Pró-Reitoria Acadêmica Escola de Saúde Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia A Vingança na Música Investigação semiótica na Ária 14 da Flauta Mágica de Mozart Autor: Daniel Röhe Salomon da Rosa Rodrigues Orientador: Prof. Dr. Francisco Moacir de Melo Catunda Martins Brasília - DF 2015 A Vingança na Música Investigação semiótica na Ária 14 da Flauta Mágica de Mozart Autor: Daniel Röhe Salomon da Rosa Rodrigues Orientador: Prof. Dr. Francisco Moacir de Melo Catunda Martins Daniel Röhe Salomon da Rosa Rodrigues A Vingança na Música Investigação semiótica na Ária 14 da Flauta Mágica de Mozart Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Psicologia, da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Francisco Moacir de Melo Catunda Martins Brasília – DF 2015 FOLHA DEIXADA EM BRANCO DE PROPÓSITO DEDICATÓRIA Dedico essa dissertação a todos aqueles que trabalham em prol do fim do sofrimento humano. AGRADECIMENTOS Esse estudo é fruto de anos de colaboração junto ao Professor Francisco Martins, que além de estar sempre disposto a debater questões sobre a prática clínica, ofereceu sempre o melhor apoio para que os trabalhos tivessem continuidade. Sem suas considerações sobre o resumo que seria enviado para o Centenário de Charles Sanders Peirce no estado do Massachussets, no ano de 2014, provavelmente não haveria a oportunidade de discutir o estudo na UMASS (Universidade do Massachussets) e, com os contatos que foram realizados lá, ter aberto a parceria com a Universidade de Helsinki. Agradeço também ao Prof. Robert Innis que esteve entre os presentes na minha apresentação em Lowell, MA, e que me levou a considerar um aprofundamento na utilidade clínica desse estudo. Quanto à Universidade Helsinki, cabe mencionar a honra que foi ter sido recebido pelo Prof. Eero Tarasti em Janeiro de 2015 e em março, no 15º Seminário Internacional de Significação Musical da Universidade de Helsinki, quando tive a oportunidade de refletir sobre as tricotomias e os elementos de composição musical. Os agradecimentos também vão para a Ópera Real de Estocolmo, que proporcionou um belo espetáculo a partir da Flauta Mágica e que felizmente pude desfrutar em Janeiro de 2015. A todos os professores da banca, por terem gentilmente aceitado o convite para estarem comigo durante a construção desse trabalho e no seu momento de encerramento. À família, na figura de meu pai (Ricardo) e mãe (Miriam), que me apoiaram e amaram, desde sempre. Davi e Didier e aos parentes de Brasília, Rio, São Paulo e Anápolis, por estarem próximos. E finalmente, a todos os mestres e amigos, aos companheiros da Clínica Diálogo, da Universidade Católica de Brasília e do PRODEQUI. Daniel Röhe EPÍGRAFE Escuta, escuta, escuta! (Die Zauberflöte, Ato II, Cena VIII, Aria 14). RESUMO A música é uma das possíveis formas de expressão dos sentimentos e afetos humanos e a vingança é um dos afetos que podem ser expressos na forma musical. A fenomenologia da música nos permite reconhecer os diversos personagens envolvidos na construção disso que chamamos música. Com o método semiótico é possível observar a ligação entre a dinâmica do afeto sentido nas crises vingativas e a formação das ameaças na clínica psicanalítica com a dinâmica da partitura. Os elementos musicais denominados ritmo, melodia e harmonia fornecem subsídios para a compreensão dos afetos musicais. A compreensão dos diversos elementos presentes na Ária 14 da peça “A Flauta Mágica” nos permitem compreender o problema da vingança por meio da exposição de elementos musicais que mostram o funcionamento do afeto articulado com questões da vida pessoal da personagem, no caso, a Rainha da Noite. Notamos que ela não estará satisfeita apenas com a recuperação do objeto perdido que lhe implicou uma ferida narcísica. Será necessário destruir todos aqueles que ameaçaram a estabilidade e a segurança do seu eu. Palavras-Chave: Mozart. Peirce. Vingança. Psicanálise. ABSTRACT Music is one of the possible ways to express feelings and human affects and revenge is one of the affects that may be expressed in that way. The phenomenology of music allows us to understand the many characters involved with this object we call music. With the aid of semiotic analysis it is possible to observe the connection of the affect felt by revengeful characters and the threat they usually make within the context of psychoanalysys and in the musical score dynamics. The musical elements such as rhythm, melody and harmony offer to us tools to understand