a priori do crente? Isso
significa que normalmente Rahner inicia sua reflexão com a experiência do ser humano,22 e
tenta explicar a fé a partir disso, mas ele não esquece o dogma.23 Portanto, não faz somente
investigações transcendentais, mas usa também outros argumentos e muitas vezes está
preocupado com as questões dogmáticas em si mesmas. Portanto, a antropologia
transcendental é central, mas não exclui outros modos teológicos de investigar e argumentar.
Suas investigações sobre a evolução, estão, então, focadas na questão da
humanização. Rahner desenvolve uma metafísica do devir e uma antropologia transcendental
que se harmoniza com os dados científicos da evolução. Uma grande preocupação sua é a
questão da criação da alma, que é um dogma da fé, mas não se harmoniza com a visão
evolucionista. Então, no fundo, é tentar mostrar como o ser humano pode ser um produto da
evolução e, ao mesmo tempo, um ser espiritual, com uma alma imortal criada por Deus. Ele
17
CFF, p. 46-54.
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 13-14.
19
Ibid., p. 13.
20
Ibid., p. 14.
21
Ibid., p. 15.
22
WEGER, Karl Rahner, p. 21
23
Sesboüé dá um bom resumo, “A principal preocupação de teólogo jamais será a de retomar somente as
grandes questões da teologia em si mesmas, mas sempre a de se interrogar, a respeito de cada uma delas, sobre
as condições de possibilidade de seu acolhimento pelo homem.” SESBOÜÉ, Karl Rahner, p. 65.
18
88
também explica a congruência entre o movimento da evolução, que produz o ser humano, e a
salvação em Cristo.
3.2.2 A evolução e a antropologia
Rahner explica o devir da evolução como um movimento de autotranscendência,
com Deus como fundamento e como fim. Para ele, todo devir é um modo de
autotranscendência, um movimento para um grau superior.24 Deus, como o ser absoluto e a
causa de tudo, é o fundamento transcendental desse movimento, e, além disso, é imanente na
causa finita e superior a essa causa finita. 25 Deus é ao mesmo tempo ‘acima’ e ‘dentro’, ou
seja, ‘transcendente’ e ‘imanente’.26 Ele diz:
A ativa auto-superação realizada no devir ocorre pelo fato de a causa
ontológica absoluta e o primeiro fundamento desta auto-superação
constituírem um momento interno do movimento evolutivo. Assim o devir é
auto-superação ativa e não algo meramente passivo. Não é devir do ser
absoluto, pois este permanece intato e inatingido, pairando ‘acima’ do devir
como ‘movens immobile’, como momento interno do auto-movimento do
devir que supera a si mesmo. 27
Então Rahner pode concluir que a causa finita ultrapassa a si mesma em devir e que isto é
possível somente porque o ser absoluto é o fundamento e o fim de cada causa. 28
Com essa concepção Rahner não tem nenhum problema em explicar o processo de
evolução no mundo. O desenvolvimento contínuo na biosfera implica a caraterística da
possibilidade da autotranscendência em cada realidade individual. 29 Com a explicação da
possibilidade da autotranscendência do ser, a evolução parece como um exemplo a posteriori
dessa condição a priori do ser em geral. Além disso, o ‘mais’, que é possível no devir, tem
24
Para um resumo desse conceito, veja: VORGRIMLER, Karl Rahner, p. 200-207.
Weger explica o modo dessa causa, “O princípio de causalidade metafísica, ou seja, uma causa metafísica, de
que Rahner, neste contexto, não cessa de falar, é algo que não se pode conceber segundo o modelo de
causalidade intramundana. Pode, por conseguinte, ser circunscrito como uma causa não-indicável
categorialmente, não-verificável empiricamente, e, no entanto, uma verdadeira causa que faz com que eu, ou
qualquer outra realidade, seja capaz de realizar o que de fato se realiza. A causalidade metafísica é, portanto, o
agir transcendental de Deus.” WEGER, Karl Rahner, p. 86.
26
CCEM, p. 96.
27
RAHNER, A antropologia, p. 81.
28
Fields ajuda a resumir o argumento, “The preapprehension [of being] provides the warrant, therefore, for
Rahner’s central thesis in the metaphysics of becoming. The movement from potency to act is never merely a
manifestation of what is ontologically immanent in the changed substance. In change, an agent not only realizes
its immanent potency, it transcends its nature by positing ontological novelty. As the paradigmatic case of
human cognition shows, in knowledge the subject realizes in itself the self-presence of Being, which causes the
subject’s self-transcendence. This is caused in turn by the active immanence of absolute Being in the cognitive
dynamism. Because absolute Being is by definition infinitely intelligible, its causal immanence in the agent’s
dynamism explains how change can produce in the agent an ontological increment that transcends the agent’s
finite essence.” FIELDS, Being as symbol, p. 60.
29
RAHNER, Natural science, p. 38.
25
89
que ser concebido de um modo contínuo e sequencial, como a teoria da evolução propõe,
porque o limite do que pode devir é determinado, não pelo ser absoluto, que é infinito, mas
pelo ser material, que é limitado intrinsicamente (a matéria é o princípio da limitação). Os
saltos para ‘mais’ ser são, de fato, pequenos porque o ser material é limitado e não ilimitado.30
A fé cristã só tem que enfatizar, diante do cientista, a causalidade de Deus como um objeto de
conhecimento no fenômeno da evolução, não como causa material, mas como causa
transcendental.31
Dentro dessa concepção, Rahner reinterpreta a hominização e a ‘criação’ da alma
humana. O argumento é o seguinte. Cada devir é um ato de autotranscendência. A causa finita
pode produzir mais do que ela é. Deus é a condição para a possibilidade dessa
autotranscendência porque é a imanente causa do movimento que também transcende à causa
finita. A matéria é de certo modo o espírito limitado e ‘condensado’.32 Então, a criação da
alma pode ser vista como um exemplo especial de devir como autotranscendência. Os pais
humanos, como as causas finitas, são as causas do completo ser humano,33 incluindo a alma.
Deus é a causa transcendental do movimento imanente na causa finita, então ele é a ‘causa’ da
alma também, mas como condição de possibilidade da causalidade da causa finita. Então, na
origem da alma, Deus não é uma causa ocasional, mas tem uma relação transcendental, como
toda a causalidade finita. Além disso, ele afirma:
os pais são causa do homem todo. Eles são, portanto, causa também da alma.
São causa da alma, entenda-se, sempre à luz da ideia de ação por nós
anteriormente exposta! Com isto, não só não fica excluído, mas, ao contrário,
fica positivamente afirmado que os pais só podem ser causa do filho, na
medida em que eles dão origem ao novo homem, mediante a força de Deus,
força esta que possibilita a sua auto-superação e que é intrínseca ao seu agir,
sem, contudo, pertencer à constituição de sua essência.34
Portanto, a atividade de Deus não é uma intervenção ocasional e externa. Ele é o fundamento
transcendental que permite as evoluções do ser e a auto-superação do agente, de que a
‘criação’ da alma é um exemplo especial. 35
30
RAHNER, The unity of spirit, p. 176.
RAHNER, Natural science, p. 39.
32
RAHNER, A antropologia, p. 53; The unity of spirit, p. 168.
33
RAHNER, A antropologia, p. 89.
34
Ibid., p. 88-89.
35
VORGRIMLER, Karl Rahner, p. 205.
31
90
3.2.3 Cristo e a evolução
Rahner argumenta que o movimento de autotranscendência no cosmo, que se
torna consciente de si mesmo no ser humano, não deve terminar no mundo. Ele pensa que,
“essa tomada de consciência do cosmos no homem, em sua totalidade e liberdade individuais,
que o mesmo realiza, deve ter também um resultado definitivo.”36 Por que? Porque Deus não
somente cria algo outro que ele mesmo, mas também dá a si mesmo a este outro.37 O plano da
criação tem como finalidade a autocomunicação de Deus à criatura. 38 O processo da
autotranscendência permite a aparição do espírito no mundo. Os seres espirituais, conscientes
e orientados ao ser absoluto, emergem do processo como um novo nível da realidade. Como
espirituais, são abertos a receber a autocomunicação de Deus. 39 Então, o processo da
evolução, segundo o plano de Deus, encontra seu fim no ser espiritual, que tem para seu fim a
autocomunicação de Deus. Esse fim é também um movimento da transcendência, mas não é
um movimento da evolução.
Para Rahner, essa autocomunicação de Deus tem que ser histórica. Ele explica:
Essa história da autoconsciência do cosmos é sempre também
necessariamente uma história da intercomunicação desses sujeitos espirituais,
porque o fato de o cosmos tomar consciência de tais sujeitos espirituais deve
significar, antes de tudo, e necessariamente, um encontro recíproco desses
mesmo sujeitos, nos quais o todo está cada vez presente a si mesmo, e cada
vez de uma maneira particular, visto que se assim não fosse, o tomar
consciência de si ao invés de unir, dividira. Autocomunicação de Deus é, pois,
uma abertura à liberdade e à autocomunicação das plurais subjetividades
cósmicas. Esta autocomunicação se dirige, pois, por necessidade, a uma
história livre da humanidade, e pode somente acontecer em aceitação livre por
parte desses sujeitos livres, e em uma história comum.40
Basicamente, o cosmos é histórico, e os seres espirituais são constituídos historicamente,
interconectados, e exercem suas liberdades no tempo. Então, a autocomunicação de Deus
deve acontecer dentro do cosmos e da história, e não pode ser completamente a-histórica e acósmica.41 Ela tem um início histórico, e solicita a resposta livre dos seres espirituais.42 Nesse
36
CCEM, p. 104.
Ibid., p. 105.
38
Rahner explica que, “Supomos, portanto, que a meta do mundo é a autocomunicação que Deus lhe faz de si
mesmo, que todo o dinamismo que Deus imprimiu ao devir do mundo em autotranscendência [...] deve
propriamente considerar-se como sendo desde sempre um começo e uma partida para esta autocomunicação de
Deus.” Ibid., p. 108.
39
Ibid., p. 108.
40
Ibid., p. 108-09.
41
VORGRIMLER, Karl Rahner, p. 203.
42
CCEM, p. 109.
37
91
sentido, ela está mediada no tempo por causas finitas, como um evento ou uma palavra.43 O
evento histórico que faz Deus presente em sua plenitude é a encarnação.
Nosso autor coloca Cristo como a absoluta e definitiva manifestação histórica de
Deus para toda a humanidade. Ele argumenta que a ideia de um salvador não deve ser mais
dessa, “pessoa histórica que, aparecendo no espaço e no tempo, significa o começo da
absoluta autocomunicação de Deus, que a inaugura para todos como um fato irrevogável, que
a anuncia como presentemente acontecendo.”44 Jesus satisfaz essa descrição como o Logos
encarnado, que ao mesmo tempo é uma pessoa histórica, um homem verdadeiro, 45 e a
presença absoluta de Deus.46 Por isso, Rahner pode afirmar que Jesus é o clímax da história
mesma, porque permite a transcendência do espírito em Deus.47
Pelo fato de Rahner entender o processo da evolução como autotranscendência, é
fácil para ele mostrar a continuidade entre a evolução e a salvação. A natureza autotranscende
através da ação transcendental de Deus. O ser espiritual, o ser humano, transcende a si mesmo
na ação transcendental de Deus, que Rahner chama de autocomunicação de Deus. As linhas
gerais da atividade nas duas esferas são as mesmas. Por isso, ele afirma:
Temos pois todo o direito de considerar criação e encarnação, não como duas
ações de Deus ‘ad extra’, independentes e justapostas, resultantes de duas
iniciativas separadas uma da outra, mas sim como dois momentos e fases, no
mundo real, de um processo que é uno, ainda que diferenciado internamente,
pelo qual Deus se aliena de si mesmo e se expressa naquilo que é diferente
dele. 48
Então a encarnação em Cristo leva para a realização do movimento da autotranscendência da
evolução porque permite a transcendência do espírito em Deus, e a emergência do espírito é o
fim da evolução.
Essa posição leva à questão: qual é, então, a diferença entre a criação e a
redenção? Possuem basicamente a mesma dinâmica? Em que sentido, então, Rahner salva o
sobrenatural e a gratuidade da graça?
Rahner percebe e responde a essa questão. Ele afirma que, “Não temos, penso eu,
uma dificuldade especial em representar-nos a história do mundo e do espírito como a história
de uma autotranscendência até a vida de Deus, que em sua última e suprema fase é idêntica a
43
Ibid., p. 121.
Ibid., p. 109.
45
Ibid., p. 111.
46
Ibid., p. 122.
47
Ele afirma explicitamente que, “o salvador, que nós apreendemos como ponto culminante da história do
cosmos.”Ibid., p. 114.
48
CCEM, p. 113-14.
44
92
uma absoluta autocomunicação divina, o que indica o mesmo processo visto a partir de
Deus.”49 Existe uma unidade na história da autotranscendência da evolução e da salvação em
Deus. Ao mesmo tempo, somente os seres espirituais, que têm a possibilidade de receber a
auto-comunicação de Deus, são sujeitos da ação salvífica de Deus. 50 Rahner não cai na
afirmação que Cristo salva o macaco. Nesse sentido, a criação e a salvação são distintas.51
Além disso, ele discute a questão de saber em qual sentido a encarnação pode ser
o fim e a culminação da evolução. Rahner afirma que a encarnação sempre permanece como
“um degrau particular, absolutamente novo, na hierarquia das realidades do mundo.” 52
Portanto, é sobrenatural. Ao mesmo tempo, pode-se afirmar também que a encarnação é o fim
e a culminação do desenvolvimento do universo. 53 Por que? Porque a evolução, como a
autotranscendência, alcança seu fim para os seres espirituais na autocomunicação de Deus.
Ele argumenta que a encarnação é necessária para a divinização da criatura espiritual, porque
quando a autocomunicação absoluta de Deus à criatura alcança a sua consumação na criatura,
existe uma união hipostática. 54 A absoluta autocomunicação de Deus à criatura implica
necessariamente, em sua consumação, uma ‘encarnação’. Então, se o fim da criação é a
autocomunicação de Deus, e essa comunicação necessariamente implica uma ‘encarnação’, a
encarnação é o fim da criação. Se a criação é um processo do desenvolvimento, uma
evolução, o fim dessa evolução é a encarnação.55
Ao mesmo tempo, Rahner não cai nos mesmos problemas que Teilhard: confundir
os processos físicos e a ação redentora de Cristo. Ele vê a encarnação como o ponto de
encontro do movimento da evolução e da atividade graciosa de Deus. Ele sumariza:
tínhamos apontado já implicitamente essa união hipostática ao considerarmos
a história do cosmos e do espírito chegando ao ponto no qual acontece a
absoluta autotranscendência do espírito em direção a Deus e a absoluta
autocomunicação de Deus, por meio da graça e da glória, a todos os sujeitos
espirituais.56
49
Ibid., p. 115.
