George Friedman A PRÓXIMA DÉCADA ONDE ESTAMOS… E PARA ONDE NOS DIRIGIMOS Tradução de Patrícia Oliveira Na Sombra do Poder ÍNDICE LISTA DE ILUSTRAÇÕES 13 NOTA DO AUTOR 15 INTRODUÇÃO: Reequilibrar a América 19 CAPÍTULO 1 O império acidental 31 CAPÍTULO 2 República, império e o presidente maquiavélico 51 CAPÍTULO 3 A crise financeira e o Estado renascido 63 CAPÍTULO 4 Encontrar o equilíbrio de poderes 79 CAPÍTULO 5 A armadilha do terrorismo 97 CAPÍTULO 6 Redefinição de políticas: o caso de Israel 113 CAPÍTULO 7 Inversão estratégica: os Estados Unidos, o Irão e o Médio Oriente CAPÍTULO 8 O regresso da Rússia 155 CAPÍTULO 9 O regresso da Europa à história 181 11 137 Pedro Feytor Pinto CAPÍTULO 10 Enfrentar o Pacífico Ocidental 207 CAPÍTULO 11 Um hemisfério seguro 239 CAPÍTULO 12 África: um local a deixar em paz 263 CAPÍTULO 13 O desequilíbrio tecnológico e demográfico CAPÍTULO 14 O império, a república e a década 289 AGRADECIMENTOS 297 12 273 CAPÍTULO 1 O IMPÉRIO ACIDENTAL O presidente americano é o líder político mais importante do mundo. O motivo é simples: governa uma nação cujas políticas económicas e militares moldam as vidas de pessoas em todos os países, em todos os continentes. O presidente pode ordenar, e ordena de facto, invasões, embargos e sanções. As políticas económicas que molda afetam milhares de milhões de vidas, talvez ao longo de várias gerações. Durante a próxima década, quem vier a ser presidente e aquilo que decidir fazer muitas vezes afetarão, mais as vidas de não americanos do que as decisões dos seus próprios governos. Isto ficou claro para mim na noite da mais recente eleição presidencial dos EUA, quando tentei telefonar para um dos membros do meu pessoal em Bruxelas e a apanhei num bar cheio de belgas que festejavam a vitória de Barack Obama. Posteriormente fiquei a saber que estas festas em celebração de Obama tinham decorrido em dezenas de cidades por todo o mundo. Por todo o lado, as pessoas pareciam sentir que o resultado da eleição americana era de extrema importância para elas e muitas emocionaram-se com a subida de Obama ao poder. Antes de o primeiro ano de Obama no cargo chegar ao fim, cinco políticos noruegueses atribuíram-lhe o Prémio Nobel da Paz, para consternação de muitos que pensavam que Obama ainda não tinha feito nada para o merecer. Contudo, de acordo com o presidente do comité, Obama tinha alterado de forma dramática e imediata a perceção que o mundo tinha dos Estados Unidos e esta alteração, 31 George Friedman por si só, tornava o prémio merecido. George W. Bush tinha sido odiado, por ser visto como um rufia imperialista. Obama estava a ser celebrado por ter sublinhado que não ia ser um rufia imperialista. Do comité do Prémio Nobel, aos bares de Singapura e São Paulo, o que estava a ser reconhecido de forma não intencional era a singularidade da própria presidência americana, bem como a nova realidade que os americanos estão relutantes em admitir. O novo regime americano teve tanta importância para os noruegueses, para os belgas, para os polacos, para os chilenos e para os milhares de milhões de outras pessoas em todo o mundo, porque o presidente americano ocupa agora o por vezes estranho (e nunca explicitamente declarado) papel de imperador global, uma realidade com a qual o mundo e o presidente terão dificuldade em lidar na próxima década. O IMPERADOR AMERICANO O estatuto e influência singulares do presidente americano não resultam de conquista, desígnio ou intervenção divina, mas ipso facto de os Estados Unidos serem a única potência militar global. A economia norte-americana é também mais de três vezes maior do que a maior economia soberana seguinte. Estas realidades dão aos Estados Unidos um poder que é desproporcional em relação à sua população, à sua dimensão e, na verdade, em relação àquilo que muitos consideram justo e prudente. Contudo, os Estados Unidos não pretenderam tornar-se um império. Esta solução acidental resultou de acontecimentos sobre os quais os americanos tiveram pouco controlo. Seguramente que se falava em império antes deles. Entre o Destino Manifesto e a Guerra Hispano-Americana, o século XIX esteve repleto de visões de império incrivelmente modestas quando comparadas com o que emergiu. O império de que falo tem pouco a ver com essas ideias iniciais. De facto, o meu argumento é que a mais recente versão surgiu sem planeamento ou intenção. 