Daniel Rohe Salomon da Rosa Rodrigues

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Pró-Reitoria Acadêmica
Escola de Saúde
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia
A Vingança na Música
Investigação semiótica na Ária 14 da Flauta Mágica de Mozart
Autor: Daniel Röhe Salomon da Rosa Rodrigues
Orientador: Prof. Dr. Francisco Moacir de Melo Catunda Martins
Brasília - DF
2015
A Vingança na Música
Investigação semiótica na Ária 14 da Flauta Mágica de Mozart
Autor: Daniel Röhe Salomon da Rosa Rodrigues
Orientador: Prof. Dr. Francisco Moacir de Melo Catunda Martins
Daniel Röhe Salomon da Rosa Rodrigues
A Vingança na Música
Investigação semiótica na Ária 14 da Flauta Mágica de Mozart
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação Stricto Sensu em
Psicologia, da Universidade Católica de
Brasília, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Francisco Moacir
de Melo Catunda Martins
Brasília – DF
2015
FOLHA DEIXADA EM BRANCO DE PROPÓSITO
DEDICATÓRIA
Dedico essa dissertação a todos aqueles que trabalham em prol do fim do sofrimento
humano.
AGRADECIMENTOS
Esse estudo é fruto de anos de colaboração junto ao Professor Francisco Martins, que
além de estar sempre disposto a debater questões sobre a prática clínica, ofereceu
sempre o melhor apoio para que os trabalhos tivessem continuidade. Sem suas
considerações sobre o resumo que seria enviado para o Centenário de Charles Sanders
Peirce no estado do Massachussets, no ano de 2014, provavelmente não haveria a
oportunidade de discutir o estudo na UMASS (Universidade do Massachussets) e, com
os contatos que foram realizados lá, ter aberto a parceria com a Universidade de
Helsinki.
Agradeço também ao Prof. Robert Innis que esteve entre os presentes na minha
apresentação em Lowell, MA, e que me levou a considerar um aprofundamento na
utilidade clínica desse estudo.
Quanto à Universidade Helsinki, cabe mencionar a honra que foi ter sido recebido pelo
Prof. Eero Tarasti em Janeiro de 2015 e em março, no 15º Seminário Internacional de
Significação Musical da Universidade de Helsinki, quando tive a oportunidade de
refletir sobre as tricotomias e os elementos de composição musical.
Os agradecimentos também vão para a Ópera Real de Estocolmo, que proporcionou um
belo espetáculo a partir da Flauta Mágica e que felizmente pude desfrutar em Janeiro de
2015.
A todos os professores da banca, por terem gentilmente aceitado o convite para estarem
comigo durante a construção desse trabalho e no seu momento de encerramento.
À família, na figura de meu pai (Ricardo) e mãe (Miriam), que me apoiaram e amaram,
desde sempre. Davi e Didier e aos parentes de Brasília, Rio, São Paulo e Anápolis, por
estarem próximos.
E finalmente, a todos os mestres e amigos, aos companheiros da Clínica Diálogo, da
Universidade Católica de Brasília e do PRODEQUI.
Daniel Röhe
EPÍGRAFE
Escuta, escuta, escuta!
(Die Zauberflöte, Ato II, Cena VIII, Aria 14).
RESUMO
A música é uma das possíveis formas de expressão dos sentimentos e afetos humanos e
a vingança é um dos afetos que podem ser expressos na forma musical. A
fenomenologia da música nos permite reconhecer os diversos personagens envolvidos
na construção disso que chamamos música. Com o método semiótico é possível
observar a ligação entre a dinâmica do afeto sentido nas crises vingativas e a formação
das ameaças na clínica psicanalítica com a dinâmica da partitura. Os elementos musicais
denominados ritmo, melodia e harmonia fornecem subsídios para a compreensão dos
afetos musicais. A compreensão dos diversos elementos presentes na Ária 14 da peça
“A Flauta Mágica” nos permitem compreender o problema da vingança por meio da
exposição de elementos musicais que mostram o funcionamento do afeto articulado com
questões da vida pessoal da personagem, no caso, a Rainha da Noite. Notamos que ela
não estará satisfeita apenas com a recuperação do objeto perdido que lhe implicou uma
ferida narcísica. Será necessário destruir todos aqueles que ameaçaram a estabilidade e a
segurança do seu eu.
Palavras-Chave: Mozart. Peirce. Vingança. Psicanálise.
ABSTRACT
Music is one of the possible ways to express feelings and human affects and revenge is
one of the affects that may be expressed in that way. The phenomenology of music
allows us to understand the many characters involved with this object we call music.
With the aid of semiotic analysis it is possible to observe the connection of the affect
felt by revengeful characters and the threat they usually make within the context of
psychoanalysys and in the musical score dynamics. The musical elements such as
rhythm, melody and harmony offer to us tools to understand those musical affects. The
comprehension of the many elements presented in the Ária 14 from "The Magic Flute"
allow us to visualize and comprehend the problem of revenge within the dynamics of
the musical elements that reveal the mechanics of the affect interwoven with questions
related to the personal life of the Queen of the Night. We may see that she does not
want only the Golden Circle back, the one that caused the narcissic hurt. It will be
necessary to destroy all those that presented the threat to her ego.
Keywords: Mozart. Peirce. Revenge. Psychoanalysis.
LISTA DE TABELAS
TABELAS
Tabela 1: A representação do tempo das notas musicais
Tabela 2: A Ária 14 da Flauta Mágica de Mozart em duas estruturas
Tabela 3: Ameça à Pamina na Ária 14
Tabela 4: O fechamento do primeiro e do terceiro momento da segunda
estrutura da Ária 14
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
ILUSTRAÇÕES
TOMO I
Figura 1: A relação entre a partitura, a ideia composicional e o afeto
Figura 2: Hino sáfico homenageando São João
Fotografia 1: Página 410 da História da Música Ocidental de Donald Grout e
Claude Palisca
Figura 3: Escalas e acidentes musicais
Figura 4: Ritmo e Verbo em relação ao Ciclo Temporal
TOMO II
Fotografia 2: Representação de um Círculo de Ouro fotograda no The
Metropolitan Museum, no dia 12 de julho de 2014
Figura 5: O pentagrama pathico do círculo da forma de Victor Von Weizsäcker
TOMO III
Figura 6: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus
Mozart, referente ao primeiro verso da Ária 14
Figura 7: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus
Mozart, referente ao segundo verso da Ária 14
Figura 8: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus
Mozart, referente ao terceiro verso da Ária 14
Figura 9: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus
Mozart, referente ao quarto verso da Ária 14
Figura 10: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus
Mozart, referente ao intervalo da voz, no quarto verso da Ária 14
Figura 11: Trecho referente ao intervalo entre os dois trechos puramente
musicais enunciados durante o quarto verso da Ária 14
Figura 12: Trecho referente ao segundo intervalo puramente musical durante o
quarto verso da Ária 14
Figura 13: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus
Mozart, referente ao quarto verso da Ária 14
Figura 14: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus
Mozart, referente ao quinto verso da Ária 14
Figura 15: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus
Mozart, referente ao sexto verso da Ária 14
Figura 16: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus
Mozart, referente ao sétimo verso da Ária 14
Figura 17: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus
Mozart, referente ao sétimo verso (extensão) da Ária 14
Figura 18: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus
Mozart, referente ao oitavo verso da Ária 14
Figura 19: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus
Mozart, referente ao nono verso da Ária 14
TOMO IV
Figura 20: O sentir da Rainha da Noite na primeira estrutura da Ária 14
Figura 21: Os verbos utilizados na ameaça à Pamina
Figura 22: O plano vingativo da Rainha em quatro momentos (Segunda
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estrutura)
Figura 23: Trecho da partitura referente ao primeiro verso da Ária 14
Figura 24: Trecho da partitura referente ao segundo verso da Ária 14
Figura 25: O sentir da Rainha da Noite referenciada na partitura da Ária 14
Figura 26: O primeiro e o segundo momento da segunda estrutura da Ária 14
Figura 27: Vértice superior do segundo momento da segunda estrutura da Ária
14: A ameaça à Pamina
Figura 28: Vértice inferior direito do segundo momento da segunda estrutura
da Ária 14: A ameaça à Pamina
Figura 29: Vértice inferior esquerdo do segundo momento da segunda estrutura
da Ária 14: A ameaça à Pamina
Figura 30: A invocação dos deuses da vingança
Figura 31: Intervalos entre as notas referentes à qualidade do sentir na fala
da Rainha da Noite na partitura da Ária 14
Figura 32: A Arquitetura da vingança e os invetvalos harmônicos na
declaração de Morte a Sarastro na partitura da Ária 14
Figura 33: Intervalos entre as notas referentes ao vértice superior do triângulo
que representa a ameaça à Pamina na segunda estrutura da Ária 14
Figura 34: Intervalos entre as notas referentes ao vértice inferior direito do
triângulo que representa a ameaça à Pamina na segunda estrutura da Ária 14
Figura 35: Intervalos entre as notas referentes ao vértice inferior esquerdo do
triângulo que representa a ameaça à Pamina na segunda estrutura da Ária 14
Figura 36: Os intervalos harmônicos entre as notas da partitura no trecho
referente ao chamado dos deuses da vingança na partitura da Ária 14
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SUMÁRIO
1 MÚSICA, ÓPERA E EXPRESSÃO DAS EMOÇÕES HUMANAS PELA VIA
DO MELOS E DO LOGOS ......................................................................................... 14
2 O SENTIDO PORVINDOURO: POR QUE OUVIMOS MÚSICA? ................... 24
3 MÚSICA E RUÍDO: UMA DIFERENÇA SUTIL ................................................. 26
4 “A NOITE DO MUNDO” E INEFABILIDADE DA MÚSICA VERSUS O
SIGNIFICADO MUSICAL A PARTIR DA QUALIA ............................................. 29
5 MÚSICA, EMOÇÃO E MOVIMENTO ................................................................. 34
6 FENOMENOLOGIA E TEMPOS SOCIAIS MUSICAIS .................................... 36
6.1 O COMPOSITOR, A IDEIA COMPOSICIONAL, A PARTITURA E O
TRABALHO MUSICAL ............................................................................................ 37
6.1.1 Composição e Perlaboração ........................................................................... 40
6.2 O INTÉRPRETE, A PERFORMANCE E O PROCESSO ACÚSTICO .............. 42
6.3 O OUVINTE E A CONCRETIZAÇÃO ............................................................... 44
6.3.1 A Escuta na Perspectiva Semiótica Peirceana................................................ 45
7 MÚSICA E SEMIÓTICA ......................................................................................... 48
7.1 DICOTOMIAS OU TRICOTOMIAS? ................................................................ 48
7.2 INTRODUÇÃO A CONCEITOS GERAIS DE SEMIÓTICA PEIRCEANA ..... 50
7.2.1 O Signo ........................................................................................................... 50
7.2.2 Objeto Dinâmico e Objeto Imediato e as Relações entre Signo e Objeto ...... 51
7.2.3 Interpretantes e suas relações com o signo..................................................... 52
7.3 QUESTÕES DE PRIMEIRIDADE: O QUALI-SIGNO, A QUESTÃO ICÔNICA
E A RELAÇÃO DA MÚSICA COM AS EMOÇÕES............................................... 54
7.4 A PARTITURA COMO SIN-SIGNO .................................................................. 55
7.5 LEGI-SIGNOS MUSICAIS ................................................................................. 58
7.5.1 Aspectos da Duração das Notas Musicais ...................................................... 64
7.5.2 Elementos da Dinâmica do Andamento das Notas Musicais ......................... 65
7.5.3 Aspectos Concernentes a Altura das Notas Musicais .................................... 66
7.5.4 Elementos para a Indicação da Intensidade das Notas Musicais ................... 67
7.5.5 As Escalas e os Intervalos Musicais ............................................................... 67
8 RITMO, MELODIA E HARMONIA DO PONTO DE VISTA DAS
TRICOTOMIAS PEIRCEANAS ................................................................................ 69
8.1 RITMO E PRIMEIRIDADE ................................................................................ 70
8.2 MELODIA E SECUNDIDADE ........................................................................... 73
8.3 HARMONIA E TERCEIRIDADE ....................................................................... 74
TOMO II – ANÁLISE DE UM CASO ....................................................................... 76
9 ESTUDO DE CASO SOBRE “A FLAUTA MÁGICA” ........................................ 76
9.1 WOLFGANG AMADEUS MOZART e EMANUEL SCHIKANEDER: A
AUTORIA DA PEÇA A FLAUTA MÁGICA ........................................................... 76
9.2 A FLAUTA MÁGICA E O CÍRCULO DE OURO ............................................. 77
10 A VINGANÇA E O IDEAL DO EU NO CONTEXTO DA CLÍNICA E O
CASO DA RAINHA DA NOITE ................................................................................ 81
10.1 ANÁLISE DO AFETO VINGATIVO DA RAINHA DA NOITE A PARTIR
DOS VERBOS PATHICOS......................................................................................... 87
TOMO III – DESCRIÇÃO DA PARTITURA PARA CANTO VOCAL (SOLO)
DA ÁRIA 14 DA “FLAUTA MÁGICA” .................................................................... 92
11 PARTITURA E EXPRESSÃO MUSICAL DA “FLAUTA MÁGICA” ............ 92
11.1 O PRIMEIRO VERSO ....................................................................................... 93
11.2 O SEGUNDO VERSO ....................................................................................... 94
11.3 O TERCEIRO VERSO ....................................................................................... 97
11.4 O QUARTO VERSO .......................................................................................... 99
11.4.1 O Quarto Verso (A) .................................................................................... 100
11.4.2 A Voz da Rainha da Noite (B) ................................................................... 102
11.4.3 O Quarto Verso (C) .................................................................................... 103
11.4.4 A Voz da Rainha da Noite (D) ................................................................... 104
11.4.5 O Quarto Verso (E) .................................................................................... 105
11.5 O Quinto Verso ................................................................................................. 106
11.6 O SEXTO VERSO............................................................................................ 107
11.7 O SÉTIMO VERSO.......................................................................................... 108
11.7.1 O Sétimo Verso (Extensão) ........................................................................ 109
11.8 O OITAVO VERSO ......................................................................................... 111
11.9 O NONO VERSO ............................................................................................. 113
TOMO IV – ANÁLISE ESQUEMATIZADA DA PARTITURA PARA CANTO
VOCAL (SOLO) DA ÁRIA 14 DA “FLAUTA MÁGICA” .................................... 115
12 MONTANDO O ESQUEMA DE ANÁLISE: O SENTIR E A ARQUITETURA
DA VINGANÇA ......................................................................................................... 115
12.1 PRIMEIRIDADE MUSICAL ........................................................................... 123
12.1.1 Primeiridade Musical, o Sentir e a Vingança ............................................. 123
12.1.2 Primeiridade Musical, a Ameaça e a Vingança.......................................... 127
12.2 SECUNDIDADE MUSICAL ........................................................................... 136
12.2.1 Secundidade Musical, o Sentir e a Vingança ............................................. 136
12.2.2 Secundidade Musical, a Ameaça e a Vingança .......................................... 137
12.3 TERCEIRIDADE MUSICAL .......................................................................... 141
12.3.1 Terceiridade Musical, o Sentir e a Vingança ............................................. 141
12.3.2 Terceiridade Musical, a Ameaça e a Vingança .......................................... 143
13 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 151
TOMO V – REFERÊNCIAS ..................................................................................... 156
ANEXOS ..................................................................................................................... 171
ANEXO A – PARTITURA DA ÁRIA 14 DA FLAUTA MÁGICA PARA FLAUTA,
OBOÉ, FAGOTE, TRUMPETE EM FÁ, TROMPA EM RÉ, TIMPANO EM RÉ E
EM LÁ, VIOLINOS, VIOLA, BAIXO E VOZ (SOLO) ......................................... 171
ANEXO B – A ÓPERA REAL DE ESTOCOLMO (SUÉCIA), À NOITE DA
APRESENTAÇÃO DA FLAUTA MÁGICA, NO DIA 14 DE JANEIRO DE 2015
.................................................................................................................................. 180
ANEXO C: ILUSTRAÇÕES DO FOLHETO VENDIDO NA ÓPERA REAL DE
ESTOCOLMO À DATA DA APRESENTAÇÃO DA FLAUTA MÁGICA, NO DIA
14 DE JANEIRO DE 2015 ....................................................................................... 181
14
TOMO I – PROLEGÔMENOS PARA UMA UMA SEMIÓTICA MUSICAL
1 MÚSICA, ÓPERA E EXPRESSÃO DAS EMOÇÕES HUMANAS PELA VIA
DO MELOS E DO LOGOS
Conhecer a música pela via de seu próprio sistema simbólico pode satisfazer a
necessidade de compreender experiências desprovidas de mediação pela razão, que
estão relacionadas ao problema da destruição e da vingança enquanto afeto (Kohut,
1972). Isso porque os elementos da dinâmica musical estão relacionados à vida interior
do ser humano (Salomonsson, 1989). Cabe, nesse momento, lembrar uma das metáforas
musicais elaboradas por Freud:
E o que é um afeto, no sentido dinâmico? Em todo caso, é algo muito
complexo. Um afeto inclui, em primeiro lugar, determinadas inervações ou
descargas motoras e, em segundo lugar, certos sentimentos; estes são de dois
tipos: percepções das ações motoras que ocorreram e sensações diretas de
prazer e desprazer que, conforme dizemos, dão ao afeto seu traço
predominante (Freud, 1996, p.103).
No caso, a edição Standard das Obras Completas de Freud traduz o termo
“Grundton” como “traço predominante”. No entanto, esse termo, no original, se refere à
escala musical1 (Salomonsson, 1989). Cada um dos tons musicais pode ser associado
com afetos específicos (Schubart, 1806).
Esses aspectos da vida pessoal e afetiva estão presentes no domínio pathico,
que afeta os processos de tomada de decisão do indivíduo (Weizsäcker, 1958). A
expressão feita a partir do domínio pathico é feita por verbos modais que, enquanto
metamodais, também estão articulados à atribuição de significado à musica (Tarasti,
2012). Isso implica que verbos como querer, poder e dever estão presentes na dinâmica
pathica da vida pessoal e no ato de atribuição de sentido. Assim, é possível estabelecer
uma relação de similaridade entre o domínio pathico e o sentimento2 (Tatossian, 1979).
Esse sentimento puro carece de processos de significação sofisticados que permitem a
descrição dele. Esse sentimento é conhecido como estado puramente afetivo (Maine de
1
2
Keynote.
Feeling.
15
Biran, 1920). Ele é próprio ao domínio da música quando dizemos que comentários
sobre ela, feitos sob a forma verbal, já fazem com o que estado mais puro se desfaça,
assumindo uma forma verbalizada. Portanto, do ponto de vista semiótico, a relação
entre música e afeto é icônica, já que em ambos os contextos estamos no domínio da
qualia. Dessa maneira, é possível afirmar que há semelhanças entre ambas (Kruse,
2007). Assim, a música pode possibilitar uma significação que mostre um sentimento
por meio de sua relação de semelhança, enquanto signo, para com o afeto sentido pelo
ser humano (Santaella, 2001).
Jean Philippe Rameau, compositor romântico francês que compôs a célebre
“Les Indes Galantes” em 1736, nos disse que “a verdadeira música fala a linguagem do
coração” (Riding & Dunton-Downer, 2010). Marin Mersenne (1636) já havia concluído
que a música é forma de expressão mais apropriada e mais natural para descrevermos as
paixões humanas.
Marie-France Castarède, em “Les Vocalises de la passion – Psychanalyse de
l’opéra”, nos traz uma visão primordializada acerca da música, como um campo
essencialmente original. Ela coloca que “entregar-se à música, senti-la, apreciá-la, é
permitir a manifestação de fortes sentimentos que existem em todos nós e deixar que ela
nos leve para um mundo psíquico que é anterior ao da linguagem, onde apenas as
emoções valem3.” (Castarède, 2002, p. 13).
Assim, ela defende a posição de que o melos antecede o logos, ou seja, de que
existe um primado ontológico da música sobre as palavras. Algumas óperas foram
escritas sobre essa questão. Uma delas é conhecida pelo nome “Prima la musica, e poi
le parole”, de Antonio Salieri, que estreou em Viena em 1786. O “Capriccio” de
Richard Strauss também aborda a problemática, só que num sentido de dúvida: qual tem
primazia sobre a outra? (Parker & Abbate, 2012). A ópera de Salieri sugere que toda
fala deve estar fundada em um som de forma que possa ser escutada. A de Strauss
aponta que não podemos ignorar nenhum dos dois recursos para compreender a
formação do sentido da peça.
Castarède coloca também que “ritmo e canto estão intimamente ligados desde
as origens da expressão humana4” (Castarède, 2002, p. 23). Dessa maneira, o canto é a
única forma de expressão ligada diretamente às origens da música e da fala (Castarède,
3
S’abandonner à la musique, la ressentir, en jouir, c’est abandonner à des sentiments puissants qui
existent en chacun de nous et qui nous ramènent dans un monde psychique d’avant le langage où seules
les émotions comptent.
4
Rythme et chant sont indissociablement liés aux origins de l’expression humaine.
16
2002). Segundo Jean Jacques Rousseau, o canto também está ligado às origens da
comunicação humana: “As primeiras línguas foram cantadas e apaixonadas antes de
serem simples e metódicas5” (Rousseau, 1781, p. 11).
Nesse sentido, a origem do processo de formação das línguas e de toda
comunicação humana está fundada num enlace entre dois aspectos: ritmo e canto. O
canto ritmizado é repleto de sentido, o que sugere uma significação específica a partir
dos aspectos rítmicos presentes na fala (Santaella, 2001).
Se, por um lado, a linguagem verbal comunica aquilo que é sentido por meio
do logos, os padrões musicais se assemellham aos padrões emocionais (Noy, 1979) e,
portanto, irão expressar o que é sentido pela via do melos. Enquanto as línguas
humanas, como o português e o inglês, são capazes de comunicar um determinado
significado por meio do aspecto convencional da língua, estabelecido nos dicionários –
ainda que haja o problema da polissemia (Santaella, 2001), aquilo que um ouvinte sente
ao ouvir uma música pode variar devido a diversos aspectos – que podem resultar, por
exemplo, da posição que o ouvinte ocupa no teatro onde ele está escutando uma peça ou
então do conhecimento total de música que o ouvinte possui em relação a quem
desconhece elementos de notação musical (Ingarden, 1966). Entretanto, é possível dizer
que existe coerência entre o significado colocado pelo autor e aquele elaborado pelo
ouvinte no ato de escuta, como podemos observar na tese de Serge Lacasse, orientada
pelo musicólogo Philip Tagg6 (Lacasse, 2000): “‘Listen to My Voice’: The Evocative
Power of Vocal Staging in Recorded Rock Music and Other Forms of Vocal
Expression”.
Ao ouvirmos uma música, podemos sentir algo que é de ordem fisiológica,
como uma reação ao estímulo musical, que pode ser tristeza, alegria, excitação,
suspense, etc. Aksnes (2001) coloca que esse é sentido atribuído com o corpo7. Essas
reações podem variar a cada vez que o ouvinte entra em contato com o mesmo estímulo
musical ou então quando analisamos diferentes sujeitos em contato com o mesmo
estímulo ao mesmo tempo (Ingarden, 1966). Por exemplo, na cena em que Igor
Stravinsky está apresentando sua nova peça no filme Coco Chanel & Igor Stravinsky,
Gabrielle (conhecida como Coco Chanel) se sente estranhamente cativada pelo
espetáculo enquanto que a plateia, de forma geral, se sente ofendida e torna a declamar
5
Les premières langues furent chantantes et passionnées avant d’être simples et méthodiques.
Philip Tagg é professor de musicologia e foi homenageado no ano de 2014, no Congresso Internacional
de Numanities, na Lituânia, devido à importância de sua obra para a área de Significação Musical.
7
A esse processo de significação chama-se, em língua inglesa, de embodied meaning.
6
17
desaforos e a sair do teatro com desgosto relativo à apresentação. O argumento de Kant
(1764) para essa diferenciação no aspecto da apreciação de um mesmo objeto aponta
para a disposição do sujeito para apreciar um objeto específico, como uma peça
musical. A interpretação do sentido musical, por sua vez, requer a aplicação de
conceitos técnicos relacionados à música e à notação musical (Santaella, 2001; Tagg,
2011), o que sugere a possibilidade de uma atribuição de significado à música que seja
coerente com aquele contido no trabalho de composição musical. Isso porque aquilo que
é expresso musicalmente por uma orquestra em ação deve se manter fiel a uma norma
que está posta na partitura que, por sua vez é um índice da ideia composicional
(Ingarden, 1966). O aspecto da fidelidade garante a coerência em parte, uma vez que ela
se restringe ao nível do intérprete. Mas o ouvinte deverá conhecer os elementos
apresentados na peça para então atribuir o sentido a ela, o que só pode ser feito caso o
intérprete seja fiel à partitura. Dessa maneira, caso o intérprete execute a peça
corretamente, e o ouvinte tenha conhecimentos musicais suficientes de forma que ele
saiba dar o sentido à peça (Tarasti, 2012), o significado musical proposto pelo primeiro
poderá ser alcançado pelo segundo.
A ópera, por sua vez, abre uma possibilidade diferenciada de significação, já
que permite a integração entre melos e logos em seu contexto de expressão uma vez que
há o entretecimento entre texto e música nas conhecidas Árias, como em, “A vingança
do inferno incendeia meu peito8” da Flauta Mágica, de Mozart, e “Ninguém dorme9” da
Turandot, de Giacomo Puccini. No contexto das produções operísticas as famosas Arias
se opõem conceitualmente aos Recitativos. A Ária envolve tanto o canto lírico com
como a execução da partitura por parte de uma orquestra dirigida pela figura do regente.
O Recitativo, cujo aspecto exclusivo é o discurso verbal – além é claro de outros
aspectos cênicos, que também ocorrem durante a Ária, e da questão da tonalidade do
canto, não possui acompanhamento orquestral, podendo vir com o acompanhamento de
um instrumento de cordas (como o cravo), ou com a voz nua (Castarède, 2002).
A ópera, entre as artes, é a que faz uso do maior número de elementos e,
portanto, é a mais completa e complexa, uma vez que ela reúne aspectos de cenário,
figurino, musica e texto. Ela pode nos oferecer recursos para analisar e compreender o
aspecto afetivo do ser humano que se encontra ferido (Whitehead, 1978; Chumaceiro,
1992). Na ópera, o canto se faz presente de forma marcante por meio de artistas
8
9
Der Hölle Rache kocht in meinen Herzen.
Nessun Dorma.
18
internacionais desde o século XVII quando a voz exprimiu sob a forma musical as
experiências afetivas e emocionais de maneira evidente. A voz pode ser encontrada nos
corais, nos recitativos e nas Árias (Castarède, 2002).
Essa forma complexa de arte começa a surgir como fruto do Renascimento
Italiano na última década do século XVI. Nesse cenário, um grupo de artistas plásticos,
músicos e poetas, membros da chamada Camerata, empenharam-se em reavivar o teatro
grego, na forma da opera in musica10 (Parker & Abbate, 2012). O Conde Bardi,
Vincenzo Galilei11, especialista em teoria musical, e Girolamo Mei, pianista, eram
nomes de destaque do pensamento filosófico da Itália que deu luz à ópera. À época do
surgimento dessa forma de expressão artística, e particularmente em Veneza, eram
utilizados termos como attione in musica, festa teatrale, dramma musicale, favola regia,
tragedia musicale ou opera scenica para designá-la (Rosand, 1991). O termo “ópera”
apenas passou a ser usado de forma consistente no século XIX (Parker & Abbate, 2012).
O Orfeo de Angelo Poliziano, cuja partitura hoje está perdida pode ser
considerado o marco histórico do surgimento da ópera, porque data de 1480. Nessa
época, em Florença, a intenção de reviver a tragédia grega na forma musical crescia em
interesse. Mas talvez não se tratasse ainda de ópera propriamente dita, o que nos leva a
questionar se podemos escolher o final do século XV como época do nascimento dessa
forma de arte.
Conta-se que houve grande festa promovida pela família Medici, no ano de
1589, que durou três semanas, cujo climax foi uma apresentação da peça cômica, La
pellegrina, que usou recursos da dança, do canto solo, de cenários elaborados e de
madrigais. Apesar das influências do teatro e de proto-óperas que já existiam, esse
momento também pode ser considerado como um marco, mas não apenas pelo critério
da data, e sim porque surgiu algo novo. Essa nova forma artística, que de fato surgiria
em Florença, exigia a narrativa teatral e que todos os atores cantassem – e cantassem o
tempo inteiro.
As primeiras óperas de fato teriam sido a Dafne, escrita por Ottavio Runiccini,
com música de Jacopo Peri e Jacopo Corsi (datada de 1598) e a Euridice, de Rinuccini,
com uma partitura composta por Peri, e outra por Giulio Caccini. Esta foi a primeira a
ser oficialmente publicada, o que lhe dá o título de primeira ópera pelo critério da
divulgação oficial da composição, nos remetendo ao ano de 1600 como o marco do
10
11
uma obra musical.
Pai de Galileu Galilei, que herdou do pai a paixão pela física do som.
19
surgimento oficial da ópera, nova arte. No entanto, sete anos mais tarde, em 1607 a
primeira ópera é estreada em Mântua, na Itália. Algo nascia de forma ainda mais
especial. Sob composição de Claudio Monteverdi, músico já de renome na Europa, a
peça L'Orfeo surge no contexto de inovação e do surgimento de uma nova forma de
arte, pelas mãos de um artista com vasta experiência de composição musical. Em
L'Orfeo vemos traços da festa dos Medici, assim como aspectos do recitar cantando,
mas com o refinamento musical que apenas um grande mestre poderia ter criado (Parker
& Abbate, 2012).
Em 1637, Veneza inaugura o seu primeiro teatro de ópera. Menos de 70 anos
mais tarde já havia na cidade 17 casas de ópera. Na França, Luís XIV, o Rei Sol,
contratou Jean-Baptiste Lully para compor óperas francesas, entre elas “Alceste ou o
triunfo de Alcides”. Henry Purcell compôs a primeira ópera na língua inglesa em 1689,
intitulada “Dido e Aeneas” (Kobbé, 1997). A difusão da ópera se deu no percurso dos
movimentos nacionalistas, como no caso da Alemanha e da Rússia (Leitão, 2009).
Surgiria depois a opera seria, que se diferenciava do modelo da Poppea de
Monteverdi e da ópera veneziana tardia por possuírem menos personagens e uma
quantitade menor de formas musicais (Parker & Abatte, 2012). As óperas do tipo seria e
buffa marcaram a evolução do estilo recitar cantando a partir do século XVIII, período
em que a ópera inspirou grandes paixões e guerras ideológicas como a querela dos
bufões12. A buffa foi inicialmente uma forma cômica que servia como descanso entre os
atos das óperas do tipo seria. A fonte de seriedade nesta se torna fonte de riso naquela: o
comportamento apropriado de acordo com o status social.
Žižek e Dolar (2002) explicam que, enquanto a opera seria prima pela
transcendência, a buffa se baseia na estrutura da imanência – o mesmo argumento pode
ser encontrado em Nagel (1985). A seria se baseia na relação distante entre o sujeito e o
outro, entre o social e a sua transcendência. O enredo irá se desenrolar na troca entre os
dois e terminará na resolução dessa distância pelo ato de misericórdia. Por outro lado, a
democrática buffa mostra uma perspectiva de equidade dentro dos limites dos homens e
seus comuns. Ela é uma arma para mostrar o papel de ridículo desempenhado por
pessoas com qualidades que não correspondem ao seu status social e que não se provam
12
Esse episódio dividiu o público frequentador dos espetáculos parisienses em dois. De um lado, os
defensores da ópera italiana que defendiam a reformulação do teatro lírico no sentido da valorização das
melodias baseadas em temas cômicos e do cotidiano, se juntaram a Diderot, D'Alambert e Jean-Jacques
Rousseau. Do outro, haviam os defensores da ópera francesa tradicional, Voltaire e Jean-Philippe
Rameau, seguindo os moldes de Jean-Baptiste Lully. A carta sobre a música francesa de 1753, de JeanJacques Rousseau, é um dos registros históricos sobre a querela.
20
merecedoras de participar da cena social. Mozart, gênio inquestionável da composição
operística e com quem a ópera atingirá o seu auge, irá se valer, além da seria e da buffa,
do Singpsiel, gênero musical alemão que não possuía uma forma definida, misturando
elementos do folclore alemão, dos arranjos velozes da buffa, da coloratura complexa da
seria e de composições solenes para o coro (Apel, 2000).
No canto, elemento caro à ópera, podemos notar que, em virtude da presença
do logos, temos fonemas que marcam a presença de uma língua particular, como o
alemão ou o italiano. No caso do melos, temos uma característica mais ligada aos traços
genéticos da espécie humana, que é capaz de cantar um intervalo específico de tons,
conforme a técnica de cada cantor. É preciso então compreender o domínio do logos
segundo a sua forma específica e a partir de áreas de estudo como a gramática e a
linguística, enquanto que o estudo da sonoridade exige uma lógica diferenciada e deve
ser estudada do ponto de vista da teoria musical (Žižek, 2004).
O entretecimento entre o libretto musical e a emoção expressa musicalmente
permite uma ampla análise da dinâmica afetiva humana por meio de um estudo
detalhado da lógica dos legi-signos musicais utilizados, sob a forma de réplicas, em uma
composição real. Diversos estudos explicaram e descreveram determinadas lógicas
humanas pela via de composições clássicas que, propositadamente veiculam
significados específicos, como a comédia social representada no Quarteto em Mi Menor
de Joseph Haydn13 (Robinson, 2000), o amor adúltero em Tristan und Isolde (1858) de
Richard Wagner, a paixão entre amantes de diferentes idades em La Damnation de
Faust (1846) de Hector Berlioz (Castarède, 2002), o sentimento de nacionalismo como
na Segunda Sinfonia de Jean Sibelius (Tarasti, 199914), o lamento em Dido and Aeneas
(1689) de Henry Purcell (Monelle, 1991; Aksnes, 2001) que, possui uma linha vocal
“cheia de sofrimento com trítonos lacrimejantes e cromatismos desesperados 15”
(Castarède, 2002, p.83).
O entretecimento entre música e libretto se aplica na proposta da própria
experiência de apreciação operística, proposta por Hector Berlioz, expoente do
romantismo francês na música, que defendia que a platéia deveria ter conhecimento do
13
Ainda que o quarteto de Haydn não possua uma parte em texto ela é apontada como uma peça
essencialmente humorística (Robinson, 2000).
14
Apesar de Sibelius ter negado qualquer conteúdo programático em suas sinfonias, à 2ª é atribuída o
senso de nacionalismo (Tawaststjerna, 1976).
15
plein de souffrance avec ses tritonts sanglotant et son chromatisme désespéré.
21
texto a ser entoado pelos atores durante a ópera antes que fosse realizada a perfomance.
Dessa forma, os ouvintes poderiam dar atenção aos aspectos da peça que estivessem
presentes apenas durante a ação, enquanto o texto permanece inalterado e acessível,
antes e depois da peça (Riding & Dunton-Downer, 2010).
Guillaume (1984) defende que a compreensão verbal, do ponto de vista lógicoverbal, ocorre num processo que se divide em três momentos: in posse, in fieri e in esse.
A terminologia extraída do latim significa que, primeiramente, o saber está apenas ao
nível de potência, é virtual – in posse. Enquanto está sendo feita a aquisição do saber,
diz-se que está ocorrendo de maneira atualizada, no gerúndio do in fieri. Quando a
aquisição está completa, então a noção verbal já está in esse, implicando que o sujeito
tem posse do saber. O que Berlioz defendia é que o enredo do libretto estivesse na fase
in esse quando o expectador se dirigisse para o espetáculo. A proposta de Berlioz para a
compreensão do evento musical enviesa a percepção da obra de arte na tentativa de
uniformizar a compreensão que os diferentes indivíduos da plateia terão por meio da
redução do sentido da peça ao significado contido no texto. A leitura prévia pode
também servir como suporte para uma experiência diferenciada, uma vez que os temas
musicais podem se associar a personagens contidos no texto (Sousa, 1999). Segundo o
crítico de ópera Rodney Milnes, nós vamos à ópera para ouvir e observar o espetáculo, e
não para ler (Parker & Abatte, 2012).
O entretecimento entre música e libretto na ópera pode ser observado nas
produções do Leitmotiv e do Erinnerungsmotiv, que são também evidências da
existência de significados musicais determinados. O termo Leitmotiv foi criado por
August Wilhelm Ambros e serve para descrever o efeito produzido pela música
programática de Liszt e pelas óperas de Wagner. No entanto, o termo só foi
popularizado nos tratados de Hans von Wolzogen, os “Thematischer Leitfaden” (Meyer,
2009). O antecedente formal deste modelo é a idée fixe, utilizada por Hector Berlioz na
Symphonie fantastique (1830), na qual um tema, apresentado no primeiro andamento,
representa a intensidade da paixão do artista ao longo da mesma obra (Sousa, 1999).
Carl Maria von Weber e Louis Spohr utilizaram em suas peças a noção do
Erinnerungsmotiv, que é o uso recorrente de um motivo para relembrar uma
personagem ou os seus sentimentos (Sousa, 1999). Weber havia regido, em Praga, a
estreia de uma peça romântica com enredo alemão: Fausto, de Spohr, mas foi Weber
22
que compôs a primeira grande ópera romântica alemã: O Franco-Atirador16. Spohr
desenvolveu uma técnica de composição em que a música acompanha o texto. Nesse
sentido, a música fica entreleçada com os motivos semânticos da obra (suas ideias,
imagens e cenários descritos no libretto). No caso do Erinnerungsmotiv, podemos
relacionar a melodia-motivo com referência ao enredo e as suas personagens, de forma
que a música assume uma função indicial. As obras de Weber projetaram a ópera
germânica na nova estética de sua época: O Romantismo. Seu trabalho influenciou
posteriormente o pensamento de Richard Wagner, compositor de música dramática
alemã (Sousa, 1999).
No contexto de produção de óperas germânicas em que encontramos o
Leitmotiv e o Erinnerungsmotiv, é preciso apontar que se distinguem, enquanto
programáticas, da música absoluta. Na primeira, as frases musicais portam informação.
Apesar do termo “programático” ter sido cunhado por Richard Wagner, após a era
Mozart, é possível dizer que essa proposta de composição com conteúdo não está
restrita à época wagneriana, já que podemos falar de significados musicais anteriores à
Wagner (Everett, 1991). A música programática é conhecida como drama musical, que
requer o entretecimento da harmonia, com o ritmo, a melodia e o logos (Dahlhaus,
1989). Com relação à segunda, Hanslick (1922) e Hoffmann (1810) colocam que ela é
uma música enquanto forma de arte autônoma, constituída por “movimentos
instrumentais17”. Ambos se opuseram a Wagner que, por sua vez, preferia usar o termo
música absoluta18 (ainda que em alemão "Musik" e “Tonkunst" sejam sinônimos).
Hanslick (1922) e Hoffmann (1810) usaram o termo “Tonkunst" para se refererir à
música enquanto uma arte19 que consiste especificamente num trabalho em torno da
tonalidade musical20, opondo-se assim à visão de Wagner que via a música –
programática, enquanto integradora dos aspectos tonais, gestuais e verbais (Bonds,
2014).
Se a música carece de um sistema semântico convencional, ainda assim ela
pode enviar mensagens precisas a partir do contexto que enuncia. Ou seja, a partir da
compreensão musical de uma determinada peça é possível apontar elementos precisos
de significação – o que é apoiado pela noção de idée fixe. Por outro lado, não se trata de
16
Der Freischütz.