Ibid., p. 115.
51
A questão em qual sentido a criação como o dom da existência é uma ‘autocomunicação’ de Deus, que é o ser
absoluto, não deve preocupar o leitor aqui. A autocomunicação de Deus, interpretada por Rahner, no evento
Cristo e na graça leva para a união do ser espiritual com Deus. A criação dos seres não é uma união com Deus,
exceto quando uma pessoa adota a posição panteísta. Rahner claramente não é um panteísta, então a criação e a
autocomunicação não devem ser a mesma ação de Deus.
52
Ibid., p. 117.
53
CCEM, p. 117.
54
Ibid., p. 120.
55
Ibid., p. 117-18. Weger chega à mesma conclusão, “ao conceito de uma ‘auto-excedência ativa’ da realidade
criada. Este conceito, de uma autotranscendência (que significa precisamente essa auto-excedência), por sua vez,
encontra o seu ponto culminante na cristologia” WEGER, Karl Rahner, p. 79.
56
CCEM, p. 119.
50
93
O cosmos ascende e Deus descende. Cristo é o ponto onde o seres espirituais
autotranscendem através da autocomunicação de Deus. Portanto, embora a autocomunicação
de Deus seja o fim do movimento da criação, esta não pode ser reduzida a esse movimento,
porque é um novo e distinto dom de Deus. 57 Rahner enfatiza que a graça e a encarnação
permanecem dons livres de Deus e distintos dos processos físicos.58
3.2.4 Monogenismo e poligenismo
Rahner, como teólogo, preocupou-se com a questão do monogenismo e do
poligenismo. Em seu primeiro artigo sobre o assunto, ele defendia o monogenismo do ponto
de vista teológico, mas afirmando que não é um dogma de fé. 59 Mais tarde, num artigo de
1967, ele defende a possibilidade de manter a doutrina do pecado original com o
poligenismo. 60 Ele conclui que o Concílio de Trento, “não pretendia apresentar uma definição
do monogenismo,” e, “O monogenismo não é um dogma definido pela Igreja.”61 Além disso,
ele defende que, “no estado atual da teologia e das ciências é impossível provar como certo
que o poligenismo não seja compatível com a doutrina ortodoxa do pecado original.”62 Antes
de entrar na discussão sobre o pecado original, seria útil explicar como Rahner cria espaço
para a compatibilidade do poligenismo com a fé cristã.
Em primeiro lugar, sua metafísica da hominização permite a pluralidade dos
primeiros homens. A aparição do ser humano no mundo não é o resultado de um ato especial
de Deus. Representa, ao contrário, um momento especial do mesmo processo da
autotranscendência da criação através da evolução. A criação da alma é nada mais nada
menos que a ação transcendental de Deus na criação, que alcança o nível do espírito. Então, é
co-extensiva com a evolução. Nesse sentido, não precisa haver dois primeiros humanos no
início; pode ser um grupo ou vários grupos alcançando o mesmo nível de autotranscendência.
57
Vandervelde percebe a tensão sobre esse ponto também e conclui no mesmo modo, “The association of the
history of salvation with the process of evolution must by no means be interpreted as entailing a reduction of the
former with the latter. As we shall see, basic distinctions between natural and historical development (human
freedom), and between ‘natural’ historical development and salvific historical development (divine freedom) are
maintained. The recognition of these distinctions, however, has not prevented the transposition of a basic feature
of the evolutionary process to the realm of salvation history, namely, continual upward development. This
remnant of an evolutionary conception constitutes the overall framework of salvation history as conceived by
both Rahner and Schoonenberg. That evolutionary motif becomes evident by examining their conception of the
basic structure of evolution and by comparing that conception to their delineation of the general pattern of
salvation history.” VANDERVELDE, Original sin, p. 129.
58
CCEM, p. 117.
59
RAHNER, Reflections on monogenism, p. 233-34, 243.
60
RAHNER, Pecado original e evolução, p. 53-65.
61
Ibid., p. 55.
62
Ibid., p. 56.
94
Em segundo lugar, Rahner defende a unidade essencial e histórica do ser humano.
Ele pensa que tal unidade é necessária para manter a doutrina do pecado original. Mas pensa
também que tal unidade é possível ainda com uma origem poligenística do ser humano. Ele
explica:
se pode afirmar esta unidade corporal-histórica da humanitas originans sem a
concentrar num só par. Mesmo no caso de ter surgido poligeneticamente, a
humanidade constitui uma unidade histórica do ponto de vista corporal: na
unidade real (quer dizer, formada através de realidades reais e não por meio
de uma operação mental) do espaço físico da existência, que não se deve
imaginar como sendo um ‘lugar’ vazio; através da unidade real da população
animal, da qual provém a humanidade e na qual apenas a pressão da seleção
se pode considerar como una, quer dizer, a tendência evolutiva que leva à
humanização; através da unidade do biótipo concreto, unicamente no qual os
homens se podem manter e reproduzir, sendo indiferente o facto de terem sido
duas ou mais pessoas que constituíram a primeira humanidade; através da
intercomunicação humana-pessoal concreta que, em todo o caso, não é só
uma consequência mas um momento constitutivo da unidade corporalhistórica do homem como tal – se é realmente verdade que ‘cultura’ (língua,
etc.) pertence à ‘natureza’ do próprio homem, não sendo só um luxo, sem o
qual o homem poderia existir biologicamente; finalmente, através da unidade
da determinação a um fim sobrenatural e a Cristo, determinação que não se
refere primariamente à humanidade como una, mas que radicaliza esta
unidade. 63
Portanto, o poligenismo não destrói a unidade do ser humano. Uma humanitas originans pode
ser tanto de um individuo quanto de um grupo de indivíduos.64 Discutiremos como esse ponto
o ajuda a manter a linha de transmissão do primeiro pecado para toda a humanidade.
3.2.5 A relação de Rahner com Teilhard de Chardin
Essa exposição da antropologia e da cristologia de Rahner, em relação com a
evolução, permite uma comparação com a visão de Teilhard. Em primeiro lugar, vê-se as
similaridades entre os dois pensadores. Os dois interpretam a atividade criativa de Deus como
contínua na evolução do universo. Eles dão uma explanação do devir consistente com a teoria
da evolução, as categorias de espírito-matéria, e os princípios metafísicos da causalidade. Os
dois argumentam que a evolução move na direção do espírito e da consciência. Eles explicam
a emergência do ser humano dentro desses princípios científicos e metafísicos. Também,
aceitam o poligenismo e explicam a hominização de modo consistente com os dados
científicos. Finalmente, os dois colocam Cristo como o fim do movimento do
desenvolvimento do mundo. Mas, também existem diferenças importantes.
63
64
RAHNER, Pecado original e evolução, p. 58-59.
SA, p. 257.
95
A primeira diferença: para Teilhard o devir é o resultado da atividade da energia
radial e a maior explicitação do ‘dentro’ das coisas. Para Rahner, o devir é a
autotranscendência dos seres. Para Teilhard, a maior complexificação recebe sua explanação
da energia radial, que é um princípio fundamental no universo. O devir é a explicitação da
estrutura fundamental do ser. Em Rahner, o devir é realmente uma superação da estrutura
antecedente, não seu resultado. Por isso, Rahner pode afirmar que o espírito emerge do
processo do universo como um ser novo, realmente maior, que não existia antes. A matéria
não pode tornar-se espírito.65 Em Teilhard, o universo se atualiza a si mesmo, não supera a si
mesmo. Para Rahner, o movimento é de elevação e não de convergência, como Teilhard. Por
isso ele evita os problemas ligados com a questão da convergência, discutidos no segundo
capítulo.
A segunda diferença: o lugar de Cristo no processo da evolução é diferente em
nossos autores. Em Teilhard, Cristo é o princípio cósmico que unifica o universo, então está
intimamente ligado com a evolução. Ele é uma força no processo, como aquele que atrai, e é
realmente o ponto de união para que a evolução progrida. Para Rahner, Cristo é o fim da
evolução somente no sentido de que a evolução é dirigida para o espírito e o espírito tem
como seu fim a união com Deus. Cristo é que torna possível essa união. Então, toda a
evolução não termina em Cristo, mas somente os seres espirituais, o mais alto fim da
evolução, que recebe a graça de Cristo. Para ele, essa graça ultrapassa toda a criação.
A terceira diferença: Rahner não faz as mesmas afirmações de Teilhard sobre a
convergência do universo. O conceito da autotranscendência coloca a ênfase na superação
pelo espírito dos processos físicos e não a união de todas as coisas. Por isso, o teólogo alemão
pode dar mais espaço para a liberdade, que se determina a si mesma e não somente participa
no movimento do universo. Isso é muito importante para a doutrina do pecado original, que
coloca a responsabilidade humana como chave de interpretação da situação humana.
Em resumo, os dois pensadores tentam resolver os mesmos problemas e
encontram respostas similares, mas também têm conclusões bastante diferentes. Agora é
tempo de ver como Rahner interpreta a doutrina do pecado original à luz da evolução.
65
RAHNER, Hominisation, p. 57.
96
3.3 Interpretação do pecado original de Rahner
Rahner se preocupou em desenvolver uma interpretação da doutrina do pecado
original coerente com a tradição da Igreja.66 Mais do que Teilhard, ele discute a questão das
definições dos concílios, especialmente Trento,67 e a base bíblica da doutrina. 68 Ele aceita que
Rm 5,12 contenha uma afirmação do pecado original, tal como Trento subsequentemente o
definiu.69 Mas ele também pensa que entre os textos da Escritura e os da definição de Trento
existe espaço para interpretar seu significado exato. Então, sua exposição mantém um pé na
Escritura e na Tradição e o outro nas legítimas explicações do como e do porquê da doutrina
do pecado original. Rahner argumenta que os pontos básicos que cada teólogo tem que aceitar
são: 1) o primeiro pecado fez com que os primeiros humanos e também a humanidade
perdessem a graça da justiça original; 2) o primeiro pecado constitui uma ‘herança’ de pecado
para a humanidade, transmitido per propagationem, sem ser definido o modo exato dessa
transmissão; 3) o estado de pecado, da ausência da graça, é universal no ser humano, e então
precisa da salvação em Cristo.70
Essa parte começará com a exposição do peccatum originale originans, e depois a
relação do primeiro pecado com o estado de pecado original no ser humano, do peccatum
originale originatum. Logo, discutirá a interpretação das consequências clássicas do primeiro
pecado, a concupiscência e a morte. Finalmente, aplicará os problemas identificados no
primeiro capítulo à interpretação de Rahner, para ver se ele realmente os supera.
3.3.1 Peccatum originale originans: o pecado de Adão
Rahner faz uma análise detalhada da questão do pecado de Adão, ou seja, do
peccatum originale originans.71 Ele começa, como sempre, com os dados da antropologia e
desenvolve uma interpretação que dá conta da tradição e do poligenismo, e que é consistente e
razoável. O primeiro ponto importante para a antropologia é que o ser humano é um ser
histórico. Ele é constituído historicamente, com um passado definido e um futuro projetado, e
em relação com os outros numa co-existência. Então, a constituição do ser humano no mundo
está determinada, num sentido, pelo passado. Uma pessoa não entra no mundo a66
SA, p. 248.
RAHNER, Pecado original e evolução, p. 55; RAHNER, Original sin, p. 231.
68
SA, p. 250-51; RAHNER, Original sin, p. 230-31.
69
SA, p. 250-51.
70
RAHNER, Original sin, p. 231.
71
SA, p. 247-62.
67
97
historicamente, mas num tempo e lugar, numa família e povo. Também Rahner enfatiza que
essa história é una, porque o ser humano tem um começo na história. 72
Esse ‘começo’ da humanidade tem que ter uma significação especial. Ele explica:
[...] para uma antropologia de caráter existencial-ontológico, especialmente
uma que seja teológica, ‘começo’ é, inicialmente, não o primeiro momento de
toda uma série de momentos que se seguem, mas a base de sua própria
natureza singular, sobre a qual se encontra toda a história. Uma base que, por
ter sido proposta pelo próprio Deus e pela singularidade do livre ato do qual
foi extraída pura e definitiva, é em si mesmo sui generis [...] O que chamamos
de pecado original (considerado como o pecado ‘de Adão’) pertence à
constituição inicial daquele começo definitivo que é retirado de nós e nunca
se repete, e a verdadeira natureza do que é apenas gradualmente revelado à
luz do futuro que é Cristo.73
O começo da humanidade não é meramente o primeiro momento de uma série de momentos
mais ou menos iguais, do ponto de vista da significação para a história humana. O primeiro
momento do exercício da liberdade, livre de qualquer outra forma de influência humana e
realmente ‘inocente’, no sentido de simples e puro e sem conhecimento do mal, determina a
trajetória da humanidade, tanto socialmente quanto moralmente. Para Rahner, os primeiros
atos dos primeiros humanos criam a ‘situação’ em que seus descendentes agem. 74
O plano de Deus para a humanidade era que a geração biológica seria uma
mediação da graça. O plano de Deus sempre funciona dentro dessa dinâmica histórica do ser
humano. O fim da humanidade é a união com Deus, e essa união é realizada através da graça
da autocomunicação de Deus à humanidade, que é mediada historicamente. Também, do lado
da humanidade, o individual é derivado historicamente, através da geração.75 Então, pelo fato
que a graça é dada à raça humana total, a geração do ser humano foi uma mediação dessa
graça. Rahner explica:
[...] segundo a vontade de Deus e a especificação intrínseca concedida à raça
humana por tal vontade em si, a descendência do homem individual de uma
única raça humana e seu início divinamente ordenado tinha que ser, se não a
base, pelo menos o meio direto, no qual esta santidade justificadora do
homem fosse comunicada a ele e que é anterior a sua existência pessoal,
tendo, portanto, a força de uma modalidade existencial. Isto porque essa
72
Ibid., p. 253.