32 A Próxima Década Desde a Segunda Guerra Mundial até ao final da Guerra Fria, os Estados Unidos foram-se aproximando da supremacia, porém, ela só chegou em 1991, quando a União Soviética desabou, deixando os EUA sozinhos, como um colosso sem um contrapeso. Em 1796, Washington fez o seu discurso de despedida e anunciou o seguinte princípio: «A grande norma de conduta para nós, em relação às nações estrangeiras, reside no aumento das nossas relações comerciais, de modo a termos com elas a menor ligação política possível.» Os Estados Unidos tiveram a opção de se afastarem do mundo nessa altura. Eram um país pequeno, isolado em termos geográficos. Hoje em dia, por muito que o resto do mundo possa desejar que sejamos menos intrusivos ou por muito tentadora que essa perspetiva possa parecer aos americanos, é simplesmente impossível para uma nação cuja economia é tão vasta ter relações comerciais sem ligações ou consequências políticas. O impulso antipolítico de Washington era adequado para o fundador anti-imperialista da república. Ironicamente, o sucesso extraordinário dessa república tornou esta visão impossível. A economia americana é como um remoinho que atrai tudo para o seu vórtice, com correntes impercetíveis que podem devastar pequenos países ou enriquecê-los. Quando está bem, a economia dos EUA é o motor que impulsiona toda a máquina; quando este começa a gripar, toda a máquina pode avariar. Não existe uma única economia que afete o mundo de forma tão profunda ou que o una de forma tão eficaz. Quando olhamos para o mundo a partir do ponto de vista das exportações e importações, é impressionante o número de países que dependem dos Estados Unidos para 5 ou mesmo 10 por cento do seu produto interno bruto, um valor tremendo de interdependência. Apesar de existirem relações económicas bilaterais e até multilaterais que não incluem os Estados Unidos, não há nenhuma que não seja afetada por eles. Toda a gente observa e fica à espera de ver o que os Estados Unidos irão fazer. Toda a gente tenta moldar o comportamento americano, pelo menos um pouco, de modo a ganhar alguma vantagem ou a evitar alguma desvantagem. 33 34 Principais relações comerciais americanas Exportações ou importações para os EUA são superiores a 5% do PIB Exportações ou importações para os EUA são superiores a 10% do PIB George Friedman A Próxima Década Em termos históricos, este grau de interdependência provocou fricção e até mesmo guerra. No século XIX e no início do século XX, a França e a Alemanha temiam o poder uma da outra, por isso tentaram moldar-se de acordo com o comportamento mútuo. O resultado foi que os dois países entraram em guerra um com o outro três vezes em setenta anos. Antes da Primeira Guerra Mundial, o jornalista inglês (mais tarde deputado) Norman Angell escreveu um livro amplamente lido intitulado A Grande Ilusão, no qual demonstrou o elevado grau de interdependência económica na Europa e afirmou que esse facto tornava a guerra impossível. Obviamente, as duas Guerras Mundiais provaram que não era esse o caso. Quem advoga o comércio livre continua a usar este argumento. Contudo, como veremos, um elevado grau de interdependência global, com os Estados Unidos no centro, na verdade aumenta – em vez de diminuir – o perigo de guerra. O facto de o mundo já não estar repleto de potências relativamente iguais, fáceis de tentar para aventuras militares, mitiga um pouco esse perigo. Como é evidente, o domínio do poder militar americano é tal, que nenhum país pode esperar usar a força bruta para redefinir, nas suas bases, o seu relacionamento com os Estados Unidos. Todavia, ao mesmo tempo, conseguimos ver que a resistência ao poder americano é substancial e que as guerras se tornaram frequentes desde 1991. Apesar de o poder imperial da América correr o risco de se deteriorar, um poder desta magnitude não desaba rapidamente, exceto através da guerra. Os poderes alemão, japonês, francês e britânico entraram em declínio não devido à dívida, mas devido a guerras que devastaram as economias desses países pela produção de dívida como um dos muitos subprodutos da guerra. A Grande Depressão, que varreu o mundo nas décadas de 1920 e 1930, teve a sua origem na devastação da economia alemã, resultante da Primeira Guerra Mundial e da perturbação das relações comerciais e financeiras que acabou por alastrar e abranger o mundo inteiro. Contrariamente, a grande prosperidade da aliança americana após 1950 resultou do poder económico que os Estados Unidos acumularam – incólumes – durante a Segunda Guerra Mundial. 