Absolute Tonkunst.
18
Absolute Musik.
19
Kunst.
20
Ton.
17
23
uma significação universal uma vez que os mesmos elementos musicais podem ser
recombinados e serem utilizados em um contexto diferente que irá produzir uma
significação necessariamente diferente, uma vez que irá se tratar de outra peça
(Ingarden, 1966). Isso implica que uma sequência de três notas em intervalos melódicos
descendentes de meio tom, marcados, por exemplo, por uma quinta aumentada sobre a
escala de Fá Maior, pode ter um sentido diferente se estiver seguida por uma sequência
de sétima aumentada numa peça, e se forem seguidas por uma terça aumentada em
outra. Nesse sentido, a compreensão de uma frase musical de uma ópera fora do
contexto em que ocorre e ignorando o libretto a que se remete se torna uma tarefa
desfavorável à compreensão da composição musical. Assim, no contexto da ópera, a
significação musical não pode se distanciar da possibilidade de significação verbal. Elas
devem ser analisadas conjuntamente, ainda que a música permaneça ilustrada pela
partitura, e as palavras, pelo libretto.
24
2 O SENTIDO PORVINDOURO: POR QUE OUVIMOS MÚSICA?
Na obra de Kurt Huber, “Der ausdruck musikalischer elementarmotive, eine
experimentalpsychologische untersuchung” (1923), os sentidos atribuídos a uma música
envolvem a mudança tonal. A percepção do movimento tonal indica a direção, que é o
ponto de partida do simbolismo psicológico da música, a partir da qual é possível
identificar as emoções humanas articuladas a determinados arranjos musicais. Assim,
em determinadas situações, como a da ópera, a música não apenas guarda em si um
contexto semantizado, mas aponta para um sentido que está porvir, que se forma
devenindo.
Nesse sentido, podemos colocar a asserção de que a expectativa de um
determinado som na sequência melódica pode influenciar a forma que o ouvinte a
escuta (Schellenberg, 1996). O aspecto da expectativa como influência de determinada
experiência temporal no presente remete ao próprio conceito de protensão em Husserl
(1928) e, em virtude disso, podemos falar de um efeito que é gerado pela música que se
confunde com as disposições prévias no indivíduo (Ingarden, 1966).
O conceito de Ponto Azul, nascido nas correspondências entre Eugène
Delacroix e Frederic Chopin, e que se define enquanto uma metáfora do porvir, foi
explorado psicanaliticamente por Didier-Weill (1999) e nos remete também à noção de
protensão em Husserl (1928). Eles podem ser postos em discussão com a noção da
direção do movimento tonal, uma vez que ele é um aspecto que influencia na direção do
movimento humano e na experiência do tempo do sujeito. O conceito husserliano de
protensão nos fala a respeito da experiência do tempo, e de como esse tipo especial de
futuro influencia a experiência do tempo no presente.
Por sua vez, o Ponto Azul se configura com um devir. Podemos dizer que ele
encerra uma esperança, e não apenas um desejo relacionado a um objeto. Isso se deve
ao fato de que a esperança está associada ao sentimento de probabilidade (de algo
ocorrer num evento futuro). Na esperança, não é apenas o objeto que funciona como
gratificação, mas a própria probabilidade se torna um motor para colocar a pessoa em
atividade. A questão da promessa enquanto possibilidade se remete a algo que é novo,
que não está presente agora, mas sim no futuro. Essa possibilidade de uma nov(a)-idade
é o ponto azul, que move a pessoa para além do objeto posto no presente do indicadivo,
na realidade atualizada (Didier-Weill, 1999), em um condicional futuro, o que nos
remete ao interpretante final de Peirce e, dessa maneira, à ideia de uma tendência
25
interpretativa (Romanini, 2006).
Como as qualidades afetivas possuem relação de semelhança com as
qualidades musicais e por estarmos nos referindo em ambos os casos a qualidades que
são signos, (rementendo–nos ao conceito de quali-signo e do ícone, de Charles S.
Peirce), a variação tonal e a expressão musical atual direcionam o processo psíquico
para a compreensão da emoção que ela expressa, e que é o objeto com o qual a música
possui relação de semelhança (Santaella, 2001), o que sugere a presença da
primeiridade e da secundidade peirceanas. Nesse contexto, a compreensão do sentido
musical geralmente é garantida, de forma que é possível observar a coerência entre o
sentido que se quis expressar pela música e o sentido percebido por sujeitos colocados
na posição de ouvintes (Lacasse, 2000).
A identificação de determinada emoção, por meio da relação de semelhança,
acaba influenciando na própria percepção, enquanto ato que se dá no presente do
indicativo: qual sentimento a música evoca? A partir da noção do ponto azul, a
esperança de que algo que esperamos que aconteça pode não ser vã e influencia a
experiência no tempo do presente, no sentido da (e)moção a ser vivida. Não nos diz a
expectativa musical algo sobre a própria esperança humana? A música ouvida pode
gerar um efeito na ordem do sentir e da compreensão.
Diversos estudos também apontam para uma expectativa de prazer ligada à
repetição do ritmo musical (Wundt, 1897; Freud, 1914; Ranck & Sachs, 1915; Coriat,
1945; Faber, 1996; Santaella, 2001). Para Faber (1996), o prazer ligado à escuta musical
se faz pela lembrança do estágio uterino e de quando o bebê ainda mama e está
protegido pela mãe. No período pré-natal, a comunicação entre mãe e bebê ocorre por
meio de ritmos (Castarède, 2002). Após o nascimento, mãe e bebê continuam se
comunicando por sons, marcando a primazia do melos sobre o logos na história da
comunicação humana. Enquanto o melos é puramente musical, irá envolver uma série
de experiências temporais ligadas a algum tipo de ritmo orgânico. Essa experiência
ligada à infância está diretamente ligada com o narcisismo primário é a ligação do polo
Eu-sujeito com o prazer (Freud, 1915). A introdução do não-materno irá gerar uma
ruptura dessa forma de se comunicar, impondo à criança que passe a usar palavras, de
forma que possa se socializar com pares, ou seja, com outras pessoas além de sua mãe
(Freud, 1923).
O prazer se coloca como elemento que favorece a repetição e, dessa maneira, a
escuta de sonoridades ritmizadas gera prazer e segurança, ou o que Gilbert Rose (1991)
26
chama de nyama, o que remete a uma força universal ligada com as vivências
intrauterinas. A relação entre o prazer e o ritmo acaba por gerar um ciclo atrelado à
energia vital.
A escuta musical permite a entrada no universo das fantasias e também nas
simbolizações sexuais (Ranck & Sachs, 1915). Há uma economia psíquica que permite
o acesso às fantasias, já que a comunicação verbal exige uma interpretação ligada a
palavras, enquanto que a música permite o acesso ao nyama de forma mais rápida, pois
se articula com um canal expressivo ontologicamente primeiro
. Assim, o aspecto
protensivo marcado pelo retorno à matriz da força vital e a recarga energética do corpo
por meio da sensação de prazer que estão presentes no ato de escuta musical, e em
especial do ritmo, motiva o ser humano a ser um ouvinte de música.
3 MÚSICA E RUÍDO: UMA DIFERENÇA SUTIL
Do ponto de vista do que é isso que nos move e nos afeta, o que podemos
reconhecer como diferença entre aquilo que é ruído e o que é o som, para nos
aproximarmos da música enquanto objeto de arte? Helmholtz (1912) afirma que o som é
oriundo apenas de instrumentos musicais, enquanto o ruído se apresenta como uma
combinação irregular desprovida de intencionalidade musical. O ruído também carece
de uma partitura e de um trabalho de composição musical. A música, por sua vez, é
membro de um grupo de expressões humanas a que podemos chamar artes.
No entanto, o ruído pode possuir algo semelhante ao processo acústico que é o
efeito que a execução de uma peça musical gera, e que pode ser percebido pelo ouvinte.
Por outro lado, a música, devido ao seu caráter intencional, produz uma sonoridade
regular o que é uma condição necessária para toda e qualquer música, mas que não é
necessária para a definição de ruído, já que este não requer regularidade sonora. A esse
aspecto de regularidade damos o nome de ritmo, sem o qual não se pode instalar uma
melodia. Segundo Santaella (2001): “o som se distingue do ruído porque é produzido
por vibrações regulares do ar, enquanto no ruído as vibrações são irregulares” (p. 167).
Helmholtz (1912) alerta para o fato de que a divisão entre o que é ruído e o que
é música é tênue e pode ser flexibilizada. Como não haveríamos de chamar de música a
peça 4’33’’de John Cage, em que podemos escutar apenas os sons gerados pela plateia
enquanto que, do palco onde estão os músicos, não se pode escutar uma nota musical
27
sequer? (Santaella, 2001). A estética do silêncio aplicada à composição musical no
âmbito da arte não se aplica à lógica da composição de forma a questionar a sua
existência enquanto arte. Sendo assim o reconhecimento de 4’33’’ como música não
destitui o trabalho composicional de Mozart do seu caráter de “ápice da formalidade
artística”, no caso das obras sacras de Mozart. No entanto, é permitido a John Cage a
inserção na esfera artística com a sua arte contemporânea que gera ruptura com os
modelos formais de composição artística (entre eles a ideia de regularidade sonora). O
alerta de Helmholtz (1912) no sentido da flexibilização entre música e ruído pode ser
aplicada nessa questão e permite que determinadas composições da música
contemporânea sejam também consideradas como música, e não como ruído puro. No
entanto, é impossível aplicar a noção de ruído a uma execução de qualquer peça de
Mozart que possa ser ouvida com alta qualidade de reprodução, uma vez que as
composições do austríaco são consideradas o ápice do perfeccionismo da composição
musical (Einstein, 1945).
Susanne Langer (1957) apresenta uma discussão em torno da diferença entre
uma obra que pode ser considerada arte e outra que não pode. A arte tem a preocupação
com a perfeição aos limites do que o ser humano pode alcançar, enquanto objetos nãoartísticos podem ter apenas uma preocupação funcional. Hegel (1842) apontaria que a
necessidade de produção artística surge do impulso do homem de produzir uma imagem
de si e da natureza para si mesmo. Apesar de ela possuir uma essência morta, ela pode
aparentar estar viva. No entanto, não é o seu aspecto mortificado que a faz dela arte,
mas sim o fato de ter sido batizada pelo espírito humano. Hegel (1842) iria ainda
acrescentar um reforço ao argumento da semelhança entre música e emoção, já que a
primeira se preocupa com os movimentos completamente indeterminados do espírito
interior e os seus sons são como sentimentos, sem pensamentos. Sendo assim, para
dizermos que um som é artístico, ele deve representar algo da natureza espiritual do
homem para ele mesmo.
Podemos também considerar como música apenas aquela que tem
preocupações formais ligadas ao convívio social permitido em que os sujeitos possuem
a ânsia em realizar suas obrigações e seus deveres para com a sociedade com quem
convivem,
marcados
pela
vontade
destinada
ao
dever
moral
no
sentido
weiszackeriano21. Na Grécia Antiga, a Doutrina do Etos trazia essa noção de que a
21
Sollen como dever moral.
28
música exercia um efeito na formação moral das pessoas (Grout & Palisca, 1994).
Assim, a música é dedicada àqueles que intentam para a manutenção das noções da
ética, da moral e dos deveres, e não para a transgressão desses, marcando um dos papéis
sociais da música: a preservação de costumes que promovem o bem-estar social. Nesse
sentido, para além da aspiração à musa e perfeição estética, a música possui
preocupações ligadas à moral humana. Na Grécia Antiga corria o ditado, que brinca
com o trocadilho em torno da palavra nomos, que signifca costume ou lei, mas que
também designa o esquema melódico de uma canção lírica ou um solo instrumental:
“deixai-me fazer as canções de uma nação, que pouco me importa quem faz suas leis”
(Grout & Palisca, 1994, p.21).
Podemos mencionar, num período da história da música mais recente, uma
abertura para expressões mais livres, que fogem aos moldes tradicionais de composição
de uma época anterior, típico das revoluções artísticas (Santaella, 2001) e que, como
vimos parágrafos acima, implicam a distinção entre música e ruído puro. Cláudio
Santoro, conhecido compositor brasileiro utilizou o método criado pelo compositor e
escrito Arnold Schönberg, criador do método dodecafônico que, segundo Santaella
(2001) eliminou toda tonalidade que era utilizada na composição musical. O processo
de significação musical, para Schönberg, deriva tanto da tonalidade quanto do aspecto
motívico. Arndt (2014) sugere uma continuidade entre a música do período tonal e a
músical pós-tonal a partir de uma metodologia de análise motívica e de uma
compreensão das sucessões harmônicas. Segundo Schönberg, na arte representamos
algo sem limites lançando mão de recursos que cercearão o objeto a ser indicado. Nesse
sentido, o recurso é a matemática. No entanto, com ela, é provável que não estejamos
lidando de forma adequada com a ordem natural da liberdade, da irregularidade do que
é livre (Schönberg, 1911).
Face à limitação aparente por conta da aritmética, Schönberg propõe inovações
para a composição musical aumentando o leque de possibilidades rítmicas e melódicas.
Olivier Messiaen também foi um conhecido defensor do dodecafonismo. Ele dizia que a
música: “não é feita somente de sons; em parte ela é feita com sons, mas tambem e
principalmente com Durações, Arrebatamentos e Repousos, Acentuações, Intensidades e
Densidades, Ataques e Timbres, […] o Ritmo” (Messiaen citado por Ferraz, 1998,
p.188).
Vimos como a composição musical tem se diferenciado do ruído devido ao
aspecto da intenção, que pode incluir o uso de legi-signos e suas réplicas (Monelle,
29
1991), preocupações morais e éticas (Hegel, 1842), a promoção de prazer (Wundt,
1897), a reflexão (Langer, 1957) e a veiculação de diversos significados, dependendo da
obra em questão. A composição musical vem se modificando ao longo da história da
música o que não implica que o que fora música deixou de ser a partir de determinada
revolução no campo da composição, seja a introdução do método dodecafônico ou a
contemporaneidade artística, mas que novos elementos vêm sendo introduzidos no
âmbito da produção artístico-musical.
4 “A NOITE DO MUNDO” E INEFABILIDADE DA MÚSICA VERSUS O
SIGNIFICADO MUSICAL A PARTIR DA QUALIA
Em O Moisés de Michelangelo, não podemos deixar de constatar a dificuldade
de Freud no sentido de que qualquer sentido que seja atribuído à música constitui um
problema do ponto de vista da apreciação estética da obra de arte. Nas palavras dele:
[...] Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica,
revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber porque
sou assim afetado e o que é que me afeta.
Isto me levou a reconhecer o fato — um paradoxo evidente — de que
precisamente algumas das maiores e mais poderosas criações da arte
constituem enigmas ainda não resolvidos pela nossa compreensão. Sentimonos cheios de admiração reverente por elas e as admiramos, mas somos
incapazes de dizer o que representam para nós. Não tenho leitura suficiente
do assunto para saber se esse fato já foi constatado (Freud, 1974, p. 253).
A posição de Freud, além de não reconhecer o amadurecimento da música após
Richard Wagner e o seu sentido programático, remete ao problema da Noite do Mundo,
que encerra aspectos desprovidos de mediação racional e aparentemente inefáveis
(Žižek, 2004). Se por um lado Freud nega o fato de que já havia em andamento
trabalhos de composição musical com um sentido expresso por leitmotivs e
erinnerungsmotivs, por outro ele atribui a ideia de falta de sentido a algo que ele não
consegue explicar.
30
Em contrapardida, a partir da semiótica, é possível verificar que a música é a
expressão lógica dos sentimentos, emoções, tensões e resoluções mentais (Kruse, 2007).
A música e suas qualidades musicais são de uma ordem anterior à expressão verbal,
sendo, portanto, mais ligadas à ordem das possibilidades de sentido. Isso se deve ao seu
aspecto quali-sígnico, em relação a si mesmo, enquanto um estado puro, que pode ser
traduzido para uma partitura, um sin-signo que irá conter uma combinação de legisignos sob a forma de réplicas (Monelle, 1991). A música não possui bordas, ela é
translucente. É como uma pura e imediata qualidade. É uma sensação pura, sem uma
clareza a respeito dela. Assim, ela se assemelha às qualidades afetivas puras e pode
significá-las por meio da relação de semelhança. Portanto, sua relação com os objetosafetivos é icônica, já que se trata de uma relação de semelhança. Assim, ela pode
inclusive substituir o seu objeto para representá-lo.
A partir da constatação da relação icônica entre música e afeto e da necessidade
apontada por Žižek de que a música seja descrita segundo sua lógica e elementos
próprios, podemos propor que uma leitura dos elementos musicais, que serve ao
conhecimento que se tem acerca de uma peça, permite também a compreensão do afeto,
já que há semelhança entre música e afeto (Žižek, 2004).
Descrever uma música pela sua terminologia própria auxilia na descrição
desses afetos que se assemelham à música, por sua relação icônica e por serem, ambas,
ligadas com qualidades, a primeiridade e a qualia. Por sua vez, uma partitura é uma
descrição existente que descreve os estados puramente afetivos sob a forma musical.
Por um lado ela é estática, mas guarda em si a expressão de uma natureza viva: ainda
que sua natureza seja morta (Hegel, 1842).
Por um lado, existe a identificação do sentido musical com a noite do mundo,
esse domínio da negatividade radical hegeliana (Žižek, 2004). Como se não houvesse
possibilidade lógica para concebermos sentidos musicais, ameaçando a compreensão do
sentido musical por meio de palavras. Para Eco (1986), quando nos debruçamos sobre
uma obra de arte, ela nos dá acesso à emoção estética que ela provoca e oferece um
esquema para uma emoção possível. Nesse contexto, a inefabilidade não se origina no
tecido da obra estudada, mas, esta nos fornece a “armação de uma máquina geradora do
inefável” (Eco, 1986, p.163). O esquema dessa armação surge para explicar o inefável,
o que estava no meio, reduzindo esse núcleo misterioso e do qual se deve calar a uma
estrutura comunicativa e a uma resposta que combina elementos emotivos e intelectuais.
O desaparecimento do aspecto inefável nos diz o que é a obra de arte e qual sentimento
31
ela gera (Eco, 1986).
Ainda assim, enquanto inefável, a música é como uma noite escura para o
homem. Essa identificação com a noite é feita pela via da negatividade radical
hegeliana, que estabelece uma relação lógica entre a música e os aspectos irracionais
humanos como componentes da “Noite do Mundo” que, por sua vez, se liga à questão
da experiência da produção de representações e imagens impessoais e inconscientes que
são violentas e destrutivas (Žižek, 2004). Isso implica que a música é uma forma
possível de representação desses aspectos mais profundos da experiência humana,
ligados ao desejo de destruição. É dessa escuridão que parte o sujeito natural para então
se tornar um sujeito social e cultural (Žižek, 2004). Essa ligação da música com
aspectos obscuros da natureza humana permite uma forma de explicar o que a princípio,
segundo Heinz Kohut (1972) se põe como uma tarefa difícil, mas muito importante do
ponto de vista de clínico, já que lançar luzes sobre as trevas é a própria tarefa do
psicólogo clínico (Freud, 1900). Essa tarefa é a de compreender o que nem sempre é
acessível pela via do relato clínico, que escapa à relação terapeutica e que não deve ser
reprimida, mas trazida de volta na terapia. O afeto vingativo é um exemplo clássico
desse tipo de problema marcado por expressões destrutivas (Kohut, 1972). Ir de
encontro com exemplos musicais do afeto vingativo pode ajudar a compreender a
questão. Mas antes, é preciso desmantelar o caráter inefável da música para abrir a
possibilidade de sentido a ela, ou seja, é preciso dar sentido a angústias profundas e
sombrias do ser humano e não reprimi-las, dizer que são inalcançáveis e esquecê-las. O
sentido musical do afeto não é apenas uma possibilidade lógica ou de um dever da
clínica pathica, mas configura-se como um método que permite ilustrá-lo por meio de
recursos que tem, no seu âmago, relação de semelhança com ele.
A “Noite do Mundo” é o aspecto que permite a destruição e a recombinação
sem nenhuma contenção. Žižek (2004) aponta que ela é combatida de frente pelo
universo simbólico da ordem das palavras. Na ópera “A Flauta Mágica”, podemos
observar esse contraste se analisarmos o confronto entre a fraternidade de Sarastro e a
vingança da Rainha da Noite que se esforça para destruir a referida sociedade
(Whitehead, 1978; Chumaceiro, 1992). No contexto das forças antagônicas da peça,
temos a Rainha da Noite que representa os sentimentos humanos de ordem destrutiva,
enquanto a fraternidade prima pela sabedoria e a ordem moral e social. Kohut (1972), ao
comentar sobre o narcisismo e a ferida narcísica, menciona os termos ambição, vontade
de dominar e brilhar: É o caso da Rainha, que deseja reobter o círculo de ouro e brilhar
32
com ele. Kohut (1972) pontua que devemos aprender mais sobre nossas forças
narcísicas, de forma a reinventá-las, ao invés de suprimi-las. Ele relaciona o narcisismo
com ciclos de triunfo e autoconfiaça em alternância com a depressão apontando para
fantasias edípicas de sucesso e do repúdio à lembrança da cena originária em que se
observa a troca amorosa entre os pais. A Rainha da Noite nos parece se encaixar nesse
papel de sofrer uma ferida narcísica, uma vez que é o triunfo sobre a fraternidade que
ela almeja, e é a posição depressiva que a faz colocar a própria filha sob a pena de
banimento caso ela não atenda a sua solicitação. Por outro lado, a representação de um
forte ressentimento em virtude de um grande ideal projetado para si pela Rainha, nos
sugere a necessidade de análise sobre os verbos páthico dever-ser22 e dever (como
permissão23) (Weizsäcker, 1958), junto com elementos ligados à formação do ideal do
eu.
Segundo Castarède (2002), a busca pelo ideal do eu é representada na relação
da Rainha da Noite com o Círculo de Ouro, objeto de desejo da Rainha. Ocorre que o
afeto sentido pela personagem que canta a Ária é revelado pela partitura para canto que,
por sua vez, permite compreender a relação entre a vingança e o ideal do eu pela via da
permissão moral que a Rainha se dá para poder efetivar sua conquista do Círculo de
Ouro, cuja perda lhe provocou enorme ressentimento, indicado pelos versos da Ária 14
e pela partitura que determina seu canto e revela a dinâmica dos seus sentimentos
(Castarède, 2002). Tudo isso se dará em detrimento dos valores morais24.
A oposição entre o mundo musical e o mundo verbal é ilustrada também por
Didier-Weill (1999), quando comenta a saída do cantor do coro para ele se tornar um
ator, que irá falar, e não mais cantar. Essa sequencia nos remete a Maria-France
Castarède (2002) e ao fato de que o canto é primeiro em relação à fala. Segundo DidierWeill (1999), aquele cantor irá então possuir uma fala, e não um canto, o que o cria uma
descontinuidade e um recalque com relação à vivência ligada ao coro, por entrar numa
regra que, no caso, é a da gramática, saindo do contexto puramente musical.
Pierre Kaufmann (1996) constata que a intenção do músico no ato da
composição é intraduzível por palavras, já que não há uma gramática da música. Žižek
(2004) nos alerta que é necessário compreender a música segundo sua lógica própria, o
que implica que não podemos assumir, por similaridade entre frases musicais e frases
22
Sollen.
Dürfen.
24
Esse tema sera abordado em profundidade no tópico 10 e 10.1.
23
33
verbais que existe uma gramática da música25. De fato, a intenção que se efetua no
arranjo enquanto está na mente do compositor está acessível somente a ele. O que é
revelado é a elaboração daquilo que o artista conhece sobre as emoções (Langer, 1957;
Leader, 2010) e não por meio de palavras, mas por meio da notação musical que é uma
representação que envolve legi-signos e suas réplicas contidas numa partitura que, por
sua vez é um sin-signo. Esse sin-signo é uma forma de presentificar os quali-signos que
marcam as qualidades musicais e as qualidades afetivas puras. (Monelle, 1991).
Por um lado Santaella (2001) coloca que, em certo nível da escuta musical
surge “um sentimento que resiste a definições ou explicações” (Santaella, 2001, p.82).
Apesar da resistência em utilizar o logos para falar do melos, este retrata aspectos
pulsionais e irracionais por sua relação de semelhança com eles e, por isso, pode chegar
a falar das emoções por meio de uma forma de se comunicar que é musical. O
pensamento musical não está acessível a qualquer um e não se deveria falar do que
sente ao ouvir uma música sob o risco de cair na imprecisão ou no erro na tentativa de
precisar o significado contido na expressão musical. Dessa forma, não é qualquer leitura
acerca da sonoridade musical que é válida para explicá-la. É necessária uma introdução
na terceiridade musical, campo dos sentidos convencionais em música, terreno da
musicologia.
Mas voltemos ao problema do inefável. Podemos dizer que algo é inefável não
apenas porque algo acerca de algum objeto é indizível, mas porque ainda não se falou a
respeito dele, e que é inefável enquanto ainda não se falou. No entanto, o próprio fato de
indicarmos que ainda não se falou já é algo dito sobre o tal objeto. Se, por um lado, a
música requer que a explicação seja restrita aos aspectos próprios de sua notação, a
passagem para a explicação e a interpretação musical por meio da linguagem verbal
ilustra uma passagem do melos para o logos. Assim, a música comunica. A semiótica
mostra essa possibilidade. No entanto, a música parece ser adequada para comunicar
apenas aspectos ligados ao sentir humano, como as emoções, os sentimentos e as
tensões e nada além do que ela é ou com o que possui relação de semelhança (Kruse,
2007).
Didier-Weil (1999), ao discutir a tragédia das mênades de Eurípedes, em que
todas as mulheres da cidade abandonam os respectivos deveres, para moverem-se
25
O uso de homologias estruturais é frequente na comparação entre formas de arte com natureza distintas
e muitas vezes é válido que sejam usadas metáforas. No entanto, a comparação literal entre artes de
naturezas diferentes confere vício metodológico nas análises que se propõem a esse estilo (Eco, 1986).
34
guiadas pelo som da flauta dionísica que as convida para o ritual na floresta revela o
aspecto musical de quebra temporária com a realidade. Esse aspecto promove, sem
muito esforço, a abertura para experiências ligadas às fantasias (Rank & Sachs, 1915).
Isso nos indica que a musicalidade permite uma nova forma de pensar. Muitas
vezes, o processo de racionalização fere o real sentido emocional vivido pelo homem.
Por outro lado, a música permite conhecer a lógica acerca da dinâmica do sentimento
humano. Assim, para conhecer determinadas paixões humanas é necessária uma
explicação segundo a lógica dos signos musicais. O problema freudiano com esse
continente negro, musical e feminino não se fez por ele não explorar questões musicais
para estudar determinados casos do ponto de uma semiótica musical? É provável que o
afastamento freudiano em relação à música constatado em “O Moisés de Michelangelo”
não seja uma postura que coloca a música no campo de uma impossibilidade no que
tange uma compreensão sobre ela, mas de colocar que é necessário compreender o
campo da música para poder conhecer o que ela realmente expressa e comunica, caso
contrário ela permanece inefável.
Dessa maneira, nos parece que a condição de inefabilidade da música se
restringe àqueles que não conhecem o potencial da música de revelar as emoções e os
afetos humanos por meio da interação dinâmica dos elementos utilizados na
composição musical, uma vez que estes podem marcar precisamente conceitos que são
verbalizados (Dahlhaus, 1989). Um exemplo disso é a representação da posição
vingativa da Rainha da Noite (Whitehead, 1978; Chumaceiro, 1992) e do seu problema
com o afeto vingativo e o ideal do eu (Castarède, 2002).
5 MÚSICA, EMOÇÃO E MOVIMENTO
O que é isso que a música provoca em nós? O fato de a música gerar ou
provocar emoções no ouvinte não se constitui como um problema de ordem mágica,
mas de lógica (Langer, 1957). Quem escuta música geralmente tem a sensação de
experimentar determinada emoção. Charles Avison (1752), em “An essay of musical
expression”, colocou que a música provoca efeitos similares à sonoridade que expressa.
Ao ouvir uma música, nossas emoções se aproximam da emoção do artista projetada na
obra dele por meio da combinação de interpretantes emocionais (Kruse, 2007). Pierre
Kaufmann (1996) coloca que a música torna manifesta a esfera dos sentimentos. Para
Langer (1957) é importante compreender como as músicas são capazes de eliciar
35
emoções segundo um argumento lógico demonstrado pela via dos aspectos dinâmicos
da música como o crescendo, o diminuendo, a tensão e o relaxamento. Henry Prunières,
em “Musical symbolism” (1933), expôs que um artista não pode colocar em sua música
alguma emoção que não tenha ele mesmo vivido, o que restringe a possibilidade de
significação musical da peça musical à esfera da história de vida do compositor.
A doutrina do Etos, surgida na Grécia Antiga, se preocupava com a capacidade
da música de influenciar a dinâmica de tudo que pertence ao universo (Grout & Palisca,
1994). Àquela época, sabia-se que a música podia realçar algumas emoções no espírito
humano. Por isso, Platão defendeu a proibição de um estilo musical que levava os
cidadãos a praticarem atos contra a moral vigente (Langer, 1957; Grout & Palisca,
1994). Mais tarde, no Concílio de Trento26, os Pais da Igreja proibiram o modo frígio
devido ao fato de que ele encerra o acorde da quinta diminuta, conhecido como triton
diabolicum (Didier-Weill, 1999).
Conta-se que o rei Eric da Dinamarca cometeu homícido e que nessa situação
ele estava comovido pelo som de um harpista que realizava experimentos musicais
(Langer, 1957). Hoje não se acredita mais nessa qualidade quase que hipnótica da
música. No entanto, ela é reconhecida por ser capaz de afetar o batimento cardíaco, a
respiração, a concentração e excitar ou relaxar o corpo, enquanto ela soa. Assim, apesar
de invocar o impulso para cantar e dançar, a música não é reconhecida enquanto capaz
de influenciar o comportamento humano da maneira como outrora se imaginava, como
no caso do monarca dinamarquês homicida (Langer, 1957).
Santaella (2001) coloca que, ao nível de secundidade, em relação ao efeito
emocional da música, existe um sentir que nos põe em movimento, que nos comove e
faz o coração estremecer, como naquela famosa passagem em que Prosperpina, esposa
de Plutão, alega estar comovida com o canto de Orfeo e solicita a Hades que permite ao
herói resgatar a esposa, Eurídice27. Encontramos outro exemplo no personagem Kaspar
Hauser, do filme “O enigma de Kaspar Hauser28” (1974), do diretor alemão Werner
Herzog. Kaspar alega, ao ouvir uma peça ao piano: “[...] sinto algo forte. Sinto a música
com força em meu coração. Sinto-me velho de uma forma inesperada”.
Esses casos ilustram a comoção que a música pode provocar no homem. Em
um caso, o destino de uma mulher (Eurídice) poderá mudar, e no outro, a própria
26
Realizado no século XVI, entre 1545-1563.
Esse episódio é narrado na peça L’Orfeo, cujo libretto foi compost por Alessandro Striggio (Striggio,
1607) e a música por Claudio Monteverdi.
28
Jeder für sich und Gott gegen alle.
27
36
percepção da idade que o homem (Kaspar Hauser) tem, foi mobilizada. Na primeira
situação, o efeito da música em Proserspina favorece a Orfeo no sentido de que ele
obtém uma concessão. Na segunda, Kaspar Hauser desloca sua autopercepção como
pessoa para o futuro. Assim, algo (musical) o faz se sentir mais velho. Assim, podemos
dizer que existem diversas formas de mobilização que a música é capaz de efetuar
(Ingarden, 1966).
Mas o que é isso que nos faz mover e que é musical? O que ouvimos é parte de
um processo que envolve quatro momentos e três sujeitos que podemos descrever a
partir da obra de Roman Ingarden, “O trabalho musical e o problema de sua
identidade29” (1966), em que se afirma que cada performance musical é um processo
acústico determinado por uma partitura ou um improviso, que por sua vez são formado
de ações físicas complexas e atos mentais do intérprete. Mas todo esse processo começa
com o compositor. Henri-Georges Clouzot, no filme “O Mistério de Picasso30” (1956),
alerta para o fato de que não podemos conhecer a mente do artista enquanto ele compõe
uma peça. De fato o que podemos ter acesso está restrito a uma peça executada ou à
leitura da partitura da peça, como registro de suas ideias composicionais.
6 FENOMENOLOGIA E TEMPOS SOCIAIS MUSICAIS
A aplicação do método fenomenológico à compreensão do que é o trabalho
musical foi explorada por alunos de Edmund Husserl, como Alfred Schutz, Waldemar
Conrad e Roman Ingarden (Mazzoni, 2010). Quando esse método é aplicado ao
universo musical, pode ser proposta uma análise dos indivíduos envolvidos na
experiência musical da fenomenologia social musical. Entre eles estão o compositor, o
intérprete e o ouvinte (Ingarden, 1966).
Para uma música existir é preciso, primeiramente, que a música seja criada, o
que é feito pelo compositor. No caso da improvisação o intérprete é o responsável pela
criação. No caso de o compositor não ser o intérprete, o ouvinte terá contato com a
expressão musical por meio de um segundo intermediário entre a partitura, criada pelo
compositor, e o ouvinte. Essa consideração tem levado a diversos questionamentos
quanto à identidade do trabalho musical, que, quando executado por distintos
intérpretes, já poderia ser considerada uma peça diferente. Mas não é isso que a
29
30
Utwór muzyczny i sprawa jego tożsamości.
Le Mystére Picasso.
37
fenomenologia mostra. Existem pontos de determinação na partitura que, caso não
sejam seguidos, não é possível continuar intitulando a peça com o mesmo nome da peça
original (Ingarden, 1966). No entanto, nem sempre uma peça é reconhecida a partir da
execução conforme o que determina exatamente a partitura (Parker & Abatte, 2012). É
preciso levar em consideração também o fato de que nem sempre o processo acústico
está alicerçado completamente em pontos determinados, uma vez que a existência de
pontos de indeterminação permite ao intérprete deixar a sua marca pessoal na execução
da peça. Isso ocorre principalmente no caso de trabalhos orquestrais (Ingarden, 1966).
A posição do ouvinte pode ser ocupada tanto por alguém que executa a música
ou alguém que se situa na posição da plateia (Ingarden, 1966). Esse último sujeito,
aquele que está na posição de ouvinte, quem percebe o fenômeno sonoro, tem sido
estudado por diversos autores na psicologia e em áreas afins (Wundt, 1897; Helmholtz,
1912; Langer, 1957; Ingarden, 1966; Schellenberg, 1996; Didier-Weill, 1999; Castarède,
2002).
6.1 O COMPOSITOR, A IDEIA COMPOSICIONAL, A PARTITURA E O
TRABALHO MUSICAL
Esse homem que é (co) movido pela música pode ocupar três posições do
ponto de vista da fenomenologia. O primeiro sujeito das relações sociais musicais é o
compositor. Ele é quem elabora a ideia composicional, criando o seu trabalho musical e
fixando-o na forma da partitura (Ingarden, 1966; Mazzoni, 2010). O ato de imortalizar a
ideia composicional na forma de um sin-signo não se refere somente ao fato de tornar
uma composição reconhecida por um grande público, como é o caso da “Flauta
Mágica31”, mas por cravar aspectos que serão eternizados naquela composição.
O compositor deverá colocar na partitura aquilo que ele elabora a partir de uma
ideia composicional, esclarecendo dinâmicas emocionais representadas por meio de
legi-signos da notação musical e suas réplicas, dispostas na partitura (Monelle, 1991).
Ele poderá incluir as emoções que está vivendo e já viveu, assim como o conhecimento
que ele possui a respeito da relação do ser humano com esses afetos (Langer, 1957;
Kruse, 2007). Assim, não basta o artista viver as emoções, como fora especificado por
Henry Prunières em 1933. Ele precisa ter a clareza sobre o funcionamento dos afetos
31
“A mais bonita e mais devastadora música já composta” (fala do filme A Hora do Lobo, de Ingmar
Bergman, fazendo alusão à Flauta Mágica, na voz do irmão de Papageno, segundo o enredo do filme).
38
humanos (Langer, 1957). Dessa forma, o compositor precisa ser um grande conhecedor
do espírito humano, que vive em um corpo afetado pelas questões do mundo que
despertam sensações prazerosas e desprazerosas.
No entanto, a música não é algo que possui exclusivamente uma preocupação
estética de revelar algo da ordem do belo, mas também da beatitude, da moral, da regra,
da tristeza e da alegria. Assim, gerar prazer não é a única finalidade do objeto musical
artístico, mas também a reflexão e o estudo dos mais diversos afetos humanos (Langer,
1957). Não é descartada a preocupação da perfeição estética na música - os gregos
afirmavam que toda a busca pela beleza é uma música (Grout & Palisca, 1994), mas por
outro lado, é necessário reconhecer que ela pode provocar outros efeitos, como tensão,
desprazer e até melancolia (Wundt, 1897).
A partitura, conforme nossa demonstração, se efetiva como um exemplo da
transdução das ideias composicionais para um objeto de arte na forma de escrita musical
que, por sua vez, resulta do trabalho de composição do artista (Ingarden, 1966).
Denomina-se trabalho musical à combinação de todos os aspectos contidos nela
(Ingarden, 1966). Este é um modelo e uma medida para as performances musicais.
Podemos fazer uma metáfora entre a partitura e uma questão em saúde mental. Existe na
fenomenologia musical pós-husserliana o acordo de que a música escrita na partitura se
estabelece enquanto uma referência análoga àquela que, enquanto ausente ou
modificada, inclui o sujeito nos quadros do delírio (Schutz, 1976; Mazzoni, 2010),
conforme apontam Martins, Costa e Aquino (1999): “No caso de um paciente
eminentemente delirante (paranóia) o modo de constituição do pensamento paralógico
em suas diversas modalidades também segue a lógica de quebra das regras de operação
da referência” (p. 4). Nesse sentido, existe uma ligação entre o mecanismo de referência
e a identidade daquilo a que se faz referência.
No âmbito da composição musical, é preciso que as relações tonais exijam que
cada tom melódico esteja referenciado a um ponto fixo, de forma que todos os tons
estejam referenciados a uma tônica (Conrad, 1908). Essa ideia de regra inclusive
justifica o argumento da harmonia como terceiridade, já que envolve a ideia de uma
regra (Santaella, 2001). Existe inclusive uma posição da psicanálise em relação à tônica,
ou baixo, colocando que ela exerce a função paterna, reforçando o aspecto legislativo,
referencial e normativo da música: “Toda composição musical é feita de ritmo e de uma
39
linha de baixos (a voz paternal32)” (Castarède, 2002, p.138). Ora, não é a função paterna
que exerce a castração que irá efetivar a constituição da linguagem no ser (Didier-Weill,
1999)? O sistema de referência se constitui numa partitura por meio da observância da
lógica de uso das réplicas dos legi-signos ali dispostos. A linha de baixos opera, além do
nível das réplicas e da identidade, como um mecanismo que exige a relação de
referência entre a execução da peça e o que está colocado na partitura.
Os pontos de determinação da partitura são como regras estabelecidas e
podemos compreendê-las a partir de sua condição anáforica, já que a partitura antecede
existencialmente à execução da peça e ela tem a finalidade de garantir que essa
execução musical seja perfeita. Isso implica que ela determina como deverá ser
executada a peça e a execução, com a finalidade de ser mais fiel à partitura deve tê-la
como ideal a ser alcançado. Nesse sentido, quem não executa uma peça conforme o que
está específicado pela partitura, não está executando aquela peça no seu sentido mais
original, mas outra, uma variação daquela (Ingarden, 1966).