“[…] for an anthropology that is existential-ontological in character, and especially one that is theological,
‘beginning’ is from the outset not the first moment in a whole series of moments following one upon another,
but rather the basis, of its very nature unique, on which the whole of history rests, a basis which, in virtue of the
fact that it has been posited by God himself, and of the uniqueness of the free act which educed it from sheer
ultimacy, is itself sui generis […] what we call original sin (considered as the sin ‘of Adam’) belongs to the
initial constitution of that ultimate beginning which is withdrawn from us and never recurs, and the true nature of
which is only gradually revealed in the light of the future which is Christ.” SA, p. 254.
74
Ibid., p. 260.
75
Ibid., p. 255.
73
98
santidade foi planejada como dom e direito sobre a humanidade como um
todo pelo criador da raça humana, o qual graciosamente desejou ‘criá-la’.76
Portanto, a descendência humana deve ser uma mediação da graça, em que um indivíduo, em
recebendo a natureza humana de seus pais, também recebe, pela vontade de Deus, a graça da
santidade, porque essa graça é dada para toda a humanidade.
O fato que essa graça, que deve estar presente no ser humano, não esteja presente,
aponta a uma culpa no começo da humanidade. Em nossa situação histórica, a graça da
santidade não é recebida como um dom dado em conjunção com a natureza na geração.
Existimos numa situação que não deve ser, e experimentamos essa situação em nossa
‘concupiscência’ e pecado pessoal. 77 Essa ausência da graça tem que ter uma explanação.
Rahner reflete, “Poderia se questionar: houve, antes de mim, um ‘Adão’ pecador cuja ação
teria sido a causa de minha situação concupiscente, ou sou eu mesmo ‘Adão’ sem qualquer
luz direcionada à minha existência por uma interpretação baseada em uma causa buscada no
passado mais distante?”78 A situação do pecado leva para uma explanação etiológica: de onde
vem o pecado?
Rahner argumenta que a fé católica não pode deixar de lado a explanação
histórica, que aponta a uma culpa no começo. Ele diz:
[...] a única razão possível para a não existência de algo que, de acordo com a
vontade de Deus, deveria existir é a culpa pessoal. Mas já que o ato da culpa
no nível moral e pessoal não é aquele dos próprios descendentes, e já que
obviamente um ato pessoal deste tipo não pode ser “herdado por” outros ou
“imputado a” eles, segue-se que esta culpa que constitui a não existência
daquilo que, como dissemos, deveria existir, é a culpa daquela parte da
humanidade da qual o restante foi originado.79
Então, uma culpa no começo quebrou o plano de Deus em que a geração teria sido uma
mediação da graça. Além disso, Rahner enfatiza que essa culpa tem que ter existido no
começo da humanidade para ter esse efeito, porque o começo tem uma significação especial
76
“[…] according to the will of God and the intrinsic specification imparted to the human race by this in itself,
the descent of the individual man from the single human race and its divinely ordained beginning had to be if not
the basis, then at least the direct medium, in which that justifying holiness of man was communicated to him
which is prior to his own personal existence, and therefore has the force of an existential modality. This is
because this holiness was intended as a gift to, and claim upon, humanity as a whole by the Creator of mankind,
who graciously willed to ‘raise’ it.” SA, p. 256.
77
RAHNER, Brief theological observations, p. 49.
78
“Was there, it might be asked, before me a sinful ‘Adam’ whose action was the cause of my concupiscent
situation or am I myself ‘Adam’, without any light really being thrown on my existence by an interpretation
based on a cause sought in the most distant past?” Ibid., p. 49.
79
“[...] the only possible reason for the non-existence of something which, according to God’s will, should exist
can be personal guilt. But since the guilty act at the moral and personal level is not that of the descendants
themselves, and since obviously a personal act of this kind can neither be ‘inherited by’ others or ‘accounted to’
them, it follows that this guilt which constitutes the non-existence of that which, as we have said, should exist, is
the guilt of that part of humanity from which the rest originated.” SA, p. 257. Num outro lugar Rahner enfatiza o
objetivo etiológico da proposta do primeiro pecado. RAHNER, Brief theological observations, p. 49.
99
como a determinação da orientação do ser humano total. 80 O começo da liberdade foi único,
não condicionado pelas decisões anteriores, então não é igual com os atos que vieram depois.
Então o pecado do começo foi único também, determinou a situação da humanidade
universalmente, porque a humanitas originans é uma para todos. Portanto, Rahner rejeita
qualquer interpretação da doutrina que vê o primeiro pecado em termos meramente
mitológicos ou psicológicos (como uma ‘projeção’ por exemplo). Para ele, o primeiro pecado,
embora escondido permanentemente de nossa vista, não é um mito, mas um evento real. 81
Isso não significa que Rahner afirme um estado de paraíso no começo da
humanidade. Esse momento original da liberdade não implica um estado perfeito de
harmonia. Rahner rejeita essa ideia e prefere pensar que o início da história da liberdade e o
início do pecado são mais ou menos o mesmo momento. Ele argumenta que, “A primeira
autorealização da liberdade da criatura humana deve, portanto, ter sido um ato culpável e o
ponto de partida da história.”82 A afirmação de um estado histórico antes do pecado não deve
ser concebida como um estado humano, porque a humanidade começa com a liberdade, e com
a liberdade começa o pecado. Por outro lado, essa identificação do começo da liberdade com
o começo do pecado não nega a afirmação de que essa primeira decisão é única e sui generis,
porque ainda não é condicionada por uma decisão anterior e não age dentro de uma ‘situação’
histórica.
Em consequência dessa concepção, Rahner identifica o estado do pecado original
com o estado da ausência da graça. Ele define o estado do pecado original (peccatum
originale originatum) como a ausência dessa graça que fazia parte do plano de Deus. Sua
definição é:
A ausência desta santidade que é uma modalidade existencial concedida pela
própria santidade de Deus antes das condições concretas da existência
individual, porquanto planejada para ser mediada através da descendência
humana, mas na verdade não é – essa ausência é denominada de estado do
pecado, significa o pecado original (peccatum originale originatum).83
O estado do pecado original não é pensado em referência à corrupção da natureza ou à
concupiscência, mas somente com a ausência da graça, o aspecto ‘formal’ do pecado original
(na definição tomista). Nesse sentido, a atividade de Cristo, como salvador, é precisamente a
80
SA, p. 260.
Ibid., p. 262.
82
“The very first self-realization of creaturely human freedom must therefore have been a culpable act and the
starting point of history.” RAHNER, Brief theological observations, p. 49-50.
83
“The absence of that holiness which is an existential modality imparted by God’s own holiness prior to the
concrete conditions of individual existence, inasmuch as this was intended to be mediated through human
descent but in fact is not so – this is rightly called a state of sinfulness, and it is this that is meant by original sin
(peccatum originale originatum).” SA, p. 256.
81
100
de comunicar essa graça a toda a humanidade, porque toda a humanidade precisa da
salvação.84
Em relação à questão da transmissão do pecado original, o pecado de Adão não é
transmitido por geração, e a corrupção do pecado não é transmitida tampouco. Em realidade,
nada é transmitido exceto a ausência da graça, que devia estar lá, que de fato não é uma
transmissão no sentido estrito, mas somente a privação de uma transmissão da graça que teria
existido sem o primeiro pecado.85 Rahner enfatiza que a culpa do primeiro pecado também
não é transferida através da geração. Então, o peccatum originale originatum é pecado e
culpa somente em sentido analógico, e de fato não é uma culpa para a humanidade. 86 Não
somos culpáveis pelo pecado de Adão. Portanto, nosso autor rejeita a ideia da culpa coletiva
em relação ao pecado original. 87
Sobre os pecados pessoais, o primeiro pecado tem uma relação única. O estado da
privação da graça, que é o estado do pecado original, não é simplesmente a acumulação dos
pecados dos homens através da história. 88 É um ‘estado’ precisamente porque o pecado foi
feito ‘no começo’ e criou uma situação de privação da graça. Os pecados pessoais têm um
sentido diferente, porque são feitos numa situação de pecado. Mas, a universalidade do
pecado pessoal, ou seja, que todas as pessoas são pecadoras pela decisão pessoal e não
somente pelo estado do pecado original, Rahner explica através da afirmação que a situação
de pecado, antes da decisão pessoal da pessoa, é ratificada num sentido através da decisão
pessoal. 89 Existe uma participação no estado do pecado, num sentido, que liga a pessoa com o
estado não somente ‘por geração’, mas também por sua decisão livre. Essa relação, entre a
situação de pecado e a decisão pessoal, será o tópico da próxima secção.
Finalmente, Rahner discute sobre a compatibilidade de sua concepção com o
poligenismo. Esse primeiro pecado como a decisão livre do ser humano no estado original,
pode ser concebido dentro de um grupo e não somente com um homem, porque o grupo
também seria um.90 Rahner aceita que essa decisão pode ser dos indivíduos todos juntos ou de
84
Ibid., p. 260.
Ibid., p. 258.
86
Ibid., p. 257. Para uma explicação desse ponto, veja: VANDERVELDE, Original sin, p. 175-76.
87
SA, p. 258.
88
Ibid., p. 257-58.
89
SA, p. 260.
90
Ibid., p. 261.
85
101
um indivíduo dentro do grupo que afeta todo o grupo.91 É fácil imaginar o grupo agir junto no
pecado.92 Se fosse um indivíduo, ele explica como teria o efeito universal:
Se por um lado, o ser humano é inevitavelmente pessoal e comunicativo ao
mesmo tempo, e ambos os aspectos mutuamente se condicionam, e se, além
disso, o humanitas originans em cada demonstração constitui uma unidade, e
como tal deve ser distinguida da humanitas originata, e se por suas decisões
pessoais livres iniciais isto especifica a situação existencial da humanitas
originata em múltiplas formas, então é perfeitamente concebível que a
decisão de um indivíduo dentro desta unidade (e um que por meio disso faça
sua parte em especificar esta humanitas originans) possa realmente cumprir a
função desta humanitas originans como graça mediadora.”93
Um indivíduo dentro do grupo pode afetar, através de sua decisão livre, a situação dos outros
primeiros homens porque estavam interconectados pessoalmente e moralmente. Pelo fato que
a humanitas originans foi uma e determinou para todos os homens sua situação, uma origem
poligenista é aceitável. 94 A constituição da ‘situação’ da liberdade é o foco da próxima secção.
3.3.2 Peccatum originale originatum: a situação do pecado e os pecados pessoais
A grande proposição que justifica a teologia do pecado original de Rahner é que a
livre decisão de um humano pode determinar a situação em que um outro exerce sua
liberdade. A ação dos primeiros humanos determina a situação de pecado na qual todos os
seus descendentes agem. Como isto é possível? O que acontece com a ação para explicar a
constituição de uma situação para outros? Rahner responde a essa pergunta com a explanação
da liberdade, do pecado e da co-determinação pela culpa alheia.
3.3.2.1 A liberdade e o “não” a Deus
A liberdade, para Rahner, é a capacidade do sujeito definir-se a si mesmo. Ele não
trata da liberdade em termos de decisão entre opções diferentes. As decisões individuais da
liberdade são orientadas para o único fim do sujeito, e neste sentido, são subordinadas ao ato
central: a autorrealização. Ele explica:
91
Ibid., p. 261; RAHNER, Pecado original e evolução, p. 63.
RAHNER, Pecado original e evolução, p. 63; veja também: RAHNER, Brief theological observations, p. 49.
93
“If on the one hand man is inevitably personal and communicative at the same time, and both aspects mutually
condition one another, and if further the humanitas originans on any showing constitutes a unity, and as such is
to be distinguished from the humanitas originata, and if by its initial free personal decisions it specifies the
existential situation of the humanitas originata in manifold ways, then it is perfectly conceivable that the
decision of one individual within this unity (and one who thereby plays his part in specifying this humanitas
originans) can actually fulfil the function of this humanitas originans as mediating grace.” SA, p. 261.
94
RAHNER, Pecado original e evolução, p. 64-65.
92
102
a liberdade possui um único ato, ou seja, a auto-realização do próprio sujeito
individual, auto-realização que sempre e em toda parte deve ser mediada
objetivamente por atos singulares realizados no mundo e na história, mas que,
no entanto, visa uma só coisa e uma só coisa realiza: o sujeito uno na
totalidade singular de sua história.95
Por isso, a liberdade não é caraterizada pelas mudanças de direção. Existe um movimento
constante que determina a realização do sujeito. Por isso, ele diz que, “A liberdade é a
capacidade de o sujeito uno decidir sobre si próprio como todo uno.” 96 Essa decisão da
autorealização estabelece o definitivo do sujeito, que não muda. Então, a liberdade é uma
faculdade do eterno para o sujeito.97 A significação disso para a doutrina do pecado original é
óbvia. Se a ação livre decide uma direção definitiva da realização do sujeito, uma direção
pecaminosa de uma livre escolha não pode ser mudada simplesmente.
Além disso, a liberdade é transcendental. Para Rahner, não se encontra sua
liberdade como um objeto no mundo.98 O sujeito sempre está presente a si mesmo na sua
liberdade, mas somente pode ‘ver’ sua liberdade nos atos categoriais, porque não pode ser
objetivado. 99 Mas a liberdade não é reduzida aos atos categoriais, pois é aberta para um
horizonte de transcendência absoluta.100 É transcendental porque ultrapassa a categorialidade
e é a condição de possibilidade dos atos categoriais livres. 101
Embora seja transcendental, a liberdade sempre é exercida na história. Rahner
afirma que, “É claro que a liberdade, que é mediada de maneira humana, histórica e objetiva,
e na personalidade concreta, sempre é também liberdade com referência a um objeto
categorial. A liberdade se exerce através da mediação do mundo do outro e, sobretudo,
através da pessoa do outro.”102 Cada ato da liberdade é constituído historicamente e orientado
diretamente a um objeto categorial. Então, a situação da história afeta o exercício da
liberdade, um ponto muito importante para a concepção do pecado original de Rahner, que
será explicado abaixo. Uma parte da história é relacionada às outras pessoas, tanto como
influências imediatas do sujeito, quanto como relacionadas à cultura ou ao passado. A
liberdade não existe acima do mundo e entra somente para agir, mas é realmente embutida no
mundo.