35 George Friedman Na ausência de uma grande e devastadora guerra, qualquer realinhamento de uma influência internacional baseada na economia será um processo que vai demorar gerações, se chegar a acontecer de todo. Diz-se que a China será a próxima potência. Talvez. Contudo, a economia dos EUA é 3,3 vezes maior do que a da China. A China vai ter de manter uma taxa de crescimento extraordinariamente elevada durante um longo período de tempo, para encurtar a sua diferença para os Estados Unidos. Em 2009, os Estados Unidos eram responsáveis por 22,5 por cento de todo o investimento estrangeiro direto no mundo, o que, de acordo com a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento, os torna a maior fonte de investimento individual do mundo. A China, em comparação, era responsável por 4,4 por cento. É também provável que os Estados Unidos sejam o maior devedor do mundo, porém esse endividamento não reduz a sua capacidade de afetar o sistema internacional. Quer deixe de pedir emprestado, peça emprestado ainda mais ou ainda menos, a economia americana molda constantemente os mercados globais. A importância reside no poder de moldar. É claro, também convém lembrar que, por cada dólar que os Estados Unidos pedem emprestado, há alguém que o empresta. Se for possível confiar no mercado, então este está a dizer que emprestar aos Estados Unidos, mesmo com as atuais taxas de juro baixas, é uma boa jogada. Muitos países têm impacto noutros países. O que torna os Estados Unidos um império é o número de países que eles afetam, a intensidade do impacto e o número de pessoas nesses países atingidas por esses processos e decisões económicas. Em anos recentes, por exemplo, os americanos tiveram um apetite crescente por camarão. Esta agitação no mercado dos EUA levou os piscicultores do delta do Mekong a ajustarem a sua produção para irem ao encontro da nova procura. Quando a economia americana entrou em declínio em 2008, a alimentação de luxo, como o camarão, foi a primeira a sofrer um corte, uma retração que foi sentida até nos viveiros de peixe do delta do Mekong. Seguindo um padrão 36 A Próxima Década semelhante, o fabricante de computadores Dell construiu uma grande fábrica na Irlanda, porém quando os custos da mão de obra aumentaram no país, a Dell deslocalizou-se para a Polónia, mesmo numa altura em que a Irlanda estava a passar por uma pressão económica grave. Os Estados Unidos são, de igual modo, moldados por outros países, tal como a Grã-Bretanha e Roma o foram. Contudo, os Estados Unidos encontram-se no centro da rede e não na sua periferia e a sua economia é ampliada pelas suas forças militares. Se lhe juntarmos a vantagem tecnológica, podemos ver a estrutura do poder profundo da América. Os impérios podem ser formais, com uma clara estrutura de autoridade ou podem ser mais subtis e complexos. Os britânicos controlaram o Egito, contudo, o poder formal britânico foi muito pouco claro. Os Estados Unidos têm o alcance global de moldar o curso de muitos outros países, todavia, como se recusam a pensar que são uma potência imperial, não criaram uma estrutura formal e racional para gerir o poder que claramente têm. O facto de os Estados Unidos terem enfrentado reveses no Médio Oriente não mina, de modo algum, o argumento de que são um império, apesar de imaturo. Não há incompatibilidade entre cometer falhas e ser um império e no decorrer da expansão e do crescimento imperial, os acidentes são frequentes. A Grã-Bretanha perdeu grande parte das suas colónias da América do Norte numa rebelião, um século antes de o império atingir o seu auge. Os romanos enfrentaram guerras civis em ciclos recorrentes. Apesar de o núcleo do poder dos EUA ser económico – por muito maltratado que possa parecer de momento –, por trás do seu poder económico está o seu poder militar. A finalidade das forças militares americanas é impedir que qualquer nação lesada pela influência económica dos EUA ou uma coligação dessas nações use a força para corrigir as condições que a colocam (ou as colocam) em posição de desvantagem. Tal como as legiões de Roma, as tropas americanas são posicionadas antecipadamente por todo o mundo, simplesmente porque a forma mais eficiente de usar o