A composição musical desajustada se aproxima dos enunciados verbais de
crianças que ainda não desenvolveram a habilidade de falar propriamente, apesar dessa
inabilidade se diferir do problema de referência dos delírios (Martins, Costa & Aquino,
1999). Segundo Freud (1905), os indivíduos na segunda fase da infância não se arriscam
a enunciar contra-sentidos, uma vez que a fala incoerente é vista como desajustada. Isso
implica que, com o desenvolvimento da linguagem no ser, gerar sentidos indesejados na
comunicação passa a se configurar como algo indesejável. Essa constação nos faz
pensar no elemento anafórico na esfera musical. No entanto, a composição musical não
é como a composição dos enunciados verbais uma vez que possui características que lhe
são próprias e dela se difere por exigir uma compreensão a partir de sua própria
realidade (Žižek, 2004). Apesar disso, é possível dizer que uma determinada expressão
musical se refere a algo específico, que só será acessível para quem puder se debruçar
sobre a obra de arte e compreendê-la – eliminando o seu mistério inefável. É por isso
que Felicia Kruse (2007) destaca a eventual necessidade de interpretantes lógicos para a
compreensão do significado musical.
O trabalho musical não varia independente do espaço que ocupa, assim como a
partitura. Ele é o conceito da peça e inclui a dinâmica de pontos de determinação
(explícitos) e indeterminação, não programados pela partitura. Permanece como algo
32
Toute composition musical est faite de rythmes et d’une ligne de basses (la voix paternelle).
40
que antecede a expressão musical na sua forma de processo acústico. Dessa forma, ele é
inexorável enquanto ligado à partitura. Por sua vez, o processo acústico é ligado mais à
execução da peça e ao processo de escuta (Ingarden, 1966).
6.1.1 Composição e Perlaboração
Podemos notar nos debates da psicologia alemã do século XIX discussões
sobre como as associações mentais formam ligações entre si. Os teóricos da época
recorriam à música com o argumento de que ela podia evocar memórias, emoções e
associações e, por isso, um estudo da dinâmica musical poderia levar à compreensão
sobre a formação psicológica dos elos entre memórias, emoções e associações. O
conceito freudiano de perlaboração também veio do campo da música (Leader, 2010).
Enquanto Isador Coriat (1945) e Heinrich Racker (1965) destacam a relação
entre as repetições contidas na elaboração musical e uma força que a resistência exerce
sobre o homem, Freud ressalta a importância do estudo das repetições porque elas
podem conter instintos patogênicos, observáveis em comportamentos compulsivos. A
posição freudiana é de que as repetições geram óbice à realização de se lembrar de
eventos, justamente aqueles que estejam alimentando as resistências (Freud, 1914).
Quanto ao processo de perlaboração como analogia com a história de vida,
indicamos a passagem em “História do movimento psicanalítico”, de 1914, quando é
comentada a constatação de que alguns estudos já: “detectaram algumas nuanças
culturais da sinfonia da vida e mais uma vez não deram ouvidos à poderosa e primordial
melodia das pulsões” (Freud, 1996, p.69). Nessa metáfora, Freud está mencionando a
importância da pulsão no psiquismo. A incapacidade de viver as tarefas da vida é a
gênese do sofrimento do neurótico, ao passo que as repetições oriundas de gratificações
conquistadas nas fases infantis foram negligenciadas, colocando a pessoa em processos
de automatismo (Freud, 1914).
O processo de perlaboração deve revelar a dinâmica do afeto ou do aspecto que
foi reprimido assim como permitir a sua reformulação. A clínica visa a sua
reemergência, e não o seu desaparecimento. Consideremos o reaparecimento do
sintoma. Ele pode ser compreendido como o disfarce da patologia, ou um índice. A
tomada da consciência dos motivos que levaram o paciente a produzir o sintoma pode
favorecer a perlaboração e, portanto, a reinvenção do adoecimento (Bergler, 1954).
Dessa forma, a partitura musical assim como a perlaboração, envolvem o ressurgimento
41
do que estava presente desde o princípio. Isso implica que, as introduções musicais são
perlaboradas ao longo da peça, como se ela contivesse a semente que floresce ao longo
dos atos e movimentos (Leader, 2010). E a perlaboração, enquanto reinvenção do
adoecimento, exige o resgate dessa parte introdutória da sinfonia da vida.
A ideia de perlaboração envolvida no processo catártico é fundamental para
compreender o processo de composição musical a partir dos sentimentos vividos pelo
compositor (Leader, 2010). Para Freud (1914), o processo de perlaboração é comparável
à ab-reação catártica. Susanne Langer (1957) também comenta a relação entre o
trabalho de composição musical e o processo catártico. Durante a composição e a
perlaboração podem vir à tona novos conteúdos do inconsciente, o que irá requerer uma
nova interpretação: novas modificações surgem ao longo do adoecimento e da partitura,
modificações essas relativas à ideia da introdução. Isso ocorre porque durante a
reinvenção dos conflitos psíquicos originários podem ressurgir outros conflitos, o que
gera novos desdobramentos (Weizsäcker, 1958). Assim, na partitura, um tema que está
em elaboração em determinado trecho da obra pode sofrer um menor ou maior grau de
reelaboração, e isso depende, nos termos da clínica, de quanto o sentimento em relação
aos conflitos presentes na pessoa foi mobilizado. Isso implica dizer, do ponto de vista
da fenomenologia da música que, durante a fase criativa do ato de composição musical,
as ideias composicionais não cessam de surgir, o que pode implicar na necessidade de
ajustes no trabalho composicional durante a sua elaboração. Esse aspecto da tarefa
composicional, o perlaborar, é típico do tratamento analítico e requer tempo para que
possa acontecer. O tempo serve à superação de resistências do paciente, assim como as
repetições infantis dele (Leader, 2010). Durante o processo de reinvenção da vida que
ocorre pela perlaboração, novas verdades podem ser apreendidas (Karush, 1967) e
eventos traumáticos da infância devem ser reconstruídos (Greenacre, 1956).
Otto Fenichel (1938) coloca que a perlaboração significa apontar para o
paciente, repetidamente, aquilo que o paciente faz. Nesse sentido, perlaborar é
demonstrar, mostrar. No entanto, Freud (1914) aponta para a ineficácia dessa atitude
clínica. É necessário que o paciente consiga se reinventar a partir de um reconhecimento
prévio de sua própria situação (Freud, 1914) e não apenas que ela seja mostrada para
ele. Mas a posição de Fenichel quanto à perlaboração nos remete à possibilidade
apontada por Susanne Langer (1957) de que a música é também a apresentação do
afeto. Se cuidarmos do alerta de Freud, seria necessário considerar que a música mostra
para o seu próprio compositor aquele afeto que está nele, e não apenas para uma
42
audiência que irá escutar a peça, na posição metafórica do paciente que ouve os
apontamentos do terapeuta.
Para Fenichel (1938), a ideia de perlaboração também envolve o cuidado com
o fator patogênico que alimenta padrões repetitivos de comportamento (pergunta: Quais
são os fatores que alimentam a manutenção do sintoma e a patologia que lhe é
subjacente?).
Charler Brenner (1987) coloca que perlaborar é fazer uma releitura da vida
vivida pelo sujeito assim como implica em reexperienciar a ansiedade e a depressão. É
preciso, dessa maneira, perlaborar todos os aspectos de um conflito psíquico na
realidade do trabalho clínico. Essa totalidade, que deve estar contida no processo de
perlaboração, indica que a música, enquanto análoga ao processo terapêutico analítico,
pode alcançar a revelação total ou parcial da dinâmica do afeto sentido e vivido, desde
seu estágio reprimido, até o seu desvelamento pela via da recordação e da perlaboração.
Assim, consideramos que não apenas a música pode revelar o afeto, o que é sugerido
pela semelhança semótica entre ambas, mas que deve revelá-la, em virtude da
aproximação com a ideia de perlaboração como tarefa clínica e da composição musical
como trabalho do compositor.
6.2 O INTÉRPRETE, A PERFORMANCE E O PROCESSO ACÚSTICO
Uma música, ao ser executada, pode variar a partir dos pontos de
indeterminação da partitura e de como a situação psíquica que o músico se encontra no
momento da execução vai agir sobre essas indeterminações (Ingarden, 1966). Enquanto
que no trabalho musical todas as partes coexistem, dando existência ao todo que está
imortalizado na forma da partitura, durante a execução, a música é temporalizada na
direção apontada pela partitura. Apesar da existência de pontos de indeterminação, o
que implica em algum grau de variação, isso não implica em uma deformação ou na
execução de uma peça diferente como na situação em que fizemos analogia ao problema
da referência no debate sobre saúde mental. Isso porque os pontos de indeterminação
permitem a existência de diferenças entre as execuções de uma mesma peça, ou seja, de
variações entre as performances. No entanto, a existência dos pontos de indeterminação
não exclui a existência dos pontos de determinação, que se configuram como espaços de
referência mais delimitados (Ingarden, 1966).
Essa discussão abre para o questionamento sobre qual performance é mais fiel
43
à partitura e ao que o compositor quis comunicar numa mensagem musical. Mesmo
quando consideramos as execuções realizadas pelo próprio artista irão existir variações,
o que significa que não é possível dizer que a mensagem musical somente pode ser
veiculada na interpretação do compositor. Aquela mensagem estará presente caso esteja
de acordo com a partitura e na execução que se aproxime dela e da ideia composicional
(Ingarden, 1966). Isso implica que, do ponto de vista da estabilidade do significado
musical, é preciso considerar os pontos de derminação da partitura, que não podem
variar e garantem a identidade daquele trabalho musical.
Existe também a questão da temporalização concernete à experiência músical,
que se refere ao reconhecimento da existência do processo acústico. Gutheil (1954)
compara o espaço simbólico com o espaço musical: ambos ocorrem a partir de uma
experiência internalizada do tempo. A internalização do tempo é, no âmbito da
fenomenologia, uma questão vital: À medida que a música é tocada, cada parte em
execução vai deixando de existir (passando a existir como um ter-sido, uma forma
especial de passado, ainda presente), passando a constituir o degradé retensivo da
experiência de percepção temporal (Husserl, 1928).
No âmbito do processo acústico, a ausência de som não significa a ausência da
música. Dessa maneira, a pausa, assim como as notas musicais, pode gerar um efeito no
ouvinte enquanto ela é tocada (Langer, 1957). O que fica no sujeito é a lembrança da
música, e não a música em si. A lembrança retida influencia na experiência do presente
o que cria uma possibilidade perceptiva no ponto da protensão, ou da nota azul. Assim,
podemos dizer: a partir daquilo que já escutei espero ouvir algo específico dessa
descontinuidade musical.
A música, enquanto está sendo executada, ocupa um espaço determinado,
objetivamente e fenomenicamente. No primeiro caso, a perfomance parte de um
determinado lugar, no qual possui a natureza de ondas sonoras, para ocupar outro,
enquanto efeito do movimento dessas ondas e enquanto natureza elétrica a partir da sua
percepção pelo ouvido. No segundo caso trata-se de um reconhecimento de que a
música está ali, aspecto esse que é o ponto de partida para a análise de Didier-Weill
(1999) quando ele conta que dizemos “Sim!” para a música que se constitui como uma
verdadeira alteridade, que é capaz, inclusive, de escutar as perguntas que não fazemos,
porque põe em movimento (co-move) o sujeito recalcado, aquilo que esquecemos que
somos.
44
6.3 O OUVINTE E A CONCRETIZAÇÃO
Os pitagóricos usavam músicas para adormecer e músicas para acordar
(Cheshire, 1996). De fato, não se pode negar que alguns tipos de música estão mais
aptos a produzir determinadas emoções do que outras (Santaella, 2001), de forma que
cada uma delas pode ser utilizada para regular um estado emocional específico (Thoma,
Ryf, Ehlert, Nater & Urs, 2006). Nesse sentido, podemos dizer que músicas diferentes
provocam efeitos diferentes. E, se consideramos as diferenças individuais entre
ouvintes, distintas formas de ouvir podem ser dadas na apreciação musical. Podemos
também considerar diferentes situações que um mesmo sujeito ouve uma mesma
música. Trata-se apenas de posições fenomenológicamente diferentes (Ingarden, 1966).
A nossa percepção ao nível do contato afetivo individual com a expressão
musical produz a formação de impressões originárias. A retenção é o que permite a
apreensão do tempo presente e da música executada, enquanto atualizada e
temporalizada. Existe também a influência das relembranças, que são representações de
um dado objeto, frutos da imaginação sobre o objeto e não oriundos da perceção direta,
mas da recordação desses diversos pontos contidos no degradé retensivo. Assim, a
consciência do tempo põe em jogo não apenas os objetos temporais percebidos, mas
também os objetos advindos da imaginação. Isso implica que a escuta, ainda que se dê
no presente do indicativo, envolve aspectos ligados ao ter-sido e também ao
porvindouro, formas especiais da ideia de passado e futuro que se atualizam no tempo
presente (Husserl, 1928). Essa ideia sugere que a nossa prévia constituição como sujeito
pode influenciar na apreciação de determinado objeto musical. A protensão é outro
aspecto da experiência temporal e diz respeito sobre a influência que a expectativa do
que irá acontecer no futuro gera sobre a forma como percebemos aquilo que
percebemos – que já é uma fusão entre a nossa imaginação sobre o objeto retido e a
percepção direta do objeto acumulada na nossa memória (Husserl, 1928).
No contexto fenomenológico, é dito que a escuta musical exige a atenção sobre
uma consciência de temporalidade mais internalizada do que a atenção aos fatos do diaa-dia. Essa proposta busca eliminar todos os traços da transcendência (Mazzoni, 2010).
A percepção dos significados que concernem às unidades musicais pode ocorrer a partir
de uma reflexão a partir dos aspectos da retenção e protensão. Isso implica que, na
atividade de escuta, é preciso perceber os elementos que estão se atualizando no
momento do presente ao nível do degradé da retenção e perceber o elemento da
45
protensão, que influencia as representações e as percepções acerca do objeto musical a
ser temporalizado (Husserl, 1928). A escuta e a percepção dos significados ocorre então
na percepção temporalizada e efetivada do trabalho musical num processo acústico.
A partir da fenomenologia de Husserl, Schaeffer (1966) cria a possibilidade de
realização da escuta reduzida, que independe da causa e do sentido e se remete às
qualidades próprias do som como objeto de observação. Nessa escuta há uma maior
pureza de aspectos musicais que a consubstanciam. Ele também explora o conceito de
escuta causal que procura detalhar o que causa um determinado som. Abraham Moles
(1978) explica que o som em si é uma vibração que, para nós, não é perceptível. O que
escutamos é o processo acústico gerado por essa vibração (Ingarden, 1966). Para
Schaeffer (1966) existe ainda a escuta semântica que irá envolver aspectos
interpretativos. Santaella (2001) estabelece no ponto de confluência entre a
fenomenologia e a semiótica que existe a diferença de que esta “nos fornece um
conjunto de distinções analíticas bastante operativas para a aplicação a fenômenos
concretos de signos” (p.87).
Santaella (2001) defende que determinado nível de escuta intelectualizada da
música requer um saber musical que está restrito àqueles que se aprofundaram na arte.
Certamente é para esses que algo mais supreendente na música é revelado. Nesse
sentido, a escuta musical é uma atividade que, quando realizada com a ciência dos
aspectos normativos que envolvem a apreciação musical, resulta numa experiência
diferenciada.
Segundo Santaella (2001), escutar é diferente de ouvir. O psicanalista holandês
Frans Schalkwijk (1996) coloca que a primeira atividade se relaciona mais diretamente
com a emissão sonora e se limita à apresentação dos sons para nós. Já a segunda tarefa
envolve percepções e esboços, que se constituem a posteriori, e podem inclusive se
relacionar com experiências musicais vividas no passado que estão guardadas na
memória e com os aspectos protensivos, ou seja, a expectativa acerca do que estamos
por ouvir (Husserl, 1928).
6.3.1 A Escuta na Perspectiva Semiótica Peirceana
Santaella (2001) expõe uma análise sobre três formas de ouvir e a semiótica
pierceana. Ouvir emotivamente é da ordem de primeiridade. Marin Mersenne e outros
teóricos ligados ao grupo da doutrina dos afetos colocaram que determinados arranjos
46
musicais eram capazes de representar um estado emocional e de fazer reconhecer essa
emoção num ouvinte (Apel, 2000). Ouvir com o corpo é da ordem de secundidade.
Nesse nível, a ação de escuta é executada no ato de recepção de um signo, o que indica
a existência de uma escuta ativa e não uma experiência musical meramente receptiva,
passiva. Ouvir intelectualmente é da ordem da terceiridade. Nesse nível se inserem
princípios lógicos que guiam a percepção da música.
Quanto ao efeito emocional provocado pela música, Santaella (2001) faz uma
subdivisão em três aspectos. O primeiro é o mais puro, em que ocorre o estado de
desligamento da realidade concreta e quando nos encontramos desligado do nosso eu, e
por isso esse estado se relaciona à pura qualidade do sentir, quando estamos: “cândidos,
porosos e despoliciados [...] se a música nos colhe em momentos como esse, ela nos
converte em uma pura qualidade de sentir” (Santaella, 2001, p.82).
Na segunda modalidade temos o nível da comoção, que se refere ao que se
move em virtude da percepção musical. Um dinamismo interno é acionado a partir da
escuta musical. Cada pessoa se sente acionada por uma música diferente.
No terceiro nível há uma elaboração verbal superior sobre o que sente a partir
do momento de escuta. Nesse contexto, qualifica-se uma música como alegre, triste,
melancólica, etc. Aqui estamos no nível da emoção enquanto um sentimeno codificado.
Nossos hábitos e convenções culturais nos permitem atribuir noções emocionais às
músicas (Santaella, 2001; Castarède, 2002).
Em relação ao aspecto corporal, Santaella (2001) novamente divide em três
tipos. Na primeira modalidade ela coloca a música sentida dentro do corpo após a
percepção do som. No entanto, a sensação é de que o próprio corpo é que está gerando o
ritmo, o que implica numa sensação de tomada do corpo pela música. No contexto da
escuta corporal trata-se mais da questão rítmica da música, o que pode se relacionar
com a experiência temporal da fenomenologia, já que é o ritmo que determina o
andamento da música e, portanto, envolve necessariamente a questão do tempo
(Santaella, 2001). Na segunda modalide da escuta corpórea, há uma contigüidade entre
música e o corpo. Nessa situação, a música vem de fora e afeta o corpo. Da terceira
modalidade nascem a dança e a coreografia que são a “conversão do ritmo sonoro em
realidade plástica e visual” (Santaella, 2001, p.84).
A sua natureza de terceiridade se faz em virtude do uso de convenções de
representações visuais que indicam posições e movimentos corporais no espaço. Assim,
um sistema de regra é usado como referência para marcar determinadas frases e
47
movimentos musicais (Santaella, 2001).
O terceiro nível, da escuta intelecutal, está reservado aos conhecedores de
música. Nele há a possibilidade de um prazer ativo, interativo e produtivo, reservados a
quem conhece o universo musical (Santaella, 2001). Na primeira modalidade de escuta
desse nível, alguns sons possuem: “formas inusitadas, […] que se desmancham antes de
chegarem a se instaurar, o que coloca o ouvinte em situação de incerteza,
imprevisibilidade e conjecturas” (p.84).
Santaella (2001) aponta que esse nível é hipotético, em que não se tem certeza
sobre a sonoridade expressada. Já na segunda modalidade, o ouvido é capaz de
distinguir cada detalhe da música, quais sejam: “os jogos das sobreposições das linhas
sonoras, entrada e saída de vozes, instrumentos e materiais, movimentos de progressão,
reversão, texturas e conglomerados” (p.84).
Na terceira modalidade, o ouvinte é capaz de avaliar a música como forma de
pensamento e reconhecer os seus sistemas de referência. Essa escuta é realizada, por
exemplo, pelos grandes compositores que são capazes de compreender as emoções
humanas e transduzi-las para um esquema musical (Langer, 1957), uma vez que essa é a
escuta de quem conhece música (Santaella, 2001).
48
7 MÚSICA E SEMIÓTICA
7.1 DICOTOMIAS OU TRICOTOMIAS?
Ao propor um estudo de semiótica sobre a música poderia haver num primeiro
momento uma dúvida sobre qual modelo é mais adequado. Seria o das relações
diádicas, como o da Escola de Paris (Saussurre, Levi-Strauss, Greimas), ou o das
relações triádicas, como a de Charles Sanders Peirce? Como o aspecto icônico permite a
identificação da ideia composicional com as emoções humanas, e como o conceito de
ícone deriva das relações triádicas, ficaria fácil responder que toda a metodologia desse
estudo ficaria restrita à semiótica peirceana.
Mas, sem deixar de explorar apenas a semiótica peirceana, é possível
considerar aspectos complementares à questão icônica que justificam a metodologia.
Peirce irá trazer uma visão mais dinâmica da semiótica enquanto a tradição
estruturalista propõe uma análise mais linear e temporalizada. Para Saussurre, o signo é
uma entidade psíquica com dois lados, enquanto Peirce defende a existência dos signos
independente dessa entidade psíquica. As relações entre os elementos semióticos serão
lógicas, e não psicológicas (Parret, 1984).
Outro ponto desse debate gira em torno da expressão antiga “aliquid stat pro
aliquo”, que vale tanto para as semióticas diádicas como para as triádicas, uma vez que
ela sugere que o signo é algo que está no lugar de outra coisa. Um dos primeiros
registros do uso dessa expressão foi encontrado nos escritos de Alberto, o Grande 33. É
possível dizer, inclusive, que nem sempre é possível discernir claramente as semióticas
diádicas das triádicas. Por exemplo, Saussurre traz o termo “chose” como algo para
além do significante/significado, mas nega a participação de “chose” como um terceiro
elemento (Nöth, 1995).
Já no pragmatismo, é assumida a presença de um terceiro elemento, para além
do signo e do objeto que ele representa. Ele é denominado por Peirce como interpretante
(CP 2.9234). Esse terceiro elemento é, além de um signo, o que provoca a ação do signo.
Para que a relação entre representamen e objeto seja semiótica, é preciso que essa
33
Ou Alberto da Saxônia, filósofo medieval.
Optamos por usar a referência ao “The Collected Papers of Charles Sanders Peirce” de forma que é
possível, por meio do formato utilizado, identificar o volume e o parágrafo na qual a citação ou o
conteúdo do parágrafo, se encontram na coletânea dos escritos de Charles Sanders Peirce, organizada pela
Universidade de Harvard. As traduções para a língua portuguesa foram feitas pelo autor dessa dissertação.
34
49
relação seja concebida, dita e inferida. O aspecto da concepção envolve o interpretante
como uma qualidade. O aspecto dito envolve o interepretante como existente e o
aspecto inferencial traz um interpretante mais como ideia ou pensamento (Parret, 1984).
Além da oposição entre dois e três, existe ainda um problema de outra ordem.
Isso porque as análises estruturalistas procuram, por meio de uma justificativa
metafórica, usar como que uma gramática musical a partir de uma glossemática que
deveria englobar todo o conhecimento humano (Carmo Júnior, 2007). No entanto, o seu
método de aproximação com a linguística por meio de uma analogia estrutural não nos
parece suficiente do ponto de vista da necessidade apontada por Slavoj Žižek (2004),
que requer um estudo da música pelos seus elementos próprios. Por outro lado, a análise
da partitura e a sua relação com as ideias composicionais na fenomenologia musical de
Ingarden (1966) e o uso da lógica peirceana, principalmente no que concerne à
semelhança entre afetos e música pela via das qualidades e quali-signos icônicos
(Kruse, 2007), nos permite que seja feita uma aproximação em relação à música e aos
afetos por meio dos seus próprios recursos.
Outro problema metodológico concerne o uso da partitura. Apesar das críticas
à essa metodologia de análise (Aksnes, 2001; Lisi & Stefani, 2006; Parker & Abbate,
2012) e, ainda que ela seja uma forma limitada de análise musical, restrita à partitura,
trata-se um elemento relevante do ponto de vista semiótico uma vez que garante a
identidade daquela composição musical (Ingarden, 1966). Na análise estruturalista, a
partitura pode atuar tanto como langue como quanto parole, uma vez que, no primeiro
caso, ela funciona como matriz para a performance e, no segundo caso, ela existe a
partir da matriz que seriam os estilos musicais de um época (Lidov, 2005). Isso geraria
uma confusão na análise, já que seriam momentos distintos de reflexão para o mesmo
objeto e os conceitos de langue e parole. Já do ponto de vista da semiótica, a partitura é
um sin-signo, um existente, o que possibilita uma análise menos ambígua. É preciso
notar que, enquanto marca da identidade musical, ela serve como matriz a performance,
o que implica que poderíamos estar lançando mãe de um sin-signo que funciona como
langue. No entanto, interessa-nos ainda o problema da semiose da composição musical
e como se dá o processo de transdução do afeto para a partitura, por meio também da
semiótica peirceana, o que desloca o foco das nossas questões sobre a partitura do
problema referencial para o composicional. Enquanto parole, ela estaria ligada ao estilo
da época, que influencia a forma que tomará a composição. No entanto, restringimos a
análise da composição aos afetos vividos e os legi-signos de notação musical.
50
7.2 INTRODUÇÃO A CONCEITOS GERAIS DE SEMIÓTICA PEIRCEANA
7.2.1 O Signo
Para Peirce, signo é tudo que transporta qualquer noção definitiva de um
objeto. A partir dessa ideia eu faço a melhor analise que puder acerca do que é mais
essencial para esse signo e defino como representamen como aquilo que essa análise
puder ser aplicada. Não pode haver nenhuma ideia falsa sobre o signo para que
possamos chamar essa ideia de representamen. O representamen gera um signo
equivalente a si-mesmo na mente de alguém, que é o interpretante. O signo se relaciona
com o objeto, mas não de todas as formas, mas com referência a um tipo de ideia, que
pode ser chamada de fundamento do representamen (CP 1.540).
Em 1903, Peirce realizou palestras no Lowell Institute e em Harvard
University, quando propôs que os signos poderiam ser divididos em três categorias
(Romanini, 2006). A essas subdivisões ele denominou de “Primeira Tricotomia dos
Signos”. A primeira subdivisão é definida pelo signo-em-si-mesmo, a segunda é dada
na relação do signo com o seu objeto e a terceira é dada na relação com o seu
interpretante (CP 2.264).
Um quali-signo é uma qualidade que não pode agir enquanto um signo até
tomar forma. Mas a sua materialização não influencia o seu caráter de signo (CP 2.244).
Um exemplo é o timbre da voz de Karolina Andersson, que estrelou o papel da Rainha
da Noite na temporada de ópera de 2015 de uma capital europeia35.
Um sin-signo é um evento singular (a sílaba "sin" traz o significado de ser
único, como em singular ou simples). Ele pode envolver um ou mais quali-signos (CP
2.245). Um exemplo de sin-signo é a partitura da peça “A Flauta Mágica”, elaborada
por Wolfgang Amadeus Mozart36.
Um legi-signo é uma lei que é um signo. Dessa maneira ela é geralmente
convencional. Não envolve a ideia de existente ou de singular, mas de uma
generalização importante a partir de um consenso. O legi-signo exige a presença do sin35
Alguns dos exemplos para as dez classes de signos foram extraídos a partir de situações ligadas à
apresentação da peça “Trollflöjten”, versão adaptada para a língua sueca a partir da peça “Die
Zauberflöte”, de Mozart e Schikaneder. A peça Trollflöjten foi apresentada na Ópera Real de Estocolmo
no dia 14 de Janeiro de 2015. O folhetim vendido no evento encontra-se escaneado nos elementos póstextuais dessa dissertação, no Anexo C.
36
Uma versão digitalizada da partitura da Ária 14 da peça “A Flauta Mágica” encontra-se anexada nos
elementos pós-textuais dessa dissertação (Vide ANEXO A).
51
signo para se manifestar, mas um tipo especial de sin-signo, conhecido como “réplica”
(CP 2.246). Os elementos de notação musical que definem o tempo de duração da nota
são legi-signos. Os seus diversos registros nas partituras que podemos observar, por
exemplo, na partitura da “Flauta Mágica”, são chamados de réplicas (Monelle, 1991).
7.2.2 Objeto Dinâmico e Objeto Imediato e as Relações entre Signo e Objeto
Nas cartas para Lady Welby e William James entre 1904 e 1909, Peirce
colocou, a partir de uma inspiração estóica, que havia dois objetos para o signo (Short,
2007). O primeiro é um objeto formalmente reconhecido no signo de forma que já é
uma ideia, denominado então de objeto imediato. O segundo objeto independe de
qualquer um dos seus aspectos. Peirce coloca que ele é o objeto das ciências dinâmicas
e, por isso, ele recebe o nome de objeto dinâmico (CP 8.183). O objeto dinâmico é já
um objeto em termos de eficiência, mas ainda não é um objeto imediatamente presente,
como deverá ser o objeto imediato. Enquanto o objeto imediato é o lekton dos estóicos,
o objeto dinâmico existe independente da sua representação (Short, 2007). Ressalta-se
que não faz sentido dizer que esse objeto dinâmico se aproxima à coisa-em-si37
kantiana, que sempre escapa à possibilidade de conhecermos acerca dele, uma vez que
negar essa possibilidade já é uma ideia sobre esse objeto. Para Peirce, o objeto dinâmico
é mais o objeto independente da sua representação do que um objeto irrepresentável
(Short, 2007).
A segunda tricotomia do signo é dada com referência ao objeto. Dessa maneira,
ele pode ser um ícone, um índice ou um símbolo (CP 2.247-9).
Um ícone tem como essência da sua relação com o objeto a semelhança. Isso
porque ele partilha com o objeto uma série de qualidades (CP 2.247). Os melismas
agudos cantados pela Rainha da Noite na Ária 14 representando a profunda dor que ela
sente são um exemplo de relação icônica.
O índice se relaciona com o seu objeto por meio de uma relação de existência.
Ele o representa por meio de relações dinâmicas com ele (Martinez, 1997). Um exemplo
de índice são as linhas vocis da Ária 14 da peça “A Flauta Mágica” com relação à
opulência do canto vocal italiano do século XVIII (ainda que a Flauta esteja em língua
alemã, a imponência das dramáticas linhas vocais indica a influência do canto vocal
operístico italiano do século XVIII).
37
Ding an sich.
52
O símbolo é uma lei ou uma regularidade ligada a um futuro indefinido. Mas
uma lei governa ou deve necessariamente ser incorporada em indivíduos e prescrever
algumas de suas qualidades. A relação do símbolo com o objeto é ordenada por
associações de ideias gerais que fazem com que o símbolo seja interpretado com
referência àquele objeto (CP 2.249). A peça “A Flauta Mágica”, apesar de pertencer às
salas de ópera mais do que a rituais maçonicos propriamente ditos, está ao lado das
outras peças de Mozart voltadas para cerimoniais da maçonaria como a “Gesellenreise”
(K.46838) (Eisen & Keef, 2006). Dessa forma, é possível dizer que, simbolicamente, “A
Flauta Mágica” é uma “Ópera Maçônica”.
7.2.3 Interpretantes e suas relações com o signo
Ao longo das obras completas de Peirce é possível encontrar uma vasta gama
de tipos de interpretantes (Short, 2007). Nesse contexto, é possível distinguir duas
tricotomias. A primeira, criada em 1904, está dentro da estrutura teleológica da semiose,
na qual Peirce irá incluir o interpretante imediato, o interpretante dinâmico e o
interpretante final. Essa estrutura teleológica se engaja com a faneroscopia peirceana,
criada em 1907, e subdivide os interpretantes em emocional, energético e lógico (Short,
2007). A tentativa de igualar o primeiro, o segundo e o terceiro interpretante de cada
uma das duas séries não procede. Isso porque cada um dos três interpretantes da série
teleológica possui três diferentes subdivisões, definidas pelo seu engajamento com a
série da fanerescopia. Essa é a posição mais próxima daquela dada por Peirce (Martinez,
1997; Short, 2007).
O interpretante imediato, assim com o objeto imediato, pertence ao signo e,
enquanto interpretante, compreende uma potencialidade que é a base de toda
interpretabilidade. O interpretante imediato consiste numa qualidade da impressão que o
signo foi feito para produzir (CP 8.315). O interpretante dinâmico ultrapassa o limite da
potencialidade, exigindo a presença de um signo formado (CP 8.343). O interpretante
final, além de ser uma possível qualidade a ser interpretada, é um interpretante ideal,
uma tendência interpretativa final a ser reconhecida como verdadeira caso haja um
consenso unânime sobre o fato de ele ser verdadeiro (CP 8.184).
Esse último conceito foi um dos mais difíceis de serem definidos, ora sendo
38
As numerações seguidas pelo K dizem respeito ao Catálogo Köchel, que enumera as obras de Mozart.
A Flauta Mágica é conhecida como K.620. Uma variação do uso do K é o KV, quando mencionada a
publicação em alemão (Köchel, Giegling & Sievers, 1964).
53
chamado de "interpretante significante", ora de "interpretante representativo". Em nove
de outubro de 1905, Peirce colocou que o interpretante representativo é aquele que
corretamente representa o signo como sendo um signo do seu objeto. Em dois de abril
de 1906, Peirce irá chamar o interpretante final de "interpretante normal", ou "genuíno",
que envolveria tudo que um signo pode revelar acerca de um objeto para uma mente
suficientemente suscetível (Short, 2007).
No âmbito da faneroscopia peirceana, o interpretante emocional é um
sentimento, só que mais do que isso. Muitas vezes ele é o único efeito significativo que
o signo produz. De acordo com Peirce, “a performance de um uma peça musical
concertada é um signo. Ela carrega e tem a intenção de carregar as ideias musicais do
compositor; mas essas geralmente consistem meramente numa série de sentimentos39”
(CP 5.475).
Caso a peça musical citada acima produzir algum efeito apropriado em termos
de significação ela o irá fazê-lo por meio de um interpretante energético. Este envolve
um esforço, que pode ser muscular ou mental. O interpretante energético nunca pode ser
intelectualizado já que ele é um ato singular, enquanto que o âmbito da intelectualidade
é de natureza geral (CP 5.475).
Peirce irá denominar de interpretante lógico um pensamento que irá interpretar,
por exemplo, um comando militar (Short, 2007). O interpretante lógico é um efeito para
além daquele de ordem mais somática, ligada ao interpretante energético. Ele pode ser
um pensamento intelectual (CP 5.476). Nem todo contexto de comunicação é preciso
pensar e refletir, de forma que nem toda interpretação deve ser intelectual. Isso porque,
por vezes, algumas palavras que chegam a nós são já transformadas em ação, por efeito
do interpretante energético, e não exigem a presença de um pensamento (Short, 2007).
A terceira tricotomia dos signos é dada com relação aos interpretantes. Nesse
contexto, temos os remas, os signos dicentes e os argumentos.
Um rema é um signo de possibilidade qualitativa, ou seja, é compreendido
enquanto sendo representante de um objeto possível (CP 2.250). Qual será a vestimenta
do personagem Sarastro de forma que se adeque à proposta de compor uma paródia para
a peça Flauta Mágica40? Trata-se de um exemplo de rema.
Um dicente é um signo que se dá como um existente para o seu interpretante
39
the performance of a piece of concerted music is a sign. It conveys, and is intended to convey, the
composer's musical ideas; but these usually consist merely in a series of feelings (CP 5.475).
40
Na ocasião da apresentação da “Flauta Mágica” em Janeiro de 2015, Sarastro foi representado como
líder de um grupo de escoteiros e, portanto, vestia-se a caráter.
54
(CP 2.251). Um exemplo dessa classe sígnica surge no contexto de uma visita à ópera
de Estocolmo quando um convidado, levado às escuras para assistir uma peça que ele
não sabe antecipadamente qual é, de repente reconhece a “Flauta Mágica” em execução.
Um argumento é um signo que representa seu objeto de forma a produzir um
interpretante comunicativo final lógico (Romanini, 2006). É um signo que, para o seu
interpretante, é um signo de lei (CP 2.252). Um exemplo de argumento musical é o
pensamento, ou uma série de reflexões de um profundo conhecedor da peça “A Flauta
Mágica” enquanto ele aprecia a execução da mesma numa casa de ópera.
7.3 QUESTÕES DE PRIMEIRIDADE: O QUALI-SIGNO, A QUESTÃO ICÔNICA E
A RELAÇÃO DA MÚSICA COM AS EMOÇÕES
Os elementos da semiótica peirceana têm sido utilizados no contexto da música
(Monelle, 1991; Martinez, 1997; Santaella, 2001). É considerada a relação do que
Peirce irá denominar de qualidades, no âmbito da primeiridade e da relação de
semelhança entre as qualidades musicais e as emoções e os afetos humanos (Kruse,
2007). A relação musical mais direta, iconicamente, se dá entre as qualidades que
permeiam a ideia composicional e as emoções que a música virá a expressar. Os
personagens sociais da fenomenologia social musical de Roman Ingarden nos permitem
um estudo mais organizado, já que contextualiza a ideia composicional ao nível do
compositor. Antes de escrever a partitura, ele deve utilizar seu conhecimento sobre as
emoções humanas para formular e registrar a composição musical (Langer, 1957). Além
disso, precisará lançar mão de técnicas composicionais específicas que são necessárias à
criação de um trabalho artístico musical (Tagg, 2011), que será eternizado na partitura
(Ingarden, 1966), que já não é mais um possível arranjo de qualidades musicais, mas um
existente concreto (Monelle, 1991).
Dessa maneira, a ideia composicional se configura como signo que representa
o arranjo dos quali-signos musicais que possuem semelhança com os sentimentos
humanos e que, portanto, os representam, funcionando como signos icônicos em relação
aos objetos afetivos (Kruse, 2007). Sendo a ideia composicional um arranjo de qualisignos que representam determinada emoção humana, a sua relação com o objeto
emocional será necessariamente icônica. Do ponto de vista da teoria peirceana, esse
objeto enquanto já representado é o objeto imediato, do qual já temos uma ideia sobre
ele. Por outro lado, esse objeto, enquanto independe da sua representação é o objeto
55
dinâmico, alvo da observação científica (Short, 2007).
Os signos podem ser de três tipos, segundo a classificação original proposta
por Peirce. A primeira classe de signos são os quali-signos. Peirce utilizou-se do termo
qualia, a partir do sensacionaista francês Pierre Maine de Biran (Martins, 2005) para
criar o quali-signo. A qualia está ligada aos estados puramente afetivos, sobre os quais
não há uma tomada de consciência sobre o afeto. Trata-se apenas das qualidades desse
afeto. Nessa análise dos tempos sociais musicais, os quali-signos se articulam nas ideias
composicionais de forma que irão fundamentar a possibilidade de representação ao
nível da secundidade. Dessa forma, a ideia composicional precisará lançar mão de uma
série de qualidades de emoções para permitir que o compositor crie uma partitura real.
As possíveis qualidades em formato de combinação, enquanto ideias composicionais
possíveis são, também, quali-signos. Essa forma de ver o processo de produção e de
composição musical ajuda a entender como o compositor, segundo Susanne Langer,
precisa fazer um arranjo no formato de uma ideia composicional e escrevê-la na
partitura a partir das emoções humanas que ele conhece.
Tendo como meta a utilização da partitura da Ária 14 e o canto da “Rainha da
Noite” para compreender o afeto da vingança a partir da dinâmica musical de sua mais
famosa Ária, “A vingança do inferno incendeia meu peito41”, isso não impede que a
Salomé de Richard Strauss não possa apresentar outras possibilidades de significados
musicais da vingança (Coriat, 1914). O quali-signo elicia o seu objeto devido a um
ingrediente ou qualidade comum que possui com ele (Kruse, 2007). Nesse sentido, as
proposições musicais de “Salomé” e “A Flauta Mágica”, possuem afetos semelhantes
quando tratam da vingança (Whitehead, 1978; Diaz de Chumaceiro, 1992; Castarède,
2002) e denotam o seu objeto por possuírem relação de similaridade com o afeto da
vingança (Kruse, 2007).