95
CFF, p. 120.
Ibid., p. 119.
97
Ibid., p. 120-21.
98
Ibid., p. 121.
99
Ibid., p. 122-23.
100
Ibid., p. 123.
101
Ibid., p. 124.
102
CFF, p. 123.
96
103
O horizonte da liberdade coloca o sujeito diante de uma decisão: ‘sim’ ou ‘não’ a
Deus. Rahner afirma que, “a liberdade de dispor de si é liberdade que se refere ao sujeito
como todo, liberdade para construir o definitivo, e liberdade que se exerce em livre e absoluto
‘sim’ ou ‘não’ ao Aonde e Donde da transcendência, que chamamos ‘Deus’.”103 A liberdade
existe dentro do horizonte transcendental. Esse horizonte é “o Donde e o Aonde de nosso
movimento espiritual,” 104 porque, sem um fundo transcendental a liberdade não seria livre
mas circunscrita dentro dos objetos físicos e sem orientação para o infinito e o absoluto. Ela
não poderia determinar definitivamente o sujeito. Então, o horizonte, tanto cria essa
capacidade quanto a realiza. Ao mesmo tempo, a liberdade não é forçada a escolher o
absoluto do horizonte transcendental. Pode escolher rejeitar esse absoluto. O termo da
transcendência absoluta é Deus. 105 Então, no final, a liberdade encontra uma decisão de ‘sim’
ou ‘não’ a Deus. A definição do pecado dentro dessa concepção é exatamente o ‘não’ a Deus.
Esse sim ou não a Deus é sempre mediado e categorial. Rahner mantém sua
afirmação que cada ato da liberdade é mediado na história. Embora o termo da transcendência
absoluta esteja presente ao sujeito, na experiência não é imediato. Ele explica, “Mesmo no ato
deste ‘sim’ ou ‘não’ temático a Deus, este ‘sim’ não se refere imediatamente ao Deus da
experiência originária e transcendental, mas ao Deus da reflexão temática e categorial, a um
Deus em conceitos [...] mas não imediata e exclusivamente ao Deus da presença
transcendental.” 106 O fato dessa mediação do sim ou não a Deus abre espaço para uma
influência externa e histórica nessa decisão. A decisão sim ou não nunca acontece somente no
sujeito transcendental, isolado das outras pessoas e do mundo histórico. Além disso, não
precisa ser completamente explícita. Pode estar escondida dentro dos atos cotidianos.107 Esses
pontos são importantes de serem lembrados na questão do pecado original.
3.3.2.2 A co-determinação pela culpa alheia
O ser humano exerce sua liberdade numa ‘situação’, determinado pelos outros e
pela história. Rahner faz essa afirmação acima na questão sobre o primeiro pecado. Mas agora
pode-se entender melhor a razão disso. O sujeito é uma pessoa histórica, condicionada
intrinsecamente pela história, as relações, a cultura, etc. A liberdade sempre escolhe entre os
103
Ibid., p. 123.
Ibid., p. 123.
105
Para uma explanação da relação entre o sujeito transcendental e Deus, veja: SESBOÜÉ, Karl Rahner, p. 6465.
106
CFF, p. 123-24.
107
Ibid., p. 127.
104
104
objetos categoriais, que são determinados pelo contexto, pelas outras pessoas e pela história.
Esse é o campo do exercício da liberdade. Essa situação, o sujeito “já encontra feita e criada,
que se lhe impõe e que, em última análise, é o pressuposto de sua liberdade.”108 Por exemplo,
um pobre da favela tem que escolher entre a realidade que ele encontra em seu ambiente, que
é determinada pela história dos pais e do povo, pela situação econômica, pelas decisões
políticas, e pelas pessoas em sua família e seu bairro. Sua liberdade se realiza nessa
‘situação’.
Essa situação não é meramente extrínseca ao sujeito, mas entra realmente no
exercício de sua liberdade. Rahner argumenta que, “a liberdade inevitavelmente assume o
material com que se realiza como momento intrínseco, constitutivo e por si mesma
originariamente co-determina no definitivo da existência que se possui a si mesma
livremente.”109 Não é que o pobre somente mora na favela, mas internamente essa não afeta os
objetos da escolha e os atos da liberdade. A situação condiciona a liberdade não somente
como o material, mas também como uma influência em sua intenção e seu fim, e no horizonte
de sua experiência. Ao mesmo tempo, a situação não controla a liberdade. Rahner fala da ‘codeterminação’ da liberdade, porque a liberdade ainda se realiza e fica ‘livre’ dentro da
situação.
Rahner enfatiza a co-determinação pelas liberdades das outras pessoas como
aquela que constitui o mundo do sujeito. Ele diz, “essa situação determinada pelo mundo das
relações sociais é inevitavelmente plasmada também, para o indivíduo em sua livre
subjetividade e em sua decisão histórica particular, pela história da liberdade de todos os
outros homens.” 110 O ambiente e o contexto do sujeito são, no fim, determinados pelas
decisões das outras pessoas. Regressar ao passado e mover de cada lado para ver todas as
decisões que afetam a situação do sujeito em cada momento. O ‘mundo pessoal’, que
realmente inclui cada pessoa passada e presente, co-determina a livre decisão do sujeito, tanto
externamente quanto internamente. A história humana é universal e una.
Por isso, as culpas das outras pessoas co-determinam a livre decisão do sujeito. Se
as ações das pessoas formam a situação em que a liberdade se realiza, as culpas dos outros
também determinam a situação, tanto externamente quanto internamente, do exercício da
liberdade. E, como Rahner aponta, essa afirmação está confirmada em nossa experiência no
mundo pessoal. Ele conclui:
108
Ibid., p. 133.
Ibid., p. 134.
110
Ibid., p. 134.
109
105
Toda a experiência do homem aponta no rumo da afirmação de que no mundo
realmente existem objetivações de culpas pessoais, que, enquanto material da
decisão livre de outras pessoas, constituem ameaça para elas, influenciam
tentadoramente sobre elas e tornam penosa a decisão da liberdade. E, visto
que o material da decisão da liberdade se torna sempre um momento interno
do ato livre, também a boa ação finita da liberdade, à medida que não
consegue totalmente reelaborar e transformar este material, em virtude dessa
situação culposamente co-determinada, permanece por sua vez sempre
ambígua, carregada de repercussões que propriamente não podem ser visadas,
porque conduzem a trágicos impasses e mascaram o bem visado na própria
liberdade. 111
Cada pessoa cresce e age dentro de uma situação marcada pelo pecado, que se torna, através
da assimilação interna dessa situação, determinada pela culpa.
Rahner dá um exemplo que ilumina bastante sua concepção. Refere-se à situação
do mercado das bananas:
ao comprar uma banana, a pessoa não reflete sobre o fato de que seu preço
está vinculado a muitos pressupostos. Entre estes pode eventualmente estar a
sorte miserável dos que colhem a banana, sorte que pode ter sido codeterminada pela injustiça social, pela exploração ou por secular e iníqua
política comercial. A pessoa que compra a banana passa a participar aqui e
agora dessa situação de culpa em seu próprio proveito. Onde termina a
responsabilidade pessoal pelo aproveitamento dessa situação co-determinada
pela culpa? Onde começa?112
Esse exemplo mostra como um objeto externo, uma banana, está ‘contaminado’, pode-se
dizer, pelo pecado. Então, comprar essa banana é aprovar, ou pelo menos participar, na culpa
dessa situação. Também existem outras maneiras de co-determinação que têm uma influência
muito mais interior. Por exemplo, ideias aprendidas, relações pessoais, a situação da família e
especialmente os pais, os grupos de amizade, a cultura mesma, e mais. Essas coisas formam a
pessoa intimamente e são marcadas pela culpa. O que é muito importante para essa concepção
é que a culpa dos outros não fica somente fora do sujeito, mas realmente co-determina o
exercício de sua liberdade.
Rahner argumenta que essa situação da culpa é universal, permanente e original.
Ele explica:
essa co-determinação da situação de todo homem pela culpa alheia é um dado
universal, permanente, e, em consequência, também original [ênfase minha].
Para o indivíduo humano não existem ilhas, cuja natureza já não esteja codeterminada pela culpa de outros, direta ou indiretamente, próxima ou
remotamente. Como também não existe para a humanidade na história
concreta deste mundo nenhuma possibilidade real, ainda que como ideal
111
112
CFF, p. 136.
Ibid., p. 138.
106
assintótico, de algum dia superar de forma definitiva essa determinação da
situação de liberdade pela culpa.113
Primeiro, a situação é universal, porque o pecado marca a história humana total. Não existem
ilhas, como ele diz, onde a influência da culpa não penetre. Segundo, a situação é permanente,
porque é impossível para uma pessoa ou algumas pessoas superar essa situação. Cada decisão
já é co-determinada pela culpa, então cada tentação de superar essa situação será marcada por
isso. Terceiro, a situação tem que ser original, porque sua universalidade e sua permanência
implicam que estava sempre inserida na origem da história, tão longa quanto concebe-se a
história humana como uma história.114 Se não fosse original, a situação não seria universal,
mas particular a um grupo ou linha da história. Se não fosse original, a situação não seria
permanente, mas aberta para a recuperação do momento antes da culpa. De novo, o
argumento aqui é etiológico, pois tenta dar uma explicação para a situação do pecado.
3.3.2.3 O pecado original como a situação co-determinada pela culpa alheia
Agora pode-se perceber como nosso autor define o pecado original. Como
peccatum originale originans é a culpa original que determina a situação co-determinada pela
culpa da humanidade, que a discussão acima explica. Nosso autor aumenta sua discussão do
artigo no Curso fundamental da fé com um argumento mais exato sobre a existência de um
pecado ‘original’, que é necessário para explicar a universalidade e permanência da situação
co-determinada pela culpa. 115 Como peccatum originale originatum, ou seja, o estado do
pecado original em cada pessoa, Rahner define, no Curso fundalmental da fé, da seguinte
maneira: “somos pessoas que inevitavelmente temos de exercer nossa liberdade
subjetivamente metidos em situação que se acha co-determinada por objetivações da culpa, e
113
CFF, p. 136.
Ibid., p. 137.
115
Sesboüé aponta que o argumento aqui é etiológico (SESBOÜÉ, Karl Rahner, p. 107). Vandervelde explica
em mais detalhe, “Although the primordial fall represents the ontic ground of the universal situational Existential
of original sin, the noetic ground of that fall is the universality of original sin. This inescapable circle is given
with Rahner’s conviction that no source of information exists that provides ‘direct’ knowledge of the beginning
and a definitive fall. Therefore, only an indirect route remains open. The entire reality of original sin, including a
definitive fall, is derived by etiological retrospection from the present experience of reality, specifically, from
the experience of the presence and absence of grace. The definitive fall is derived from the fact that every man
experiences the privation of grace as his situational Existential. From the fact that no one receives grace simply
as a member of the human race, i.e., via his physical-historical descent, and from the fact that grace ought to
have been received in this way, Rahner concludes that this absence of grace must have been caused by guilt, else
a privation of grace counter to God’s will is impossible. Since the situational privation of grace is not the fault of
those who incur it as Existential, this privation must have been cause by previous generations. Finally, since this
privation is an inescapable, universal Existential, it must have been caused by a fall at the beginning of human
history.” VANDERVELDE, Original sin, p. 238-39.
114
107
de forma tal que essa co-determinação é parte permanente e inevitável de nossa situação.”116
Estamos num estado de pecado no sentido em que somos co-determinados pela culpa alheia,
que não podemos evitar ou superar.
A questão da relação entre os pecados dos outros, especialmente os primeiros
humanos, e nossa situação co-determinada pela culpa, recebe sua resposta. Sua concepção da
liberdade, determinada por objetos categoriais e condicionadas pelos outros e pela história,
explica como as culpas dos outros podem determinar a situação da liberdade do sujeito. 117
Tanto exteriormente quanto interiormente a liberdade é co-determinada pela situação, que é
constituída pelo ‘mundo pessoal’. Portanto, nosso autor pode ligar claramente o primeiro
pecado com a situação de toda a humanidade e os pecados dos outros com a situação real de
cada pessoa.118
De novo Rahner rejeita qualquer transmissão do pecado mesmo e da herança
biológica do ‘pecado original’ sem contradizer a afirmação de Trento. Ele enfatiza que, “não
nos é imputado o pecado de Adão. Uma culpa pessoal de um ato originário de liberdade não
pode vir a ser transmitida.”119 Nós não recebemos a culpa do primeiro pecado na qualidade
moral. Além disso, não existe nenhuma transmissão biológica do pecado ou das corrupções
como as consequências do pecado. 120 Ao mesmo tempo, Rahner não nega a afirmação de
Trento que o pecado original é transmitido por “propagação e não imitação.” A ‘transmissão’
é pelo fato que cada pessoa nasce numa situação de pecado como parte da história humana. A
unidade da história humana permite-lhe afirmar que essa situação do ‘pecado original’ é
transmitido ‘por propagação’, porque cada ser humano existe na mesma história humana e,
neste sentido, ‘herda’ a situação de pecado. 121 A co-determinação da liberdade pela culpa
alheia não é uma forma de imitação, porque uma pessoa pode rejeitar a culpa objetivada na
situação e ela é ainda co-determinada pela culpa.
Finalmente, a situação co-determinada pela culpa alheia representa a perda da
graça da justificação. Rahner não esquece, no Curso fundamental da fé, sua afirmação sobre o
116
CFF, p. 138.
Sesboüé fala sobre a solidariedade entre as liberdades. SESBOÜÉ, Karl Rahner, p. 105.
118
Vandervelde define o conceito de pecado original de Rahner como, “original sin may be defined as the
situational privation of sanctifying grace that renders every human being (analogously) guilty from the moment
of birth.” VANDERVELDE, Original sin, p. 147.
119
CFF, p. 139; SESBOÜÉ, Karl Rahner, p. 106.
120
CFF, p. 138.
121
Sobre esse ponto Rahner explica, “A natureza do pecado original deve ser entendida corretamente a partir da
compreensão do resultado que a culpa de determinado homem ou determinados homens acarreta para a situação
da liberdade de outras pessoas. Porque, dada a unidade do gênero humano, o fato de o homem achar-se metido
no mundo e na história e, por fim, a necessidade de toda situação originária de liberdade estar mediada no
mundo, dá-se necessariamente tal resultado.” CFF, p. 140.