poder militar é perturbando 37 George Friedman as potências emergentes, antes que elas possam tornar-se ameaçadoras, ainda que marginalmente. O mapa seguinte, na verdade, apresenta de forma substancialmente minimizada a presença militar americana. Por exemplo, não sinaliza os batalhões de Operações Especiais dos EUA que operam dissimuladamente em diversas regiões, nomeadamente em África. Também não inclui missões de treino, apoio técnico e funções semelhantes. Algumas tropas dos EUA estão a travar guerras, outras estão a interditar drogas, algumas estão a proteger os países onde se encontram de potenciais ataques e algumas estão a usar os países onde se encontram como áreas de concentração, para o caso de as tropas americanas serem necessárias noutro país próximo. Em alguns casos, estas tropas ajudam a apoiar os americanos que estão direta ou indiretamente envolvidos na governação do país. Noutros casos, as tropas estão simplesmente presentes, sem controlarem nada. As tropas com base nos Estados Unidos não estão aqui apenas para proteger a pátria, mas também para estarem disponíveis para aquilo a que os militares chamam projeção de poder. Isto significa que estão prontas para servir em qualquer lado para onde o presidente considere necessária a sua deslocação. Tal como é adequado num império global, os Estados Unidos alinham o seu sistema económico e o seu sistema militar para agirem como garantia da economia global. Simultaneamente, os Estados Unidos proporcionam tecnologias e outros bens e serviços que podem ser adquiridos, um enorme mercado onde vender e forças armadas para manterem as rotas marítimas desimpedidas. Em caso de necessidade, deslocam-se para policiar áreas desregradas, contudo, não o fazem para beneficiarem outros países, mas o seu. Por fim, o poder da economia americana e a distribuição da força militar americana tornam o alinhamento com os Estados Unidos uma necessidade para muitos países. É esta necessidade que une os países aos Estados Unidos, com mais força do que qualquer sistema imperial formal poderia ter a esperança de conseguir. Os impérios, consequências acidentais de poderes acumulados para fins bastante distantes dos sonhos de império, são geralmente 38 39 Países com presença militar dos EUA (a 31 de dezembro de 2007; não inclui posicionamentos secretos) Fontes: Departamento de Defesa, International Institute of Strategic Studies, STRATFOR Outras instalações do Departamento da Defesa Uso de instalações Mais de 100 tropas dos EUA Mais de 1000 tropas dos EUA A Próxima Década George Friedman reconhecidos muito depois de terem emergido. Quando se apercebem daquilo que são, usam esse impulso para se expandirem de forma consciente, acrescentando uma ideologia de imperialismo – pensemos na Pax Romana ou no britânico «white man’s burden»1 – à realidade do império. Um império origina escritores como Virgílio e poetas como Rudyard Kipling depois de estar bem estabelecido e não antes. E, tal como em Roma e na Grã-Bretanha, os que celebram o império americano coexistem com os que se sentem alarmados com ele e anseiam pelos primeiros dias, mais autênticos. Roma e a Grã-Bretanha estavam encurraladas no mundo do império, mas aprenderam a apreciar essa armadilha. Os Estados Unidos ainda estão na fase em que recusam ver o império em que se tornaram, e sempre que sentem os arreios do império, repelem-nos. Contudo, chegou a altura de reconhecer que o presidente dos Estados Unidos gere um império com um poder e influência sem precedentes, apesar de ser informal e não documentado. Só então poderemos formular políticas durante a próxima década que nos permitam gerir adequadamente o mundo do qual estamos encarregues. GERIR A REALIDADE IMPERIAL Durante os últimos vinte anos, os Estados Unidos esforçaram-se por lidar com as repercussões de serem «o último resistente» após a queda da União Soviética. A tarefa do presidente durante a próxima década é deixar de ser reativo e passar a ter um método sistemático de gestão do mundo que domina, um método que enfrente com honestidade e sem hesitação as realidades do funcionamento do mundo. Isso significa transformar o império americano de uma 1 De «O Fardo do Homem Branco», poema escrito por Rudyard Kipling, no século XIX, que retrata a responsabilidade que os brancos consideravam ter na governação e imposição da sua cultura aos não brancos e que justificaria o