7.4 A PARTITURA COMO SIN-SIGNO
A música, enquanto ideia composicional, é um arranjo dos quali-signos que
possuem relação de semelhança com os afetos que representa. No entanto, essa
constatação vale somente para o momento em que a música permanece enquanto ideia
composicional, e remática, enquanto possibilidade (Monelle, 1991; Santaella, 2001).
Por outro lado, quando falamos de uma música atualizada, que saiu do seu aspecto
41
Der Hölle Rache kocht in meinen Herzen.
56
possível, e agora pode ser percebida, já estamos em um nível, que é segundo e sinsígnico. Dessa maneira, é possível dizer que a partitura pode ser um sin-signo icônico
remático enquanto conectada com a ideia composicional, representar apenas as
qualidades afetivas e provocar apenas um efeito emocional (já que se trata de uma
relação remática com o interpretante, de primeiridade).
Por outro lado, a partitura pode ser um sin-signo indicial remático quando a
relação com o objeto não mais for icônica, ou seja, estiver produzindo as qualidades do
som, mas quando for indicial e, portanto, possuir uma relação material com o objeto.
Quando a ideia composicional toma a forma de frases musicais por meio da sua
codificação a partir dos legi-signos musicais e sua atualização na forma de réplicas, ela
já assume a forma de uma frase, tal como na partitura. Nesse caso, a partitura pode
revelar a ideia composicional que já tomou a forma de frase musical. Em ambos os
casos, o efeito da partitura no que concerne o interpretante é apenas uma possibilidade.
Ela apenas irá permitir a incorporação de um significado quando a partitura for um sinsigno indicial dicente.
Na figura 1 podemos observar a música como quali-signo e como sin-signo nas
suas formas de se relacionar com seu objeto e na forma como produz efeitos. Nela,
podemos observar o compositor: Mozart, que possui as ideias composicionais que
encerram os afetos conhecidos por ele, mas também a ideia composicional numa forma
já elaborada, como um existente que corresponde ao que está escrito na partitura. As
ideias composicionais são quali-signos icônicos remáticos relativos aos afetos
conhecidos pelo compositor e a partitura, por sua vez, é um sin-signo que pode ser um
ícone em relação às qualidades afetivas da música ou índice da ideia musical na forma
que o compositor a conceber antes de escrevê-la de fato. Nesse último caso já se trata
mais de uma “partitura mental”. Esses dois últimos tipos de sin-signo podem gerar um
efeito emocional ou energético, dependendo da tricotomia ativada: a primeiridade ou a
secundidade.
57
Figura 1: A relação entre a partitura, a ideia composicional e o afeto
58
A partitura musical não é considerada como música por que, em si, não é da
mesma ordem que os processos físicos de vibração que produzem o som. Ela é apenas
uma “aide-mémoire”. Nesse sentido, Celestine Deliège coloca que: “O desenvolvimento
da história da música precisou da partitura porque a nossa cultura musical é
essencialmente notacional” (Deliège, 1987, p.243).
É certo que, enquanto um existente real, seja o processo acústico ou a
partitura, é preciso que se lançe mão de legi-signos que são extraídos do universo da
composição musical e das leis da física para que a ideia composicional possa ter uma
existência real. Segundo Tarasti (1987), os legi-signos servem como modelo para
criação do objeto artístico que, particularmente, é um sin-signo, e pelas suas qualidades
aurais e concretas, é um quali-signo.
7.5 LEGI-SIGNOS MUSICAIS
Uma única nota musical em meio ao fio melódico cantado é portadora de uma
série de parâmetros. Tem uma altura, uma duração e uma intensidade. A nota também
possui dinâmica, andamento e timbre. A atividade de variar a dinâmica, o andamento e
o timbre é típica dos intérpretes que fazem novas versões de músicas já existentes. A
escolha dos timbres também é fundamental na composição musical. É possível resgatar
da teoria musical os aspectos que irão determinar a altura, o andamento e a intensidade
sonora, reconhecendo-os como elementos necessários para a elaboração da ideia
composicional concretizada na partitura: São os legi-signos musicais (Tarasti, 1987;
Monelle, 1991; Martinez, 1997). Eles dividem-se em seis: 1) Argumento (ou Legi-signo
Simbólico Argumentativo); 2) Símbolo Dicente; 3) Símbolo Remático; 4) Legi-signo
indicial remático; 5) Legi-signo icônico.
Tomemos como exemplo a fotografia 1, extraída da História da Música
Ocidental, de Donald Grout e Claude Palisca (Grout & Palisca, 1994, p.410). Ela ilustra
um excerto de partitura elaborada por Arcangelo Corelli, o adagio da Sonata Opus 5, nº
3. Segundo Grout e Palisca (1994), essa peça constitui “uma prefiguração das longas
cadenzas dos concertos dos períodos clássico e romântico” (p.411). Ainda segundo os
historiadores, John Ravenscroft publicou em Roma, no ano de 1695 uma série de doze
trio sonatas, “num estilo praticamente impossível de distinguir do de Corelli” (p.411).
Isso faz com que a Sonata de Corelli possa servir como legi-signo no auxílio de
compositores posteriores. Esse tipo de influência da partitura sobre outras composições
59
faz com que, a partir do momento em que ela já é um sin-signo, possa funcionar como
um legi-signo. Assim sendo, ela poderá servir como lei, devendo antes configurar-se
como um existente singular. Segundo Kruse (2007), caso um ouvinte esteja inserido na
terceiridade e possa lançar mão de interpretantes lógicos, ou seja, possua os meios
lógicos para decifrar a música e o seu significado, ela poderá perceber a influência de
uma Sonata de Corelli sobre uma de Ravenscroft. Para Martinez (2007), também é
possível tratar a partitura como um legi-signo, mas apenas o ouvinte especializado
poderá entrar em contato com esse signo.
Fotografia 1: Página 410 da História da Música Ocidental de Donald Grout e Claude
Palisca:
No tópico 7.2.3. tratamos das possíveis denominanações para as relações entre
o signo e o o interpretante. Tomemos o exemplo do argumento, que será sempre Legisigno simbólico argumentativo. A sua réplica é um sin-signo dicente (CP 2.263), que,
conforme vimos na figura 1, é a forma lógica da partitura enquanto permite a
incorporação de um significado, e não representa apenas as características do seu objeto
60
e possibilidades de significação42 (no seu caso enquanto sin-signo remático).
Segundo Martinez (1997), os pensamentos de um conhecedor de música que
acompanha a execução de um raga executado por um grande músico é um exemplo de
argumento. Nesse sentido, esse pensamento se dá por meio da apreciação de legi-signos,
já que estamos falando de um ouvinte especializado (lançando mãos de interpretantes
lógicos) que está acompanhado de um intérprete cuja técnica na execução permite a
identificação dos diversos elementos que viabilizam a construção do significado
musical. O caráter argumentativo da música se torna real por meio da sua réplica, o sinsigno dicente, que contém os pontos de determinação da partitura, ou seja, o seu arranjo
melódico único. Nesse caso, é a partitura daquela música que está sendo executada que
deve ser acessada pelo ouvinte especializado. É por meio dessa réplica que o signo
veicula informação, já que essa é característica do dici-signo (CP 2.309). É preciso
também considerar que a natureza do signo dicente não permite distinguir se ele é
verdadeiro ou falso, será apenas na sua ligação com o argumento que virá a conclusão
sobre a veracidade da proposição musical. Nesse sentido, no caso de uma descrição
séria do ouvinte especializado sobre o porquê daquela música se configurar de uma
forma e não de outra deve ser ouvida reconhecendo o seu caráter argumentativo. Não é
o caso de um discurso ad hominem, mas sim de uma argumentação com base no sentido
veiculado pelo sin-signo indicial dicente e a comprovação de que aquela proposição é
uma verdade. Mas o argumento não é o único caso de legi-signo musical.
Consideremos também o Símbolo Dicente (ou Legi-signo simbólico dicente).
Ele é um signo conectado com o seu objeto por meio de uma associação geral de ideias,
mas, atua como um símbolo remático. Diferencia-se deste porque o seu interpretante
representa o símbolo dicente, no que tange àquilo que ele significa, sendo afetado pelo
seu objeto. Sendo assim, podemos dizer que ele envolve um Símbolo Remático para
expressar a informação e um Legi-signo indicial remático para indicar o sujeito (lógico)
da informação. A réplica do símbolo dicente é também um sin-signo dicente (como no
caso do argumento), mas um tipo especial desse signo já que ele transmite uma
informação sobre um fato atual, ou de uma lei instanciada. Nesse caso, o símbolo
dicente possui essa característica de apenas indicar um fato, sem que se possa afirmar a
verdade sobre o fato, já que não há terceiridade no aspecto relacional entre o signo e o
42
Esse aspecto é o que faz com Monelle (1991) defenda a ideia de que não existem dicentes musicais.
Portanto, a partitura não poderia ser um sin-signo indicial dicente porque ela não veicula um existente,
um fato.
61
interpretante (CP 2.262). Diferentemente do caso da escuta especializada que citamos
para ilustrar um argumento, em que o ouvinte é capaz de afirmar sobre a relação entre
os legi-signos musicais utilizados na peça executada e o processo acústico gerado pela
sua execução, o símbolo dicente envolve uma afirmação sobre a qual não se pode
afirmar a verdade, ainda que se dê como um fato. Ela é a premissa do Argumento (CP
2.2.53). Com relação à partitura, um intérprete pode fazer uma asserção sobre a lógica
musical da composição, mas não é possível verificar a veracidade delas, já que a
tendência para representar a verdade é defesa ao argumento.
Outro tipo de Legi-signo é o Símbolo Remático (ou Legi-signo Simbólico
Remático). Ele suscita uma imagem que age sobre o símbolo, que já está numa dada
mente, para produzir um conceito geral. A imagem gerada pela réplica tende a produzir
um conceito geral, e a réplica (um sin-signo indicial remático) é interpretada como um
Signo de um Objeto que é uma instância daquele conceito. Nesse caso não temos os
aspectos que permitem a identificação de um argumento (a verificação da veracidade
daquele sentido) ou de um dicente (a verificação de algum sentido), mas apenas a
suscitação de uma imagem sobre o símbolo. O símbolo remático é o predicado lógico.
Na ausência de um fato, ficamos apenas com os exemplos tais como “é filha”, “é
ardente”. Já que não se trata de uma proposição universal e apenas de nomes comuns, é
possível agrupar trechos musicais que permitam a identificação desse nome comum.
Martinez (1997) menciona exemplos de música indiana que imitam o roar de um leão
como uma imagem musical.
Vejamos ainda o caso do Legi-signo indicial dicente. Ela é a forma da partitura
como uma lei, materialmente afetada pelo objeto que ela denota e que, ainda, veicula
uma informação que, em virtude do seu caráter de secundidade, não permite a constação
sobre a veracidade da proposição (mas não se trata somente de uma possibilidade de
significação). É o caso de uma significação atualizada, mas que não possui caráter de lei
com relação ao objeto, apenas de afetação material, ainda que envolva signos
convencionais. É o caso, portanto, do trabalho composicional, capaz de veicular
informação, que se atualizará na sua réplica, o sin-signo indicial dicente. Ele precisa
daquilo que Monelle define como “Art Work”, ou seja, que haja a possibilidade
interpretativa daquele signo de lei e ainda, que se possa denotar o sujeito da informação.
Mas precisa do Legi-signo icônico (remático) para significar a informação. É essa
articulação que Monelle (1991) nega. Isso porque a música nunca pode funcionar como
dicente. Mas, como Martinez (1997) coloca, o reconhecimento de uma peça musical ao
62
escutá-la, já é um signo dicente.
Retomemos então ao que Monelle define como “Art Work” para explicar o que
é o legi-signo indicial remático e a sua réplica, uma partitura que, segundo ele, é um sinsigno indicial remático (Monelle, 1991). Segundo a nossa semiose do processo
composicional (figura 1), essa definição da partitura já nos permite identificar a
“representação da ideia composicional sob a forma de frases musicais elaboradas”, mas
que gera um efeito emocional, uma possibilidade qualitativa de interpretação. É o caso
de uma primeiridade, própria da naïvidade artística (Peirce in Monelle, 1991).
Mas, nesse contexto, não é permitida a incorporação de significados. Por outro
lado, é preferível reconhecer a instância do legi-signo indicial remático como uma
partitura que já funciona como lei, que foi materialmente modificada pelo seu objeto (no
próprio processo de sua criação) e que oferece possibilidades interpretativas, mas nunca
uma proposição ou constatação. Sendo assim, ela é a regra que determina que a partitura
da “Flauta Mágica” estará, no caso da necessidade de sua presença, de fato presente
numa situação específica, como quando a uma orquestra precisa dela para auxiliar a
execução da peça (Romanini, 2006). É a relação de lei entre a partitura e a sua
concepção convecional.
Como a sua réplica é o sin-signo indicial remático, podemos dizer que ela se
relaciona ao conceito mais exato que Raymond Monelle tem sobre a partitura, que
assume uma posição marcada pela virtualidade da obra de arte e, portanto, não poderia
ser um dicente, o que impediria, inclusive, a argumentação peirceana no campo da
musicologia. Mas, segundo Aksnes (2001), podemos falar de metonímias musicais.
Mais ainda, quando observamos o elemento motivacional da significação musical,
podemos observar não uma virtualidade, mas verdadeira atualização (Aksnes, 2001).
Isso implica que o campo da musicologia não se restringe ao da formação de metáforas,
o que seria o caso da visão sobre a experiencia estética marcada por símbolos icônicos43
(Dewey, 1934). Se considerarmos significados musicais apenas por meio de metáforas,
ficamos impedidos de trabalhar com dicentes, como sustentado por Monelle. No
entanto, não parece que o caso do símbolo indicial44 impede a existência de dicentes
(Romanini, 2006). Isso implica que negar a possibilidade da obra de arte de se
configurar como um dicente é também negar a possibilidade de criação de metonímias,
o que é viabilizado pelo legi-signo metonímico dicente (Romanini, 2006).
43
44
Metáfora (Romanini, 2006).
Metonímia (Romanini, 2006).
63
No entanto, é preciso considerar que o que Monelle chama de “Art Work” não
se restringe ao conceito de Dewey, e se assemelha mais como o trabalho composicional
contido na partitura, conforme a definição de Roman Ingarden (1966). Mas tomemos o
caso então do conceito de Produto Artístico, em vez do conceito de “Art Work” para
John Dewey e vejamos se há saída para consideramos a possibilidade de dicentes
musicais. O Produto Artístico, na sua própria definição, é uma atualização da
imaginação do artista e nesse sentido pode ser a partitura ou a execução de uma peça.
Não seria ele, o Produto Artístico, que deve estar presente na atribuição de sentido
musical com o auxílio dos interpretantes emocionais e lógicos? (Kruse, 2007). E o
efeito desse Produto Artístico não seria exatamento o que Dewey denomina como “Art
Work”?45
Ora, se por um lado o signo dicente é justamente o signo que veicula
informação (CP 2.309), a sua ausência no processo de semiose, impediria a transmissão
dela. Nesse caso, parece impossível a articulação com interpretantes lógicos que
permitam a identificação de elementos com sentido numa determinada peça caso
consideremos o “Art Work” apenas no seu caráter remático. Mas, permanece a situação:
Um trabalho composicional sem incorporação de significados será certamente o legisigno indicial remático, mas se o caso for outro, então já se trata de um legi-signo
indicial dicente.
O último caso dos legi-signos é o do legi-signo icônico. Para Peirce, ele é uma
lei-geral, à medida que ele requer que cada instância sua incorpore a qualidade
específica que o confere a capacidade de suscitar na mente a ideia de um objeto com o
qual possua relação de semelhança (CP 2.258). As qualidades musicais presentes numa
partitura são legi-signos icônicos, conquanto se trate apenas das qualidades musicais
ligadas aos respectivos legi-signos (por exemplo, a qualidade de uma nota de dois
tempos, ou de um intervalo de quinta aumentada). Basta notar que são as qualidades dos
parâmetros musicais que se assemelham aos da dinâmica dos afetos e que, enquanto
elementos convencionais, se configuram como legi-signos. Para Peirce, são eles que vão
significar a informação denotada pelo Legi-signo indicial remático, envolvidos na ação
do legi-signo indicial dicente (CP 2.260).
Consideradas essas noções sobre os legi-signos musicais, cabe identificar uma
45
As reflexões sobre a estética de John Dewey foram apresentes pelo Prof. Dr. Robert Innis, da
University of Massachussets, quando da ocasião do congresso em homenagem ao centenário da morte de
Charles Sander “Santiago” Peirce, em Lowell, MA, em um julho de 2014.
64
série de elementos usados na notação musical que irão nos auxiliar a identificar a
dinâmica do afeto (objeto do estudo de caso).
7.5.1 Aspectos da Duração das Notas Musicais
Ao observamos o aspecto da notação musical referente à duração da nota e as
pausas, temos diversas notações. Ateremos aqui às notas de duração de quatro tempos,
até a com duração de um dezesseis avos de tempo. A semibreve é a nota que indica a
execução em quatro tempos. A mínima representa metade da semibreve, indicando dois
tempos. A semínima indica a metade da mínima, exigindo a execução de um tempo
inteiro. A colcheia indica a metade da duração da semínima, exigindo a execução de
meio tempo. A semicolcheia indica a metade da colcheia, e indica a execução de um
quarto de tempo. A fusa, por sua vez, representa 1/32 avos do tempo da semibreve,
enquanto a semifusa a razão de 1/64 avos. Na tabela 1 podemos observar a semibreve na
1ª linha com representação da duração das notas. Abaixo dela podemos observar a
mínima, e assim por diante.
Utiliza-se um ponto à esquerda do símbolo para indicar que aquela nota deve
ser acrescida à sua duração o equivalente a metade do seu tempo.
65
Tabela 1: A representação do tempo das notas musicais
Nota
Duração
Semi-breve
Quatro tempos
Mínima
Dois Tempos
Semínima
Um tempo
Colcheia
Meio tempo
Semi-colcheia
Um quarto de tempo
Fusa
Um oitavo de tempo
Semi-fusa
Um dezesseis-avos de tempo
Símbolo
7.5.2 Elementos da Dinâmica do Andamento das Notas Musicais
No que tange à dinâmica do andamento da execução de uma peça, existem
termos italianos que indicam como se deve proceder. Os andamentos Prestissimo e
Presto são os dois mais acelerados. De fato, o termo prestissimo sugere que a peça seja
tocada o mais rápido possível (Brown, 1987). As nomenclaturas Vivace, Allegro,
Allegretto e Moderato, dizem respeito a velocidades que vão do vivaz (Vivace) a uma
velocidade moderada (Moderato). Os termos Andantino, Andante e Adagio referem-se a
formas mais lentas de executar a peça do que o Moderato. Os termos Larghetto, Largo,
Lento e Grave são as formas mais lentas de executar a peça (Brown, 1987). Ainda a
respeito da dinâmica do andamento, pode-se considerar a possibilidade de inserir uma
variação na velocidade de tocar a peça entre um de seus trechos e outro. Para isso, surge
o termo rallentando, que sugere a diminuição da velocidade de forma gradual, e o termo
accelerando, que sugere o aumento da velocidade, de forma também gradual. O termo
Meno mosso pede que a peça seja executada de forma mais lenta abruptamente. O termo
Piú Mosso pede que a peça seja executada mais rapidamente, de forma abrupta. Os
termos Ad libitum ou A piacere sugerem que o músico execute a peça como desejar
(Brown, 1987).
66
7.5.3 Aspectos Concernentes a Altura das Notas Musicais
A organização da notação musical para altura das notas, na forma como
concebemos hoje, teve como um dos maiores responsáveis o nome de Guido D’Arezzo.
De forma a orientar a formação na técnica de leitura à primeira vista, D’Arezzo propôs
o método da solmização que é usado até hoje no ensino da música. A solmização
constitia numa método que ajudava na memorização da sequência das notas com base
num hino sáfico anterior ao século IX. Na sua proposta, que segue da nota Ut (ou Dó)
até a nota Lá, existe um meio tom entre a terceira e quarta notas (Mi e Fá,
respectivamente). Entre todas as outras o intervalo é de um tom (Grout & Palisca,
1994). Ressalta-se que, hoje em dia, adiciona-se após a nota Lá a nota Ti (Si, em línguas
latinas), mas que exige a presença de mais um meio-tom, entre ela e o Dó (ou Ut). Até
hoje alguns músicos franceses preferem o uso do Ut em vez do Dó (Grout & Palisca,
1994). Na figura 2, podemos observar uma ilustração do hino sáfico citado, com realce
na cor vermelha, para as sílabas que indicam as notas musicais. É possível notar que a
escrita da altura das notas não é feita como hoje em dia, a começar pelo uso de quatro
linhas, em vez da cinco, usadas no pentagrama (Vide Anexo A).
Figura 2: Hino sáfico homenageando São João
Fonte: https://michelinewalker.files.wordpress.com/2011/11/809585948.jpg
67
7.5.4 Elementos para a Indicação da Intensidade das Notas Musicais
Quanto aos aspetos que marcam a intensidade do som podemos citar o piano,
(p), o Pianíssimo (pp) e o Pianíssimo (ppp), que determinam a execução de um som
pouco intenso, fraco. O termo Mezzopiano (mp) indica a execução do som de forma
moderadamente fraca. Já o termo Mezzoforte (mf) exige a execução do som de forma
moderamente forte. Os termos forte (f), fortíssimo (ff) e fortissíssimo (fff), indicam, de
forma crescente a intensidade sonora a ser executada pelo intérprete (Brown, 1987).
7.5.5 As Escalas e os Intervalos Musicais
A unidade da harmonia é o intervalo (Piston, 1941). Schenker (1954) resgata a
postura dos antigos mestres da composição musical que utilizavam a notação do baixo
contínuo, ou seja, de sinais numéricos sobre o pentagrama para comunicar ao cantor
quais intervalos eram desejáveis naquele trecho. Havia muita preocupação com o uso de
intervalos desejáveis, tais como a segunda maior, menor ou aumentada; a terceira maior,
menor ou diminuta; a quarta perfeita, diminuta ou aumentada; a quinta perfeita,
diminuta ou aumentada, a sexta maior, menor diminuta ou aumentada; a sétima maior,
menor ou diminuta, entre outros.
Enquanto Schenker (1954) coloca que o conceito de intervalo é inseperável da
ideia de harmonizabilidade, o que tem como consequência o fato de que o número de
intervalos possíveis não é infinito, mas fixo. Mas hoje já não é preciso usar figuras para
delinear os intervalos musicais (Piston, 1941).
Piston (1941) propõe que o conceito de intervalo pode ser melhor definido pela
ideia de distância entre duas notas. Quando duas ou mais notas são ouvidas
simultaneamente, trata-se de um intervalo harmônico. Quando os sons não são ouvidos
simultaneamente, trata-se de intervalo melódico. Mas a ideia de distância entre as notas
permanece a mesma. Dessa maneira, os intervalos que surgem da teoria da harmonia,
podem ser aplicados tanto sincrônica quanto diacronicamente. Independente do
intervalo ser de um tipo ou outro, podemos classificá-los da seguinta maneira: 1 –
Uníssono; 2 – Segunda; 3 – Terceira; 4 – Quarta; 5 – Quinta; 6 – Sexta; 7 – Sétima; 8 –
Oitava; 9 – Nona. Quando o intervalo for maior do que o de oitava, trata-se de um
intervalo composto.
68
Os intervalos podem ser aumentados, justos, maiores, menores ou diminutos.
Outra categorização de intervalos é que faz a diferenciação entre consonantes e
dissonantes. Os primeiros são os intervalos perfeitos, as terças e sextas maiores e
menores. Os intervalos dissonantes são os intervalos aumentados ou diminutos e as
segundas, sétimas e nonas maiores ou menores (Piston, 1941).
O conceito de intervalo é fundamental para compreender as escalas musicais.
Os tons que formam os intervalos são extraídos das escalas. Elas se organizam a partir
da distribuição de tons inteiros ou semi-tons. Vejamos como se comportam as escalas
do ponto de vista da sua nota fundamental e como os intervalos da escala irão
determinar a presença de um ou mais acidentes musicais (os sustenidos e os bemóis).
Na figura 3 podemos observar três círculos concêntricos. No círculo de menor
raio temos as escalar menores. Por exemplo, quando observamos a escala sem nenhum
acidente musical46 temos a escala de lá menor. A circunferência de segundo maior raio
apresenta as escalas maiores. Dessa maneira, quando observamos a escala sem nenhum
acidente musical, temos uma escala de Dó Maior, conhecida pela sequência das
seguintes notas: Dó-Ré-Mi-Fá-Sol-Lá-Si. As escalas com sustenidos são representadas
pelo símbolo “#” disposto no pentragram e o símbolo “b” representa a bemolização da
nota que está presente na escala.
46
Que pode ser o sustenido, o bemol ou o bequadro.
69
Figura 3: Escalas e acidentes musicais
Para além das relações matemáticas utilizadas na construção das escalas, é
possível mencionar a obra de Schubart (1806), o seu “Ideen zu einer Ästhetik der
Tonkunst” em que ele propõe uma série de significados musicais para cada uma das
escalas apresentadas na figura 3. Por exemplo, a escala musical utilizada para a partitura
do solo vocal da Ária 14 da “Flauta Mágica”, a de Fá Maior (Vide Anexo A), significa
melancolia feminina, ou então um humor persistente. Ela pode ser observada na figura
3, contendo apenas uma nota bemolizada (o Si). Seu equivalente na escala menor é a de
Ré Menor.
8 RITMO, MELODIA E HARMONIA DO PONTO DE VISTA DAS
TRICOTOMIAS PEIRCEANAS
Santaella (2001) propõe que os elementos de ritmo, melodia e harmonia sejam
analisados a partir da semiótica peirceana em relação à primeiridade, secundidade e
terceiridade, respectivamente. Nesse tópico propomos a análise de cada um desses
parâmetros e, no TOMO IV dessa dissertação, realizamos uma investigação por meio
desse recurso didático, verificando se ele nos auxilia ou não na compreensão da
dinâmica do afeto. Dessa maneira, no TOMO IV, os elementos musicais e as tricotomias
70
serão tomadas como sinônimos, substituindo-se ao longo do texto. Ao final, no
subtópico 13 “CONSIDERAÇÕES FINAIS”, do TOMO IV, essa relação sinomínica
será avaliada no sentido de ser ela válida como metodologia musicológica.
8.1 RITMO E PRIMEIRIDADE
O condutor e pianista Hans von Bülow deixou registrada a sua ideia de que no
princípio era o ritmo (Walker, 2010). Para compreender o ritmo é preciso situa-lo junto
aos conceitos de tempo e metro: “O tempo é uma palavra italiana que se refere à
velocidade. […] O metro se refere aos diferentes agrupamentos do pulso” (Santaella,
2001, p. 169).
No entanto, pode existir música sem metro. O cantochão medieval é um
exemplo típico de música sem metro. Outra situação é o uso irregular do metro como no
caso do segundo movimento da “Sexta Sinfonia” do compositor russo Piotr Ilych
Tchaykowsky (Santaella, 2001).
As noções de relaxamento e tensão corporal também se associam ao ritmo
(Wundt, 1897; Langer, 1957; Santaella, 2001). Wilson Coker expõe em sua obra Music
and Meaning (1972) que o ritmo pode ser percebido em três momentos: acumulação47,
descarga48 e relaxamento49. Este aspecto, por sua vez, é uma preparação para que
aconteça uma nova acumulação. Similarmente, a pulsão50, consiste em um processo
dinâmico que exerce uma pressão51 sobre o corpo, acumulando uma tensão, que poderá
ser aliviada por meio de um objeto52, que auxiliará a realização da meta da pulsão, que é
sempre a satisfação (Freud, 1915).
Santaella (2001) constata que “padrões rítmicos regulares criam expectativas
cujo preenchimento funciona como uma fonte de prazer para o ouvinte, gerando um
estado de bem-estar físico inerente ao movimento regular do corpo” (Santaella, 2001,
p.170). Essa constatação nos permite fazer uma articulação com a noção da protensão
de Husserl (1928) como a expectativa de um acontecimento que se dará no futuro e sua
influência sobre a experiência do presente e os estudos que discutiram a questão da
47
Arsis.
Thesis.
49
Stasis.
50
Trieb.
51
Drang, como em Sturm und Drang.
52
Em um sentido estritamente freudiano, ainda que o conceito “objeto” nos remeta aos objetos da
semiótica peirceana.
48
71
música e o prazer. O ritmo pode mover algo no sujeito e provocar emoções, que podem
ser prazerosas ou desprazerosas (Wundt, 1897). Para Otto Rank e Hans Sachs, o aspecto
repetitivo do ritmo também está associado com questões relacionadas ao prazer: “A
ação de uma pressão, que exige uma preparação e que de repente se torna supérflua, é
transformada em prazer pelo reconhecimento de que um padrão está se repetindo 53”
(Rank & Sachs, 1915, p.101).
O ritmo também pode ser categorizado nas tricotomias peirceanas (Santaella,
2001). Em um nível mais puro e primeiro do próprio ritmo, encontramos o proto-ritmo,
que se revela como algo aleatório. Não há uma ordem que se repete de forma constante,
mas sim a impressão de uma sequência ritmíca que aparece e some. Em um nível
segundo, notamos que há repetição e um ritmo cíclico que, por sua vez, já pode gerar
sensações prazerosas. Determinado e percebido, ele serve ao homem na realização de
rituais de evocação da chuva e para clamar aos deuses pela colheita, o que sugere que o
ritmo em secundidade está associadao não apenas ao prazer, mas às experiências míticas
de religiosidade. Os ritmos da vida em geral pertencem a esse domínio, como o ato
sexual e os instrumentos musicais que acompanham um(a) solista (Santaella, 2001).
Para Ferenczi (1962), o ato sexual é como uma profunda regressão na qual se busca
restaurar a harmonia do estágio pré-natal em que se faz uma união total do bebê com a
mãe. Sendo assim, o ritmo em secundidade surge também como recurso para resgate da
sensação ligada à vivência intra-uterina da pessoa.
Em um nível terceiro já se tem o ritmo na forma de lei e na convencionalidade
que lhe é própria, como apontado no campo da ritmologia, em que se observam as
isometrias, parametrias e alometrias (Herbert, 2012). Na primeira, todas as unidades de
tempo num determinado intervalo de tempo possuem a mesma duração. Na segunda,
algumas unidades possuem a mesma duração e outras, diferentes. Nas alometrias, todas
as unidades possuem duração de tempo diferente (Herbert, 2012).
Por meio do ritmo é possível pensar o tempo, enquanto que com a linguagem
verbal pensamos sobre o tempo, isso porque a linguagem humana está aprisionada no
tempo. O debate verbalizado sobre o tempo se aproxima dele sem nunca atingi-lo,
enquanto que a percepção do ritmo é um contato mais íntimo e natural possível com ele
(Santaella, 2001). Esse argumento reforça a superioridade da proximidade lógica da
música em relação à vivência afetiva, do ponto de vista do ritmo, se comparamos com a
53
the exertion of force, for which one must be prepared and which suddenly becomes superfluous, is
transformed into pleasure by the repeated recognition of the same thing.
72
argumentação verbal, já que o ritmo da música está instrinsicamente ligada à ideia de
tempo vivido. Vejamos como esse argumento se consolida na figura 4. Nela, podemos
observar que o ritmo está inscrito nos ciclos temporais. O argumento da iconicidade da
música em relação às emoções e afetos (que também se dão no tempo) sugere que a
música pode inclusive substituir as emoções como forma de representação de uma
determinada emoção (Kruse, 2007). Mas esse é o caso do ícone puro, que apesar de
existir conceitualmente, mas que geralmente não é demonstrado com exemplos (Kruse,
2007). Para Peirce, o “ícone puro não possui traços que permitam a sua distinção com
relação ao seu objeto” (CP 5.74). A figura 4 mostra como o tempo, propriedade do
ritmo, sugere que este possui como atributo o eixo circular que representa o tempo, o
que permite que os afetos também sejam vividos no tempo. O verbo, excluído do
sistema temporal, tenta tocá-lo, sem nunca atingi-lo.
Figura 4: Ritmo e Verbo em relação ao Ciclo Temporal
73
8.2 MELODIA E SECUNDIDADE
Se o ritmo é primeiro, a melodia é segunda e diacrônica e tem o ritmo, em
alguma das suas modalides, como condição sine qua non para existência. A melodia
revela a sucessão de uma sequência de alturas determinadas pelo trabalho musical
contido na partitura. Além do ritmo, a melodia possui a propriedade da dimensão que
envolve a extensão das alturas, que se define pela diferença entre a nota mais aguda e a
mais grave. Outra propriedade da dimensão melódica é o comprimento, que pode ser
longo ou curto. No campo da melodia fala-se de motivos, que são formados de
segmentos curtos enquanto que pode haver também melodias longas (Santaella, 2001).
O lugar relativo (mais agudo ou mais grave) é uma propriedade de extensão. A
variação das alturas, por sua vez, é uma propriedade de direção. Ela leva uma música a
ser estática se ela ocupa apenas uma mesma parcela do espaço disponível do
pentagrama. O ponto mais agudo da extensão é chamado de clímax. Ao notarmos como
ocorre a variação intervalar entre as notas estamos falando de propriedade de
progressão, que pode ser conjunta – quando acontece passo a passo, ou disjunta –
quando acontece abruptamente (Santaella, 2001).
A melodia também se discute em três níveis semióticos. Vista como primeira,
ela revela sempre uma sucessão aleatória de eventos sonoros. Apesar da ideia de
improvisação sugerir uma melodia de primeiridade, essa ideia não se sustenta em
virtude da carga de aspectos convencionais presentes num improviso musical, por
exemplo, quando o solo ou improviso obedece à tonalidade da peça. Já o caso da peça
4’33’’ de John Cage se encontra no âmbito da primeiridade. Podemos entender essa
instância da seguinte maneira: não há uma intencionalidade que defina uma regra e um
trabalho musical específico determinado por uma partitura. É quando uma criança toca,
livremente, as teclas do piano ou, no caso de 4’33’’, o movimento das pessoas da platéia
circulando pelo anfiteatro ou o som de suas conversas. (Santaella, 2001).
A música como secundidade se aproxima da noção da execução musical
ingardeniana, uma vez que se trata da música enquanto uma atualização da sequência
melódica (Ingarden, 1966). Assim, o gesto do condutor coerentemente articulado deve
ser fiel ao trabalho musical contido na partitura que expressa ideias composicionais do
compositor que, por sua vez, será escutado quando da execução de sua peça por parte de
uma orquestra. A melodia em terceiridade exige a presença da escala, uma vez que um
compositor não deve fugir às possibilidades que ela lhe abre. Nesse sentido, a
74
terceiridade melódica sugere uma complementação teórica ao problema das referências
e a psicose uma vez que a escala se estabele como uma lei que o compositor deve
respeitar como uma verdadeira limitação e que, por outro lado, lhe possibilita uma série
de liberdades dentro dela. É dessa maneira que opera a castração advinda da dissolução
do Complexo de Édipo: permitindo ao homem que incorpore leis, que ressignifique as
pulsões agressivas presentes desde os tempos primitivos (Freud, 1918). A saída desse
espaço de lei e convenção impossibilita o estabelecimento de diálogo coerente. O
aspecto da terceiridade se torna mais evidente quando consideramos o “zeitgeist”
relativo ao uso de determinadas escalas. Ainda assim, qualquer que seja a escala, tratase de um aspecto da terceiridade melódica (Santaella, 2001).
8.3 HARMONIA E TERCEIRIDADE
Finalmente, podemos falar da harmonia enquanto aspecto de terceiridade da
música (Santaella, 2001). Ela revela a profundidade e funciona como a perspectiva no
âmbito da pintura. Trata-se da sincronia dos elementos musicais presentes na melodia.
As leis da harmonia permitem que um grupo de notas de diferentes alturas soe
conjuntamente: A isso se chamar acorde. Entre as propriedades da harmonia temos a
consonância e a dissonância (Santaella, 2001). A consonância revela uma sensação de
relaxamento e repouso enquanto a dissonância provoca tensão. A história da música
ocidental apresenta uma progressiva aceitação do uso de dissonâncias no trabalho de
composição musical. As harmonias podem também ser simples e complexas e também a
história da música ocidental caminha numa progressiva abertura a uma dessas
características, que é a complexa, que suporta uma diversidade maior de notas
(Schönberg, 1911).
O ponto de partida de uma música é a tonalidade, que gira em torno da tônica,
que é o primeito tom de um acorde. Esse é o ponto de vista dos compositores da
corrente tonal (Dahlhaus, 1989). Por outro lado, existem diversas experiências com a
tonalidade no meio musical, entre elas o obscurecimento de um tom central projetado
por Richard Wagner, o dodecafonismo nos exemplos de Arnold Schönberg, Olivier
Messiaen e Cláudio Santoro e a música politonal, utilizada por Igor Stravinsky e Darius
Milhaud, que lançaram mão da combinação simultânea de tons (Santaella, 2001).
Para a harmonia também podemos fazer uma organização conceitual no campo
das tricotomias peirceanas. Em um nível primeiro, necessariamente trata-se de ordem
75
mais aleatória como os ruídos produzidos aleatoriamente pela natureza. Por exemplo,
podemos citar as gotas da chuva caindo no telhado junto ao barulho que as árvores
fazem enquanto o vento sopra forte (Santaella, 2001).
Em um nível segundo temos o estabelecimento da harmonia da natureza
estabelecida pelas próprias leis da física. Não há um construto organizado, no sentido de
uma escala musical convencional ou de intervalos de oitava, mas apenas a lógica natural
da harmonia. Nesse contexto, é preciso distinguir entre leis físicas que determinam
diretamente o fenomonêno acústico e as convenções estabelecidas sobre essas leis
(Santaella, 2001).
Para Santaella (2001), o compositor empresta da natureza os recursos sonoros
consagrados ao nível da terceiridade nos acordes da harmonia musical. No entanto, se
tomamos as convenções humanas a partir de arranjos acústicos, já alcançamos a ordem
da terceiridade, que é o âmbito das leis criadas pelo homem para que ele possa reger o
mundo. É importante notar que, enquanto terceira, a música não exclui o seu aspecto
segundo ou primeiro, mas coexiste em harmonia com eles.
76
TOMO II – ANÁLISE DE UM CASO
9 ESTUDO DE CASO SOBRE “A FLAUTA MÁGICA”
9.1 WOLFGANG AMADEUS MOZART E EMANUEL SCHIKANEDER: A
AUTORIA DA PEÇA A FLAUTA MÁGICA
É evidente a influência do Singspiel e da Sturm und Drang no trabalho de
confecção do enredo da “Flauta Mágica” (Guimarães, 1991), além de elementos
oriundos da mitologia grega, egípcia e persa (Van Den Berk, 2004). O Singspiel foi
criado por Johan Adam Hiller. Esse método de composição substituiu a expressão do
Barroco inserindo um tom que imita a ingenuidade, típico das histórias para crianças,
recheadas de fantasia (Apel, 2000). O Sturm und Drang é o movimento filosóficoliterário dos grandes românticos alemãos, entre eles Goethe e Schiller, que muito
influenciou, além da “Flauta”, a obra de Sigmund Freud. O trabalho autoral de Mozart
recebe ainda a influência da ópera seria e da ópera buffa (Žižek & Dolar, 2002).