117
108
pecado original como um estado de perda da graça, uma graça que devia ser. Para ele, “essa
culpa pessoal nos inícios da história do gênero humano é rejeição da absoluta oferta que Deus
faz de si mesmo.”122 Essa rejeição causa “a falta de semelhante autocomunicação divina” 123,
essa graça da ‘justificação’ que, “santifica o homem antes da boa decisão livre de sua
parte,”124 que estava presente desde o início de sua existência. Então, essa situação assume o
caráter de algo que não deveria ser, e nesse sentido é ‘pecado’, mas somente no sentido
análogo. Mas Rahner é rápido em explicar que, “Essa auto-oferta de Deus permanece sempre
válida e não é revogada, não obstante a culpa dos inícios da humanidade, e se mantém propter
Christum e em vista dele, ainda que não esteja mais presente por causa e a partir de
‘Adão’.”125 Essa afirmação resume o que nosso autor explicou em seu artigo sobre o pecado
de Adão. A partir do primeiro pecado, o ser humano perdeu a graça da autocomunicação de
Deus como a original situação existencial do ser humano, mas não como a oferta escatológica
dada em Cristo.
3.3.3 As consequências do pecado: a concupiscência e a morte
Rahner trata das consequências tradicionais do primeiro pecado, a concupiscência
e a morte, de maneira a evitar os conflitos com a antropologia evolucionista. Tanto a
concupiscência, no sentido clássico de Agostinho, que a vê como a tendência para o mal na
corrupção da natureza humana, quanto a morte, foram concebidas como efeitos, ou seja,
punições, do primeiro pecado. A questão da morte não é problemática, porque Rahner aceita
que mesmo sem o primeiro pecado, o ser humano teria morrido.126 Essa é uma extensão da
afirmação da tradição que o ser humano, como corporal, é mortal. A experiência existencial
da morte teria sido diferente para o ser humano sem pecado,127 mas o fato da mortalidade não
é uma consequência do pecado.
Sobre a concupiscência, nosso autor a reinterpreta a fim de excluir dela a ideia
tanto da herança de uma natureza corrupta quanto da idealização do estado do ser humano
antes do pecado. O primeiro passo dessa reinterpretação é a redefinição do conceito de
concupiscência. Nosso autor enfatiza que a concupiscência não é um pecado em si mesmo,
122
CFF, p. 141.
Ibid., p. 141; RAHNER, Brief theological observations, p. 40-41.
124
CFF, p. 141.
125
Ibid., p. 141.
126
CFF, p. 143; RAHNER, Theological concept, p. 379.
127
RAHNER, Brief theological observations, p. 49.
123
109
sem sua ratificação pela liberdade humana, e então não é a essência do pecado original. 128
Além disso, a concupiscência não é a tendência desordenada para o mal. Para ele, a
concupiscência teológica é, “[...] uma concupiscência involuntária que antecipa a decisão
livre e a ela resiste.”129 Quando existe um movimento espontâneo dentro da pessoa antes de
sua decisão livre, esse movimento é a ‘concupiscência’ no sentido teológico. É a resistência à
decisão livre. Esse movimento vem da ativação do apetite, que é natural e involuntário.130
Além disso, a concupiscência não é somente ‘carnal’, mas inclui a parte espiritual
do ser humano. Pelo fato que cada ato cognitivo e conativo do ser humano é necessariamente
sensitivo e espiritual, porque envolve tanto as partes corporais (os sentidos e a imaginação)
quanto as partes espirituais (o intelecto e a vontade),131 não se pode reduzir a concupiscência
teológica aos desejos ‘carnais’. Os objetos de desejo podem ser insensíveis, como o orgulho, e
os objetos sensíveis ativam a parte espiritual do ser humano e não somente o corpo. Além
disso, existem apetites espirituais também, que podem resistir a uma decisão livre, por
exemplo numa tentação contra a fé ou a esperança. Por isso, nosso autor diz, “não há clareza
quanto ao motivo pelo qual a concupiscência deva ser concebida como uma ‘rebelião’
justamente do homem ‘mais baixo’ contra o ‘mais elevado’[...] há tanto perigo nas alturas
luciferianas do espírito quanto nas profundezas escuras do puramente sensível.” 132 Então,
Rahner conclui que a concupiscência é uma tendência sensível-espiritual, dirigida a um objeto
sensível ou um objeto que transcende a experiência imediata.133
Finalmente, Rahner coloca a concupiscência na tensão entre a natureza e a pessoa.
O ser humano é orientado para o bem absoluto, que é Deus.134 Então cada decisão para um
bem particular tem que ser em vista do bem absoluto.135 Mas o movimento espontâneo dos
apetites é orientado para um bem particular. Portanto, a pessoa tem que decidir sobre o bem
particular, que é dado pelos apetites, à luz do bem absoluto.136 Deve haver uma integração
entre os atos espontâneos e a decisão livre em que, “a livre decisão deve compreender,
transfigurar e transfundir o ato espontâneo, de forma que sua própria realidade também não
128
Ibid., p. 41.
“[…] an involuntary concupiscence anticipating free decision and resisting it.” RAHNER, Theological
concept, p. 353.
130
Ibid., p. 359.
131
RAHNER, Theological concept, p. 353.
132
“Thus it is by no means clear why concupiscentia should be conceived of as a ‘rebellion’ precisely of the
‘lower’ man against the ‘higher’ […] there is just as much danger from the Luciferan heights of the spirit as from
the dark depths of the purely sensitive.” Ibid., p. 354.
133
Ibid., p. 359.
134
Ibid., p. 360.
135
Ibid., p. 360.
136
Ibid., p. 360-61.
129
110
seja mais puramente natural, mas pessoal.”137 Mas, às vezes existe uma resistência dos atos
espontâneos à decisão livre, ou seja, da natureza à pessoa, e a pessoa não pode integrar os atos
espontâneos dentro de sua decisão livre. Essa é, para Rahner, a concupiscência. É natural mas
não pessoal e impede a integração do sujeito para seu fim último, Deus.
Com essa concepção, Rahner argumenta que a concupiscência é neutra com
relação à moralidade. A resistência à decisão livre dos atos espontâneos pode ser contra as
decisões boas mas também contra as decisões más. Ele explica:
Como um ato espontâneo precede cada ato pessoal do homem, quer
direcionado para o bem ou o mal, e em cada um dos atos pessoais a pessoa
nunca absorve completamente e assume pessoalmente o que está na base de
seus atos espontâneos e aquilo que precede o ato pessoal, segue-se que o
dualismo da natureza e pessoa em sua forma especificamente humana, que
chamamos concupiscência, é algo que atua tanto no caso de uma boa decisão
da liberdade humana contra o desejo espontâneo da natureza por um bem
moralmente negativo, quanto no caso de uma livre decisão ruim contra uma
inclinação natural para algo moralmente bom. Tanto a boa decisão moral
quanto a ruim se deparam com a resistência, solidez e impenetrabilidade da
natureza. A concupiscência no sentido teológico se mostra, por exemplo,
quando um homem se envergonha no ato de mentir e também quando a
‘carne’ se recusa a seguir a disposição do ‘espírito’ para o bem. 138
O aspecto central da concupiscência é a resistência dos atos espontâneos dos apetites contra a
decisão livre da pessoa. A resistência pode ser contra uma boa decisão, então é má, ou contra
uma má decisão, e então é boa. É a desintegração da natureza com a pessoa, e não a tendência
para o mal, que é a concupiscência.
Então, o dom da ‘integridade’ consiste no domínio habitual da pessoa sobre a
natureza. Quando os atos espontâneos, apesar de continuar espontâneos e afetar a pessoa
‘passivamente’, são formados completamente pela atividade da pessoa, em termos de não
permitir alguns movimentos acontecerem e também com a força de assimilar outros
movimentos que sejam resistentes mas podem ser assumidos no dinamismo da ação, a pessoa
está em estado de integração.139 Esse estado não é para evitar o mal, mas para dispor a pessoa
a fazer uma completa autodeterminação existencial que inclui toda a dinâmica natural e
137
“thus that the free decision should comprehend, transfigure and transfuse the spontaneous act, so that its own
reality too should no longer be purely natural but personal.” RAHNER, Theological concept, p. 365.
138
“Because a spontaneous act precedes every personal act of man, whether it be directed to good or evil, and
because in every one of them the person never wholly absorbs and personally assumes what it is on the basis of
its spontaneous acts and what is given prior to it, it follows that the dualism of nature and person in its
specifically human form, which we call concupiscence, is something which is at work both in the case of a good
decision of man’s freedom against the spontaneous desire of nature for a morally negative good, and also in the
case of a bad free decision against a natural inclination to something morally good. Both the good and the bad
moral decision encounter the resistance, the solidity and the impenetrability of nature. Concupiscence in the
theological sense shows itself for instance just as much when a man blushes in the act of lying as when the
‘flesh’ refuses to follow the willingness of the ‘spirit’ for the good.” Ibid., p. 365-66.
139
Ibid., p. 367-68.
111
pessoal do sujeito.140 É para unir a pessoa em sua totalidade na ação de autodeterminação. Em
relação à graça da integridade que Adão recebeu, Rahner explica:
Consequentemente, a integridade foi dada a Adão não apenas para evitar um
perigo maior do pecado, mas também para possibilitar um compromisso
completo de seu ser com uma decisão pessoal direcionada ao bem [...] O dom
da integridade, podemos dizer, tornou possível ao homem, desde o início,
fazer o que deseja com todo seu coração e sua força, e nenhum de seus
poderes seriam capazes de se recusar a seguir tal vontade, total ou
parcialmente. 141
Esse compromisso total, em termos bíblicos, é amar com todo a seu coração. O bem, no final,
é Deus. Portanto, seria possível, para Adão, com integridade, decidir amar Deus com todo o
seu coração.142
O estado de concupiscência, em consequência, é a situação existencial de
desintegração da pessoa, ou seja, o conflito entre a natureza e a pessoa. Para Rahner, “Há
muito no homem que sempre permanece no fato concreto de alguma maneira impessoal;
impenetrável e não-iluminado para sua decisão existencial; meramente suportado e não
realizado livremente. É esse dualismo entre a pessoa e a natureza [...] que nós chamamos
concupiscência no sentido teológico.”143 Pelo fato que a pessoa não é completamente livre em
relação às suas dinâmicas naturais, ela é desintegrada. Ela não pode dispor de si mesma
totalmente por ou contra Deus, o termo absoluto de sua vontade, numa decisão de
autodeterminação.144 Trata-se então de um estado contraditório, no qual o ser humano está
orientado para o bem absoluto, mas não pode escolher esse bem com todo o seu ser.145 Essa
contradição e resistência da natureza contra a pessoa é a concupiscência. Além disso, Rahner
não fala de uma concupiscência ‘desordenada’ ou ‘corrupta’, porque esse estado vem da
natureza metafísica do ser humano como espírito na matéria, que não se pode excluir
140
Ibid., p. 369.
“Hence integrity was given to Adam not so much for the sake of avoiding a greater danger of sin, as for
making possible an exhaustive engagement of his being in a personal decision directed to the good […] The gift
of integrity, we may say, made it possible for man from the first really to do from his whole heart and with all
his strength what he wished to do, and none of his powers could refuse to follow this will, wholly or in part.”
Ibid., p. 372, 274.
142
Ibid., p. 373-74; RAHNER, Brief theological observations, p. 47-48. Vandervelde explica, “The status
integritatis of primordial man is seen by both Rahner and Schoonenberg, not as a state, but as a dynamic
possibility. ‘Paradise’ is not a condition of pristine harmony, but an eschatological goal. Pre-fall integrity is the
experience of being positively directed to that goal – not without resistance, but without the added resistance
introduced by sin.” VANDERVELDE, Original sin, p. 205.
143
“There is much in man which always remains in concrete fact somehow impersonal; impenetrable and
unilluminated for his existential decision; merely endured and not freely acted out. It is this dualism between
person and nature, in so far as it arises from the dualism of matter and spirit and not from man’s finitude, the
dualism of essence and existence and the real distinction of his powers given with it, that we call concupiscence
in the theological sense.” RAHNER, Theological concept, p. 369.
144
RAHNER, Brief theological observations, p. 47.
145
Ibid., p. 48-49.
141
112
naturalmente, e essa natureza pode resistir à decisão boa ou má, então é bivalente do ponto de
visto ético.146 Ao mesmo tempo, à luz da experiência da autocomunicação de Deus, que é um
existencial permanente do ser humano, a pessoa experimenta sua concupiscência como algo
que não deve ser, então como um ‘mal’ pré-pessoal. 147
À luz dessa exposição, se pode ver como Rahner responde aos problemas
relacionados à ideia da concupiscência como uma consequência do pecado. Primeiramente,
ele argumenta que a concupiscência é natural, inevitável para um ser composto de espírito e
matéria. Então, não é desordenada no sentido clássico, como uma tendência para o mal. Em
segundo lugar, o primeiro pecado não causou essa ‘desordem.’ ‘Adão’148 perdeu a graça da
integridade, que colocou o ser humano em seu estado natural de tensão entre a natureza
involuntária e a pessoa livre. Em terceiro lugar, não existe nenhum conflito entre a visão
evolucionista do ser humano e a doutrina da concupiscência. Os primeiros humanos não eram
perfeitos e sua natureza, que nós recebemos, não mudou depois do pecado. O fato de não
podermos ver a situação originária da existência e do contexto dos primeiros humanos, tanto
cientificamente quanto teologicamente, não exclui a afirmação teológica sobre a graça
oferecida a eles. Em quarto lugar, a questão da morte também recebe sua resposta. A morte é
natural, e não o resultado do pecado. Mas a experiência da morte na realidade existencial do
ser humano é algo que contradiz a oferta absoluta da autocomunicação de Deus. Então, o ser
humano experimenta a morte à luz da oferta de Deus como algo que não devia ser. Por isso
Rahner afirma que a morte como um existencial é meramente a experiência mais radical da
concupiscência. 149 Finalmente, a concupiscência não está ligada à co-determinação da
situação da liberdade pela culpa alheia. Rahner não faz nenhuma conexão entre os pecados
dos outros e a concupiscência. Seu lugar em relação ao pecado original está ao lado da perda
da primeira graça, e não na ‘transmissão’ do pecado.