colonialismo. (N. da T.) 40 A Próxima Década desordem não documentada, num sistema ordeiro, numa Pax Americana – não por esta ser uma escolha livre do presidente, mas precisamente por ele não ter qualquer escolha. Trazer ordem para o império é uma necessidade, porque apesar de serem incrivelmente poderosos, os Estados Unidos estão longe de serem omnipotentes, e ter um poder único origina perigos únicos. Os Estados Unidos foram atacados a 11 de setembro de 2001, por exemplo, precisamente devido ao seu poder único. A tarefa do presidente é gerir esse tipo de poder de uma forma que reconhece os riscos, bem como as oportunidades, minimizando depois os riscos e maximizando os benefícios. Para quem fica desagradado só de ouvir falar em império, quanto mais em trazer ordem para o controlo imperial, quero salientar que as realidades da geopolítica não permitem aos presidentes exercerem a virtude, da forma que a concebemos quando aplicada aos vulgares cidadãos. Dois presidentes que procuraram a virtude de forma direta, Jimmy Carter e George W. Bush, falharam redondamente. Pelo contrário, outros presidentes, tais como Richard Nixon e John F. Kennedy, que eram bastante mais implacáveis, falharam porque as suas ações não eram direcionadas, nem se encontravam unidas por nenhuma finalidade moral superior. Quanto a trazer ordem para o império, proponho que os futuros presidentes sigam o exemplo de três dos nossos líderes mais eficazes, homens que conseguiram ser totalmente implacáveis na execução de uma estratégia que era, ainda assim, orientada por um princípio moral. Nestes casos, os fins morais justificaram, de facto, os meios, que foram não só imorais, como inconstitucionais. Abraham Lincoln manteve a União e aboliu a escravatura iniciando um programa concertado de logro e violação das liberdades civis. Para manter a lealdade dos estados fronteiriços, nunca cumpriu a sua intenção de eliminar a escravatura, deixada clara nos grandes debates de 1858. Em vez disso, dissimulou a questão, alegando que, apesar de se opor ao alastramento da escravatura para além do Sul, não tinha qualquer intenção de abolir o direito à posse de escravos nos estados onde a sua posse já era legal. 41 George Friedman Contudo, Lincoln fez mais do que prevaricar. Suspendeu o direito de habeas corpus em todo o país e autorizou a detenção de legisladores pró-independência no estado de Maryland. Não fez qualquer tentativa de justificar estas ações, exceto dizer que, se Maryland e os outros estados fronteiriços decidissem tornar-se independentes, a guerra podia estar perdida e a nação se desmembraria, deixando a Constituição desprovida de significado. Setenta e cinco anos mais tarde, no decorrer de outra crise grave para a nação, Franklin Roosevelt também fez o que tinha de ser feito, mentindo para esconder as suas ações de um público que ainda não estava preparado para seguir a sua liderança. No final da década de 1930, o Congresso e o público queriam manter uma neutralidade rigorosa, enquanto a Europa se preparava para a guerra, porém, Roosevelt compreendeu que a própria sobrevivência da democracia estava em risco. Secretamente, organizou a venda de armas aos franceses e assumiu um compromisso com Winston Churchill no sentido de usar a marinha dos EUA para proteger os navios mercantes que transportassem mercadorias para Inglaterra – uma clara violação da neutralidade. Tal como Lincoln, Roosevelt sentiu-se motivado pelo propósito moral, que significava uma visão moral para uma estratégia global. Sentia-se ofendido pela Alemanha nazi e era dedicado ao conceito de democracia. Contudo, para preservar os interesses e instituições americanas, formou uma aliança com a União Soviética de Estaline, um regime que em termos morais era tão depravado quanto o dos nazis. Ao nível interno, desafiou uma decisão do Supremo Tribunal e autorizou as escutas sem mandado, bem como a interceção e abertura de correio. Contudo, a sua violação mais ofensiva das liberdades civis foi autorizar a detenção e relocalização das pessoas de etnia japonesa, independentemente do seu estatuto de cidadania. Roosevelt não tinha quaisquer ilusões acerca do que estava a fazer. Estava a violar de forma implacável as regras da decência, na procura da necessidade moral. Ronald Reagan também seguiu um caminho implacável em direção a um objetivo moral. O seu objetivo era a destruição do que ele 42