Entre os responsáveis pela criação da peça está Emanuel Schikaneder, nascido
em Straubing, na Alemanha. No entanto, ele ficou conhecido em Viena, na Áustria,
especialmente entre os apreciadores do teatro. Foi um dramatista, cantor, compositor,
dançarino e ator. Após dirigir uma série de companhias ele se estabeleceu no FeihausTheater auf der Wieden, em Viena, lugar de estréia da peça “A Flauta Mágica”, no dia
30 de setembro de 1791. Whitehead (1978) destaca que a autoria do libretto pode ter
sido dividida por Schikaneder com outros personagens eruditos da cena vienense, entre
eles o próprio Mozart.
O libretto foi inspirado em duas fontes: um conto de fadas oriental intitulado
“Lulu oder Die Zauberflöte” e um “romance de educação”, conhecido como “Sethos”,
cujo conteúdo remete aos Mistérios do Antigo Egito (Guimarães, 1991). Goethe foi um
grande apreciador dos elementos teatrais de “A Flauta Mágica”, inclusive ele
comparou-a com a segunda parte do seu “Fausto” como uma peça cujo significado
superior não escaparia aos iniciados, uma vez que possui inspiração direta na Revolução
Francesa e na ideia de uma fraternidade que cultiva o ideal ético do enobrecimento
humano através de uma aproximação com as luzes da racionalidade (Grout & Williams,
2003). Esse amor romântico que inspira a composição da peça “A Flauta Mágica” é
como aquele que também fora representado na personagem Margarida, do Fausto de
77
Goethe, a qual Eça de Queirós descreve como:
[...]o símbolo da alma alemã, simples, casta, sofredora, daquela alma alemã
que, como na Melancolia de Alberto Dürer, quando a matéria, a tirania, a
desesperança a oprimem, só sabe, resignadamente, dobrar as suas asas;
aquela alma alemã que exala toda a sua imensa dor em frescas cantigas
religiosamente humanas, que tem todas as simplicidades, todas as
inteligências, todos os deveres, que quando olha para a terra é para amar,
quando olha para o céu é para orar, quando olha para si é para morrer
(Queirós, 1951, p.209).
Wolfgang Amadeus Mozart, compositor da partitura musical da peça, é o filho
pródigo da Áustria. Ele fez grande fama na capital, Viena. Mozart será para sempre
lembrado pela magnitude e pela excelência estética de suas composições musicais
(Einstein, 1945). Ele está no rol dos artistas que começaram a realizar suas obras muito
cedo e que morreram jovens. Entre eles estão Chopin, Rimbaud, Raphael, Purcell e
Watteau - todos morreram com idade entre 35 e 39 anos (Anzieu, 1986). Michael Balint
em “The Basic Fault” (1979) considera Mozart como um trabalhador ágil. Um aspecto
que para ele servia como força motriz para a velocidade com que trabalhava era a
inveja: “Sinto esse indizível desejo de compor outra ópera... Invejo todo aquele que
esteja compondo uma” (Riding & Dunton-Downer, 2010, p. 102).
9.2 A FLAUTA MÁGICA E O CÍRCULO DE OURO
Após a estreia da “Flauta Mágica” em Viena, Praga e Berlin também receberam
a peça com aplausos. Todo homem respeitável na Viena da época conhecia a afamada
peça, entre eles Sigmund Freud (Anzieu, 1986). A “Flauta” exalta os ideais do homem
como um ser moral e da vontade humana voltada para a realização do trabalho para o
benefício da humanidade (Einstein, 1945).
A peça pode ser considerada um dos pilares da civlização ocidental uma vez
que reúne questões acerca da paixão humana, da história da razão no ocidente, da
formação de sociedades historicamente relevantes, de aspectos míticos, de problemas
morais, além de oferecer subsídios para a investigação de cunho psicanalítico
(Whitehead, 1978). A peça trata do processo de amadurecimento do homem que terá de
78
se desligar da ligação infantil com os laços matrimoniais para aliar-se a alguém por
meio do matrimônio. O rito iniciático pelo qual o casal deve passar é o de atravessar o
mundo dos mortos. Essa passagem tem a função de marcar a entrada no mundo onde o
compromisso com a alteridade advém da obediência ao sistema normativo vigente.
Outros exemplos literários dessa passagem podem ser encontrados na “Comedia” de
Dante Alighieri, na “Eneida” de Virgílio, no “Orfeu” de Gluck ou o de Monteverdi e
em “Sethos” de Terrasson (1732).
O caso da “Flauta” é uma incorporação clássica do mito órfico. No caso, a
flauta substitui a lira de Orfeu como instrumento para operacionalizar o resgate da
amada. Tanto Orfeu como Pamino devem passar por uma série de provações, dotados da
proteção da música, para que possam reaver as suas amadas (Whitehead, 1978). O poder
da lira e da flauta tem a finalidade de auxiliar os amantes (Orfeu e Pamino) nas tarefas
mais árduas, servindo aos heróis como talismãs para a realização dos seguintes dizeres:
“Se eu não puder dobrar a vontade dos céus, moverei o inferno54” (Žižek & Dolar,
2002).
É possível notar uma inversão do papel da Rainha da Noite e de Sarastro entre
os dois atos da ópera. No Ato I, a primeira se revela como alguém que acredita na
pureza e nobreza do amor e o segundo é retratado como um tirano obcecado pelo poder.
No Ato II, a verdadeira face de ambos é revelada. A Rainha da Noite, personagem que
ilustra a vingança, se rebela contra a fraternidade de Sarastro o que se alega ser uma
alusão à perseguição sofrida pela Maçonaria, no ano de 1784, pela Rainha Maria Teresa
da Áustria (Einstein, 1945; Everett, 1991).
Fotografia 2: Representação de um Círculo de Ouro fotograda no The
Metropolitan Museum, no dia 12 de julho de 2014
54
Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo.
79
Na sua ira, ela nos deixa conhecer o que acontece em relação ao sentimento de
perda do objeto desejado – O Círculo de Ouro. A simbologia desse precioso objeto está
relacionada com o círculo astronômico em ouro maciço, que, de acordo com Diodoro de
Sicília55, foi colocado na tumba de Ramsés II (Ozymandias) (Terrason, 1732). HansGeorg Gadamer (1994) coloca que a referência do círculo astronômico de Ozymandias,
contida na vida de Sethos de Jean Terrasson (1732), é inconteste referência para a
criação do enredo da flauta mágica.
Outra hipótese acerca da origem do enredo da “Flauta” é encontrada em
Heródoto56: Rhampsinitus desceu às regiões infernais e jogou dados com Ceres57,
recebendo o Ramo de Ouro (dádiva que permite reencontrar os mortos) após um
balanço positivo de vitórias e derrotas. Essa situação se assemelha ao jogo de dados de
Thoth com a Lua e a sua vitória a cada 72ª parte do dia, da qual ele fez os cinco dias
chamados de Epagomenae, com os quais ele somou aos 360, totalizando assim os atuais
365. Esse calendário foi legalmente autorizado por Ozymandias e representado em seu
magnífico Círculo de Ouro (Hales; 1812; Mayo, 1819; Galloway, 1869).
Narrien (1833) coloca que a datação que pode ser encontrada no Círculo de
Ouro marca o ano de 716 a.C. Essa data é encontrada partir de cálculos astronômicos: a
distância de duas estrelas entre Arcturus, Antares, Fomalhaut e a beta de Pegasus e a
distância delas para o centro, encontrando o pólo entre a beta de Ursa Menor e a chi de
Draconis. Apesar de não haver relação direta com a Roma Mitológica, esse ano marca a
abdução misteriosa de Rômulo, primeiro Rei de Roma, na passagem que o transforma
em deus, Quirino58 (Engels, 2007). Após o reinado de Rômulo, Numa Pompílio assume.
Entre as realizações do novo monarca está a instituição do novo calendário. O
calendário de Rômulo possuía dez meses de 304 dias. Numa acrescente 51 dias e os
meses de Janeiro e Fevereiro. Sendo assim, ainda faltavam 11 dias para fazer o ano
solar59. Para que o calendário passe a ser solar de fato, Numa inclui um 13º mês, o
55
Historiador grego que viveu no século I a.C.
Historiador grego do século V a.C.
57
Ceres é a deusa equivalente à deusa grega Demeter na mitologia romana. Van der Berk (2004) assinala
que ela pode ser compara à Rainha da Noite já que ambas tiveram suas filhas abduzidas (Perséfone no
caso da primeira, e Pamina, no caso da segunda).
58
A apotoese de Rômulo. A morte de Rômulo o faz com que ele seja visto não apenas como um homem,
mas como um deus. Na última forma, ele é conhecido como Quirino. Em “How Jesus Became God”, Bart
Ehrman conta como transcorreu a abdução de Rômulo, ao fazer revista às tropas no Campo de Marte. De
repente, uma tempestade enviada por Marte faz com que Rômulo desapareça (Ehrman, 2014).
59
A relação entre o calendário solar de Numa Pompílio e o culto monoteísta ao deus-sol no Egito Antigo
é apenas matéria de especulação do autor dessa dissertação. Não há referência que mostre a relação da
56
80
Mercerônio60, com 22 dias. De quatro em quatro anos, o Mercedônio fica com 23 dias
(Barradas, 1758). Outra referência nos alega que Thoth foi o descobridor dos 365 dias
que completam o ano solar e que na tumba de Ozymandias, sétimo rei61 do Egito a
partir de Akhenaton, foi preservado o Círculo de Ouro, dividido em 365 porções,
correspondendo aos dias do ano (Rowbotham & Rutter, 1829).
O Círculo de Ouro indica que o seu portador é o sucessor na linha de grãosmestres que veneram Osíris, deus-sol e maior deidade do Egito Antigo. Enquanto
portador original do Círculo de Ouro, o pai de Pamina é a representação do Osíris
mítico. Sarastro, seu sucessor, vive e ensina a viver de acordo com os princípios
propostos por Osíris (Grant, 2012). Na abertura do Ato II, o grão-mestre, herdeiro do
círculo, anuncia os dizeres que confirmam a sua identidade: "Ó servos dos grandes
deuses Osíris e Ísis, que fostes iniciados no Templo da Sabedoria!62" (Guimarães, 1991,
p. 80).
O Círculo de Ouro é símbolo de disputa no enredo da “Flauta Mágica”. Com a
morte do marido da Rainha da Noite, toda a herança é deixada para ela a não ser o
Círculo de Ouro, deixado para Sarastro. Como consequência da perda da posse sobre o
Círculo de Ouro, irrompe na Rainha o ódio por quem o possui. O desdobramento é um
destino movido pela vingança (Whitehead, 1979).
A Rainha da Noite proclama a morte a quem detém o Círculo e ordena à sua
filha que mate Sarastro e que lhe traga o seu objeto de desejo, sob a pena do oblívio. A
Rainha invejosa deseja um objeto que lhe falta, e se a filha falhar em consegui-lo, ela
será desligada dos laços familiares. Temos nessa questão a efetivação da lógica entre
autorizar-se a vingar-se a partir de um afeto doloroso sentido pela Rainha. A ferida
narcísica que se revela nela evidencia o caráter de instrusão do outro masculino que gera
óbice à realização de ter posse do objeto de desejo dela – o Círculo de Ouro. Mais
ainda, a sua posição em relação à ferida é a de combate, e não a de fuga. A Rainha
poderia, do ponto de vista de sua escolha, ter vivido no esquecimento do objeto e na
aceitação do não pertencimento à sagrada ordem de Sarastro. No entanto, ela decide
destruir a ordem sagrada por não ser autorizada a participar da fraternidade e a partilhar
do Círculo de Ouro (Kohut, 1972). A trama assume um novo destino a partir do
datação do Círculo de Ouro e a Apoteose do Primeiro Rei de Roma, que antecedeu ao reinado romano em
que ocorreu a mudança para o calendário solar.
60
Mercidonii Dies: O mês para o pagamento dos salários (Latina Merces).
61
Faraó.
62
Ihr, in dem Wisheitstempel eingeweihten Diener der groβen Götter Osiris Und Isis!
81
momento que a Rainha não consegue renunciar à ferida de forma feliz. Nessa situação,
temos o Ideal do Eu colocado numa posição difícil pela via do interdito que vem de
Sarastro aliado ao não encontro com uma disposição mais humilde da Rainha, que não
irá abrir mão da sua vontade. Assim, a filha da Rainha, cujo destino é se casar com o
príncipe Tamino, recebe a ordem de assassinar Sarastro e de roubar o Círculo de Ouro, o
que são evidências do enfrentamento ao poder moral e quem representa ela, que a
Rainha deseja destruir (Castarède, 2002).
10 A VINGANÇA E O IDEAL DO EU NO CONTEXTO DA CLÍNICA E O
CASO DA RAINHA DA NOITE
A vingança é um complexo estado emocional que advém de uma dor e uma
raiva que, por sua vez, é consequência de alguma perda. Nesse sentido, a vingança se
perfaz no presente do indicativo, pois é somente nesse momento que a pessoa pode
sentir no seu corpo vivido a experiência emocional de vingança. Enquanto mais
próximo do que é sentido em vez do que é percebido, o sentir ligado à vingança é de
ordem pathica e, portanto, de grande interesse para o pensamento clínico (Weizsäcker,
1958; Tatossian, 1979).
Socarides (1977) observou algumas características de pessoas que querem se
vingar a partir de observações clínicas. Elas desejam se afastar de ameaças de castração
ou tomar uma ação violenta contra quem promoveu a castração sobre elas. No contexto
de produção artística, “A Guerra de Tróia” (narrada na Eneida de Virgílio), “O Conde
de Monte Cristo” (Alexandre Dumas) e a “Rainha da Noite” (Mozart e Schikaneder)
são exemplos de narrativas com a presença de personagens que sofrem uma ação
castradora e que tem a vingança como forma reação (Socarides, 1977).
O objetivo do vingador nem sempre é somente o de punir quem lhe provocou
alguma dor. Por vezes, existe a vontade de gerar no outro que opera a ameaça da
castração (ou a castração de fato) a admissão: “Me desculpe por ter feito isso com você;
você é superior, mais poderoso e eu devo me curvar ao seu julgamento e decisão 63”
(Socarides, 1977, p. 372). A tristeza e a depressão são as respostas mais comuns ao
sofrimento ligado a uma perda – perda essa ocorrida em virtude da castração. Nesse
caso, a agressão pode surgir como uma ação do indivíduo em resposta às desventuras da
63
I'm sorry I did it to you; you are superior, more powerful, and I bow to your judgment and decision.
82
vida, no entanto não é sempre que a depressão devém para atos vingativos (Socarides,
1977).
Entre outras características da pessoa vingativa podemos citar, entre outras, a
presença do sentimento de inveja, a ausência da vontade de perdoar e de ser
compassivo, a implacabilidade, a inflexibilidade, o ódio, o desejo de destruir o objeto
perdido e de submeter a pessoa que ameaçou ou feriu ao seu subjugo. A pessoa
vingativa vive para a vingança: ela é o seu único propósito. Passionalmente, quem
deseja se vingar realiza ações punitivas ou retaliatórias desejando ficar quite com
alguma situação que lhe foi desagradável. Ela também não mostra preocupações com as
consequências sociais e morais de seus atos (Socarides, 1977).
Freud, em “Das Ich und das Es” (1923), forneceu uma pista para o desvendar
do mecanismo psíquico que opera na vingança (Socarides, 1977). Freud (1923) colocou
que, nas neuroses obsessivas, o que garante a segurança do eu é o fato de que o objeto
de amor está retido por meio de uma regressão para a organização pré-genital64. A
neurose obsessiva envolve a retenção do objeto de amor, que não pode ser abandonado
que, por sua vez, toma refúgio na identificação narcísica enquanto que, na depressão, o
objeto em si é abandonado. Em contrapartida, na depressão, o objeto foi perdido e o
componente destrutivo se incorpora ao supereu e se volta contra o eu. Nesse sentido,
nem sempre a pessoa na posição depressiva se deprecia, podendo ela se colocar como
muito superior aos outros (Abraham, 1970). Já a pessoa na posição vingativa pode tratar
a pessoa de quem ela quer se vingar como as fezes das quais ela quer se livrar
(Abraham, 1970). É preciso notar que inicialmente esse objeto perdido seja introjetado,
como os cabelos grisalhos de um paciente de Groddeck (1923), que tomou esse aspecto
do pai, após o seu falecimento, por meio da incorporação física, oral-canibalística.
Depois, a pessoa em crise vingativa irá expelir o objeto retido, o que é típico da fase
sádico-anal (Abraham, 1970).
No desenvolvimento de afetos vingativos, existe a necessidade da presença de
sentimentos ambivalentes de amor e ódio. É preciso que as energias sexuais sejam
usadas para suplementar as energias hostis do vingador. O afeto vingativo busca
oferecer essa necessária sensação de segurança para o eu, de forma que a pessoa não se
culpabilize, como se costuma observar na depressão. Isso implica que a aparência da
64
Karl Abraham (1970) iria enfatizar que a regressão ligada à neurose obsessiva está ligada à fase anal
sádico-tardia. A regressão ligada à depressão vai além da fase anal, chegando à fase oral tardia.
83
depressão no afeto vingativo não pode ser exatamente a do tipo que se autodeprecia65,
mas a do tipo que deseja destruir o objeto que a pessoa estando ligada, portanto, à fase
anal mais tardia (Abraham, 1970).
O supereu não deve ser tomado pelo componente destrutivo já que isso
implicaria num raiva voltada contra o eu. No lugar da não tomada dos impulsos
agressivos do supereu, que se voltariam contra o eu, impulsos amorosos são
transformados em agressivos, mas agora se voltam para um objeto secundário à
regressão sofrida pela pessoa: o objeto expelido. O Isso66 também se envolve com a
cena, agindo livre e constantemente por meio de operações de deslocamento. Isso
porque é possível se vingar de alguém ou de uma situação por meio da escolha de outro
objeto (Arlow, 1961; Socarides, 1977). Na dinâmica da vingança, o eu incorpora
objetos externos com ódio em relação a eles, ou seja, pela via do mecanismo presente
no traço depressivo: a introjeção. No amor, o modo do eu se relacionar com os objetos é
feita com o interesse de provocar prazer no objeto e de cuidar dele. O objeto de amor
será mantido via retenção, traço da neurose obsessiva enquanto que o objeto expelido
passará a ser o alvo do ódio (Socarides, 1977).
No que concerne à perda que promove o surgimento do afeto vingativo, não se
trata apenas de uma perda recente (Socarides, 1977). Isso porque, na crise do afeto
vingativo, todas as ameaças ao eu vividas na infância são trazidas à tona por algum
evento vivido na fase adulta (Arlow, 1980). Nesta, pode ocorrer a atualização de
vivências ligadas às fases edípicas recheadas de sentimentos de rivalidade, ciúmes,
inveja e competitividade que podem criar ou exacerbar uma disposição afetiva vingativa
(Lane, 1995). Assim, não é possível dizer que a Rainha assume uma posição vingativa
somente pelo fato de perder a posse direta sobre o Círculo de Ouro, mas por todo
simbolismo que envolve o objeto, como questões que remetem ao Ideal do Eu, que
sofreu um abalo devido à desilusão provocada pela transferência do Círculo de Outro
para outra figura masculina – a cena da herança deixada para Sarastro apenas
desencadeia uma série de processos afetivos: Aqui a Rainha é colocada de fora do
65
Anointe Vergote coloca que a depressão não envolve culpa, mas sim uma espécia de vergonha. Esse
autor propõe uma análise dos conceitos de melancolia (cultural), luto, depressão e melancolia (psicótica)
sem considerar a posição objetivista dos manuais diagnósticos como o DSM. É possível notar que, a
depressão, segundo Vergote, envolve a perda do lugar da pessoa no mundo. Não é esse o caso da Rainha
da Noite? (Vergote, Ver Eecke, Sadowsky & Chwastiac, 2003). O artigo foi escrito pelo primeiro autor e
traduzido pelos demais, mas a revista que possui essa publicação sugere a citação nesse formato.
66
Das Es.
84
espaço de pertencimento, ligado à cena originária, próprio da relação amorosa entre os
pais.
O supereu está fortemente associado ao que conhecemos como Ideal do Eu,
herdeiro do Eu Ideal. Na formação do Ideal do Eu temos a presença do interdito do nãomaterno que desmantela a experiência de “sua majestade o bebê” como um ser a quem
todos devem servir. Agora, a criança passa a se submeter a uma nova ordem, na qual ela
não mais será o centro das atenções. Na formação do Ideal do Eu, pode ser notada a
incorporação canibalística do pai, numa identificação primária por incorporação
intrusiva e oral (Gérez-Ambertín, 2003). Socarides (1977) comenta o quanto os
pacientes vingativos foram privados oralmente e o quanto sofreram com isso. Na
incorporação necessária à formação do Ideal do Eu, o núcleo deste será sempre a figura
castradora que colocou esse não. Na vingança, esse supereu assume a posição de
depreciar a própria pessoa de forma que ela não possa ser mais amada. Existe também a
oscilação de forma que a pessoa vingativa exija o reconhecimento de que ela é superior,
numa tentativa de controlar a ansiedade ligada à evocação da cena originária.
A vingança se opera então pela livre descarga do Isso, autorizada pelo supereu,
de forma a fazer os outros sofrerem como objetos expelidos, indesejáveis, e a torná-los
inferiores ao seu Eu. Esse Eu sofre ainda, já que a presença dos sentimentos
ambivalentes da depressão ora fazem com que ela se sinta “um nada”, e ora como
alguém superior, provocando uma confusão na comunicação.
No caso da Rainha da Noite podemos observar a frustração do ideal do eu que
remete a questões da infância que, por sua vez são, possivelmente, de valor traumático
e, portanto, fazem emergir uma sensação de raiva e ardor, como ela mesma irá narrar na
Ária 14 (Castarède, 2002). É o caso então de aprofundarmos o que Arlow (1980) propõe
como uma leitura da vingança a partir de experiências de perda vividas num tempo
anterior e distante em relação ao que é vivido por pacientes vingativos já adultos.
Tomemos a situação em que um cuidador falha em atender às demandas de seu filho, ou
quando não reconhece qual é a exata demanda dele. Nessas situações, podem começar a
surgir sintomas como choro, grito, afastamento afetivo e expressões de raiva. Com a
intensificação dessas demonstrações de desconforto, a criança fica mais frustrada, mais
suscetível a se irritar, a ficar nervosa e vingativa (Lane, 1995). É possível citar também
a retirada do seio como algo decisivo para a separação entre mãe e filho, o que faz
despertar um impulso por retaliação e promove o desenvolvimento de sentimentos de
vingança e inveja (Klein, 1935; Fenichel, 1945). Indivíduos que sentem uma forte
85
ansiedade de separação possuem marcantes traços vingativos de personalidade quando
em crise (Abraham, 1924).
Outra possibilidade para a efetivação de atos vingativos por parte do sujeito
tem como origem a cena primária, na qual a criança presencia o intercurso sexual entre
os pais, provocando uma excitação que, por sua vez, se transforma em ansiedade.
Podem ocorrer, por parte da criança, erros de interpretação no sentido da atribuição à
cena originária como uma cena violência entre o homem e a mulher (Freud, 1905;
Freud, 1918; Freud, 1925; Arlow, 1980). Anna Freud (1967) coloca que traumas ligados
à cena primária se fundem com fantasias e ansiedades primitivas levando a pessoa a um
grande estado de transtorno. A derrota edípica da cena primária, na qual a criança é
excluída da cena de cópula, leva a um senso de inferioridade anatômica e uma profunda
mortificação narcísica. É muito comum que os pacientes na clínica do cotidiano não se
lembrem de presenciar de fato a cena de intercurso sexual dos pais, o que pode surgir no
ambiente terapêutico sob a forma de uma fala fantasiada, de que ela presenciou o ato
(Arlow, 1980).
Otto Fenichel (1945) coloca que a reação à cena originária é marcada por um
voyeurismo perverso que ocorre repetidas vezes, compulsivamente, como expressão da
vontade do eu de controlar a cena, com a finalidade de permitir à pessoa que se sinta
capaz de dominar o trauma primário. Nesse sentido, a pessoa tenta resgatar a cena para
que possa tentar controlá-la. A pessoa, quando adulta, pode fazer com que os pais
experimentem a sensação de humilhação, exclusão e traição sentida por ela que, quando
criança, presenciou a cena originária. O ato de vingança a partir do trauma da cena
primária se dá no sentido de provocar a ira dos pais ininterruptamente. A insônia, o
exibicionismo e o voyeurismo se mostram como sintomas relativos à identificação com
ambos os pais enquanto eles realizam o ato sexual (Lewin, 1932).
Na vida adulta, a rejeição e o abandono em uma relação amorosa podem ser
fontes para o desencadeamento de afetos vingativos. Acessos de vingança também
podem ocorrer em virtude de conflitos narcísicos, ou seja, a partir de eventos psíquicos
envolvendo a culpa ou a partir de experiências de falhas cometidas pela pessoa. Nesses
casos, vingar-se de alguém é uma consequência do redirecionamento da descarga da
raiva de si mesmo para objetos do mundo exterior (Socarides, 1977).
A Rainha da Noite, após perder a posse do Círculo de Ouro e ser impedida de
participar da ordem de Sarastro passa por um conflito ligado ao ideal do eu, o que se
desdobra numa tragédia de proporções gigantescas. Isso porque ela havia construído
86
uma expectativa de grandiosidade a partir do desenvolvimento do narcisismo. Seu
casamento lhe permitia a satisfação dessa expectativa de grandeza. Nesse sentido,
dizemos que Rainha da Noite “[...] construiu uma expectativa idealizada do mundo, na
qual suas esperanças narcísicas e expectativas podiam criar um sonho glorioso para o
futuro67” (Murray, 1964, p. 480).
No entanto, com a morte do marido ela fica sem o Círculo de Ouro e apartada
da Ordem Sagrada de Sarastro. A morte do marido da Rainha irrompe nela elementos
psíquicos que irão compor a ruína de sua estrutura emocional. Quando notamos a sua
vontade marcante em reobter o Círculo de Ouro podemos notar a ânsia pela gratificação
ligada à posse do mesmo estando ligada ao seu casamento e à partilha da sabedoria que
pertence à Ordem e que está ligada ao Círculo de Ouro. É o mecanismo típico da
depressão, que, após a perda do objeta, tentará reobtê-lo. Temos aqui o narcisismo da
Rainha da Noite que a impele a utilizar de todos os meios para (re)obter o objeto
(Círculo de Ouro) ligado à sua relação amorosa-matrimonial, ferida pela castração. A
relação entre o narcisismo e o comportamento repetitivo marcado por uma regressão
pré-genital no caso de um desconforto tremendo que leva o sujeito a um vôo de retorno
às fantasias do mundo pré-genital é próprio da dinâmica vingativa:
O narcisismo valida suas atitudes defensivas e permite que ele (ela68) use
todo amor objetal como recurso para o foco de suas explosões de raiva [...]
Mas também há uma tremenda sensação de insegurança, isso porque, se
uma das funções pré-genitais falhar, a lógica do tudo-ou-nada e o seu
mundo tornar-se-ão cinzas69 (Murray, 1964, p. 490).
Do ponto de vista da vingança ligada ao corpo feminino, é possível mencionar
o trabalho de Karl Abraham e seu artigo Manifestations of the Female Castration
Complex (1922). A ocorrência de uma situação em que a mulher foi prejudicada dá
vazão ao desejo de se vingar do homem privilegiado. O objetivo desse desejo é o de
castrar o homem. Do ponto de vista do desenvolvimento da sexualidade, a mulher já é
castrada, o que se efetiva no imaginário feminino quando a mulher (menina) percebe
67
[...] constructed an idealized expectant world, in wich his (her) narcissitic hopes and expectations could
create a glorious dream for the future.
68
Destaque dado pelo autor dessa dissertação.
69
The narcissism validates his defensive atitudes and allows him (her) to use all love object as a milieu
for the focus of his (hers) explosive rages (…) But there is also a tremendous insecurity, beacause if one
of these pregenital functions fails, the all-or-none law works and his (her) world falls apart.
87
que a sua genitália é como uma ferida, um buraco. As expectativas da mulher com
relação à perfeição do corpo-próprio pautadas por uma disposição narcísica são
frustradas pelo reconhecimento de que não há nela um pênis. Essa constatação se efetiva
como uma dor sentida devido à perda de um objeto importante, ou seja, a ameaça de
castração se efetivou (Abraham, 1922). É preciso considerar uma leitura de gênero não
necessariamente segundo critérios anatômicos, mas de uma feminilidade ou
masculinidade, que estão presentes na vida das pessoas de forma geral (Schotte, 1970).
Dessa maneira, o comportamento vingativo da Rainha da Noite, além de envolver a
necessidade de promover segurança para o eu, resgatar vivências da infância ligadas à
época da formação do seu Ideal do Eu, simbolizados na vida adulta pelo Círculo de
Ouro, ela irá declarar vingança contra Sarastro em virtude de uma necessidade de
reparação ligada ao desenvolvimento da sua sexualidade, cujas energias deverão estar
presentes de forma complementar nas descargas agressivas que ela irá realizar.
10.1 ANÁLISE DO AFETO VINGATIVO DA RAINHA DA NOITE A PARTIR
DOS VERBOS PATHICOS
A categoria pathica introduz a pessoa no nível biológico, porque ela cria o laço
entre percepção e movimento (Weizsäcker, 1958). O pathico é praticamente inacessível
à conciência conceitual. Ela é imediata, intuitiva e se dá num nível pré-conceitual. É
mais o sentido do que é percebido, o que permite uma aproximação ao status do
conceito de “feeling”, ligado aos estados puramente afetivos de Maine de Biran (Maine
de Biran, 1920; Tatossian, 1979). Todo movimento do corpo está atrelado à categoria
pathica. Para Weizsäcker (1958), a estrutura dos atributos pathicos está contida numa
série de verbos modais, o querer, o dever (como necessidade biológica e como
obrigação moral) e o poder (como aptidão e como autorização/permissão), além de
questões que concernem a liberdade e a necessidade.
De forma a compreender a dinâmica da vingança no nível pathico, é preciso
fazer uma análise do percurso modal. Vejamos como isso acontece:
1.
O querer da Rainha da Noite está marcado por uma pulsão repetitiva com
foco em (re)obter o Círculo de Ouro e em destruir todos aqueles que estão entre ela e o
seu objeto de desejo. Querer se vingar se dá como uma vivência que renova eternamente
o narcisismo, necessário à sua própria existência. Desistir de querer seria aceitar
compensação, o que seria plausível no caso de um eu mais resistente às feridas
88
narcísicas – mas não é o caso da Rainha. O querer, na vingança é algo a ser satisfeito a
toda custa, o que é uma característica recorrente em personagens vingativas: é o desejo
de ficar quite (Socarides, 1977).
2.
As questões ligadas ao verbo dever (no sentido moral70) estão na
dinâmica entre o supereu e o eu. Enquanto o supereu busca promover a segurança do eu,
o querer pode livremente ser alcançado (Socarides, 1977). A ocupação do supereu com
o eu abre caminho para o advento das questões da negatividade radical hegeliana, ou
seja, dos desejos mais destrutivos do ser humano (Žižek, 2004), mas sobre o objeto
oriundo da regressão. Isso implica que, no afeto vingativo, o dever moral pode ser
ignorado em prol da atividade do verbo querer que, no caso, está ligado aos impulsos
destrutivos da Rainha que, caso estivesse submetida às regras do dever moral, teria que
abrir mão do seu querer, o que, por sua vez, poderia promover formas mais saudáveis de
adaptação a esse afeto (Socaridades, 1977).
3.
O verbo dever (como necessidade71) é o que se liga ao querer da Rainha.
Nesse sentido, querer se vingar se efetiva por uma questão de necessidade sentida no
corpo. A ardência por vingança é relatada na Ária 14 como algo a ser saciado pela
obtenção do Círculo de Ouro e da morte de Sarastro (Castarède, 2002). Aqui estão
presentes componentes que irão reforçar o sentimento de vingança junto à mobilização
do verbo querer.
4.
O verbo poder (como capacidade72) está na capacidade da Rainha de
declarar vingança. Ela possui os meios e recursos psíquicos necessários para a
realização da empreitada. Ela arma a trama, entregando a Flauta a Pamino. No entanto,
seu intuito fracassa. Dessa maneira, ela pede à filha que lhe traga de volta o Círculo de
Ouro. Finalmente, ela mesma tentará resgatar o Círculo. Por meio de comportamentos
sádicos envolvendo a filha e Pamino ela tenta reobter o seu objeto de amor. A falha de
ambos irá envolver o verbo poder ligada a ela mesma, numa última tentativa. Ela é
capaz disso...
5.
A dialética da dinâmica pulsional se revela numa oposição clara entre o
querer e a questão do poder como permissão moral, o que indica o domínio do poder
moral73 no âmbito pathico do problema da vingança da Rainha da Noite: “Rejeitada do
reino da claridade, a Rainha se encontra soberana do mundo noturno com uma imensa
70
Sollen.
Müssen.
72
Können.
73
Dürfen.
71
89
frustração. [...] Ela não pode compreender a ignorância em que se mantém a sua
natureza feminina decaída74” (Castarède, 2002, p. 119). O que realça o problema da
permissão é justamente a sua condição enquanto rejeitada: A ela não é permitido fazer
parte da Ordem Sagrada.
A logica da autorização que atravessa o poder moral (“eu me autorizo”) se
realiza para que a Rainha possa alcançar o seu objeto de desejo. A personagem se
permite a querer se vingar devido às questões suscitadas pelo desvio do Círculo de Ouro
que deveria ser parte de sua herança. Com essa ação de se autorizar emergem problemas
ligados à formação do Ideal do Eu e, consequentemente, ao retorno de operações
narcísicas nas quais ela irá se permitir tudo para alcançar o seu desejo. Isso porque
sentimentos de perda se somam contra o inderdito do não-materno. Dessa maneira, o
supereu organizado e promotor da castração será negado. Apenas a sua parte que
promove o conforto do eu será mantida.
Sabemos também que o círculo da forma se faz em um ato que forma outro
(conforme o Figura 5). A estrutura aparece na análise dialética da decisão crítica no
processo de tomada de decisão. Quando a Rainha se vê prejudicada, ela procura se
vingar do homem que a prejudicou: Sarastro e, possivelmente, Pamina. Ambos podem
estar assumindo simbolicamente o papel do marido defundo da Rainha, deslocados na
psiquê da Rainha.
74
Rejetée du royaume de la clarté, la Reine s’est retrouvée souveraine du monde nocturne avec une
immense frustration. [...] Elle ne peut comprendre l’ignorance où se maintient sa nature feminine déchue.
90
Figura 5: O pentagrama pathico do círculo da forma75 de Victor Von Weizsäcker
O psicólogo pode intervir na vida de um paciente marcado pela posição
vingativa crônica de forma a fazer com que o último possa aceitar a vida como uma
experiência de trocas e como a oportunidade para se aproveitar bons momentos ao invés
de o sujeito encaminhar-se para destinos trágicos ocorridos em virtude de uma ideia
obssessional de se vingar (Lane, 1995). A verdadeira vitória que o terapeuta pode
alcançar junto com um paciente dominado pela disposição vingativa é a superação dos
danos feitos ao eu enquanto o sujeito era uma criança e a construção de um eu mais
estável e maduro, pautado na realidade e sendo capaz de superar desapontamentos
(Lane, 1995). O foco nos aspectos pathicos da pessoa deve ser o foco terapêutico, que
75
Jacques Schotte prefere a tradução de Gestaltkreis para “Círculo da Forma”, em vez de “Círculo da
Estrutura” conforme a sugestão de tradução de Michel Foucault, que lançou mão de uma linguagem mais
estruturalista (Schotte, 1970).
91
irá considerar a vivência do paciente como algo tão importante quanto a visão médica
objetiva, contra uma tendência do pensamento clínico em priorizar o segundo em
detrimento do primeiro (Martinsen, 2013). Isso implica que, em virtude da correlação
entre o domínio pathico e a primeiridade dos estados puramente afetivos, que a clínica
pathica envolve um resgate da primeiridade peirceana para o pensamento clínico, em
contraposição à clínica clássica dos índices entre sintomas e pathologias.
92
TOMO III – DESCRIÇÃO DA PARTITURA PARA CANTO VOCAL (SOLO)
DA ÁRIA 14 DA “FLAUTA MÁGICA”
11 PARTITURA E EXPRESSÃO MUSICAL DA “FLAUTA MÁGICA”
A análise do esquema musical revelado pela partitura e atualizado no processo
acústico pode revelar a dinâmica do afeto humano (Ingarden, 1966). A seguir, serão
analisados trechos da partitura da Ária 14 da “Flauta Mágica” a partir da sua
organização em versos. Essa escolha se faz em virtude do caráter entretecido da
partitura musical com o libretto de forma que permita a sistematização da análise inicial
da partitura de acordo com sua própria estrutura. Dessa maneira, opta-se por uma
análise a la “Capriccio”, ópera de Richard Strauss, em que fica marcada a
impossibilidade de escolha entre o que é mais importante, o libretto ou a partitura. No
entanto, ao destacar a partitura e os seus elementos de composição musical abre-se a
possibilidade de análise do recurso musical que possui relação icônica com os afetos, o
que não é necessariamente válido para o caso do libretto.
Para cada um dos versos é apresentado o respectivo trecho da partitura para o
solo vocal no formato de imagem. É também apresentada uma descrição por extenso
dos elementos de notação musical utilizados. O verso é citado no texto a partir da
tradução para o português (Guimarães, 1991). O verso no original em alemão é
apresentado em uma nota de rodapé, segundo o libretto bi-língue da peça alemãoportuguês (Guimarães, 1991).
O resultado da análise irá revelar aspectos do dinamismo dos afetos humanos,
em especial, o da vingança. A Ária 14 da peça A Flauta Mágica foi escolhida como
trecho musical para ser analisado devido a ser o ápice do poder da Rainha da Noite (Van
der Berk, 2004), além de ser o momento que marca a inversão da sua posição
benevolente no Ato I para a posição vingativa (Everett, 1991). É o momento do
desmascaramento (Whitehead, 1978; Castarède, 2002).
O solo vocal da Ária 14 é reservado à Rainha da Noite, personagem que é
deixada sem um tesouro de grande valor e, para consegui-lo, ela ameaça a sua própria
filha da forma mais terrível que pode de forma a convencê-la a satisfazer seu desejo de
morte em relação àquele que possui o tesouro cobiçado e que o recebeu legitimamente
por meio do testamento do falecido marido da Rainha da Noite. A Ária 14 é a expressão
de uma revolta que dá início a um destino trágico que se desenrola com uma maldição
93
lançada sobre Pamina, filha da Rainha, caso ela não satisfaça o ódio da mãe matando
Sarastro, detentor do Círculo de Ouro. As notas agudas entoadas pela Rainha da Noite
nessa área são de uma presença marcante: “Podemos sentir na música a crepitação de
sua fúria com os arrebatados staccatos das vocalizes, os quatro fás superagudos e o tom
de mal controlada arremetida” (Kobbé, 1997, p. 105).
11.1 O PRIMEIRO VERSO
A figura 6 indica o trecho da partitura para solista vocal da Ária 14 referente ao
primeiro verso da Ária 14, marcada pelos dizeres: “Arde em meu peito a vingança
infernal76”. Nele a, a Rainha da Noite declara o que sente em relação ao fato de não
possuir o Círculo de Ouro. Não é qualquer coisa que arde, mas a vingança infernal. E
ela arde em seu peito. O primeiro verso é cantado de forma preparativa para os famosos
melismas, como um prenúncio da profunda ferida narcísica evidenciada nos agudos
melismas da Ária 14 (Everett, 1991).