3.4 Avaliação de Rahner
3.4.1 As respostas aos problemas relacionados à doutrina do pecado original
146
RAHNER, Theological concept, p. 369-70, 371.
RAHNER, Brief theological observations, p. 52-53.
148
Aqui e em geral ‘Adão’ nesse contexto representa os primeiros humanos que pecaram, e não o primeiro
homem da visão monogenista.
149
RAHNER, Brief theological observations, p. 48.
147
113
A interpretação de Rahner tem respostas aos quatro grandes problemas levantados
pela doutrina clássica do pecado original. Em relação ao ‘efeito universal’ do primeiro
pecado, Rahner responde com sua concepção da singularidade do primeiro momento da
liberdade. Os primeiros humanos, quando se tornaram livres, ou seja, sujeitos transcendentais,
a primeira atualização de sua liberdade foi diferente das subsequentes, porque não era
condicionada pelas outras escolhas e orientou a história total do ser humano, que é una. Deus
ordenou à geração do ser humano ser uma mediação da graça, não por causa de uma razão
intrínseca à geração, mas pelo plano da salvação. O pecado dos primeiros humanos rejeitou
esse plano. Portanto, para nosso autor, o primeiro pecado, no início da humanidade, tem um
efeito universal porque foi a primeira atualização da liberdade, que condicionou
universalmente os outros atos da liberdade, e porque quebrou o plano de Deus com relação à
geração, que era determinada a ser uma mediação da graça.
Essa resposta é bem razoável. No lado da liberdade, faz sentido dizer que o
primeiro ato livre tenha uma significação especial como não-condicionado, e afete os atos
subsequentes universalmente, pelo fato da unidade da história humana. Mas Rahner não entra
num esclarecimento desse condicionamento especial dos atos livres pelo primeiro pecado.
Seria interessante desenvolver mais esse aspecto, se é possível pensar como o primeiro
pecado afetou a história. Do lado da perda da graça, também a resposta é satisfatória. Embora
necessite de uma explanação ‘ad hoc’ sobre o plano de Deus desde o começo, pelo menos
explica porque o mesma graça não é dada às gerações subsequentes.
A segunda questão tratada por Rahner tem a ver com a noção de transmissão do
pecado original. Ele rejeita tanto a transmissão do pecado a modo de imputação quanto a
modo de herança da corrupção do pecado. Não existe nenhuma transmissão do pecado
original, somente pelo fato que o estado da humanidade depois desse pecado, com a privação
da graça per propagationem, é o que não devia ser, que é ‘pecado’ no sentido análogo. Claro
que uma privação de algo não é por transmissão, especialmente quando é a graça, que vem de
Deus. Pelo fato que a concupiscência, na concepção de Rahner, não é uma corrupção mas
somente o estado da natureza sem a graça da integridade, ele não precisa descrever uma
transmissão quase-biológica da corrupção da natureza. Pode-se dizer que a co-determinação
pela culpa alheia é uma espécie de transmissão, mas num modo explicável segundo o
conhecimento da influência externa e interna na liberdade. Não cai nas dificuldades da
teologia da transmissão do pecado original de Santo Agostinho, por exemplo.
114
Essa rejeição da transmissão resolve o terceiro problema também, o da
responsabilidade pessoal em relação ao pecado original. O primeiro pecado não é transmitido
em seu caráter moral. Nenhuma pessoa é culpável pelo pecado de ‘Adão’. Nenhuma pessoa
recebe uma condenação pelo pecado original. Também a pessoa não recebe as punições do
primeiro pecado. A concupiscência e a morte são naturais, e não punições. De fato, o estado
sem a graça de ‘Adão’ não representa uma punição da pessoa, porque a oferta da autocomunicação de Deus ainda está presente para ela, mas somente de um modo diferente. A
única herança negativa é a co-determinação pela culpa alheia, mas essa é a consequência da
natureza humana, que é histórica e comum. As ações boas são parte dessa herança também.
Essa co-determinação toca a responsabilidade pessoal, mas a pessoa ainda é livre e
responsável em sua decisão. Então, não representa um problema para nosso autor explicar.
Sobre esse ponto, Rahner mostra sua criatividade como teólogo. A transmissão
sempre tem sido o problema mais difícil para essa doutrina. Sua rejeição e o desenvolvimento
da ideia da co-determinação pela culpa da situação da liberdade é magistral. Ele consegue
explicar como o pecado de uma pessoa pode influenciar outra pessoa sem recurso a nenhum
‘quase-conceito’ (como diz Ricoeur) da transmissão biológica do pecado original. Além
disso, sua descrição dessa co-determinação é bem consistente. É claro que o objeto mesmo (as
bananas, por exemplo), a compreensão do objeto (através de conceitos, linguagem, símbolos e
valores culturais etc.), e a escolha do objeto (com a influência das razões dos outros, das
preferências dos outros, das relações com os outros, do exemplo dos outros etc.) são todos
afetados pelos outros. Existe realmente uma ‘situação’ na qual a liberdade age. É difícil
criticar essa ideia. De fato, mais estudo é necessário a fim de desenvolver essa percepção e
refinar seus aspectos mais importantes.
Trataremos o problema da concupiscência abaixo. Aqui pelo menos pode-se
questionar se Rahner integra sua concepção suficientemente. Os três grandes elementos, a
privação da graça, a concupiscência e a situação co-determinada pela culpa não parecem estar
suficientemente integrados. Nosso autor não fala sobre nenhuma influência da situação do
pecado na concupiscência da pessoa.150 Também, o que é a relação entre a privação da graça e
a situação do pecado? A situação muda a orientação do ser humano em relação a Deus? Essas
questões abrem novos horizontes de estudo.
150
Vandervelde percebe esse ponto também. A concupiscência, no sentido rahneriano, não é diretamente parte
da situação do pecado. VANDERVELDE, Original sin, p. 206-07.
115
Em comparação com a proposta de Teilhard, a proposta de Rahner parece mais
em conformidade com a doutrina clássica, que dá conta da gravidade do pecado para o ser
humano. Teilhard coloca o pecado como parte inevitável do processo de evolução no nível da
noosfera, e a transmissão como o resultado da materialidade do ser humano. Para Rahner, o
pecado não é inevitável e ele enfatiza que não pode identificar a concupiscência com a
materialidade. Ele critica as tendências dualistas e gnósticas da tradição,151 mais perceptíveis
em Teilhard.
3.4.2 As respostas aos problemas da doutrina em relação à evolução
Consciente da dificuldade de reconciliar a doutrina do pecado original e a
evolução, nosso autor desenvolve sua interpretação exatamente para superar os conflitos entre
os duas. Sobre o primeiro problema, o do paraíso, nós vimos acima que ele rejeita a ideia
como uma mitologização da história. Sua aceitação da emergência do ser humano através do
processo da evolução, sem nenhuma intervenção especial de Deus, permite-lhe explicar o
primeiro pecado dentro da história científica e antropológica sem problemas. Ele argumenta
que o nascimento do ser humano como sujeito transcendental coincidiu com a decisão livre
para dizer ‘não’ a Deus. Ele não admite nenhum tempo significante entre esses dois
momentos. Então, um estado de inocência no paraíso não existiu historicamente. Quando o
ser humano se tornou livre, mais ou menos no mesmo momento, o primeiro pecado
aconteceu. 152 Pelo fato que esse evento não tem nenhuma significação para a história
biológica do ser humano, não existe nenhuma contradição entre essa afirmação e a
evolução. 153 A graça dos primeiros humanos, como a autocomunicação de Deus, foi co-
151
Por exemplo, nosso autor critica uma interpretação neoplatonista da ‘sarx’ de São Paulo: “Only an
interpretation which had not yet completely eliminated Gnostic or Neoplatonist tendencies with their a priori
categories (and this is definitely the case with St Augustine) could have explained St Paul’s purely religious
concepts in the sense of a philosophy for which the ontologically less perfect is also eo ipso what is religiously
further from God and the spirit is always something more divine, in such a way that the opposition of the flesh to
God and to the law of the holy pneuma (which is not just ‘spirit’ as meant by a philosophical anthropology) is
transposed into an opposition of man’s sensibility (in the metaphysical sense) to his intellectuality. If these two
elements (concupiscence precisely for what is evil, concupiscence as pure sensibility) are taken together, it is
easy to see why such a concept of concupiscence, even against the will of those who so conceive it, tends to
endanger the unexactedness of the gift of integrity.” RAHNER, Theological concept, p. 355-57.
152
Claro que essa afirmação não implica que a primeira decisão tenha sido um pecado, ou que não houvesse
algum tempo em que o ser humano se tornou consciente de sua liberdade. Pode-se pensar um período, meses ou
anos, do ‘despertar’ do sujeito. O primeiro pecado tem que ser um pecado consciente diante de Deus e não
somente um erro moral inculpável.
153
A questão da relação entre o primeiro pecado, a história do pecado, que é propriamente teológica, e a
antropologia histórica e a história da civilização humana é um ponto de contenção. Pelo menos podemos dizer
que as ações livres dos seres humanos determinam sua história e a história da raça. Então, existe uma
116
extensiva com a aparência do sujeito transcendental, e permaneceu depois, não como um
existencial antes da escolha livre, mas como o fim do movimento da liberdade. Rahner não
explica diretamente a relação da graça da integridade com a autocomunicação de Deus, mas
pode-se inferir que o primeiro momento do sujeito transcendental foi um momento de
integração, não como um hábito da natureza, mas pelo fato que a graça da autocomunicação
de Deus estava presente antes da escolha livre. Se os primeiros humanos a aceitassem, teriam
crescido na integração, amando a Deus com todo o coração.154 Então, a graça da integração
existiu antes da escolha livre, mas não foi aceita. Portanto, não existiu um estado de
integração plena antes do pecado.155
Sobre os problema do monogenismo e da transmissão, já o tratamos acima.
Rahner aceita o poligenismo e explica a doutrina à luz disso. Ele não tem nenhuma
dificuldade em aceitar que os primeiros humanos pecaram juntos, ou mesmo que uma pessoa
pecou e isso influenciou o grupo total. Ele enfatiza a unidade do ser humano, com uma
origem, embora poligenista, com uma história. Isso é coerente com as teorias da evolução
porque, como vimos no primeiro capítulo, o consenso dos cientistas hoje favorece o
monofiletismo poligenista. Além disso, Rahner argumenta que o poligenismo é melhor como
base para explicar o pecado original, porque é mais razoável para a raça humana total
determinar a situação da humanidade a partir de somente uma pessoa ou de duas pessoas. Os
primeiros humanos agiram juntos, então receberam a perda da graça juntos.
Parece que essa resolução dos conflitos entre a evolução e o pecado original é
superior à proposta por Teilhard. Para superar as dificuldades da doutrina da evolução,
Teilhard a reinterpreta de um modo mais radical, que deixa de lado os pontos centrais, e podese dizer verdadeiros, da tradição. O mais importante é que Teilhard nega a ideia do primeiro
pecado como algo especial e diminui a responsabilidade do ser humano por sua falta, em que
o ‘pecado’ é inevitável na dinâmica cósmica de um ser no ‘múltiplo’ em seu movimento para
sobreposição aqui. Mas um antropólogo não pode identificar uma decisão livre como um pecado, mas somente
descrevê-la através dos conceitos e teorias da antropologia. Então, as perspectivas permanecem distintas.
154
Rahner prefere entender a integração da natureza com a pessoa como um processo de direcionamento das
forças naturais para o fim de amar a Deus com todo o coração e não como uma ausência do movimento da
concupiscência. Ele usa o exemplo do medo de Jesus no jardim, que mesmo com a graça da integração resistiu à
decisão de sofrer, mas que Jesus integrou em sua decisão de modo que no final sua natureza estava unida com
sua pessoa. A luta levou à integração. Essa é a maneira como Rahner pensa a primeira integração possível dos
primeiros humanos. Cf. RAHNER, Theological concept, p. 367-68.
155
É possível pensar que os primeiros humanos tivessem uma certa integração da natureza em si mesma, mas a
integração da natureza com a pessoa foi possível, para nosso autor, somente através da escolha livre. Essa
conclusão está baseada no fato que para Rahner, um ‘estado’ é o resultado da escolha livre da pessoa, e não uma
coisa dada inerentemente. Cf. RAHNER, Brief theological observations, p. 45. Então um aspecto do primeiro
momento foi a questão de se o sujeito integraria sua natureza na decisão livre de aceitar a autocomunicação de
Deus.
117
o ponto de união. Rahner mantém o primeiro pecado como pecado e a responsabilidade da
humanidade pela situação pecaminosa. Ele harmoniza isso com o poligenismo e não precisa
usar um conceito de transmissão quase-biológico para explicar a influência desse primeiro
pecado na humanidade. Ele também mantém a importância da graça, que Teilhard não trata
diretamente, e a parte ‘formal’ (no sentido tomista) do pecado original, a perda da graça, sem
recurso à noção de um paraíso primitivo. Portanto, Rahner está mais em concordância com a
tradição, mas nada menos aceitável do ponto do visto científico.
3.4.3 O problema com a subjetividade transcendental e os pecados
Rahner tem recebido críticas à sua concepção do pecado dentro da antropologia da
subjetividade transcendental. Ele argumenta que um pecado é um ‘não’ ao termo absoluto do
horizonte transcendental, que é Deus. Highfield argumenta que essa concepção é quase
contraditória e então instável. Ele explica:
Na pronúncia ‘não,’ nós pretendemos um mundo sem Deus, sem estruturas
objetivas e sem leis, um mundo no qual somos absolutos.156 Isso não pode ser.