Figura 6: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart,
referente ao primeiro verso da Ária 14
No primeiro compasso podemos identificar uma pausa para a solista e ouvir os
instrumentos de corda dialogando com o restante da orquestra que preparam a entrada
da Rainha da Noite.
No segundo compasso podemos ler três Lá 3 de mesma duração, colcheias de
meio tempo, que dão ênfase à sonoridade da enunciação da Rainha da Noite. Assim, o
verso começa com um cantar que faz menção ao aspecto infernal do que a Rainha está
sentindo, marcado por uma sequência enfática das três notas Lá 3, não muito agudas.
No terceiro compasso observamos duas sequências decrescentes. A primeira é
de duas notas (Ré 4 e Lá 3) e apresenta uma variação de altura maior do que a sequência
que segue (Fá 4 e Mi 4). No quarto compasso observamos uma nova sequência
76
Der Holle Rache kocht in meinem Herzen
94
decrescente de apenas duas notas: Ré e Lá, idêntica àquela utilizada para expressar
“vingança77”, se considerarmos as alturas das notas. No entanto, em relação ao tempo
delas, observamos um prolongamento da primeira nota quando tratamos de “vingança”
em vez de “peito78”. Aqui temos a menção ao próprio afeto vingativo, marcado por um
Ré 4 com duração proporcional à sequencia inicial de três notas, e meio tempo mais
longa do que o Ré 4 usado para mencionar “peito”. Trata-se de uma semínima
aumentada em meio tempo. É possível observar que a segunda nota da sequência que
define a vingança é aquela mesma encontrada em “Infernal79”, sugerindo uma
incorporação desse aspecto adjetivado, infernal, ao sentimento de vingança. Isso porque
temos o Lá 3 de mesma altura mas que se encontra reduzido em uma só nota, ao passo
que “Infernal” possui três notas daquela altura.
Na sequência de “vingança”, observam-se quatro notas cuja variação na altura
é de apenas meio tom, ou seja, um intervalo de segunda menor que intervala duas
sequências melódicas uníssonas. Com relação a esse trecho, é preciso observar que nele
se dá a atualização, no corpo, do afeto vingativo, que traduz verbalmente a experiência
de uma vivência dolorida. Existe também a presença do aspecto narcísico típico da
vingança, já que a Rainha se refere a si mesma por mesmo de “meu80” no Mi 4.
Observa-se também o clímax do primeiro verso: O Fá 4, em “Arde em81”, seguido de
uma linha melódica descendente. A partir do clímax começa a ocorrer um esvaziamento
ininterrupto na altura das notas que irão decrescer até o peito.
11.2 O SEGUNDO VERSO
A figura 7 ilustra a partitura da solista vocal durante a Ária 14 no que concerne
ao seu segundo verso, marcado pelos dizeres: “Sinto morte e desespero a me
inflamar82”. Nesse verso temos novamente o aspecto narcísico típico da vingança, que
agora revela um sentimento inflamado permeado de desespero e ideias de morte que,
como veremos, irá culminar num atentado homicida. Nesse sentido, temos o desespero
enquanto um elemento que torna a vivência sofrida em algo ainda mais dolorido
(Siirala, 1969) e que está ligada também a uma ideação homicida.
77
Rache
Herzen
79
Der Hölle
80
Meinen
81
Kocht in
82
Tod und Verzweiflung flammet um mich her
78
95
Figura 7: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart,
referente ao segundo verso da Ária 14
No Primeiro compasso desse trecho temos a exclamação da Rainha da Noite:
“Morte!83”. A Nota Sol 4 está acima de todas as notas anteriores na partitura, o que já
sugere uma ascendência no clímax em relação ao verso anterior. Isso evidencia uma
maior amplitude sonora na descrição da vivência dolorida da Rainha, indicando que o
verso anterior não encerrou toda a negatividade radical que a Rainha pretende invocar
no canto. No entanto, a primeira nota não se trata do clímax do segundo verso. Neste,
um novo sofrimento, indicado por notas mais agudas, será anuciado, o que se efetiva
como um segundo passo na representação da dor que encontraremos quando
observarmos os agudos melismas da Ária 14, expressão da sua dor profunda (Everett,
1991).
Na sequência do Sol 4 do primeiro compasso do segundo verso, podemos notar
uma pausa sucedida de duas notas curtas, duas colcheias (ainda no primero compasso).
As três notas do primeiro compasso estão em uma sequência descendente de altura. A
sequência melódica descendente geralmente expressa sentimento de tristeza (Aksnes,
2001) e aqui ela aparece atrelada ao sentimento que invoca a morte e à preparação para
a descrição do desespero humano, também numa sequência descendente. Temos
também o sentimento de tristeza atrelado à ferida narcísica e um sentimento de
humilhação, que a Rainha tentará reparar pela arquitetura do seu projeto vingativo,
como forma de garantir a segurança do seu eu.
Numa análise conjunta do primeiro e do segundo compasso, as notas que
indicam o desespero na divisão silábica em língua alemã (und + Ver-) e (-zweif + lung)
são formadas por duas sequências melodicas descendentes, com uma sequência
ascendente entre as sílabas Ver e Zweif. No entanto, do ponto de vista da duração das
notas, a primeira estrutura tem a metade da duração da segunda.
Os dois vocábulos iniciais do verso “Morte” e “Desespero” são então repetidos
no terceiro compasso em uma sequência ascendente que começa em um Mi-bemol 4 e
83
Tod!
96
segue para o Fá# 4, modificações sobre o sétimo e oitavo graus, alterando o intervalo de
meio tom (caso não houvessem acidentes) para um e meio, criando uma segunda
aumentada. Essa sequência é, por sua vez, complementada por "-zweif lung" no retorno
às notas naturais da escala de Fá Maior em que poder observar uma sequência de
uníssona aumentada e, finalmente, da segunda maior que gera o clímax do verso. Essa
harmonização se diferencia do trecho anterior, cuja sequência é inicialmente
descendente de segunda aumentada por duas vezes seguidas, chegando à modificação de
meio tom no grau dominante, criando o Dó# 4, que será seguido de uma quinta
aumentada ascendente que, por sua vez, é seguida por uma quinta justa descendente.
Dessa maneira fica declarado o desespero e o desejo homicida da Rainha, com
a presença de três intervalos de segunda aumentada, como modificações sobre uma
dominante, uma sensível e uma tônica. O quarto compasso, assim como o segundo,
possui duas notas de um tempo que completam a repetição de “Morte e Desespero”.
A nota clímax do verso aparece no auge da sequência ascendente após o
segundo enunciado de “Morte” e “Desespero”. Esse evento se dá nas “chamas”
indicadas pela nota Si 4, como podemos observar na figura 7. Quando a Rainha da
Noite canta “flammet” há também uma prolongação da sonoridade por meio da
ligadura.
No quarto compasso começa o trecho musical relativo a “a me inflamar84”. Ao
final dele, começa uma nota longa que indica a enunciação de “chamas 85”, que termina
no compasso seguinte. O quinto compasso marca a continuação de “–flam” e conclui a
enunciação do termo. As duas notas (e até a terceira, considerando o último compasso)
que se seguem são de mesmo tempo que a da sílaba –met. A partir das “chamas”
mencionadas no quarto compasso, podemos notar a apresentação do esvaziamento do
verso pela resolução numa sequência melódica descendente, encerrando a significação
em torno do sentimento de desespero e a ânsia pela morte pulsando na Rainha da Noite.
Isso é feito por meio de dois intervalos de terça menor e dois de segunda menor (até o
sexto compasso), que ilustram a referência narcísica ligada ao sentir inflamado no corpo
da Rainha da Noite. A ligação entre corpo e sentir começa nesse Mi bemol 4,
modificação do grau sensível, seguido pelo submediante e, finalmente, por uma
modificação do grau dominante.
84
85
flammet um mich mer
flammet
97
11.3 O TERCEIRO VERSO
A figura 8 ilustra o trecho da partitura para a solista vocal durante o terceiro
verso da Ária 14, marcada pelos dizeres: “Se não matar Sarastro pelo teu punhal86”.
Nela, podemos observar as duas sequências descendentes que marcam a referência a
Sarastro, que deverá sentir a dor pelo punhal entregue à Pamina. Nesse verso cabe
observar uma dinâmica de ascendência e descendência que se dá na sequinte sequência:
ascende no primeiro compasso que é seguido por um deslizamento nos dois compassos
seguintes, fechando um circuito. No quarto compasso, a voz novamente ascende e,
depois, irá fazer um deslizamento ainda mais grave, ao passo que ela enfatiza para
Pamina quem ela quer que sofra.
O terceiro verso revela o interesse da Rainha da Noite e a condição para que
seja mantido o laço familiar com Pamina. Ela oferece uma missão para sua filha, que
deverá quebrar duas leis: Ela deverá matar e roubar de forma que sua mãe possa então
possuir o Círculo de Ouro. Nesse verso temos o caso da expressão da vingança, pela via
da ópera, mostrando o destino de um afeto vingativo sob a forma da luta, como reação à
ferida narcísica, em virtude do sentimento de desrespeito sentido pela Rainha da Noite
(Kohut, 1972). A Rainha não cede ao seu desejo devido a um eu ideal fraco e irá engolir
a todos, se puder, de forma que reste somente ela e o seu objeto de desejo (Schneider,
1988). Para ela, não importam os laços de amor, os vínculos familiares saudáveis ou as
leis da sociedade que visam o bem-estar assim como a manutenção da paz homem. Para
a Rainha, importa apenas a posse do Círculo de Ouro e vingar-se daqueles que ameaçam
o seu bem-estar. É nesse contexto que observamos a derrocada do dever-ser87 em prol
de uma ânsia pelo poder.
Encontramos aqui um paralelo com a personagem “Salomé”, da peça de Oscar
Wilde que foi adaptada para o teatro por Richard Strauss. Essa articulação nos permite
identificar que não é apenas o caso de uma ferida narcísica, mas de sua articulação com
o sadismo. “Salomé” deseja inicialmente beijar São João Batista e, na medida em que
ele se nega, a personagem pede ao Tetrarca Herodes que arranque a cabeça do
prisioneiro, que ela então beija. O desejo dela não dialoga com o desejo do outro, mas
tem o gozo no desmantelamento da felicidade e da vida alheia (Coriat, 1914). No caso,
Sarastro ocupa simbolicamente uma posição semelhante a de São João Batista: objeto
86
87
Fühlt nicht durch dich Sarastro Todesschmerzen.
Sollen.
98
de ódio da personagem vingativa. Quando a Rainha da Noite acaba deixando a adaga
nas mãos de Pamina, que deverá matar Sarastro, ela pode ser vista na posição sádica em
relação à sua filha. Ao invés de Pamina ser ajudada pela mãe, ela recebe em mãos o
dever de matar, o que irá desencadear toda uma encenação melancólica por parte da
heroína ameaçada pela mãe sádica e vingativa.
Figura 8: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart,
referente ao terceiro verso da Ária 14
Como podemos observar na figura 8, a voz varia entre notas agudas e notas
mais graves nos deslizes do terceiro e do quinto compasso. As notas mais agudas são
acompanhadas de determinados trechos cruciais para o entendimento da fala. Isso
porque é possível observar o núcleo depressivo da Rainha. Sua dor fica ligada a Sarastro
e ao desejo de que ele morra. Esse é o caso do afeto vingativo da Rainha que, no caso,
está ligado a um grau de tristeza que deseja trazer para baixo junto com ela a figura de
Sarastro.
No primeiro compasso temos uma escala ascendente iniciada em Fá 3, seguido
de um Lá 3 e, posteriormente, um Dó 4. Nota-se uma ascendência na altura dessas
notas. A primeira nota é a mais longa, enquanto que as duas seguintes possuem metade
de seu tempo. Se considerarmos o primeiro e o segundo compasso marcando a
expressão de “Se ele não sentir por você88”, temos os termos “sentir89” e “você90”
expressos de forma semelhante no aspecto da duração das notas, sugerindo a ideia
musical de que Pamina (quem a Rainha se refere ao dizer “você”) deverá provocar uma
ação sobre alguém: São notas de dois tempos, mínimas, que sugerem essa ação.
No segundo compasso, a nota Fá 4 é a mais alta da sequência iniciada no
compasso anterior. Seguindo o Fá 4, há uma pausa que antecede o endereçamento da
missão. Uma nota de meio tempo fecha esse compasso e marca o início do processo de
enunciação consequente que anuncia o destinatário: Sarastro. O segundo compasso
funciona como uma conexão, apresentando o fechamento da frase iniciada no primeiro
88
Fühlt nicht durch dich.
Fühlt.
90
Dich.
89
99
compasso e oferecendo a abertura para a frase que irá se construir a partir do terceiro.
Neste, há uma escala descendente iniciada em Lá 4, que termina em um Lá 3,
uma oitava abaixo, que desliza por meio de notas interligadas de meio tempo. Esse é o
primeiro compasso desse verso do tipo “intervalo descendente de oitava”.
No quarto compasso há uma sequência ascedente do Si-bemol 3 para o Sol 4,
que destaca a dor enunciada no verso: É grande e em estado de inflação esse desejo de
vingança da Rainha. Portanto, a morte de Sarastro deve ser efetivada. Isso fica ainda
mais evidente no quinto compasso desse verso que também é do tipo “intervalo oitava”.
Ele aparece após uma pausa que marca o fechamento do pedido feito na conjunção do
terceiro com o quarto compasso. Ao final do quarto compasso, uma nota de meio tempo
abre a repetição da solicitação a se realizar no compasso seguinte.
No quinto compasso a Rainha enfatiza o seu pedido, só que agora marcada por
uma nota mais aguda (Si-bemol 4) em relação ao primeiro pedido de que Sarastro fosse
assassinado (Lá 4). Essa sequência é ascendente no seu início e possui o clímax do
verso. A Rainha da Noite deixa bem claro para Pamina quem deve pagar por ter
provocado nela tamanha dor.
O sexto compasso equivale ao quarto e evidencia a dor e a ânsia crescente de
vingança da Rainha. Pamina já entendeu que Sarastro deverá pagar com a morte. A dor
anunciada anteriormente ja foi expressa numa sequência ascendente de Si-bemol 3 para
Sol 4, e agora, no último compasso desse verso, ela é expressa numa sequência de Lá 3
para Fá 4; A sequência de altura das notas nesses trechos varia de forma que se realça o
aspecto da dor ligado assassinato a ser cometido por Pamina. Esse aspecto é expresso no
mesmo intervalo (quinta aumentada) que a expressão anterior, ainda que com a variação
de um tom inteiro abaixo.
11.4 O QUARTO VERSO
A seguir, propomos a análise do quarto verso da Ária 14, separada em cinco
partes. O verso contido na figura 9 aparece repetido três vezes nessa análise.
Primeiramente no subtópico 11.4.1 e depois no subtópico 11.4.3, apenas parcialmente e,
mais uma vez, no trecho 11.4.5. No entanto, no intervalo dos três subtópicos, é
executada uma série de notas agudas (analisadas no subtópico 11.4.2., que se repete no
subtópico 11.4.4). Nele, a voz da cantora executa algo mais dionisíaco, ligado às
questões musicais em interseção com a negatividade radical, já que é somente música
100
que ela canta, não havendo nenhum recurso da ordem do libretto.
11.4.1 O Quarto Verso (A)
A figura 9 ilustra a partitura da solista vocal durante a Ária 14 no seu quarto
verso, marcado pelos dizeres: “De filha nunca mais vou te chamar91”. Essa fala realça a
ameaça de separação apresentada na ordem dada a Pamina de que ela deve matar
Sarastro. No entanto, no quarto verso vemos como a Rainha se apresenta a Pamina
como alguém capaz de fazer com que ela suma do mapa, assim como feito com
Akhenathon e os templos solares no antigo Egito (Mokhtar, 1981).
Figura 9: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart,
referente ao quarto verso da Ária 14
No primeiro compasso observa-se uma ascendência na altura das notas
marcando o começo do verso nas notas Si 3, Ré 4 e Fá 4, de mesma duração,
encadeadas.
No segundo compasso temos o clímax desse trecho quando a Rainha completa
o trecho “E então de minha92”. Quando ela canta “minha”, faz o uso do clímax musical
desse trecho do quarto verso, na nota Si 4 que segue para um Lá 4. As questões de
narcisismo em torno do devir da Rainha da Noite se evidenciam nesse trecho da
partitura. Esse clímax reforça a ideia do banimento, que se organiza como uma
chantagem emocional, em virtude da provocação de uma ansiedade de separação em
Pamina, com o intuito de que ela obedeça à mãe. O clímax desse trecho do quarto verso
realça aquilo que será quebrantado na ameaça, que é a relação efetivada no pronome
91
92
So bist du meine Tochte nimmermehr.
So bist du meine.
101
possessivo: minha93.
No terceiro compasso vemos uma dupla sequência melódica descendente que
começa numa modificação sobre o grau submediante, seguido por três intervalos de
terça menor, oscilando entre ascendências e descendências. Esse tipo de estrutura
também pode ser observado no primeiro verso, ainda que em quartas justas, sem
modificação sobre o esquema padrão da escala original, e com quatro notas intercalando
esse padrão descendente. Nesse trecho do quarto verso, a lógica melódica marca a
relação estabelecida entre “filha94” e “nunca mais95”, que se encerra no início do quarto
compasso, em uma nota de dois tempos, uma mínima, de mesma duração da nota do
clímax apresentado na figura 9.
No quarto compasso temos uma pausa entre a frase musical iniciada no
primeiro compasso desse trecho, e a abertura da segunda frase. A primeira nota faz o
fechamento do primeiro verso em uma nota prolongada marcando o fechamento da
enunciação de “nunca mais”. A segunda começa em uma nota de um tempo e introduz
os dizeres do quinto compasso.
No quinto compasso, temos a segunda nota da escala ascendente que começou
na última nota do quarto compasso. Na sequência, outra nota marcando a sequência da
melodia ascendente, de mesma duração da primeira desse compasso. No sexto
compasso essa sequência ascendente é encerrada no Lá 4. A pausa que segue o Lá 4 é
seguida pelo fechamento do verso permitindo que a cantora respire. Nesse trecho temos
um aspecto modificado no momento da repetição no que se refere à sonoridade da fala
da mãe endereçada à filha. A partícula “-mein” está agora representada por uma nota um
tom abaixo do clímax. A repetição de “-mein’” é seguida de uma pausa que traz mais
uma vez a partícula “minha96” em duas colcheias representando um Dó 4.
No sétimo compasso temos novamente quatro notas que marcam a relação
entre “filha” e “nunca mais”. No entanto, aqui, elas possuem uma nova configuração
melódica. Diferentemente do terceiro compasso, a repetição se perfaz em uma
sequência ascendente, ainda que a duração das notas seja colocada de forma idêntica.
No oitavo compasso se encerra esse trecho, que finaliza uma sequência
melódica ascendente iniciada na última nota do sexto compasso no Lá 4.
93
Meine.
Tochter.
95
Nimmermehr.
96
meine
94
102
11.4.2 A Voz da Rainha da Noite (B)
A figura 10 ilustra o trecho da partitura utilizado no quarto verso da Ária 14, no
entanto, ele é puramente musical. Segundo Abbate (1991), podemos dizer que essas
formas musicais são traços marcantes da personalidade da Rainha da Noite, isso porque
ela é música, ela mata a linguagem. Não seria essa uma das formas mais adequadas de
expressão da negatividade radical? Na figura 10, podemos notar as notas agudas
utilizadas para expressar a profunda dor sentida pela Rainha da Noite (Everett, 1991).
Figura 10: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart,
referente ao intervalo da voz, no quarto verso da Ária 14
No primeiro compasso desse trecho a Rainha começa a cantar sua fala sem
palavras no libretto. Ela abre com uma apoggiatura97 que se executa de forma súbita: É
uma nota que abre a frase musical, marcando uma sequência melódica no seguinte
formato: Descende – Ascende – Ascende.
No segundo compasso podemos ler oito notas de mesma altura e mesma
duração que são executadas de forma pontilhada devido ao uso do staccato98.
A primeira nota do terceiro compasso finaliza a primeira frase musical desse
trecho em uma semínima, mais longa que as outras notas dessa frase. Após a pausa,
uma nova apoggiatura, dois tons abaixo daquela do primeiro compasso, inicia uma
frase musical de estrutura rítmica semelhante, mas com variação melódica e na estrutura
intervalar.
No quarto compasso notamos uma repetição idêntica no aspecto rítmico em
relação àquela sequência do segundo compasso, e o mesmo vale para a comparação da
duração das notas do primeiro e das colcheias do terceiro compasso. No entanto, as
97
Tartini descreveu a appoggiatura breve di passaggio, que logo depois passou a ser chamada apenas de
appoggiatura que incluem a noção de antecipação da batida. Muitos autores e compositores divergem com
relação à duração da appoggiatura e ao seu aspecto harmônico (Apel, 2000).
98
A palavra "staccato" significa "destacatado". Tocar o "staccato" requer mais respiração por parte do
intérprete (Galpe, 2010).
103
notas do segundo compasso estão um tom e meio abaixo em relação ao segundo
compasso, as notas se executam numa altura fixa em Lá 4.
No quinto compasso se encerra a segunda frase. Após uma pausa uma nova
apoggiatura, um tom e meio abaixo da última, abre a mesma sequência de notas de
meio tempo aninhadas por uma ligadura. No entanto, o intervalo entre a primeira da
nota da terceira e da segunda frase se dá em um tom e meio, e não em dois tons como
vimos na análise da primeira nota da primeira e da segunda frase.
No sexto compasso temos a continuação da frase iniciada após a pausa do
compasso anterior. No entanto, a variação melódica é mais radical do que no segundo e
quarto compassos, havendo agora uma variação na altura da quarta e da oitava nota da
sequência. Ainda, a quinta, sexta e sétima notas estão um tom acima da primeira,
segunda e terceira. Sugere-se aqui uma distorção do padrão melódico repetido em notas
de mesma altura que irá culminar em uma grande variação de alturas no compasso
seguinte.
No sétimo compasso inicia-se uma inovação na variação das alturas que agora
acontece na sequência: Ascendência (relativa à estrutura de oito notas do sexto
compasso) -Descendência – Ascendência – Ascendência – Ascendência – Descendência
– Ascendência – Descendência. O clímax dessa sequência ocorre após a terceira
ascendência nesse compasso e irá se repetir no compasso seguinte, num Fá 5.
O oitavo compasso inicia-se em nota mais aguda do que o início do compasso
anterior, mas o clímax ocorrerá na mesma altura já alcançada o que sugere a seguinte
leitura: A variação de amplitude entre a nota que abre o compasso e o clímax é menor
no oitavo compasso do que no sétimo. No entanto, a variação de todas as alturas do
compasso é a mesma. A sequência da variação das alturas nesse compasso: Ascendência
(relativa à estrutura de oito notas do sétimo compasso) – Descendência – Ascendência –
Ascendência – Ascendência – Descendência – Ascendência – Descendência.
No nono compasso a frase termina em uma nota de um tempo cuja altura é a
mesma utilizada na abertura do compasso anterior, ainda que a nota tenha o dobro da
duração.
11.4.3 O Quarto Verso (C)
O primeiro compasso desse trecho inicia-se com uma nota longa que fecha a
frase puramente musical na voz da Rainha da Noite. Esse trecho é seguido por uma
104
nova sequencia puramente musical. Após uma pausa, a Rainha retorna a pronunciar
“De minha filha nunca mais99”. A figura 11 ilustra o trecho da partitura utilizado no
quarto verso da Ária 14, que se dá logo após a primeira frase puramente musical que o
atravessa.
Figura 11: Trecho referente ao intervalo entre os dois trechos puramente musicais
enunciados durante o quarto verso da Ária 14
No primeiro compasso, após uma nota que fecha a frase anterior, notamos a
presença de uma pausa seguida de duas notas: O primeiro Fá 4 acompanha a enunciação
de “mei-” em um tempo e meio. O segundo possui apenas meio tempo de duração e
conclui a fala do pronome com a sílaba “-ne”.
No segundo compasso podemos observar duas notas de dois tempos em uma
sequência ascendente que nos direcionam a atenção para quem a Rainha se refere no
trecho: A filha.
No terceiro compasso existe a pronúncia da sílaba “nimmer-” na seguinte
sequência ascendente de notas: Uma nota longa de três tempos seguida de duas
colcheias marcadas por uma ligadura. O trecho mehr, no quarto compasso, fecha a frase
em uma mínima, na mesma altura das notas iniciais do trecho, o Fá 4.
11.4.4 A Voz da Rainha da Noite (D)
A figura 12 ilustra trecho da partitura utilizado no quarto verso da Ária 14
referente à segunda frase puramente musical que atravessa esse verso. Ele é idêntico ao
trecho do subtópico “11.4.2 A Voz da Rainha da Noite (B)”.
99
meine Tochter nimmermehr
105
Figura 12: Trecho referente ao segundo intervalo puramente musical durante o quarto
verso da Ária 14
11.4.5 O Quarto Verso (E)
Após a perfomance das notas agudas do segundo motivo puramente musical da
Rainha da Noite, ela canta os dizeres do quarto verso novamente, marcando uma
repetição da enunciação que configura a formulação da ameaça que ela faz à filha. Esse
trecho marca o fechamento do quarto verso. Nele a Rainha canta novamente: De filha
nunca mais vou te chamar100. A figura 13 ilustra o trecho da partitura utilizado no quarto
verso da Ária 14, no fechamento dele.
Figura 13: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart,
referente ao quarto verso da Ária 14
O primeiro compasso se inicia no fechamento do subtópico 10.4.4 e, após uma
pausa, notamos a presença de uma nota Fá 4 de dois tempos, indicada por uma mínima,
que acompanha a enunciação de “So”.
No segundo compasso temos uma sequência de quatro notas. As duas primeiras
estão na mesma altura (Sol 4), mas de duração diferente. A altura das duas notas
seguintes é maior, sendo que a lógica do ritmo permanece idêntica em comparação com
as duas notas anteriores, ou seja, um tempo e meio seguido de meio tempo. O acidente,
indicado pelo Lá-bemol 4 marcando a enunciação de “mein”, indica a ascendência a
partir do Sol, num intervalo de segunda menor, para uma bemolização no grau
100
So bist du meine Tochte nimmermehr.
106
submediante. A posição de pertença da filha aqui é enfatizada por esse registro uníssono
em “minha”, na sequência de “bist du”, também uníssono, só que numa segunda menor
abaixo.
No terceiro compasso temos uma sequência descendente de duas notas. A
modificação na submediante desaparece nesse compasso, que apresenta um intervalo de
terça maior.
No quarto compasso temos uma sequência ascendente de notas. A primeira é a
de maior duração, exigindo três tempos. As duas seguintes são semi-colcheias ligadas
uma a outra. Notamos o mesmo padrão utilizado no trecho 10.4.3, tanto no aspecto
melódico quanto no rítmico. Também não há variação harmônica ou de intervalo em
relação aquele trecho ilustrado na figura 11.
No quinto compasso encontramos a resolução dessa frase musical que se perfaz
realizando a lógica de ascendência das alturas iniciada no compasso anterior. Dessa
forma, Mozart ilustra como a Rainha está chamando a atenção da filha para o fato de
que “nunca mais” ela será uma mãe para ela caso Pamina não lhe traga o Círculo de
Ouro.
11.5 O QUINTO VERSO
Nesse trecho temos a repetição de uma frase musical duas vezes seguidas. O
trecho se refere ao destino que terá Pamina caso ela não traga o Círculo de Ouro para a
mãe. A Rainha canta: “Serás banida e abandonada à própria sorte101” A figura 14 ilustra
o trecho da partitura utilizado no quinto verso da Ária 14. Podemos notar uma sequência
de notas que culminam, sempre, em uma nota numa oitava abaixo.
Figura 14: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart,
referente ao quinto verso da Ária 14
O primeiro compasso é aberto com três tempos e meio de pausas. O único som
101
Verstoβen Sei auf ewig, verlaβen sei auf ewig.
107
que se pode ouvir da Rainha é uma nota de meio tempo sinalizada pela semi-colcheia
em um Fá 4.
No segundo compasso temos uma sequência de notas sem variação alguma de
altura, apenas de tempo. São duas semínimas aumentadas em meio tempo seguidas de
uma colcheia. No primeiro e segundo compasso nota-se uma repetição da lógica rítmica
em “verstos-” = “-sen se”.
No terceiro compasso temos a última nota da sequência de seis notas na mesma
altura que acaba por repousar numa oitava abaixo, o que marca o fim da enunciação de
“Serás banidas (para sempre)102”. Seguida de uma pausa temos uma nova nota Fá 4 na
mesma altura e de mesma duração que a do primeiro compasso.
No quarto compasso temos a mesma sequência de alturas e tempos observada no
segundo compasso. Cabe aqui destacar a ênfase na declamação de “Banida,
Abandonada e Rompidos” em virtude da repetição dos motivos no canto. No quinto
compasso temos a resolução da frase, idêntica a do terceiro compasso desse trecho: Um
intervalo descendente de oitava em duas notas de um tempo.
11.6 O SEXTO VERSO
O sexto verso da Ária 14 inicia-se com “Rompidos para sempre serão os laços
naturais103”. A figura 15 ilustra trecho da partitura utilizado no quinto verso da Ária 14.
Podemos notar uma sequência de notas que culminam em uma nota numa oitava abaixo,
assim, como no quinto verso. No entanto, no sexto, é feita menção aos “laços naturais”.
Figura 15: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart,
referente ao sexto verso da Ária 14
O primeiro compasso do sexto verso é uma continuição do último compasso do
quinto. A partir dele, temos a presença do termo “Rompidos” à mesma moda que
“Banida” a “Abandonada” no quinto verso: Três notas na altura do Fá 4. Essas notas se
102
103
Verstoβen sei auf ewig.
Zertrümmer sei’n auf ewig alle Bander der Natur.
108
estendem até o terceiro compasso, repousando no intervalo descendente de oitava, no Fá
3. Após o intervalo de oitava para o termo “eternamente104”, uma pausa de um tempo
aparece. Ela é seguida por duas colcheias na altura do Fá 3 que são seguidas em lógica
ascendente em sétima menor para uma modificação sobre o grau sensível, o Mi-bemol
4, no quarto compasso do sexto verso. Ainda nesse compasso, um Dó 4 segue ao Mibemol 4 e, no compasso seguinte, um Lá 3 fecha a sequência descendente, interrompida
pela presença do Ré 4. No sexto compasso, o Sol 3 fecha a enunciação de “laços
naturais105”.
11.7 O SÉTIMO VERSO
Nesse trecho temos a repetição de uma frase musical duas vezes seguidas,
seguida ainda de uma terceira, acrescida, em seu início, por uma nota de meio tempo,
idêntica à primeira nota das duas frases anteriores. Apesar desse verso não estar contido
no libretto, ele é exigido pela partitura da Flauta Mágica, como um momento
intermediário entre o sexto e o sétimo verso originais. Dessa maneira, optamos por reenumerar os versos do libretto, de forma que o sétimo verso original passa a ser o oitavo
e, o oitavo verso original passa a ser o nono verso. Dessa maneira, o subtópico 10.7
referente ao sétimo verso, se refere, ao destino que terá Pamina caso ela não traga o
Círculo de Ouro para a mãe. A Rainha canta: “Banida, abandonada e rompidos serão os
laços naturais106” A figura 16 ilustra o trecho da partitura utilizado no sétimo verso da
Ária 14. Podemos notar uma sequência de notas que culminam em uma nota numa
oitava abaixo. Após essa sequência, a rainha faz menção aos laços naturais.
Figura 16: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart,
referente ao sétimo verso da Ária 14
O segundo trecho do 2º verso apresenta uma semi-colcheia no primeiro
compasso, em Sol 4. No segundo compasso, a mesma nota se repete. No entanto,
104
Ewig.
Alle Bande der Natur.
106
Verstoβen, verlaβen, und zertrümmert, alle Bande der Natur.
105
109
observamos o dobro da duração do tempo da nota. A segunda nota desse compasso
apresenta a mesma duração que a primeira, no entanto um intervalo de oitava
descendente existe em relação à primeira. Ainda no segundo compasso, um intervalo de
um tempo e meio antecede a repetição do mesmo esquema de notas do final do primeiro
compasso e começo do segundo.
Essa segunda frase, que dura até o terceiro compasso, é antecedida por uma
colcheia na altura do Sol 4, que divide o espaço desse compasso com um intervalo de
tempo menor do que o insterstício anterior: apenas um tempo inteiro de duração de
pausa, contra os dois tempos e meio do primeiro compasso.
No quarto compasso se encerra a apresentação dos termos “Banida,
Abandonada e Rompidos107” que, por sua vez, trazem o intervalo de oitava de “para
sempre108”, extraído do primeiro trecho do Quinto Verso (ainda que um tom inteiro
acima). Isso implica que o sentido do termo “para sempre” foi incorporado aos três
termos da penalidade a ser aplicada a Pamina. Isso implica considerar que há um realce
da ideia perpétua da pena.
Ainda no quarto compasso, após uma pausa de um tempo, duas semi-colcheias,
na altura do Sol 3 são seguidas por um Fá 4 na duração de uma semínima, já no quinto
compasso. Outra semínima, na altura do Ré 4, fecha esse compasso. No sexto
compasso, a sequência descendente iniciada no compasso anterior segue passando, em
um intervalo de terça menor, do Ré 4 para o Si 3, uma modificação do grau
subdominante. Esta nota é seguida por um Mi 4 no intervalo de quarta justa, mantendo o
esquema de duração das notas do compasso anterior. Esse trecho se encerra no sétimo
compasso em um Lá 3 de duração igual a um tempo.
11.7.1 O Sétimo Verso (Extensão)
Esse trecho é entrecortado por um novo motivo puramente musical no canto da
Rainha da Noite durante a Ária 14. Ao nível da semântica, temos uma ênfase da posição
que Pamina irá ocupar em relação à mãe caso ela, como filha, não obedeça à imposição
feita pela mãe de trazer o Círculo de Ouro. Quando a Rainha afirma que serão rompidos
os laços naturais ela está se referindo à relação mãe e filha estabelecida desde o
nascimento de Pamina a partir do ventre da Rainha da Noite. A indicação da fala no
107
108
Verstoβen, verlaβen e zertrümmert
ewig
110
tempo do futuro e o resgate do critério condicional nos revela que Pamina deixará de ser
filha caso ela não obedeça à mãe. A Rainha canta: “todos os laços naturais109”.
A figura 17 ilustra o trecho da partitura utilizado no sétimo verso da Ária 14.
Na figura está ilustrada uma repetição do verso anterior enfatizando a ameaça à Pamina
que, por sua vez, irá temer o abandono de sua mãe. Uma sequência puramente musical
com a presença de tercinas e staccatos pode ser observada.
Figura 17: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart,
referente ao sétimo verso (extensão) da Ária 14
No primeiro compasso do da figura 17 temos duas mínimas, uma na altura de
Lá 3 e outra na altura do Mi 4, marcando a presença do terceiro e do sétimo grau de Fá
Maior.
No segundo compasso iniciam as tercinas que ilustram a vogal "a" contida na
sílaba "Ba" de "Bande". As tercinas desse compasso possuem, a partir da nota central,
uma sequência na seguinte dinâmica: ascendente (Sol 4 para Si 4), descendente (Si 4
para Sol 4), descendente (Sol 4 para Mi 4).
As tercinas continuam no terceiro compasso caindo numa segunda menor do
Ré 4 do final do segundo compasso para o Dó#4 do terceiro (modificação do grau
dominante). A nota central da primeira tercina desse compasso, um Ré 4, cai para o Sibequadro 3 (modificação do grau subdominante, marcando a nota central da segunda
tercina), como que numa segunda aumentada, voltando para o Ré 4 (na nota central da
109
alle Bande der Natur…
111
terceira tercina) que depois segue para o Fá 4, também em segunda aumentada.
No quarto compasso, a sequência melódica das tercinas inicia-se em Sol 4
(segunda maior na nota central da primeira tercina), subindo para Si 4 (por meio de uma
terça maior), descendendo de volta para o Sol 4 e, finalmente, descendendo para o Mi 4
(numa segunda aumentada).
No quinto compasso, as modificações sobre a dominante e a subdominante do
terceiro compasso voltam a aparecer, de forma que o terceiro e o quinto compasso são
idênticos, rítmica, melódica e harmonicamente.
O sexto compasso encerra a longa frase das tercinas em um Fá 4. Quatro
tempos inteiros de pausa antecedem o sétimo compasso que, após uma pausa de meio
tempo, apresenta notas em staccato.
As quatro primeiras notas do sétimo compasso estão numa sequência
ascendente, culminando no clímax de todo o trecho (Ré 5). Após o clímax, a sequência
retorna para o Lá 4, sobe para o Si 4 e, depois, descende um pouco mais para o Sol 4.
No oitavo compasso a sequência repousa num Lá 4 de um tempo inteiro. A nota é
seguida por três tempos de pausa.
O nono compasso é idêntico ao sétimo. No entanto, a sequência desse
compasso não é dada numa semínima, mas numa colcheia, ainda que tenhamos notas de
mesma altura (Lá 4). Esse Lá é seguido por uma série de colcheias que seguem numa
sequência que ora ascende e ora descende, sempre em stacatto. Essa sequência se
desdobra até o 12º compasso, quando a série vocalizada a partir do "a" de “laços110” se
encerrra.
O 13º compasso começa com uma nota de dois tempos numa segunda menor
descendente em relação ao 12º, numa modificação da sensível que é seguida por uma
quarta diminuta na sequência do Mi-bemol 4 para o Sol 4. A mesma quarta diminuta
aparece na sequência do 13º para o 14º compasso na sequência para o Si 4. Após essa
nota, temos uma sequência descendente dupla de quartas diminutas e, no final do 14º,
assim como na passagem dele para o 15º, temos intervalos de segunda menor. A
modificação na dominante é o registro do encerramento desse trecho.
11.8 O OITAVO VERSO
A figura 18 ilustra o trecho da partitura utilizado no oitavo verso da Ária 14.
110
Bande.
112
Nesse verso temos uma repetição do que Pamina deve fazer para manter os laços de
família com sua mãe. A repetição da menção ao nome de Sarastro indica uma posição da
Rainha que é a de enfatizar. Ela está fixada na atualização do seu desejo de se vingar
daquele que agora possui o Círculo de Ouro e que lhe veta à entrada na fraternidade.
Nesse trecho a Rainha canta: “Se não levares Sarastro à sua Morte111!”.
Figura 18: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart,
referente ao oitavo verso da Ária 14
O primeiro compasso inicia-se com o fechamento do verso anterior e uma
pausa que antecede o novo verso. O termo “wenn” está assinalado por uma nota Lá 3 de
um tempo, marcando o início do oitavo verso.
No segundo compasso temos o Dó# 4 indicando a presença do intervalo de
terça maior, com uma modificação sobre o grau subdominante, nota que possui dois
tempos. Ela é seguida de uma pausa com duração de um tempo.
No terceiro compasso temos a resolução da enunciação de “por você112” que
repete a dinâmica da duração das notas de “se não113”. Ambas são também organizadas
em sequências ascendentes. O intervalo entre “por você” é meio tom menor do que em
“se não”, por isso o intervalo deste trecho possui uma amplitude maior. Uma pausa de
um tempo separa o primeiro trecho do segundo que, por sua vez, fará menção a
Sarastro. A sílaba “Sa” possui a mesma altura do termo “por114”, mas apenas a metade
do tempo.
No quarto compasso completa-se a enunciação de Sarastro em duas notas de
um tempo, assim como a da nota que canta Sa, no compasso anterior. A sequência do
tempo marca a divisão silábica do nome do chefe da ordem sagrada, na seguinte
sequência de notas: Mi, Sol, Mi. O compasso termina com duas notas de um tempo
acompanhando a enunciação de “wird er(blassen)”. “Wird” está acompanhada de um
111
Wenn nicht durch dich Sarastro wird erblassen.
durch dich.
113
wenn nicht.
114
Dich.
112
113
acidente de Dó# 4 em “er”, no mesmo grau subdominante modificado no segundo
compasso, na sequência descendente em relação ao Mi 4. Na sequencia de “wird” temos
a quebra da sequência de intervalos de terças menores, passando a apresentar uma terça
maior, o mesmo que intercala os termos “wenn” e “nicht” do início do oitavo verso.
O quinto compasso está preenchido por um longo Si-bemol 3 de dois tempos,
que surge a partir do intervalo de terça diminuta ascendente. O compasso acompanha a
sílaba "blas” que pertence ao termo “tornar pálido115”. No sexto compasso se encerra a
enunciação de “tornar pálido” em um retorno a nota inicial desse trecho, o Lá 3, na terça
diminuta descendente. Dessa maneira, notamos que tanto os termos “Sarastro” como
“empalidecer” são dados em três notas na seguinte sequência: ascendência –
descendência em terças diminutas.
11.9 O NONO VERSO
O último e nono verso da Ária 14 é uma expressão de clamor e chamado aos
deuses da vingança. Nele, a Rainha expressa a sua posição de aliança com entidades
divinas. Nele ela canta: “Escuta, escuta, escuta. Deuses, ouvi as juras maternais 116!”. A
figura 19 ilustra o trecho da partitura utilizado no nono verso da Ária 14:
Figura 19: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart,
referente ao nono verso da Ária 14
No primeiro compasso do trecho apresentado na figura 19, podemos observar
uma nota Ré 4, de dois tempos, seguida de uma pausa, de igual valor. No segundo
compasso podemos observar uma nota Fá 4, de dois tempos, seguida de uma pausa com
o mesmo valor que a do compasso anterior. No terceiro compasso, uma sequência de
dez tempos é iniciada em uma nota Si 4, encerrando uma sequência ascendente nas
notas da tríade: “Escuta, escuta, escuta”. Este será o clímax do nono verso, já que se
115
116
Erblassen.
Hört, hört, hört. Rachegötter! Hört der Mutter Schwur.
114
trata da nota mais aguda a ser executada. Trata-se de um clímax de extensão
prolongada, que irá atravessar todo o quarto compasso e o início do quinto.
Neste, após a nota Si 4 conectada pela ligadura, podemos observar uma
sequência descendente para o Sol 4, seguida de um Mi-bemol 4. Os dois intervalos são
de quarta diminuta. É possível notar ainda que o tempo da enunciação de cada sílaba é
menor à medida que são transcorridas as notas nesse compasso: Após o Si 4 com
duração de dois tempos, temos uma nota de um tempo e meio seguida de uma nota de
meio tempo. Nesse compasso, ocorre a segunda aparição, na Ária 14, do termo
“Vingança”, num intervalo de quarta diminuta com uma modificação sobre o grau
sensível.
No sexto compasso, duas notas são executadas numa sequência descendente
numa dupla sequência de segunda menor a partir do quinto compasso, partindo do Mib4
para o Ré 4 que, por sua vez, cai para o Dó# 4. Uma pausa fecha o compasso.
No sétimo compasso uma nota de quatro tempos da mesma altura da segunda
enunciação de “escuta” aparece isolada, três tons abaixo do “escuta” executado pelos Si
4 conectados pela ligadura.
O oitavo compasso é aberto em uma pausa marcando uma separação entre
“escuta” e “as juras de uma mãe117”! Após a pausa, uma sequência de dois Ré 4 são
intercalados por uma modificação sobre a dominante, criando o Dó# 4 entre dois
intervalos de segunda menor (o primeiro descendente e o segundo ascendente). Esse
intervalo é o mesmo daquele em “deuses118”, mantendo-se a altura das notas, o que
indica uma aproximação ao nível de secundidade e terceiridade entre a “Mãe” e os
“Deuses (da vingança)”. Ao nível do ritmo ocorre uma acentuação do tempo empregado
na sílaba “Mut-” de “Mãe119”. Inclusive, o termo “Mãe” possui uma lógica rítmica
semelhante a “Rache”, o que indica uma fixação à nível de primeiridade, oferecendo
uma aproximação de significado musical entre “Vingança” e “Mãe” – ao nível da
primeiridade.
No nono compasso temos a enunciação do termo “jura120” em uma nota de dois
tempos, a mais grave de todo o compasso, o Lá 3. Uma pausa fecha o compasso. No
décimo compasso temos uma pausa de quatro tempos.
117
der Mutter Schwur.
Götter.
119
Mutter
120
Schwur
118
115
TOMO IV – ANÁLISE ESQUEMATIZADA DA PARTITURA PARA CANTO
VOCAL (SOLO) DA ÁRIA 14 DA “FLAUTA MÁGICA”
12 MONTANDO O ESQUEMA DE ANÁLISE: O SENTIR E A ARQUITETURA
DA VINGANÇA
O andamento da Aria é Allegro Assai, que significa muito rápido, o que pode
apontar para o descontrole emocional da Rainha. A chave enganosa do Fá Maior e suas
variações sugerem que a Rainha, do ponto de vista da sonoridade do canto, promove
uma comunicação voltada para a efetivação de uma chantagem emocional de forma que
seja montado um plano de vingança. Além de Sarastro, a sua filha Pamina também
passa a ser alvo da vingança por meio de operações de deslocamento. Isso porque já não
é possível se vingar diretamente do marido viúvo, mas de quem, por relações de
contiguidade com ele, possa assumir essa culpa, ainda que por meio de certa dose de
deslocamento. O ódio da Rainha provoca um aumento da dor o que irá, do ponto de
vista do reforço energético, oriundo das energias sexuais, mobilizar um ataque de
proporções que seguem a ideia geral: os fins justificam os meios.
Os trechos das notas agudas dos melismas cantados pela Rainha são a projeção
da sua natureza mais interna, revelando seus desejos íntimos de destruição e de posse
daquele objeto que dá a ela o direito a participar do campo do Poder Moral121, o da
autorização de fazer parte da fraternidade. No entanto, como a ela é negado, há uma
ferida narcísica que toma o lugar da sua psiquê e, consequentemente, ela fica impedida
de amar, já que agora ela só consegue sentir o ódio, que toma conta dela. Mas esse
sentimento não fica voltado para ela, como no caso da depressão crônica, mas voltado
para figuras secundárias, alvos da vingança eleitos pela operação de deslocamento.
Podemos dizer que a voz da diva está em oposição à fonte do Poder Moral que lhe é
negado por Sarastro. Essa intervenção do supereu representado por Sarastro é uma
interveção que institui a separação simbólica entre mãe e filho e que não possui o
encantamento paradisíaco proporcionado somente por uma estada na Shangri-la do
júbilo afetivo. Isso provoca a sensação da ferida, que a Rainha, via regressão, irá buscar
reparar procurando o conforto no supereu mais próximo ao que tinha quando era uma
121
Dürfen.
116
criança, evidenciado por certos padrões rítmicos repetitivos ao longo da Ária 14, como
em “Infernal122”.
No caso da Rainha da Noite podemos identificar ainda o Círculo da Forma,
proposto por Weizsäcker, que revela a dinâmica da vingança como uma resposta ao
limite imposto pelo verbo pathico Poder Moral: “À Rainha não é permitido”. Questões
relativas ao verbo Dever Moral123 não são levadas em consideração em virtude do
supereu estar voltado para garantir a segurança do eu pela via da satisfação que o verbo
“Wollen” busca encontrar, em virtude da necessidade gerada no âmbito do verbo
“Müssen”.
É possível sistematizar a Ária 14 em duas partes. Uma mais voltada para a
descrição do que é sentido pela Rainha, e outra voltada para a constituição da
arquitetura da vingança. Os dois primeiros versos estão contidos na primeira estrutura,
enquanto os demais se encontram na estrutura da arquitetura da vingança e da
constituição da ameaça. Na tabela 2 é possível observar cada um dos versos na língua
original do libretto, assim como a estrutura à qual pertencem.
É possível ainda notar como que o libretto precisa se adaptar à partitura,
conforme demonstrado no TOMO III dessa dissertação.
122
123
Der Holle.
Sollen.
117
Tabela 2: A Ária 14 da Flauta Mágica de Mozart em duas estruturas
Verso
Verso
Trecho do libretto original em alemão
(libretto)
(libretto e
referente a cada verso
Estrutura
Partitura)
1º verso
1º verso
Der Hölle Rache kocht in meinem
1ª estrutura
herzen
Tot und verzweiflung
2ª verso
2ª verso
O Sentir
Tot und verzweiflung flammet um
mich her!
Fühlt nicht durch dich Sarastro
3º verso
3º verso
Todesschmerzen
Sarastro todesschmerzen,
So bist du meine tochter nimmermehr
So bist du mein', meine tochter
nimmermehr
4º verso
4º verso
-Trecho sem texto
2ª estrutura
Meine tochter nimmermehr
-Trecho sem texto
So bist du meine tochter nimmermehr
5º verso
5º verso
Verstossen sei auf ewig, Verlassen sei
auf ewig
6º verso
Zertrümmert sei'n auf ewig Alle bande
der natur
Verstossen
Verlassen
6º verso
7º verso
Und zertrümmert Alle bande der
natur
Alle Bande… (Trecho sem texto)
Alle bande der natur
7º verso
8º verso
Wenn nicht durch dich Sarastro wird
erblassen!
8º verso
9º verso
Hört, Hört, Hört, Rachegötter! Hört
Der Mutter Schwur!
A
Constituição
da Ameaça
118
Na 1ª estrutura, a Rainha revela como está o seu sentimento em relação ao
corpo próprio. De forma a organizar as ideias ligadas ao problema do sentir, propomos a
sistematização conforme a figura 20.
Figura 20: O sentir da Rainha da Noite na primeira estrutura da Ária 14
Na figura 20 estão dispostos os nomes que qualificam o sentir da Rainha da
Noite. Os verbos que ela enuncia são arder e inflamar. O primeiro está ligado à ideia
“infernal”. O segundo está localizado no eixo “morte-desespero”. Os dois verbos estão
expressando o que é típico do indivíduo na posição vingativa: A raiva que decorre da
ferida narcísica e uma regressão egóica associada ao supereu enquanto o Isso está livre
para pulsar em plena ardência “à flor da pele”. Esse arder gera um alerta que promove o
retorno do Supereu para a garantia da segurança do Eu, enquanto o Isso age livremente.
Segundo a lógica do círculo da forma, o querer da Rainha da Noite é movido
pela ardência e inflamação sentidas no seu corpo. Esse sentimento doloroso é
qualificado pelo desespero, a morte e a vingança. A Rainha de fato sofreu uma perda e
isso requer a vingança. Arder e inflamar são verbos que qualificam a pulsão vinda do
Isso e a qualificam no sentido de mobilizarem a garantia da segurança pessoal que se
coloca à frente de outras questões humanas, como a moral social ligada ao verbo Dever
Moral.
Assim, a primeira estrutura da Ária 14 revela o funcionamento da vingança no
âmbito do sentimento e do querer124 em oposição ao poder moral125 e à moral social126.
É preciso também que a personagem que deseja se vingar é obtenha os meios para
satisfazer-se. Esses meios são apresentados na segunda estrutura da Ária 14, que revela
a dinâmica do querer numa dialética com o poder moral na lógica da vingança efetivada
na ameaça verbal da Rainha da Noite.
124
Wollen.
Dürfen.
126
Sollen.
125
119
Em virtude da negação imposta ela pela via do verbo Poder Moral (a ela não é
permitido), a Rainha irá buscar o poder para que ela possa obter o Círculo de Ouro e
vingar-se de Sarastro. Assim ela buscará reocupar o lugar almejado pelo seu Ideal do
Eu, que é a de possuidora do Círculo, que lhe permite regojizar-se narcísicamente, o que
lhe foi roubado pela negação imposta pela retirada do Círculo de seu domínio. Para
Abraham (1922), a figura vingativa não deseja apenas se reparar obtendo o objeto que
lhe foi tirado, mas também deseja diminuir o poder de quem lhe ameaçou e concretizou
a ameaça. Na Ária 14, essa afirmação oriunda do contexto clínico encontra-se no fato de
que a Rainha buscará tentar matar Sarastro pedindo a sua própria filha que o faça. Nesse
contexto, podemos notar a posição da Rainha em relação à filha que é típica daquela
mãe vingativa que não permite aos filhos um processo de individuação que é saudável
(Whitehead, 1978). Isso implica que a filha não pode realizar-se e ser feliz, tampouco
tornar-se adulta, já que deve se curvar à mãe.
Abraham (1922) constata que a ameaça à filha é realizada enquanto que a mãe
quer se vingar do falecido marido o que ocorre devido à desorganização do pensamento
que ocorre na mente da mãe e que devido a operações de deslocamento no seio dos
laços familiares, ou seja, por contiguidade, a Rainha se vinga projetando seu ódio sobre
Pamina. Por isso ela tentará fazer a filha infeliz. Existe ainda outro problema em
questão: Mães podem sofrer de alguma ferida narcísica, cujo processo teve início no
reconhecimento da genitália durante a infância. Ela nota que há uma ferida, um corte.
Na vida adulta elas exigem dos filhos que exerçam a função do pênis faltante. Assim, a
filha está fadada a ceder aos seus próprios intentos de se tornar mulher e casar com
Pamino para que possa ajudar a sua mãe na trama de sangue. Ela assumirá a
responsabilidade de promover o bem-estar do eu da orgulhosa e decaída Rainha da
Noite.
Assim, enquanto a Rainha está provocada por uma dor narcísica ela irá
arquitetar um plano que irá possibilitar o retorno para a sensação de segurança,
necessária ao seu eu. A tabela 3 apresenta um resumo dos verbos de ação usados na
cena da Ária 14 pela Rainha da Noite.
120
Tabela 3: Ameça à Pamina na Ária 14
Verbo conforme
Verbo no infinitivo
Destinatário do verbo
Matar
Matar (Levar à morte)
Sarastro
Chamar
(Não) Chamar
Pamina
Banida
Banir
Pamina
Abandonada
Abandonar
Pamina
Rompidos
Romper
Laços naturais com Pamina
Ouvir
Ouçam
Deuses da vingança
conjugação na Ária 14
A tabela 3 revela uma série de ações. Primeiro, ela indica o que Pamina deve
fazer: Matar Sarastro, ação a ser tomada com um punhal. Esse ato se coloca como uma
condição sine qua non para que a Rainha da Noite continue sendo uma mãe fiel à filha.
O latrocínio enquanto transgressão do direito à vida se faz sem haver qualquer
preocupação moral por parte da Rainha, uma vez que sua ferida narcísica a impede de se
ocupar com questões que não concernam diretamente à segurança do seu eu. A Rainha
recebeu tudo como herança de seu marido, a filha, as terras e as riquezas, mas não o
Círculo de Ouro, símbolo da honra, reconhecimento do (grande) outro. O falecido o
deixou como herança para Sarastro, protetor da ordem que preza pela razão, a
fraternidade e a caridade como grandes ideais. A má formação do supereu da Rainha da
Noite a coloca nessa busca pelo Ideal do Eu e de formas de reobter a sensação de
segurança perdida, já que o Eu sente-se roubado, ferido e com a honra perdida. A
disposição para formar um Ideal do Eu que viva em harmonia com os outros não existe
enquanto que o Círculo de Ouro ocupa a posição do Ideal do Eu extraviado (Castarède,
2002). Dessa maneira, mandar Pamina matar Sarastro e trazer de volta o Círculo de
Ouro significa pedir à filha que resgate a honra da mãe.
Como complemento ao pedido feito pela Rainha, existe também uma situação
de chantagem, marcada pelos verbos chamar (em negação), Banir, Romper e
Abandonar. Na figura 21 podemos observar a esquematização dos quatro verbos. Caso
observemos os trechos da partitura que se referem aos verbos dessa figura veremos que
eles estão próximos aos trechos puramente musicais.
121
Figura 21: Os verbos utilizados na ameaça à Pamina.
Enquanto matar é a condição imposta, o restante dos versos vem a indicar a
punição caso Pamina não obedeça, qual seja o ostracismo que lhe será imposto. O
banimento da convivência em sociedade era uma punição severa na Grécia Antiga. O
ostracismo se configura como uma ameaça poderosa na mente de Pamina e a Rainha a
impõe de forma repetida. Ao analisar a figura 21 em sentido horário, primeiramente ela
não irá chamar Pamina de filha, trazendo uma fala puramente musical. Em segundo
lugar ela coloca que Pamina será abandona à própria sorte, sendo banida da convivência
com sua mãe: para sempre serão rompidos os laços naturais. Em terceiro, a ameaça se
repete excluindo o termo que marca o aspecto temporal, mas, inserindo ele nos verbos
por meio de operações de deslocamento e condensação. Também no terceiro momento
está o terceiro enunciado puramente musical da Ária 14. Esse trecho, segundo Kobbé
(1997), é uma das mais famosas passagens da ópera. Segundo Everett (1991), ele é a
expressão da profunda dor sentida pela Rainha da Noite.
A Ária é fechada com a conjuração dos deuses da vingança. Esse momento
marca o fechamento da arquitetura da vingança, que traz a ordem para Pamina para que
mate Sarastro. Dessa maneira, ela faz o pedido para Pamina, buscando apoio para o
resgate da segurança do seu eu e da sua honra. Essa ordem aparece duas vezes,
intercalada pela questão da ameaça. Ela surge como uma tentativa inicial da Rainha de
reparar a própria ferida narcísica, fazendo com que Pamina sofra alguma ameaça de
castração, ligada ao ostracismo. Essa imposição de ameaça à Pamina é uma forma de
122
lutar contra o mecanismo conjugado entre ameaça e efetivação da castração. A rainha
opta por ameaçar em vez de ficar se culpando numa posição depressiva. A figura 22
revela a sequência da segunda estrutura que incorpora o pedido a Pamina de que ela
mate Sarastro, a ameaça à Pamina, e a conjuração dos deuses da vingança.
Figura 22: O plano vingativo da Rainha em quatro momentos (Segunda estrutura)
Após a sistematização da primeira e da segunda estrutura, é possível identificar
exemplos de aspectos de primeiridade, secundidade e terceiridade musical, cujos
correlatos são o ritmo, a melodia e a harmonia, respectivamente (Santaella, 2001). As
duas estruturas, a do sentir e a da ameaça serão analisadas separadamente devido a uma
finalidade didática em explicar a lógica da vingança na personagem que estamos
conhecendo.
123
12.1 PRIMEIRIDADE MUSICAL
12.1.1 Primeiridade Musical, o Sentir e a Vingança
No âmbito da primeiridade musical, Santaella (2001) considera o ritmo e os
seus parâmetros como foco de análise. Um aspecto que pode ser analisado do ponto de
vista do ritmo é a duração das notas, e se há repetição ou variação entre elas a partir de
determinados trechos de uma partitura. A duração diz respeito ao próprio tempo que é
utilizado na execução das notas no seu processo acústico. As figuras 23 e 24 ilustram os
trechos da partitura relativos à primeira estrutura da Ária 14, ligada ao sentir da Rainha
da Noite, conforme a tabela 2 e a figura 20.
Figura 23: Trecho da partitura referente ao primeiro verso da Ária 14
Figura 24: Trecho da partitura referente ao segundo verso da Ária 14
Nas figuras 23 e 24 podemos observar repetições e variações na duração das
notas. Se articularmos essas figuras que indicam as qualidades do sentir da Rainha, com
as respectivas marcações indicadas na partitura, iremos obter a figura 25:
124
Figura 25: O sentir da Rainha da Noite referenciada na partitura da Ária 14
Podemos extrair, a partir da análise da figura 25, os aspectos que são
mobilizados a partir de um poder moral de negação imposto por Sarastro à Rainha da
Noite colocando o seu Isso127 em ação e em condição de descontrole em virtude da sua
posição vingativa. As ações tomadas pela Rainha são mobilizadas pelo seu sentir
doloroso. A partir desse sofrimento provocado pela ansiedade de separação, ela irá se
autorizar-se a recorrer à vingança. Isso porque existe uma necessidade, inclusive ligada
ao corpo, alimentada pela necessidade física128.
Ao nível da duração temporal, o sentir ligado à vingança infernal é marcado
por uma repetição na enunciação de “infernal129” o que nos permite indicar a obstrução
oferecida pela resistência ao processo de perlaboração, o que é também característica de
muitos pacientes vingativos crônicos (Socarides, 1977; Brenner, 1987; Lane, 1995).
Essa fixação irá adjetivar a ideia de vingança e irá se manifestar na fonte da pulsão: O
peito130, sob o qual fica o coração131. A repetição, nesse caso, é típica de um processo
libidinal que atingiu um desenvolvimento, mas que não consegue se reinventar a partir
de um ponto o qual recebe forte influência da resistência devido à ansiedade da
castração (Freud, 1914). Ademais, podemos denominar esse evento como isométrico,
uma vez que todas as notas no intervalo possuem o mesmo tempo (Hérbert, 2012). Essa
constatação nos remete à verificação de que o mecanismo da repetição pode ser
127
Das Es.
Müssen.
129
Der Holle.
130
Herzen.
131
Herz.
128
125
encontrado paralelamente na linguagem musical e psicanalíticas (Leader, 2010). Na
Ária 14 da Flauta Mágica, isso ocorre quando observamos o problema do supereu e o
problema de negação social do Poder moral, mobilizador de um auto-autorização, cuja
decorrência é uma forte mobilização do Isso que irá atuar livremente, manifestando-se
em repetições rítmicas que, no caso da partitura da Ária 14, estão encerradas, por
exemplo, na sequência de três notas lá de meio tempo.
Outra duração que nos revela um aspecto do Id em chamas da Rainha é o
aspecto da morte, indicado por notas longas. As duas menções à morte a partir da
repetição do segundo verso são representadas por notas de mesmo tempo, indicando
uma estrutura do sentir ligado à morte132. A estrutura revela que a Rainha da Noite sente
no corpo uma sensação prolongada marcada por pensamentos ligados à morte já que o
processo de enunciação representa temporalmente esse sentir, indicado pelo uso de
mínimas nos dois momentos nos quais a Rainha menciona o termo “morte”.
Ainda, notamos uma terceira estrutura que é aquela que se liga ao termo
desespero. Notamos que Mozart repetiu a estrutura da dinâmica temporal da mesma
forma que fez quando marca o termo morte, indicando ambos por meio de interisometrias. O desespero133 é indicado por uma sequência de três notas, a primeira tem a
metade da duração que as duas seguintes. O tempo de duração para cada nota referente a
desespero é indicado assim: meio-tempo (colcheia); um tempo (semínima); um tempo
(semínima). O pensamento clínico sobre o desespero compreende que ele é um fato que
provoca o avanço mórbido dos processos pathologicos (Siirala, 1969). Por outro lado, a
psicoterapia e o caso dele promover a melhora do paciente, exije o partilhamento da
responsabilidade entre terapeuta e paciente, o que se opõe a uma ideia de clínica ôntica
que toma o paciente como objeto (Weizsäcker, 1958; Siirala, 1969). No caso da Rainha,
como ela é excluída da fraternidade e por não possuir o Círculo de Ouro, ela precisa se
permitir a um método que procure devolver o sentimento de segurança para o seu eu.
No caso da variação na duração das notas nos trechos referente ao desespero,
temos uma parametria, já que a segunda e a terceira nota possuem a mesma duração e se
diferem, no mesmo aspecto, da primeira nota (Hérbert, 2012). Isso indica uma
sequência sentida que, inicialmente, possui uma sonoridade mais curta que é seguida
por uma série de duas sonorizações de tempo maior. O desespero surge como algo
súbito e permanece prolongadamente após o espanto da constatação de se estar
132
133
Tod.
Verzweiflung.
126
desesperado. Um detalhe relativo ao termo “e134” que precede “desespero” é que ora ela
é iniciada por um tempo de pausa mais uma nota de meio tempo preenchida pela nota
Mi 4 e ora ela é antecedida por dois tempos de pausa e uma nota Mib 4, sendo então
executada em um tempo e meio de Fá# 4. Dessa maneira, a partícula aditiva “e” ora é
marcada por meio tempo de música e ora é marcada por um tempo e meio. A repetição
da partícula aditiva sugere uma sensação de tempo que se arrasta, e que cada vez se
percebe enquanto mais demorado. Isso implica na inflação do aspecto desesperado já
que ele parece durar cada vez mais. A supressão da pausa gera a ideia de que há uma
contiguidade entre os termos, no sentido de que essas ideias se aproximaram mais
(morte e desespero).
Os aspectos isométricos encontrados na primeira estrutura da Ária 14,
marcados por repetições, representam a relação entre a mãe e o bebê à época do regozijo
pleno, do júbilo na Shangri-la dos afetos, marcado por trocas fundadas mais em
aspectos rítmicos do que em aspectos verbais. A regressão operada pelo aparelho
psíquico da Rainha faz com o núcleo do Supereu, herdeiro do Eu Ideal, seja mantido, e
revelado nessas repetições.
O problema do narcisismo ligado ao afeto da vingança é indicado no primeiro
verso pela sequência isométrica “arde em meu135” (figura 23). Mais específicamente, a
sequência de dois Mi 4, representados por colcheias, mostram que há uma fixação de
primeiridade. Essa sequência isométrica de quatro notas que se dá em “arde em meu”
intercala a presença de “Vingança”136 e “Peito”137, que possuem uma dinâmica de
duração que valoriza a primeira nota de “Vingança” que, por sua vez, em “Peito”, passa
a ser idêntica à segunda nota do termo.
Outro destaque relativo à duração das notas na primeira estrutura é o tempo de
duração prolongado de “em chamas138”, ligado ao processo de incitação no corpo e
aparelho psíquico da Rainha da Noite, que irá se armazenar no Isso e irá desencadear
uma série de ações dela por meio da realização ligada ao verbo pathico “querer139”.
Aquele termo é seguido por um trecho de quatro notas de mesma duração, ou seja,
marcando uma sequência isométrica ligada ao problema do narcisismo, já que é quando
a Rainha faz menção ao problema que ela revela em relação a si mesma. Dessa maneira,
134
Und.
kochte in meinem.
136
Rache.
137
Herzen.
138
Flammet.
139
Wollen.
135
127
podemos dizer que há isometria nos dois relatos narcísicos da primeira estrutura da Ária
14, ainda que a duração das notas ligadas à incitação de “em chamas”, que está ligada a
“morte” e “desespero” seja maior do que quando ela conta que a “vingança arde”.
12.1.2 Primeiridade Musical, a Ameaça e a Vingança
A segunda estrutura da Ária 14 revela o plano da Rainha da Noite, o qual
deverá ser obedecido pela filha. Esse é o caso típico da mãe intrusiva que deseja
monitorar os pensamentos da filha, se instalando como ideal na mente dela, o que pode
desencadear crises vingativas. Enquanto a vingança se dá como uma manifestação da
experiência de humilhação vivida na infância e força outra pessoa a experimentar essa
sensação, é possível considerar que a Rainha da Noite tenha vivido essa frustração e
agora realiza um ato vingativo de forma a expor a filha a esse sentimento (Lane, 1995).
Como vimos, a estrutura desse trecho marca o encerramento da Ária 14 e pode ser
representado em articulação com a partitura da peça conforme a figura 26, que já
destaca o primeiro e o terceiro momento da arquitetura da vingança.
128
Figura 26: O primeiro e o segundo momento da segunda estrutura da Ária 14
Os dois momentos trazem Pamina como destinatária imediata das frases
musicais do primeiro e terceiro momento da arquitetura da vingança. No entanto, a ação
a ser realizada deverá ter como alvo o personagem Sarastro. No primeiro momento,
podemos observar a isometria rítmica entre os termos “sentir140” e “você141”, assim
como entre “não142” e “você143” no terceiro momento. Outro aspecto isométrico se dá
entre os termos “não” e “por144” no primeiro momento, assim como entre “se145” e
“por” no terceiro momento. Isso permite observar uma correlação em nível de
primeiridade no que tange a formação da ameaça à Pamina. Enquanto “você” está
140
Fühlt.
Dich.
142
Nicht.
143
Dich.
144
Durch.
145
Wenn.
141
129
sempre apresentado por uma mínima de dois tempos, ela se assimila a “sentir” e a
“não”.
A estrutura “por você146” está sempre posta na sequência de semínima
acrescida de mínima, o que também configura uma fixação de primeiridade. A mãe
repete o ritmo, no seu aspecto da duração das notas, o que é característica da
comunicação entre mãe e bebê: o seu aspecto ritmizado. A ênfase é dada nesse aspecto,
o que remete Pamina a um estado emocional pré-natal na compreensão do que sua mãe
fala. A filha tem grande certeza de que “é por meio dela”. Trata-se de uma certeza que
não é apenas lógica, mas emocional, ao passo que primeiramente é uma certeza que nõ
se compreende por palavras.
Por outro lado, o termo “se”, que dá o tom de ameaça aos dizeres, tem a mesma
duração que “por” e ao “não” do primeiro momento. No entanto, o termo “se” está
próximo ao “não” do terceiro momento, que tem o dobro de duração do primeiro. Dessa
maneira, a partícula negativa do terceiro momento que acompanha o termo condicional
“se” possui uma duração maior do que quando do primeiro momento, no
acompanhamento do verbo que indica algum dano: “sentir”. Isso nos revela que o
marcador temporal é prolongado quando a condição é repetida, e que quando a condição
é anunciada, a partícula negativa é enunciada durante um tempo menor. Nesse sentido,
há um realce quanto à indesejabilidade de que Pamina não obedeça à mãe.
Ao considerar a menção ao nome de Sarastro como quem deve morrer,
podemos notar que no primeiro momento há uma isometria rítmica nos dois trechos da
enunciação da Rainha, enquanto que no terceiro momento da segunda estrutura, o nome
de Sarastro também é mencionado a partir de uma isometria rítmica. No entanto,
podemos observar uma diferença entre o 1º e o 3º momento: No último, o nome de
Sarastro é mencionado em semínimas, ou seja, em três tempos inteiros, enquanto que no
primeiro, o total é de dois tempos e meio de som, ou seja, cinco colcheias. Isso nos
revela que no primeiro momento, há uma hesitação na fala da Rainha, e que só aos
poucos ela vai consolidando o plano: os três tempos cheios apenas aparecem no terceiro
momento. A hesitação se evidencia pela variação da duração das notas, marcando uma
imprecisão.
Como já constatamos que o sentir ao nível da primeiridade envolve a noção de
uma inflação do ódio, na segunda estrutura notamos uma progressão na certeza de quem
146
durch dich.
130
deverá pagar o preço por ter provocado aquele ódio. Ao passo que a Rainha vai
realizando a ameaça ela vai se comprometendo com o seu Isso que está procurando
aginr livremente, não só para reobter o círculo, mas para se vingar de quem ameaçou a
sua estabilidade psíquica: Sarastro, que recebeu o Círculo de Ouro pela herança do
marido, falecido, da Rainha da Noite. Vale ressaltar que a isometria só é válida se
considerarmos os trechos do primeiro momento entre si, e os tempos do terceiro
momento também entre si, sendo que ao considerar a progressão do primeiro para o
terceiro temos uma parametria, já que há uma dilatação do tempo das notas.
Também podemos observar a estrutura do ritmo a partir do fechamento do
primeiro e do terceiro momento da segunda estrutra da Ária 14. Na tabela 4 podemos
sumarizar os fechamentos das frases musicais:
Tabela 4: O fechamento do primeiro e do terceiro momento da segunda estrutura da
Ária 14
Momento
Libretto original
Tradução do libretto
1º
Sarastro Todesschmerzen
Morte dolorosa
Sarastro Todesschmerzen
3º
Sarastro wird erblassen
Tornar pálido (como a morte)
Ao considerar o aspecto rítmico da partitura quando da enunciação de “Dar a
pena de morte”, podemos notar uma repetição na estrutura do tempo, notando a
presença de duas estruturas que são intra-isométricas e inter-paramétricas quando
comparadas as estruturas “Sarastro Todes”- e “Schmerzen” e inter-isométricas quando
comparamos as duas enunciações do primeiro momento. Já a enunciação de “tornar
pálido147” possui uma sequência temporal diferente. Temos três notas de um tempo e
uma nota de dois tempos. Nesse sentido, a metáfora “tornar pálido” remete à mesma
ideia de “Morte dolorosa148”. No entanto, ao nível da primeiridade, constatamos uma
das duas sequências do primeiro momento, para uma total reinvenção rítmica no
fechamento do terceiro momento.
Podemos então analisar o segundo momento, que diz respeito ao jogo de
ameaças que a Rainha faz à filha para que ela aceda à sua vontade. Esse jogo aparece
147
148
wird erblassen.
Todesschmerzen.
131
entre o primeiro e o terceiro momento (figura 26), como podemos constatar na figura
27. Nela, podemos observar o vértice superior da figura 21. A figura 28 apresenta o
vértice inferior direito da figura 21 e a figura 29 apresenta o vértice inferior esquerdo da
figura 21. A figura 27 ilustra o quarto verso da Ária 14.
Figura 27: Vértice superior do segundo momento da segunda estrutura da Ária 14: A
ameaça à Pamina
Na figura 27, podemos observar uma sequência de duas frases seguidas de uma
frase puramente musical. Na sequência, uma parcela da primeira frase reaparece e ela,
por sua vez, é seguida novamente por duas frases puramente musicais. Esse trecho se
encerra com uma última repetição da frase na qual a Rainha da Noite alega que, caso
Pamina não traga de volta o Círculo de Ouro e mate Sarastro, ela não será mãe de
Pamina.
Tomemos como ponto de partida análise o primeiro compasso da figura 27.
Nele, temos três notas de mesma duração. No entanto, esse padrão não se repete no
segundo compasso ou no momento em que a Rainha canta “So bist du”. Essa variação
indica o tom de incerteza com relação ao futuro via primeiridade. A ameaça que traz
uma condição para a manutenção dos laços familiares carrega essa incerteza, o que irá
132
promover angústia em Pamina, que deverá escolher entre o amor de Tamino e o amor da
mãe (a Rainha da Noite).
Outro aspecto de ritmo é encontrado no termo “filha149”, que possui a mesma
duração tanto na primeira quanto na segunda frase: Uma semínima acrescida de um
tempo seguida de uma colcheia. Na terceira vez que aparece ela possui a mesma
duração que a da quarta: duas mínimas. Outra estrutura semelhante no que tange à
duração das notas é encontrada na enunciação de “nunca mais150”. Aqui, a primeira e a
segunda estrutura são idênticas do ponto de vista da duração das notas. A terceira e a
quarta se diferem apenas no que concerne à duração da última nota que, na quarta
aparição, possui a metade da duração da terceira.
Ao observarmos a estrutura rítmica do pronome possessivo “minha151”,
notamos que, na terceira e na quarta aparição, ela é idêntica, do ponto de vista da
duração das notas, às duas primeiras aparições do termo “filha”, o que acaba marcando
o relacionamento mãe-filha via primeiridade. Por sua vez, a primeira vez que o termo
“minha” aparece, surge com uma estrutura de duração de notas idêntica à da terceira e
quarta aparição do termo “filha”, o que reforça a ideia da vinculação mãe-filha por meio
da primeiridade. A segunda presença do termo “minha” traz uma variação no arranjo da
duração das notas que está inclusive intercalada por uma pausa. Essa variação sugere a
presença da ameaça que a Rainha da Noite faz: existe a possibilidade do laço natural
marcado pelo pronome “minha” se desfazer.
A frase puramente musical é uma marca registrada da Ária 14. Ela é aberta por
uma apoggiatura seguida de quatro semi-colcheias unidas por uma ligadura. Os agudos
desse trecho são as projeções de seus sofrimentos mais profundos e indicam,
musicalmente, a dinâmica da vingança (de forma bem peculiar). A estrutura fixada no
ritmo é bem evidente: “appoggiatura seguida de semi-colcheias pontilhadas” mais “oito
colcheias destacadas por pontilhados que se encerram em uma nota longa, de dois
tempos”. Se por um lado esse trecho ilustra a profunda dor sentida pela Rainha, ela deve
ser considerada como uma representação musical da ferida narcísica e, portanto, como
uma das fontes do sofrimento psíquico da Rainha. A terceira frase possui uma diferença
quanto à duração das notas em relação às duas anteriores: Em vez de uma nota longa
indicar a resolução da frase, ela se faz em uma nota de um tempo.
149
Tochter.
Nimmermehr.
151
Meine.
150
133
A figura 28 ilustra o trecho referente ao quinto e ao sexto verso da Ária 14.
Nele, a Rainha irá reforçar a ideia da ameaça por meio do ostracismo que será imposto à
Pamina caso ela não obedeça à sua mãe (a Rainha da Noite).
Figura 28: Vértice inferior direito do segundo momento da segunda estrutura da Ária
14: A ameaça à Pamina
Na figura 28 temos os três termos que compõe a primeira parte da ameaça do
eixo: “Banida152”, “Abandonada153” e “Rompidos154”. Os três termos estão
acompanhados pelo termo “ewig” que dá uma ideia temporal de eternidade ligada à
ameaça. Inclusive, o termo “para sempre155”, é sempre marcado por uma sequência de
duas notas de um tempo, ou seja, com a mesma duração temporal.
Quanto aos três termos, também podemos notar uma estrutura temporal
também idêntica. A sequência: colcheia seguida por semínima mais um tempo seguida
então por outra colcheia é a mesma para os três verbos, o que indica uma aproximação
no nível da primeiridade entre os termos utilizados para marcar a separação entre
Pamina e a Rainha da Noite: Banir, abandonar e romper. Os conectivos “sei” e “auf”
também possuem sempre o mesmo tempo, representado por uma semínima mais um
tempo, sendo seguido por uma colcheia.
152
Verstoβen.
Verlaβen.
154
Zertrümmert.
155
Ewig.
153
134
A conclusão da ameaça se resolve em uma sequência de duas colcheias que
marcam a enunciação de “alle”, duas mínimas que marcam a enunciação de "laços156" e
a sequência de uma mínima seguida de uma semínima que marcam a enunciação de
"natureza157". Essa estrutura também é observada na figura 29, que ilustra a continuação
do sexto verso que, por possuir uma estrutura musical diferente, denomino nesse estudo
como “sétimo verso”. Ele ilustra o vértice inferior esquerdo, relativo ao terceiro
momento da segunda estrutura da Ária 14, o da ameaça à Pamina.
Figura 29: Vértice inferior esquerdo do segundo momento da segunda estrutura da Ária
14: A ameaça à Pamina
Além da semelhança da estrutura de duração das notas de “todos os laços
naturais158” entre a figura 28 e o que aparece a partir do quarto compasso da figura 28
(vide figura 16), temos uma frase puramente musical que acompanha o canto da vogal
“a” de “Bande”. A marca registrada da duração das notas nesse trecho são as tercinas.
Elas são seguidas por aqueles agudos que representam a ferida narcísica,
complementando a representação da figura 27. Inclusive, a duração das notas usadas
para ilustrar a ferida na figura 29 é idêntica à daquelas utilizadas no 13º e 24º compasso
da figura 27.
156
Bande.
Natur.
158
alle Bande der Natur.
157
135
As tercinas apresentam o primeiro momento puramente musical da figura 29 e
trazem a ideia de gratificação prazerosa ligada ao ritmo que surge com a regressão. Na
dinâmica da regressão, o objeto de amor mantido é o da identificação primária, cuja
finalidade é a de garantir a sensação de segurança e bem-estar do ego. Junto ao
problema da ameaça da mãe-intrusiva, essa repetição das tercinas junto com a repetição
das colcheias do vértice superior (figura 27) e as do nono ao 12º compasso do vértice
inferior esquerdo (figura 29) ajudam a compreender a ambivalência típica dos pacientes
que sofrem com o afeto vingativo: Eles sentem ódio por terem sido rejeitados, mas, ao
mesmo tempo, guardam um afeto amoroso em relação ao núcleo do Supereu, aquele
oriundo da introjeção canibalística dos pais.