É intrinsicamente, ontologicamente impossível. Independentemente do
esforço, não podemos nos tornar um ‘não’ a Deus. Portanto, o ‘não’ não pode
estabelecer algo definitivo intrinsicamente. A natureza criada permanece
como uma isca, tentando repensar e conformar livremente a nosso verdadeiro
ser e destino. O conceito do livre e definitivo ‘não’ é, portanto, um elemento
inconsistente e instável no pensamento de Rahner.157
A liberdade humana é transcendental, condicionada em seu fundo e em seu fim pelo
Absoluto, então cada decisão livre tem que se dar dentro desse horizonte. A liberdade não
pode agir fora de seu horizonte. Então cada ato da liberdade, de fato, é uma afirmação desse
horizonte transcendental; é um ‘sim’ ao fundo e fim que tornam possível o ato livre em si
mesmo, que é Deus. Mas, o pecado como ‘não’ a Deus é exatamente uma rejeição de Deus,
uma rejeição do fundo e fim do horizonte transcendental, ou seja, a tentação de escolher uma
realidade fora do horizonte, fora de Deus. Mas tal decisão não seria possível dentro do
156
É significante que Santo Agostinho defina o pecado nesses termos, como uma tentação do ser humano se
torna a si mesmo absoluto: “For man’s true honor is God’s image and likeness in him, but it can only be
preserved when facing him from whom its impression is received. And so the less love he has for what is his
very own the more closely can he cling to God. But out of greed to experience his own power he tumbled down
at a nod from himself into himself as though down to the middle level. And then, while he wants to be like God
under nobody, he is thrust down as a punishment from his own half-way level to the bottom, to the things in
which the beasts find their pleasure.” AUGUSTINE, On the trinity, XII. 16, p. 331.
157
“By uttering "no," we intend a world without God, without objective structures and laws, a world in which
we are absolute. This cannot be. It is intrinsically, ontologically impossible. Regardless of the effort, we cannot
become a "no" to God. Therefore the "no" cannot establish something intrinsically definitive. Created nature
remains as a lure, tempting us to reconsider and to freely conform to our true being and destiny. The concept of
the free and definitive "no" is, therefore, an inconsistent and unstable element in Rahner's thought.”
HIGHFIELD, The freedom, p. 494.
118
horizonte, porque não pode rejeitar e afirmar a mesma coisa ao mesmo tempo. Então, tem que
ser uma decisão fora do horizonte. Isso é impossível para a liberdade, então o ‘não’ não pode
ser um ato livre. Mas Rahner afirma que o ‘não’ a Deus é uma decisão livre. Então, existe
uma contradição.158
Nosso autor percebe essa dificuldade e concede que existe uma contradição aqui:
a possibilidade transcendental do ‘não’ da liberdade vive de todo ‘sim’
necessário; todo conhecer e todo agir livre vive daquele Aonde e Donde da
transcendência. Contudo devemos deixar que este ‘não’ comporte semelhante
impossibilidade e contraditoriedade real em si: que este ‘não’, fechando-se,
diga realmente ‘não’ ao horizonte transcendental da nossa liberdade e, assim
fazendo, viva de um ‘sim’ dito a este Deus.159
Mas ele não tenta resolver essa contradição, mas deixa o problema como parte do mistério do
pecado. Deve-se aceitar isso como teólogo?
Highfield identifica outra dificuldade com essa concepção. Ele pergunta, “como o
pecado real pode ser perdoado e o pecador real ser resgatado, se o pecado é o definitivo e
inextirpável por definição?” 160 Ele não encontra uma resposta a essa questão dentro da
teologia de Rahner. Segundo ele, a tentação de harmonizar uma noção existencialista da
liberdade, que pode determinar a si mesma absolutamente num modo quase divino, 161 e a
tradição cristã, não é um sucesso, mas cria essas inconsistências.162
Também surge a questão da relação entre os objetos categoriais e o termo
absoluto do horizonte nos atos da liberdade. Nosso autor diz que o ‘não’ a Deus sempre é
mediado através de objetos categoriais da experiência histórica.163 Além disso, cada ato da
158
Sesboüé também vê esse conflito entre o ‘não’ a Deus e a negação da liberdade, SESBOÜÉ, Karl Rahner, p.
104.
159
CFF, p. 128.
160
“How can real sin be forgiven and the real sinner be redeemed, if sin is definitive and ineradicable by
definition?” HIGHFIELD, The freedom, p. 499.
161
Ibid., p. 505.
162
Highfield conclui, “I believe we find exposed here one of the seams where Rahner has unsuccessfully
attempted to sew together traditional dogma and his metaphysical anthropology. On the one hand, he finds the
existentialist view of freedom—a radical openness and a capacity for definitive self-creation—helpful in
explaining the traditional doctrine of sin. It helps us understand how humans can become sinners before God and
be held responsible for their evil decisions. On the other hand, the tradition also holds that sinners are
redeemable and that God forgives real sin. Here the former concept of freedom becomes a liability. How can real
sin be forgiven and the real sinner be redeemed, if sin is definitive and ineradicable by definition? Rahner does
not resolve this difficulty, and he leaves himself exposed to the charge of inconsistency. The traditional doctrine
that real sinners are redeemable forces him to use the same terms to describe guilt (sin) in this discussion of
redemption as he does in his studies on freedom and the nature of sin (i.e., a free "no" to the self-communication
of God). But, through subtle linguistic shifts, these terms are given another meaning, a meaning which
approximates what Rahner calls "sin in an analogous sense.' The "free no" here obviously means a categorial act
which is conditioned by the situation of finitude and original sin. Only in this way is it understandable how God
could go "beyond it" and make it possible to revise this "no". But where then is the "forgiveness of sins"?” Ibid.,
p. 499-500.
163
CFF, p. 123-24.
119
liberdade é, “um ‘sim’ ou um ‘não’ atemático dito a Deus, da experiência transcendental
originária.”164 Então, o ‘não’ a Deus não precisa ser explícito, mas pode ser implícito. 165 De
fato, ele argumenta que o pecado pode ser escondido do ator, “este ‘não’ pode acontecer
escondido em algo de muito simples, numa situação em que algo de muito insignificante no
mundo media essa relação para com Deus.”166 Contudo, o testemunho bíblico parece dar uma
outra visão do pecado. No AT, um pecado é relacional, representa um ato contra Deus (Sl
50,6). No NT, o pecado é condicionado pela consciência da falta, num sentido.167 Em João, só
os que veem têm pecado (Jo 9,41; 15,22). O pecado não é imputado sem a lei, segundo Paulo
(Rm 3,20; 5,13.20). Na tradição, a ignorância invencível desculpa um ato mal da
culpabilidade porque é involuntário.168 Portanto, num sentido forte, não se pode pecar por
acidente. Na concepção de Rahner, cada ato livre tem que ser um ‘sim’ ou um ‘não’ a Deus
porque cada ato age dentro do horizonte transcendental, que condiciona o movimento numa
direção. O sujeito vai na direção de Deus, o termo absoluto, ou contra essa direção. Não
existem outras opções. Mas, isso não parece harmonizar-se com a concepção bíblica da
liberdade e do pecado.
A subjetividade transcendental tem profundidade, o movimento do sujeito através
do horizonte transcendental para o absoluto, mas parece plano, sem graus ou obstáculos. Cada
decisão parece o mesmo, com o mesmo nível de liberdade. Onde fica o lugar dos hábitos, que
restringem o horizonte da liberdade, e orientam as decisões numa direção? Os objetos
categoriais parecem como janelas transparentes que o sujeito atravessa para o fim absoluto, e
não como termos mesmos das ações. Falta algo aqui, para explicar a experiência do pecado e
para distinguir entre um tipo de pecado e outro.
3.4.4 O pecado original como a privação da graça e a presença universal da
autocomunicação de Deus
A concepção da graça em Rahner também parece problemática. Por um lado, ele
argumenta que o pecado original é um estado de privação da graça. Por outro, ele afirma que
a presença da oferta da autocomunicação de Deus permanece depois do primeiro pecado, e o
164
Ibid., p. 124.
Ibid., p. 124. Para mais explicação, SESBOÜÉ, Karl Rahner, p. 104.
166
CFF, p. 127-28.
167
TENNANT, The concept of sin, p. 29. 32.
168
Por exemplo: STh. 1a.2ae. 73, 3.
165
120
estado da natureza elevada, como uma situação da liberdade humana, também permanece. 169
Ele explica essa aparente inconsistência em que a graça continua presente de outra maneira,
escatologicamente em Cristo e não originalmente em Adão.
170
Então existe uma
simultaneidade dialética da falta da graça e da oferta constante de Deus,171 e pode-se dizer que
o ser humano é simul justus et peccator. 172 De fato, pode-se falar sobre dois existenciais, o do
pecado e o do sobrenatural. 173 Pode-se então perguntar, se a oferta da graça permanece
transcendentalmente, se a graça é realmente uma situação existencial permanente do ser
humano, então em qual sentido existe esse estado de privação da graça?174 Não parece haver
privação nisso.175
Vandervelde oferece uma explanação excelente desse problema. Ele faz uma
distinção entre dois tipos de situação, um histórico e outro transcendental. Ele diz:
Para esclarecer esta aparente justaposição contraditória da situacional
presença e ausência da graça, uma distinção da ideia de situação é obrigatória.
Visto que a universal graça-existencial ou graça-situação é real, não obstante
a situação histórica, cultural ou familiar específica, ela é convenientemente
descrita como uma situação transcendental (ou existencial). A distinção
exata, porém intrincada, entre situação espaço-temporal e transcendental pode
ser traduzida de maneira mais compreensível ao se pensar, respectivamente,
na ‘atmosfera’ e no ‘horizonte’ da existência humana. Ambos representam
distintas realidades situacionais. Com a ajuda desta distinção, o pecado
original pode ser definido mais precisamente como privação espaço-temporal
da graça. Tal privação representa uma negação da presença espaço-temporal
planejada da graça. A graça foi planejada para estar presente como a
atmosfera da existência humana. A graça de Deus não foi feita para ser
comunicada puramente de maneira transcendental – via o horizonte humano –
de forma que a presença da graça como a atmosfera envolvendo o indivíduo
precisasse ser criada mais uma vez por este indivíduo, isto é, por sua resposta
positiva ao horizonte. Antes, Deus deseja comunicar-se a si mesmo de
maneira transcendental e espaço-temporal, de forma que cada ser humano aja
como mediador espaço-temporal, histórico, da graça para seus semelhantes.
Cada ser humano desempenha este papel mediador não apenas para seus
contemporâneos, mas também para as futuras gerações. Na verdade, a
mediação histórica acontece de maneira mais incisiva no que pode ser
chamado de o menor elo da história, a família, especificamente na relação
pais e filhos. A entrada do pecado no mundo traz consigo uma ruptura desta
169
RAHNER, Brief theological observations, p. 45-46.
CFF, p. 141, 143; RAHNER, Original sin, p. 333.
171
SA, p. 258-59.
172
RAHNER, Brief theological observations, p. 51-52.
173
Sobre a existencial sobrenatural como algo permanente que orienta o sujeito, veja GARCÍA-ALÓS, El
existencial sobrenatural, p. 225-226.
174
Vandervelde percebe o mesmo problema. VANDERVELDE, Original sin, p. 214.
175
Vandervelde explica, “the idea of a situational lack of grace flatly contradicts the conception of the universal
(situational!) presence of grace that is held by all the situationalists. That presence of grace, in fact, constitutes
an ineradicable Existential, an ontological determinant, an irreversible aspect of the situation of every human
being. The lack of grace that constitutes original sin, therefore, does not involve or affect this universal
Existential (or situation) of grace.” VANDERVELDE, Original sin, p. 148.
170
121
comunicação espaço-temporal da graça, uma perturbação na atmosfera da
existência humana, pois em seu sentido mais profundo, o pecado implica uma
rejeição à graça de Deus. O efeito de tal resistência à graça é uma privação
espaço-temporal da graça para o semelhante. Embora Deus continue a
orientar o ser humano à graça, e a situá-lo pela graça de maneira
transcendental, a mediação espaço-temporal da graça é impedida. O amor
gracioso de Deus e a resistência pecaminosa do ser humano coexistem,
resultando no fato de que cada ser humano está numa situação
simultaneamente determinada por uma presença transcendental da graça e
por uma ausência espaço-temporal da graça.176
Essa explanação entende bem o pensamento de Rahner e claramente resolve a dificuldade. A
diferença está no nível da mediação, que se encontra no espaço e no tempo, e é categorial, não
transcendental. A orientação transcendental do ser humano não pode mudar, porque é inerente
à natureza do sujeito transcendental. 177 A mediação histórica de Cristo tenta superar a
privação histórica de graça por causa do pecado original. Contudo, a interpretação da
existência humana fica bem complicada: uma privação categorial da graça e uma presença
transcendental da graça; duas situações existenciais co-extensivas (do pecado e do
sobrenatural); duas mediações categoriais em conflito (da culpa e de Cristo); e um só fim
transcendental com uma possibilidade da negação final. Essa articulação seria difícil de
explicar para os fieis e os não cristãos do mundo.
176
“To clarify this seemingly contradictory juxtaposition of the situational presence and absence of grace, a
distinction within the idea of situation is mandatory. Because the universal grace-Existential or grace-situation is
real regardless of the specific historical, cultural or familiar situation, it is aptly described as a transcendental
situation (or Existential). The exact but rather abstruse distinction between the spatiotemporal and the
transcendental situation may be rendered more comprehensible by thinking, respectively, of the ‘atmosphere’
and of the ‘horizon’ of human existence. Both of these represent (distinct) situational realities. With the aid of
that distinction, original sin can be defined more precisely as a spatiotemporal privation of grace. That privation
represents a negation of the intended spatiotemporal presence of grace. Grace was intended to be present as the
atmosphere of human existence. God’s grace was not meant to be communicated purely transcendentally – via
man’s horizon – so that the presence of grace as the atmosphere enveloping the individual would need to be
created anew by that individual, i.e., by his positive response to the horizon. Rather, God wishes to communicate
Himself transcendentally and spatiotemporally, so that each human being is to act as spatiotemporal, historical
mediator of grace for his fellowman. Each human being plays this mediating role not only for his contemporaries
but also for future generations. In fact, this historical mediation takes place most incisively in what might be
called the smallest link of history, the family, specifically in the relation of parent to child. The entrance of sin
into the world brings with it a disruption of this spatiotemporal communication of grace, a disturbance in the
atmosphere of human existence, for in its deepest sense, sin entails a rejection of God’s grace. The effect of such
resistance to grace is a spatiotemporal privation of grace for one’s fellowman. Although God continues to orient
man to, and situate man by grace transcendentally, the spatiotemporal mediation of grace is thwarted. God’s
gracious love and man’s sinful resistance coexist, with the result that each human being is situated
simultaneously by a transcendental presence of grace and by spatiotemporal lack of grace.” VANDERVELDE,
Original sin, p. 148-49
177
É interessante que Vandervelde ainda não aceita essa explicação como suficiente para justificar a transmissão
da graça historicamente através da Igreja. Tal mediação da graça, nos sacramentos por exemplo, não supera a
situação do pecado original, que permanece como um existencial. Mas, se permanece, então a graça mediada
pela Igreja é insuficiente como um remédio pelo pecado original. Portanto, por que a mediação da Igreja é
necessária? Se a graça é presente transcendentalmente através do horizonte, e não é possível superar a situação
do pecado original, por que se precisa da mediação da Igreja? O que concretamente essa mediação faz pela
salvação da pessoa? Segundo o autor, a lógica da posição enfraquece a importância da Igreja e a mediação da
graça, mesmo a do Cristo histórico. VANDERVELDE, Original sin, p. 254-56.
122
3.4.5 Rahner dá lugar suficiente para a ‘corrupção da natureza’?
A concepção teológica da concupiscência usada nessa exposição do pecado
original não dá espaço para a ideia da corrupção da natureza por causa do pecado. Nosso
autor argumenta que a concupiscência é bivalente em relação aos bens morais, e não mostra
como os atos de pecado afetam a disposição do sujeito. Claro, pode-se aceitar que a
concupiscência não é a corrupção, mas o estado da natureza. De fato, o consenso da teologia
medieval é exatamente esse, que depois do primeiro pecado e da perda da graça, o ser humano
retornou ao estado natural, com a concupiscência, (com os apetites não completamente
sujeitos à razão) e a morte. Mas, a tradição, baseada no AT, e especialmente em São Paulo
(por exemplo Rm 7), também faz uma conexão entre os atos do pecado e a corrupção moral
do sujeito. Além disso, a grande tradição moral das virtudes e vícios, a habituação nas
pessoas, a ‘segunda natureza’ dos escolásticos, e o desenvolvimento espiritual do sujeito
através da oração e da prática religiosa nos padres do deserto e nos escritos clássicos sobre a
vida espiritual, falam sobre a corrupção da natureza e a luta contra a disposição pecaminosa
da natureza humana. Não é somente a resistência da natureza contra a decisão livre da pessoa.
De fato, a tradição que segue Santo Agostinho, especialmente a tradição protestante, enfatiza
a concupiscência como a tendência para o mal, que é exatamente o que a doutrina tenta
explicar. É problemático que nosso autor negue esse aspecto da teologia Cristã sobre o pecado
original. Em relação a esse assunto, Teilhard preserva melhor o sentido do pecado original,
porque para ele é a fraqueza do ser humano.
Volta de novo a questão da subjetividade transcendental. Dentro dessa concepção
da liberdade, é difícil explicar hábitos, os graus da voluntariedade nas decisões e os ‘afetos
desordenados’ que Santo Inácio descreve. Uma vontade concebida como um apetite, por
exemplo em Santo Tomás,178 e não como transcendental, dá mais espaço para a variação na
orientação da liberdade e para os hábitos. Também, tal concepção seria mais fácil de
harmonizar com a evolução, porque pode explicar a liberdade humana com mais continuidade
conforme o que é voluntário no animal. Parece que a vontade dos animais é a do modo de um
apetite, que escolhe entre os bens particulares dos sentidos. O livre arbítrio do ser humano
escolhe entre os bens particulares, mas em relação com o bem universal, através da
178
STh. 1a.2ae. 6, 1-2.
123
deliberação do intelecto.179 É possível que tal concepção seja mais atraente aos cientistas. O
grande salto para a liberdade transcendental de Rahner enfatiza demais a descontinuidade?
Finalmente, pode-se questionar por que Rahner não faz uma conexão entre a
situação co-determinada pela culpa e o desenvolvimento de uma concupiscência corrupta? Se
distingue entre a concupiscência como a tendência natural, e a concupiscência como a
disposição adquirida, pode-se argumentar que a tendência para o mal (a concupiscência no
sentido agostiniano) não é uma herança pela geração (então não uma transmissão da natureza
corrupta), mas são os hábitos formados como o resultado do desenvolvimento pessoal dentro
da situação co-determinada pela culpa na história. Existe uma oportunidade aqui de se reapropriar de alguns aspectos da tradição sobre o pecado original que Rahner rejeita. Ele pode
argumentar que a situação co-determinada pela culpa afeta o desenvolvimento moralespiritual do sujeito, que resulta na corrupção no nível da ‘segunda natureza’, os hábitos e as
disposições. Então, ele preservaria a conexão entre o primeiro pecado e a concupiscência
como a tendência para o mal, mas sem nenhuma herança biológica. Isso ajudaria a explicar
por que Deus permite a privação da graça, pelo fato de que a situação do pecado afeta a
disposição dos seres humanos para aceitar a mesma. Também ajudaria a explicar por que a
‘concupiscência’ continua depois da aceitação da graça de Cristo e do batismo. Desse modo, a
graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa. Isso é um trabalho do tempo, para o que foi
desenvolvido através do tempo, configurada na tarefa da vida espiritual e do movimento da
santificação.
3.5 Conclusão
Em resumo, pode-se fazer duas conclusões principais. A primeira, a teologia de
Rahner é, em geral, bem mais sólida do que a visão de Teilhard. Ele não confunde os
processos físicos e a atividade redentora de Cristo. Ele não identifica o pecado com a
limitação material do ser humano. Ele dá mais espaço para a liberdade e para a
responsabilidade do ser humano pela ação do pecado. Ao mesmo tempo, esses pontos não
forçam Rahner a sacrificar a compatibilidade com a evolução. Ele desenvolve uma metafísica
e uma antropologia consistentes com a teoria da evolução e harmoniza essa antropologia com
a doutrina do pecado original. Rejeita o ‘quadro clássico’ da doutrina sem extinguir a
importância do primeiro pecado, da universalidade do efeito desse pecado para a humanidade
179
STh. 1a. 83, 1; 1a.2ae. 10, 2.
124
e da necessidade da salvação de Cristo. Portanto, ele supera as dificuldades da doutrina do
pecado original à luz da evolução, como Teilhard, mas ao mesmo tempo mais fiel a os dados
teológicos da doutrina.
A segunda, Rahner oferece uma interpretação da doutrina que ultrapassa seus
problemas inerentes. Explica a razão do porquê o primeiro pecado ter um efeito universal e,
ao mesmo tempo, como não somos culpados pelos pecados dos antepassados. Também ele
evita uma transmissão quase-biológica do pecado original, mas preserva uma ‘transmissão’
social do pecado através da ‘situação’ co-determinada pela culpa alheia. Enfim, Rahner dá
uma interpretação da doutrina que é consistente e razoável.
Contudo, existem algumas questões com sua interpretação. Notamos a crítica de
Highfield sobre a inconsistência da concepção rahneriana do pecado, a complexidade de sua
concepção dos existenciais da privação da graça e do sobrenatural, e a falta de preocupação
com a concupiscência enquanto a tendência para o mal. Essas dificuldades centram-se nas
implicações da subjetividade transcendental. Para superá-las, seria possível assimilar as
percepções preciosas de Rahner sem aceitar esse aspectos antropológicos de seu pensamento?
125
CONCLUSÃO GERAL
Na introdução começamos com a questão: é possível ter uma interpretação do
pecado original coerente em si mesma e compatível com a teoria da evolução? O primeiro
capítulo nos ajudou a definir como responder a essa questão. Uma breve síntese do
testemunho bíblico mostrou que, embora o mito de Gn 2-3 não retrate a história do primeiro
casal, e Rm 5,12 não necessariamente coloca toda a humanidade na culpabilidade do pecado
de Adão, as ideias da universalidade do pecado no ser humano, do estado do pecado como
alienação de Deus, e da influência dos pecados do passado nas ações das pessoas do presente
estão firmemente presentes nos textos do AT e do NT. O salto sobre o desenvolvimento da
doutrina na tradição demonstrou que santo Agostinho não foi sozinho entre os padres da
Igreja a afirmar a universalidade do pecado e a necessidade da salvação para toda a
humanidade. Sua reflexão sobre o pecado original foi uma continuação da tradição, e depois
dele a Igreja continuou desenvolvendo-a e aprofundando-a na idade média, até a definição de
Trento. No final, definimos três proposições essenciais para a doutrina: o pecado de Adão
levou à perda da graça para ele e sua descendência; existe uma ligação entre o pecado de
Adão e os pecados inevitáveis de todos os seres humanos; a necessidade da graça e da
salvação de Cristo para todos. Contudo, a doutrina clássica criou quatro dificuldades para a
teologia: ‘universalidade’, ‘responsabilidade’, ‘transmissão’ e ‘concupiscência’. Com isso, o
problema da consistência recebeu sua articulação. Também no primeiro capítulo foram
identificados os conflitos entre a doutrina clássica e a teoria da evolução: o paraíso
problemático, o monogenismo problemático, e a transmissão problemática. Depois disso
tratou-se de ver como avaliar se nossos autores realmente superaram as dificuldades para nos
dar uma resposta à questão.
O segundo capítulo analisou a proposta de Teilhard. Ele tentou responder às
dificuldades acima indicadas, colocando o mal no nível cósmico, como a imperfeição
inevitável de um universo no processo da evolução e unificação. O pecado do ser humano é
inevitável no encontro entre a imperfeição material e a livre responsabilidade das pessoas
conscientes. Embora essa concepção harmonize-se bem com a evolução, não permanece fiel à
tradição e aos pontos fundamentais da doutrina.
O terceiro capítulo demonstrou como Rahner evitou os problemas de Teilhard e
ainda harmonizou o pecado original com a antropologia evolucionista. Ele manteve a
126
importância do primeiro pecado para a humanidade e explicou sua influência a partir do
conceito de ‘situação’ do pecado que co-determina a liberdade da pessoa. Ao mesmo tempo,
rejeitou a ideia do paraíso, aceitou o poligenismo, e explicou a ‘transmissão’ sem recorrer a
um conceito quase-biológico. Enfim, ele superou tanto os problemas com a consistência da
doutrina quanto seus conflitos com a evolução.
Portanto, a partir do terceiro capítulo, podemos chegar a estas conclusões. Na
afirmação da tese desta pesquisa, é realmente possível superar os problemas internos da
doutrina e harmonizá-la com uma antropologia evolucionista. Ao lado da consistência, a ideia
da ‘situação’ de pecado ajuda a superar o problema da transmissão e da universalidade do
primeiro pecado. Também, não necessita afirmar a responsabilidade de toda a humanidade no
primeiro pecado. Ao lado da evolução, pode-se rejeitar a ideia do paraíso e aceitar o
poligenismo sem negar a doutrina. Uma antropologia evolucionista é compatível com a ideia
do primeiro pecado e da influência sócio-cultural dele a toda a humanidade. Por isso, a tese
secundária também recebe sua afirmação: a interpretação da doutrina de Rahner preserva
melhor os dados da tradição e é mais sólida teologicamente do que a posição de Teilhard.
Ao mesmo tempo, a posição de Rahner não escapou a algumas críticas.
Principalmente, vimos que sua reflexão sobre a subjetividade transcendental criou algumas
tensões em sua interpretação do pecado, especialmente a dificuldade em reconciliar a
contradição entre a rejeição de Deus do ato livre no horizonte transcendental que ao mesmo
tempo afirma Deus como o fundo e o fim do horizonte. Também, a questão da complexidade
das duas situações humanas e da teologia da graça levanta dificuldades. Além disso, Rahner
evita a ideia da concupiscência como tendência para o mal, que poderia ser uma limitação em
sua visão à luz da experiência humana.
A partir dessas conclusões, e das limitações da teologia de Rahner, pode-se
articular algumas direções para novos estudos. Primeira, a teologia católica e o Magistério da
Igreja devem trabalhar dentro de uma antropologia evolucionista e aprovar o poligenismo e
rejeitar a ideia do paraíso. O futuro da teologia deve estar em harmonia com as teorias
sustentadas pela ciência. Segundo, outros estudos devem desenvolver a ideia da ‘situação’ do
pecado e a influência dos atos dos outros na liberdade de cada um. A pesquisa sobre a
formação moral das crianças, a influência cultural, a ideologia, a ação coletiva, a coerção
sutil, e muitos outros assuntos podem aprofundar nosso conhecimento da situação do pecado e
de sua transmissão social. Terceira, em relação à teologia de Rahner, seria possível aproveitar
suas ideias sobre o pecado original, mas sem o peso da antropologia transcendental? As
127
dificuldades com sua interpretação muitas vezes encontram razões em sua antropologia
transcendental. É tempo agora de apropriar-se de aspectos da teologia de Rahner sem sua
filosofia transcendental? Deve-se dedicar mais estudo a essa questão. Quarta, a questão da
relação entre a privação da graça e a imoralidade, ou seja, a perda da relação direta com Deus
e a desordem pessoal e social do ser humano, deve ser um tópico a mais na investigação. Tal
relação tem fundamento na bíblia, especialmente nos profetas e em Paulo, e parece tocar o
coração do problema existencial do ser humano ‘em pecado’. Sem Deus, não se pode superar
essa situação. Então, em qual sentido a relação com Deus realmente muda a situação da
pessoa? Existe algo aqui que ajudaria a explicar a importância da fé em Deus para uma maior
virtude e da mediação de Cristo e da Igreja para a salvação? Finalmente, a questão da
concupiscência, especialmente em relação à ‘situação do pecado’ e à privação da graça,
precisa de mais atenção. Rahner não dá espaço suficiente para isso. A percepção de
Agostinho, entendida corretamente, pode esclarecer sobre a experiência do pecado e da
importância em viver a vida cristã. A relação íntima com Cristo, os sacramentos, a oração, a
comunidade cristã e as tradições possibilitam a superação da tendência para o mal. A ideia da
concupiscência como adquirida, e não herdada, por causa da situação do pecado, poderia
integrar a ‘transmissão social’ do pecado original com a ‘corrupção da natureza’, que faz
parte do testemunho comum da tradição.
Enfim, esta pesquisa respondeu a uma questão e se deparou com outras cinco.
Pelo menos podemos terminar com uma nota positiva. A grande tarefa dos teólogos do século
passado, neste caso Teilhard de Chardin e Rahner, foi a de enfrentar os problemas com a
doutrina do pecado original, aos quais responderam com fidelidade e criatividade. Seus
escritos deixaram para nós uma base sólida para nossas pesquisas, a fim de encontrar uma
interpretação da fé Cristã para o mundo atual.
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