Na figura 29, temos ainda a presença dos termos “Banida”, “Abandonada” e
“Rompidos”. Novamente, os três verbos possuem a mesma sequência temporal, que
agora é de uma colcheia seguida por duas semínimas, o que indica uma divisão
temporal igual entre as duas últimas sílabas de cada termo. Na figura 29 é possível notar
que o termo “para sempre”, que aparecia na figura 28 apresentado por um intervalo de
oitava, agora não mais aparece, a não ser pela sugestão feita pelo intervalo de oitava que
surge ao final e inscrito nos três termos. Ainda que o intervalo seja uma medida de
terceiridade, a perspectiva da duração das notas também pode ser observada sendo
deslocada de “para sempre” para cada um dos três termos, todas ilustradas por
semínimas.
O quarto momento da segunda estrutura pode ser encontrado na figura 30.
Nele, a Rainha da Noite conjura os deuses da vingança a participar da sua trama.
Figura 30: A invocação dos deuses da vingança
Na figura 30, podemos observar um primeiro aspecto do tempo que é a longa
duração dos verbos que marcam o chamado aos deuses da vingança. Ao todo são quatro
chamados, os dois primeiros são de dois tempos, intercalados por uma pausa de também
dois tempos e, após um chamado de dez tempos, se revela o destinatário do chamado:
136
“Deuses da vingança159”. Um aspecto que pode ser notado é a exata relação entre a
enunciação do termo “Vingança160”, nesse último momento da Ária 14 com aquele da
primeira estrutura quando a Rainha canta “A vingança infernal161”. Nesse caso, a
enunciação de “vingança” é criada na mesma estrutura rítmica no seu aspecto de
duração: uma semínima seguida por uma colcheia. Podemos dizer que o processo
narcísico ferido é informado aos deuses na mesma proporção que a fala endereçada à
Pamina, em nível de primeiridade. Após os três primeiros chamados aos Deuses, é feito
ainda um quarto para marcar a ideia de uma promessa. Dessa maneira, o pedido à
Pamina feito na forma de uma ameça com chantagem emocional é feito sob a forma de
um juramento pela Rainha da Noite. É feita a promessa aos Deuses da Vingança de que
as condições estipuladas na ameaça à Pamina e a sua vontade de que Sarastro morra
serão realizadas.
12.2 SECUNDIDADE MUSICAL
12.2.1 Secundidade Musical, o Sentir e a Vingança
Como podemos observar uma linha melódica na qual a Rainha faz uma
descrição de como ela se sente, é possível compreendê-la, musicalmente, em nível de
secundidade (Santaella, 2001). No primeiro termo que qualifica o sentir “A vingança
infernal”, na qual temos uma sequência de três notas de mesma altura, notamos uma
fixação na altura indica pela nota “Lá” na expressão de “Infernal162”. A altura das notas
de “vingança” é idêntica a de “Herzen”, ao passo que a duração das notas não é mesma.
Isso implica na semelhança entre esses termos do ponto de vista da secundidade, mas
não da primeiridade. É interessante notar a importância do peito na ferida narcísica e
suas origens na infância, quando a mãe retira o seio e esse ato se configura como uma
ameaça, comparável à cena originária em que a criança observa a relação de amor entre
os pais e é, portanto excluída do ciclo de amor e afeto.
No que concerne ao trecho “arde em meu163” podemos dizer que uma
sequência descendente ilustra a localização da dor no relato da Rainha da Noite. Como a
ardência irá funcionar como fonte que irá abastecer o Isso, essa sequência descendente
159
Rache götter.
Rache.
161
Der Holle Rache.
162
Der Holle.
163
kocht in meinem.
160
137
marca também a incitação da Rainha sobre o seu corpo próprio, o que implica na
existência de um componente narcísico na sequência descendente. Esse autoinvestimento incitatório é representando pelo clímax do primeiro verso, a nota Fá 4.
A primeira nota do segundo verso já é mais aguda que o clímax do primeiro.
No entanto, essa primeira nota não é o clímax do segundo verso, que só aparecerá no
quarto compasso desse trecho (vide figura 7). O primeiro compasso desse trecho se dá
numa sequência descendente, assim como o segundo compasso, ainda que a última nota
do primeiro seja mais grave que a primeira do segundo.
Se por um lado podemos observar a repetição do aspecto da duração das notas
que cantam “morte164” e “desespero165”, essa fixação já não vale para a lógica melódica,
já que a altura das notas não é a mesma em nenhuma das sílabas. Notamos também que
o primeiro canto, referente a “morte e desespero”, se dá numa oscilação entre
ascendência e descendência, enquanto no segundo canto ela é ascendente, salvo entre
“und” e “ver”, em que a altura das notas se mantém.
O clímax desse trecho se dá no final do quarto compasso e no início do quinto,
no Si 4, acompanhando a sílaba flam de “chamas166”, que é seguida de uma sequência
descendente de notas até o final do verso, que irá trazer, assim como no primeiro verso e
o canto de “arde em”, a questão da incitação por meio do investimento sobre o corpo
próprio que irá abastecer o Isso167, de forma que ele possa realizar as operações do seu
plano vingativo com a eliminação do aspecto do Dever Moral168 e de um Querer169,
movido por esse arder, e pela necessidade170 de ficar quite.
12.2.2 Secundidade Musical, a Ameaça e a Vingança
Como primeiro passo da análise melódica da constituição da ameaça da Rainha
na Ária 14, retomemos a figura 26, na qual temos o primeiro e o terceiro momento da
164
Tod.
Verzweiflung.
166
Flammet.
167
Das Es.
168
Sollen.
169
Wollen.
170
Müssen.
165
138
segunda estrutura, na qual podemos ncontrar diversas diferenças em nível de
secundidade. A primeira é que o primeiro momento é aberto por uma sequência sempre
ascendente de notas, enquanto que no terceiro momento há uma manutenção na altura
da segunda e terceira notas, e o restante está numa sequência ascendente. Isso implica
que a ideia musical ligada a “sentir” é dada numa sempre ascendente sequência,
enquanto que o elemento “se” é dado numa interrupção da lógica da sequência
ascendente.
O primeiro momento é seguido de duas frases que mantêm tanto sua estrutura
rítmica, como melódica no que concerne à lógica de ascendências e descendências.
Nelas, é possível observar uma sequência de notas descendentes aproximadas por
ligaduras. Dessa maneira, o nome “Sarastro” é iniciado por uma sequência descendente
seguido de uma sequência descendente de notas nas duas primeiras situações ligadas ao
primeiro momento. Essa padronização em nível de ritmo e de melodia já não vale para o
canto ligado ao terceiro momento, uma vez que teremos três notas que possuirão a
estrutura das tercinas do segundo momento (a ameaça à Pamina), ou seja, uma nota
mediana mais aguda, antecedida e seguida por duas notas de mesma altura, mais graves
que a nota mediana. Podemos observar esse tipo de construção nas bordaduras.
A enunciação que menciona o nome de Sarastro é marcada por uma sequência
descendente de notas que termina em uma sequência ascendente entre as sílabas
“Schmer-” e “-Zen”. Aqui ocorre um deslocamento na sequência de variação: Enquanto
que o termo Sarastro é aberto por uma sequência ascendente, o termo que define o seu
destino na vontade da Rainha é fechado também por uma sequência ascendente – apesar
de que a altura das notas não seja a mesma. No terceiro momento ocorre que a
enunciação do nome “Sarastro” é marcada por uma variação “AscendenteDescendente”, a sequência que indica seu destino se assemelha caso tomemos apenas o
termo “erblassen171”.
No segundo momento da segunda estrutura temos, em sua abertura, uma
repetição do enunciado “de filha nunca mais irei te chamar172”. Nos dois primeiros
momentos em que é cantado “so bist du mei” temos uma sequência sempre ascendente
de notas. Na segunda aparição de “minha173” temos uma pausa que atravessa os termos
“mein-” e “meine”, com uma variação descendente no canto desse trecho. Na primeira e
171
Empalidecer.
so bist du meine Tochter nimmermehr.
173
Meine.
172
139
na segunda aparição de “meine”, a sua a sílaba “-ne” encontra-se numa posição
descendente em relação à “mei-”. Por sua vez, o primeiro “minha” apresenta-se como o
clímax do verso, na mesma altura que a sílaba “flam-” de “flammet”, clímax do segundo
verso, presente na primeira estrutura da Ária 14. No entanto, no segundo momento da
segunda estrutura, esse clímax recai sobre o aspecto ameaçador da fala da Rainha da
Noite endereçada à Pamina.
O primeiro canto de “filha nunca174”, ainda que analisado com o isolamento da
sílaba “-mehr”, que irá completar a ideia de “nunca mais175”, possui uma estrutura
rítmica e melódica semelhante a “vingança” e “peito” do primeiro verso, sugerindo que
a relação mãe e filha, fortemente pautada em aspectos rítmicos, sofre influência do
problema da vingança e da dor infernal sentida no coração da Rainha. Essa lógica
musical tem a intenção de fazer com que Pamina também sinta essa dor, configurandose como estratégia da mãe intrusiva que deseja convencer a filha a manter a aliança com
ela, de forma que reobtenham o Círculo de Ouro. A segunda expressão de “filha nunca
mais176”, ainda que possua a mesma dinâmica de duração das notas que a primeira que é
cantada, varia do ponto de vista da lógica da ascendência e descendência e na altura das
notas.
Após a primeira parte do canto do quarto verso temos uma sequência
puramente musical onde temos quatro notas introdutórias e uma frase musical que
possui uma descendência entre a quiáltera e a primeira nota e entre esta e a segunda
nota, sendo concluída numa sequência ascendente até alcançar os oito Dó 5, de mesma
altura. Isso se repete em dois momentos (primeiro e quinto compasso – vide figura 10),
o que indica uma fixação em nível de secundidade. Já a terceira frase, ainda que
introduzida por uma sequência de notas mais graves, que guardam a mesma sequência
de descedência e ascendência, é uma preparação para uma sequência de notas que varia
entre múltiplas sequências de mesma altura alternadas por uma sequência descendente,
que então irão se alternar numa nova configuração, a partir do sétimo compasso (vide
figura 10), de sequências ascendentes e descendentes, o que indica uma variação entre
notas agudas e graves nela.
Na sequência à frase puramente musical temos uma sequência de notas
repetidas seguidas de uma sequência ascendente de notas marcando a enunciação de
174
Tochter Nimmer.
Nimmermehr.
176
Tochter Nimmermehr.
175
140
“minha filha177”, que é seguida de uma sequência descendente que abre para uma nova
sequência ascendente. Essa estrutura melódica também é encontrada no segundo canto
de “minha filha”, ainda que a dinâmica de duração das notas varie. Se por um lado
podemos observar uma fixação nas duas sequências que ocorrem nesse trecho, por
outro, há um abismo entre “minha filha” e “nunca mais”. Assim, a sequência
descendente no meio desse trecho significa uma separação entre os sujeitos envolvidos
na cena: a Rainha e Pamina.
Na sequência temos a repetição da frase puramente musical. Após a sua
exibição, temos novamento o canto de “de filha nunca mais irei te chamar178”, que
possuirá uma relação de semelhança melódica, com a última frase, apenas para o trecho
“nunca mais179”, indicando uma ênfase no aspecto temporal (nimmermehr) atrelado à
ameaça que a Rainha da Noite faz à sua filha, via secundidade.
Na sequência da figura na lógica horária, temos a enunciação do verso
“verstoβen sei auf ewig, verlaβen sei auf ewig, zertrümmert sei’n auf ewig” que culmina
em “alle Bande der Natur”. Nesse trecho temos a evidência final de que o desfazimento
da relação entre mãe e filha devém para o infinito, já que o termo “ewig” indica o
fechamento da frase. A estrutura melódica para os três termos “Banida, Abandonada e
Rompidos” é a mesma. Isso implica que, ainda que o libretto traga palavras diferentes,
elas funcionam como sinônimos já que a estrutura melódica delas é idêntica.
O último vértice do triângulo também traz a mesma ideia de uma estrutura
melódica fixa para os três termos “Banida, Abandonada e Rompidos”, ainda que agora
ela seja mais curta e o intervalo descendente se dê no interior dos termos, e não na
sequência delas, já que o canto de “para sempre” foi suprimido no vértice esquerdo do
canto inferior do triângulo. A sequência melódica de ascendências e descendências para
“todos os laços naturais” é idêntica nos eixos direito e esquerdo do triângulo, enquanto
que a altura das notas varia.
No vértice inferior esquerdo temos um novo trecho puramente musical que é
atravessado por diversas variações de altura entre suas tercinas. Quanto às tercinas, é
possível notar que elas são compostas de uma nota central mais aguda, seguida por duas
notas de mesma altura, mais graves que a nota central. A primeira nota central de uma
das tercinas é o Sol 4, seguido pelo Si 4, voltando para o Sol 4, seguido por uma
177
meine Tochter.
so bist du meine Tochter nimmermehr.
179
Nimmermehr.
178
141
descendência para o Mi 4 que, por sua vez, é seguido por uma descendência para o Ré
4, que segue descendendo para o Si 3, nota mais grave entre as notas centrais da tercina
desse trecho. Após o Si 3, uma sequência ascendente refaz a trilha descendente, com
execção ao Mi 4 que agora é cantado na altura do Fá 4. Após retornar ao Si 4,
novamente temos uma sequência descendente até o Si 3 que será seguido por uma
sequência ascendente interrompida no Fá 4. Fechando as tercinas, temos staccatos que
possuem o clímax do vértice inferior esquerdo. Esse clímax é a ilustração da ferida
narcísica e da profunda dor sentida pela Rainha da Noite (Everett, 1991). Esse trecho
está ligado à segunda estrutura embora pudesse estar ligada à lógica do sentir da
primeira estrutura. No entanto, aqui ele tem a função de montar a estrutura da
chantagem na tentativa de convencer a Pamina de que ela deve ajudar a mãe.
No quarto momento da segunda estrutura, referente à conclamação da
participação dos deuses da vingança, os três primeiros verbos estão encadeados numa
sequência ascendente, semelhante àquela que revela o sentir ferido mais profundo na
Rainha. Isso nos revela que a personagem vingativa em momento de grande dificuldade
pede ajuda aos deuses. Os três primeiros chamados aos deuses estão apresentados numa
sequência ascendente de notas.
Podemos notar que a altura das notas de “deuses180” e “Uma mãe181” é a
mesma, Ré 4 seguido de Dó# 4, ainda que precisemos excluir a sílaba “-ter” de “mutter”
para reconhecer essa semelhança. Ela sugere que há alguma aproximação dela,
enquanto mãe, e os deuses, em nível de secundidade. De fato, segundo Van der Berk
(2004), ela é a única personagem chamada de “deusa” ao longo da peça. O termo
“vingança”, que aparece novamente no último verso, assim como no primeiro, possui
uma estrutura melódica descendente, mas a altura das notas varia.
12.3 TERCEIRIDADE MUSICAL
12.3.1 Terceiridade Musical, o Sentir e a Vingança
180
181
Götter.
der muttter.
142
A figura 31 nos revela o aspecto dos intervalos entre as notas segundo os
pontos de determinação da partitura da Ária 14 para a voz. No primeiro momento,
temos três notas com nenhuma variação de intervalo. No processo de enunciação de
“Desespero” podemos observar no primeiro trecho uma sequência ascendentedescendente. A primeira sequência é de quatro tons e a segunda de três tons e meio.
Aqui, a sequência ascendente possui um intervalo maior do que a sequência
descendente. No segundo “Desespero” a sequência sempre ascendente é marcada por
intervalos de um tom. Enquanto as notas do primeiro “Desespero” estão dispostas em
intervalos de sexta menor e sexta diminuta com uma modificação sobre a dominante
que, por sua vez, inicia o canto do termo, o segundo não possui acidentes musicais
(sustenidos, bemóis ou bequadro), sendo apresentado em dois intervalos ascendentes de
segunda maior.
Quando da repetição do termo “Morte” temos uma nota dois tons abaixo do
primeiro momento (quarta diminuta). No termo “Desespero” também temos o mesmo
intervalo, no entanto, para morte o intervalo se dá numa sequência descendente,
enquanto que no termo “Desespero” o intervalo de dois tons ocorre numa sequência
ascendente: “Morte” aparece dois tons abaixo e “Desespero” dois tons acima. Enquanto
o primeiro canto de “Morte” não possui acidentes musicais, o segundo se dá numa
modificação do sétimo grau, o sensível.
143
Figura 31: Intervalos entre as notas referentes à qualidade do sentir na fala da Rainha da
Noite na partitura da Ária 14
Tomando as figuras 23 e 24, referentes ao primeiro e ao segundo verso,
respectivamente, notamos que o primeiro não apresenta acidentes, enquanto que o
segundo possui modificações na dominante em “Desespero” e em “her”, e na sensível
de “Morte” e “sobre182”, no quinto compasso do segundo verso.
12.3.2 Terceiridade Musical, a Ameaça e a Vingança
A figura 32 traz a arquitetura da vingança e a sequência de intervalos presente
no primeiro e terceiro momento, no qual a Rainha da Noite manda Pamina matar
Sarastro.
182
Um.
144
Figura 32: A Arquitetura da vingança e os invetvalos harmônicos na declaração de
Morte a Sarastro na partitura da Ária 14
Enquanto que o primeiro momento se apresenta sem acidentes, o segundo terá
a presença de uma modificação sobre a dominante em “não183” e “deve184”. Ou seja, a
marcação condicional da ameaça pelo “se não185” traz a modificação da dominante e um
intervalo uníssono. Essa necessidade está ligada a uma metáfora do primeiro momento,
cujo é apresentado em acidentes, enquanto a metáfora traz a mesma modificação sobre a
dominante.
O segundo momento da arquitetura da vingança pode ser observado nas figuras
33, 34 e 35. Esse trecho está localizado no triângulo inserido no vértice inferior do
losango da figura 32. O trecho “chamado em negação” é entrecortado por dois tipos de
frases puramente musicais. O primeiro tipo é repetido duas vezes, indicando uma
183
Nicht.
Wird.
185
Wenn Nicht.
184
145
manutenção dos intervalos nos cantos puramente musicais, que se encontram destacados
pelas chaves sobre o triângulo da figura. Trata-se de uma réplica harmônica, o que
destaca o caráter da repetição no cantar da Rainha, apontando para a pressão do Isso
sobre o seu querer, marcando insistentemente uma vontade fixada.
A Figura 33 ilustra os intervalos presentes no vértice superior do triângulo
presentes no vértice inferior do losango da figura 32.
Figura 33: Intervalos entre as notas referentes ao vértice superior do triângulo que
representa a ameaça à Pamina na segunda estrutura da Ária 14
146
No trecho “minha filha nunca mais irei te chamar186” pode-se observar o uso
de mesmo intervalos quando observamos o primeiro e o quarto “minha”, quando não há
intervalo entre as sílabas. Esse aspecto marcado por unissonidade, pode ser notado ainda
no segundo canto de “filha” e “nunca”. As frases puramente musicais também trazem
notas de mesma altura, como os oito Dó 5 e os oito Lá 4, sugerindo que a ideia expressa
na frase puramente musical se liga por meio da terceiridade ao encadeamento das ideias:
“minha”, “filha” e “nunca”. Outro aspecto de terceiridade que pode ser observado na
figura 33 é a relação entre “filha” e “minha” na primeira e última vez a Rainha canta
essas palavras. Isso porque, na primeira, o termo “filha” está marcado pela terça menor,
antecedido pela segunda menor em relação a “-ne”, que também aparece entre “-ne” e
“filha” na última. No entanto, a modificação da mediante na sílaba “-toch”, na última
recai sobre “mei-”.
Ainda, enquanto a altura das notas dos dois últimos cantos de “nunca mais” são
idênticas ao comparar a terceira com a quarta, é necessário que também os intervalos o
sejam.
A figura 34 ilustra os intervalos presentes no vértice inferior direito do
triângulo que representa a ameaça da Rainha da Noite à Pamina.
186
so bist du meine tochter nimmermehr.
147
Figura 34: Intervalos entre as notas referentes ao vértice inferior direito do triângulo que
representa a ameaça à Pamina na segunda estrutura da Ária 14
Na figura 34 podemos observar três frases musicais que culminam no termo
“para sempre”, que indica a eternidade associada à punição que se aplicará à Pamina: O
banimento da família e o rompimento dos laços familiares. Nas três primeiras frases
temos a repetição de um padrão harmônico entre as notas que cantam “Banida,
Abandonada e Rompidos”, e um intervalo de oitava entre o primeiro termo e a marca da
eternidade: “para sempre”. Na sequência, em “todos os laços naturais” ocorre um
desdobramento dos intervalos trazendo uma diferenciação em relação aos três termos.
Notamos ainda a presença da sétima menor que faz a passagem entre “todos” e “laços”.
Esse último termo traz uma modificação no grau sensível e inicia a sequência
descendente com duas terças menores até “Natur”.
A figura 35 ilustra os intervalos presentes no vértice inferior esquerdo do
triângulo que representa a ameaça da Rainha da Noite à Pamina.
148
Figura 35: Intervalos entre as notas referentes ao vértice inferior esquerdo do triângulo
que representa a ameaça à Pamina na segunda estrutura da Ária 14
Podemos observar que os intervalos de oitava presentes na figura 34 agora
estão inseridos ao final dos três termos que compõem a ameaça à Pamina - ainda que
altura das notas esteja marcada pelo Sol, e não mais pelo Fá. Também temos a presença
da sequência de mesma altura, assim como na figura 34.
Podemos também notar que o intervalo em “alle” continua sendo de nenhum
tom, mantendo também altura da nota, como na figura 34. De fato, toda estrutura
intervalar é mantida para a frase “de todos os laços naturais187”. No entanto, na figura
34 temos uma modificação sobre a sensível e, na figura 35, a modificação se dá na
subdominante, sugerindo que, para a mesma frase se manter do ponto de vista dos
intervalos, graus diferentes da escala devem ser modificados.
187
alle Bande der Natur.
149
Nas tercinas, podemos observar que os compassos em Fá maior possuem a nota
intermediária da sua composição a uma distância de um tom (terça diminuta) da nota
que a antecede e a que a sucede. O intervalo entre uma tercina e outra é de dois tons,
salvo entre as duas últimas, cujo intervalo é de um tom e meio. No entanto, nos
compassos com modificações na sub-dominante e a dominante, o intervalo entre a nota
intermediária e a que a antecede e a que a sucede, no caso da primeira e da última
tercina, é de meio tom. As duas tercinas intermediárias possuem um tom de distância
em relação às duas notas mais próximas a elas, assim como nos compassos das tercinas
sem acidentes.
No entanto, o intervalo entre as três primeiras tercinas nos compassos com
modificações na sub-dominante e a dominante é de um tom e meio (assim como o
intervalo entre as duas últimas nas tercinas nos compassos sem acidentes). Por sua vez,
o intervalo entre as três primeiras tercinas, dos compassos sem acidentes, é encontrado
entre as duas últimas tercinas dos compassos com modificação no quarto e quinto grau.
Após as tercinas, as notas staccato possuem uma dinâmica variegada de intervalos.
A frase que conclui a ameaça, marcando o banimento das relações naturais
existentes entre a Rainha e Pamina, se faz de forma fixada no aspecto harmônico entre o
segundo e o terceiro vértice do triângulo. No entanto, o terceiro vértice repete por três
vezes: “de todos os laços naturais”. Essa fixação existe entre a primeira enunciação do
terceiro vértice e a enunciação que conclui o segundo vértice. A segunda enunciação do
terceiro vértice está entrecortada por uma fala puramente musical cuidadosamente
planejada no aspecto harmônico. Podemos notar a variação de intervalos planejados nas
tercinas. A última enunciação do terceiro vértice revela uma reinvenção do arranjo
harmônico encontrado nas enunciações anteriores, o que sugere uma possibilidade de
salvação à Pamina, já que a ênfase se desfaz do ponto de vista da terceiridade musical,
sugerindo uma reinvenção do destino e das regras das relações familiares entre Pamina
e a Rainha, como se a mãe dissesse para a filha: “Isso não precisa acabar assim... por
que você não me ajuda?”.
Finalmente, passamos à análise dos intervalos harmônicos encontrados no
fechamento da Ária 14 (figura 36), quando a Rainha da Noite conclama os Deuses da
Vingança para que estejam presentes no momento do desafio à Sarastro. Notamos o
intervalo das alturas dobrar entre o primeiro “escuta188” e o segundo. A altura dos
188
Hört.
150
melismas, já estudada por Everett (1991) e analisada em detalhes nesse estudo, pode ser
retomada nessa fala, que expressa um inflacionamento na altura e no intervalo das notas
de forma que a distância da primeira para a segunda nota é menor do que a distância da
segunda para a terceira.
Podemos também notar o mesmo intervalo entre hört-Ra e Ra-che, o que
sugere a aproximação dos dois termos pela via da quarta diminuta. É o que ocorre com
“Escuta” (3ª enunciação localizada no terceiro compasso do trecho da Figura 25) e
“Vingança189”. No entanto, em “Vingança” , temos uma modificação sobre a sensível.
Na conclusão do verso, notamos a repetição do intervalo harmônico em um
quarto do valor encontrado entre os termos “escuta” e “Vingança”. Agora, o intervalo
de meio tom sugere uma aproximação entre os termos “Deuses190”, “che-got”, “derMut” e “mãe191”. A modificação na dominante reforça essa semelhança em nível de
terceiridade, ainda que na sequência “che-got” tenhamos o intervalo de segunda menor
na sua forma descendente, enquanto que em “der Mutter”, o temos na forma ascendente
e descendente, em torno da dominante.
Figura 36: Os intervalos harmônicos entre as notas da partitura no trecho referente ao
chamado dos deuses da vingança na partitura da Ária 14
189
Rache.
Götter.
191
Mütter.
190
151
13 CONSIDERAÇÕES FINAIS
À primeira vista, a análise semiótica permite esclarecer porque um estudo da
partitura permite a compreensão da dinâmica afetiva, ainda que possuam naturezas
aparentemente distantes. A partitura, sin-signo que apresenta o arranjo das qualidades
musicais a partir de códigos musicais específicos, é uma representação estática da
dinâmica afetiva que é vivida pelo ser humano. Ainda que estática, sua dinâmica interna
é viva.
Tomando a partitura como recurso, a análise realizada nesse estudo permite
relacionar aspectos da notação musical com questões da clínica dos afetos, como por
exemplo, aspectos que envolvem o “Isso” junto às paisagens pathicas e a sua expressão
na duração das notas que, por sua vez, ilustram o funcionamento do afeto vingativo
investido de uma incitação promovida pela ferida narcísica e o problema do ódio. A
partitura também revela como se faz a dinâmica dos aspectos melódicos, como a altura
das notas, que mostram uma possibilidade de compreensão da Rainha da Noite
enquanto pessoa adoecida segundo as variações das alturas e das sequências
ascendentes e descendentes. Os elementos do arranjo harmônico mostram também
como os acidentes musicais podem mostrar conexões entre aspectos notados na fala que
não ficam evidentes somente pela sequência de sentido trazida pelo libretto.
Dessa maneira, mostramos como é possível realizar a compreensão do afeto
não apenas pela fala, mas pela via original do melos. Isso implica que constitui tarefa do
clínico escutar o que é sentido pela pessoa no contexto da dinâmica das experiências
vividas pelo paciente de forma que seja realizada uma aproximação para com os afetos
sentido pela pessoa. Essa aproximação é permitida pelo aspecto icônico entre os
elementos da dinâmica musical e o afeto vivido pela pessoa.
A exposição do afeto da vingança feita por Mozart não exclui outras
possibilidades de composição musical ligada com essa mesma questão. No entanto, ela
surge como um exemplo clássico para mostrar como a vingança afeta a pessoa que
convive com esse sentimento marcado por uma experiência pessoal sofrida e de como
ela faz as pessoas próximas a ela sofrerem.
Além dessas demonstrações que enriquecem a compreensão clínica sobre o
afeto, foi possível observar que o modelo semiótico das tricotomias adaptado à música
(ritmo como primeiridade, melodia como secundidade e harmonia como terceiridade)
não procede, já que podemos dizer que existem qualidades musicais tanto do ponto de
152
vista do ritmo, quanto da melodia ou da harmonia. Dessa maneira, podemos dizer que
“no princípio era o ritmo” apenas enquanto falamos do desenvolvimento da linguagem
no ser. E dessa maneira, o ritmo, enquanto movimento, está ligado mais à ideia de ato
que, por sua vez, antecede o verbo. No entanto, quando observamos o argumento que
justifica a melodia ser de secundidade esbarramos numa questão que nos força a
reconhecer que o ritmo também é de secundidade. O estudo da escansão e da duração
das notas nos permite notar a presença da diacronia no ritmo que, quando se evidencia
no pentagrama musical, se revela como secundidade. Mas caberia questionar: Mas a
melodia, que é segunda, precisa do ritmo que é primeiro, para existir. Mas também o
ritmo só pode existir, na partitura, na presença da indicação da altura da nota, que é
parâmetro da melodia. Isso vale para a partitura para a voz da Rainha da Noite da Ária
14 como modelo exemplar.
Outro problema é encontrado quando nos deparamos com a questão dos
intervalos que, apesar de surgirem no contexto teórico da harmonia, podem aparecer
como intervalos melódicos que, apesar de estarem atrelados à melodia, trazem em si
uma questão de harmonia, surgindo mais como uma fusão entre o que seria secundidade
e terceiridade (Se consideramos válidas as analogias, por exemplo, entre melodia e
secundidade). Quanto ao intervalo, a terceiridade seria a regra que define a distância
entre as notas (por exemplo, de que o intervalo pode ser de meio tom) e a secundidade
um existente. No entanto, quando se fala de intervalo harmônico existente estaríamos
também em secundidade, e não exatamente na terceiridade. Se o intervalo harmônico
passa então a ser de secundidade, quando ouvimos um acorde, como fica a situação
desse intervalo que é de secundidade por ser caracteristicamente melódico? Ora, ela
passa a ser de secundidade não por ser a melodia a guardiã da secundidade, mas porque
passa a ser um existente, assim como o no caso do intervalo harmônico.
Essas considerações nos levam a pensar na impossibilidade de pensar ritmo
como primeiridade, melodia como secundidade e harmonia como terceiridade.
Inclusive, é preciso questionar se o estudo dos legi-signos musicais podem ser feitos,
todos eles, apenas como um estudo da harmonia ou da melodia, uma vez que a música
acaba sendo mais a fusão desses elementos, de forma que a divisão didática esbarra nas
dificuldades citadas. Nesse sentido, ao considerar a análise das partes, seria importante
pensar não apenas a dinâmica interna presente na lógica da duração das notas ou dos
arranjos harmônicos, mas como esses legi-signos, presentes na partitura sob a forma de
réplicas, se articulam com as outras partes e com a peça musical total, como um todo.
153
Assim, restringindo a concepção interativa entre verbos pathicos e a dinâmica
do afeto vingativo do ponto de vista da psicanálise sobre a estrutura que propomos
(tabela 2, figuras 20 e 22) para analisar a Ária 14, notamos que:
O primeiro triângulo nos leva a pensar no problema do erotismo anal ligado à
repetição compulsiva presente nos esquemas de duração das notas, como a intraisometria de "Infernal" que adjetiva os termos "Vingança" e "peito". Notamos também a
inter-isometria entre os dois momentos que a Rainha canta "desespero" e entre os dois
cantos referentes à "morte", cuja presença se faz em notas prolongadas (as mais
prolongadas desse trecho). É importante lembrar que esse termo possui relação íntima
com a questão da herança do Círculo de Ouro, já que a perda do objeto está ligada à
morte do marido e, portanto, sugere uma dupla perda objeto (Marido e Círculo de
Ouro). Esse é o contexto da fusão de aspectos (maníaco-) depressivos e (obsessivo-)
compulsivos no problema ligado ao sentir da Rainha e que será a fonte para o
desencadeamento de uma série de ações. Assim, no triângulo do sentir (figura 20) temos
a presença dos elementos que irão alimentar o “Isso” a procurar uma forma de reparar a
ameaça feita à Rainha de forma que ele nos permite observar a presença do verbo
pathico dever (enquanto necessidade). É como se a Rainha da Noite dissesse: “Preciso
me livrar dessa ameaça ao meu eu, preciso me vingar”. Nesse contexto, temos ainda a
presença de terças maiores separando os dois enunciados de “morte” e “desespero”,
como modificações na sensível e na dominante, respectivamente. Inclusive, as mesmas
modificações podem ser encontradas, via deslocamente, em "inflamam a mim". Esse
quadro é consequência da ferida narcísica ligada à perda do objeto e a necessidade de
recuperá-lo e retê-lo. Mas, a vingança não trata apenas de recuperar o objeto, mas de
humilhar quem tenha realizado a ameaça ao seu bem-estar, o que implica que o estudo
do fenômeno introjetivo da depressão não explica todo o problema do afeto vingativo.
A segunda estrutura nos permite verificar a sequência da experiência pathica a
partir do inflacionamento ligado à necessidade de se vingar. Como vimos, é possível
identificar que o primeiro e o terceiro momento funcionam como exemplos do que a
Rainha da Noite quer. Além de recuperar o Círculo de Ouro, ela quer se livrar de
Sarastro. A ideia de "querer se livrar" está próxima ao ato de expelir que, enquanto
ligado à fase sádico-anal, é exemplo da melancolia, que regride ainda à fase oral (que,
como vimos, irá envolver fenômenos introjetivos).
Esses momentos são marcados pela saída encontrada pela Rainha face à
necessidade ligada ao verbo pathico dever (como necessidade física) que está ligada à
154
perda do objeto e o sentimento melancólico. Mas temos também a ação do verbo poder
(moral) em caráter de negação (ela não pertence à fraternidade) gerando uma postura
auto-permissiva por parte da Rainha que irá acabar por se convencer de que ela pode e
ela consegue recuperar o Círculo de Ouro. Isso irá implicar no desfazimento das
sublimações ligadas com o verbo dever (moral), fazendo-se presente em três momentos
musicais (os dois primeiros são de um tipo e o terceiro é metafóra para os dois
primeiros192). Nos primeiros, temos fixações na duração das notas e variação melódica,
ainda que os intervalos melódicos variem. No entanto, a metáfora "emapalidecer"
aparece com uma modificação sobre a dominante, o mesmo que fora modificado na
condição ligada à ordem de matar Sarastro (wenn nicht durch dich), com esquemas
diferentes para a duração das notas, a altura e a sequência harmônica em relação ao
primeiro momento.
No segundo momento da estrutura, a ordem de matar é complementada por
uma operação de ameaça à Pamina, que será literalmente expelida dos vínculos
familiares caso ela não obedeça à mãe. Aqui, a mãe intrusiva apresenta-se numa
disposição maníaco-depressiva associada com a resolução de uma chantagem
emocional. Nesse contexto, a Rainha fará a ameaça de expelir a própria filha em um dos
vértices do triângulo da ameaça à Pamina, que contém ainda os melismas melancólicos
marcados por padrões repetitivos das notas, indicando também um problema de
regressão à fase anal e o problema compulsivo. Temos também estruturas idênticas para
os dois últimos momentos que a Rainha canta "Nunca mais", reforçando a questão da
chantagem por meio de um esquema idêntico de notas. Outra questão é a oscilação dos
trechos que cantam “so bist du meine Tochter”, que aparecem sem modificações, ora
com modificação sobre o terceiro grau. Na primeira aparição ela surge para criar um
intervalo de segunda menor entre “meine” e “Tochter”. Na segunda a modificação se
desfaz, mas surge uma variação na duração das notas que trazer “meine”, que estará em
uníssono, assim como o terceiro e o quarto canto desse termo, sendo que no quarto, o Lá
novamente aparece bemolizado, também trazendo a diferença de uma segunda menor
entre “meine” e “Tochter”, o que não ocorre no terceiro canto. Dessa maneira, o aspecto
oscilatório da depressão funciona como um recurso que imprime uma mensagem,
reforçando a trama da Rainha.
192
Aqui faço referência aos dizeres: Sarastro Todesschmerzen e Sarastro wird erblassen.
155
No que concerne aos três termos que denunciam um querer expelir (caso a
chantagem precise ser aplicada), temos a sua evidência em um padrão de notas de
mesma duração e altura, o que sugere a presença de sinonímias, em vez de um afeto
marcado por fixações de primeiridade e secundidade. Também é possível dizer que o
intervalo de oitava em “ewig”, estará presente introjetado e deslocadamente no outro
vértice. Se por um lado podemos notar a presença de traços melancólicos no triângulo
da primeira estrutra, nesse trecho fica evidente a introjeção do termo ewig, que no
vértice inferior esquerdo do triângulo aparece então incluído nos três termos que
ameaçarão Pamina a ser expelida. Isso implica que a ideia introjetada, ou seja, "para
sempre", irá ser aplicada ao banimento de Pamina, assim como a ideia de "para sempre"
que está ligada ao problema da morte do seu marido. Assim, o seu luto tem como devir
a vingança. É preciso notar ainda que, no mesmo momento em que notamos o termo
“ewig” engolido, temos a presença dos tristes melismas acompanhados por tercinas que
trazem modificações no quarto e guinto grau. No último vértice do triângulo ligado à
estrutura da vingança, temos ainda o termo “alle Bande der Natur” marcado por uma
modificação nos graus sensível e dominante, diferenciando-se do alle Bande der Natur
que observamos no vértice direito, apenas com a modificação no sétimo grau.
É possível considerar que esses três primeiros momentos formam o eixo do
pedido. Nele, vemos o impulso dado a partir da necessidade de se vingar gerando um
"arder infernal" que se articula ao verbo modal "precisar" (dever como necessidade). A
partir daí, a Rainha se autoriza a vingar-se e estabelece um plano que ela é capaz de
executar. Inicialmente ela dará a Flauta Mágica a Pamino e, no Ato II, ela dará a adaga à
Pamina para que ela mate Sarastro, já que Pamino se juntou aos iniciados. Aqui temos o
“Isso” atuando livremente em detrimento do verbo pathico dever (moral). Esse é o
grande eixo do "pedido", que se opõe ao vértice superior do losango, que simboliza a
promessa. Nesse vértice temos a promessa feita aos deuses da vingança nomeados com
modificações na dominante e na sensível, assim como quando Mozart usa para ilustra o
último “alle Bande der Natur”, marcando um vínculo entre o pedido e a promessa por
meio dos referidos detalhes. Além disso, quatro notas longas são utilizadas no verbo que
evoca os deuses: "Escuta".
156
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171
ANEXOS
ANEXO A – PARTITURA DA ÁRIA 14 DA FLAUTA MÁGICA PARA FLAUTA,
OBOÉ, FAGOTE, TRUMPETE EM FÁ, TROMPA EM RÉ, TIMPANO EM RÉ E EM
LÁ, VIOLINOS, VIOLA, BAIXO E VOZ (SOLO)
172
173
174
175
176
177
178
179
180
ANEXO B – A ÓPERA REAL DE ESTOCOLMO (SUÉCIA), À NOITE DA
APRESENTAÇÃO DA FLAUTA MÁGICA, NO DIA 14 DE JANEIRO DE 2015
181
ANEXO C: ILUSTRAÇÕES DO FOLHETO VENDIDO NA ÓPERA REAL DE
ESTOCOLMO À DATA DA APRESENTAÇÃO DA FLAUTA MÁGICA, NO DIA 14
DE JANEIRO DE 2015
182
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