those musical affects. The comprehension of the many elements presented in the Ária 14 from "The Magic Flute" allow us to visualize and comprehend the problem of revenge within the dynamics of the musical elements that reveal the mechanics of the affect interwoven with questions related to the personal life of the Queen of the Night. We may see that she does not want only the Golden Circle back, the one that caused the narcissic hurt. It will be necessary to destroy all those that presented the threat to her ego. Keywords: Mozart. Peirce. Revenge. Psychoanalysis. LISTA DE TABELAS TABELAS Tabela 1: A representação do tempo das notas musicais Tabela 2: A Ária 14 da Flauta Mágica de Mozart em duas estruturas Tabela 3: Ameça à Pamina na Ária 14 Tabela 4: O fechamento do primeiro e do terceiro momento da segunda estrutura da Ária 14 Página 65 117 120 130 LISTA DE ILUSTRAÇÕES ILUSTRAÇÕES TOMO I Figura 1: A relação entre a partitura, a ideia composicional e o afeto Figura 2: Hino sáfico homenageando São João Fotografia 1: Página 410 da História da Música Ocidental de Donald Grout e Claude Palisca Figura 3: Escalas e acidentes musicais Figura 4: Ritmo e Verbo em relação ao Ciclo Temporal TOMO II Fotografia 2: Representação de um Círculo de Ouro fotograda no The Metropolitan Museum, no dia 12 de julho de 2014 Figura 5: O pentagrama pathico do círculo da forma de Victor Von Weizsäcker TOMO III Figura 6: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao primeiro verso da Ária 14 Figura 7: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao segundo verso da Ária 14 Figura 8: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao terceiro verso da Ária 14 Figura 9: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao quarto verso da Ária 14 Figura 10: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao intervalo da voz, no quarto verso da Ária 14 Figura 11: Trecho referente ao intervalo entre os dois trechos puramente musicais enunciados durante o quarto verso da Ária 14 Figura 12: Trecho referente ao segundo intervalo puramente musical durante o quarto verso da Ária 14 Figura 13: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao quarto verso da Ária 14 Figura 14: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao quinto verso da Ária 14 Figura 15: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao sexto verso da Ária 14 Figura 16: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao sétimo verso da Ária 14 Figura 17: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao sétimo verso (extensão) da Ária 14 Figura 18: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao oitavo verso da Ária 14 Figura 19: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao nono verso da Ária 14 TOMO IV Figura 20: O sentir da Rainha da Noite na primeira estrutura da Ária 14 Figura 21: Os verbos utilizados na ameaça à Pamina Figura 22: O plano vingativo da Rainha em quatro momentos (Segunda Página 57 66 59 69 72 78 90 93 95 98 101 102 104 105 105 106 107 108 110 112 113 118 121 122 estrutura) Figura 23: Trecho da partitura referente ao primeiro verso da Ária 14 Figura 24: Trecho da partitura referente ao segundo verso da Ária 14 Figura 25: O sentir da Rainha da Noite referenciada na partitura da Ária 14 Figura 26: O primeiro e o segundo momento da segunda estrutura da Ária 14 Figura 27: Vértice superior do segundo momento da segunda estrutura da Ária 14: A ameaça à Pamina Figura 28: Vértice inferior direito do segundo momento da segunda estrutura da Ária 14: A ameaça à Pamina Figura 29: Vértice inferior esquerdo do segundo momento da segunda estrutura da Ária 14: A ameaça à Pamina Figura 30: A invocação dos deuses da vingança Figura 31: Intervalos entre as notas referentes à qualidade do sentir na fala da Rainha da Noite na partitura da Ária 14 Figura 32: A Arquitetura da vingança e os invetvalos harmônicos na declaração de Morte a Sarastro na partitura da Ária 14 Figura 33: Intervalos entre as notas referentes ao vértice superior do triângulo que representa a ameaça à Pamina na segunda estrutura da Ária 14 Figura 34: Intervalos entre as notas referentes ao vértice inferior direito do triângulo que representa a ameaça à Pamina na segunda estrutura da Ária 14 Figura 35: Intervalos entre as notas referentes ao vértice inferior esquerdo do triângulo que representa a ameaça à Pamina na segunda estrutura da Ária 14 Figura 36: Os intervalos harmônicos entre as notas da partitura no trecho referente ao chamado dos deuses da vingança na partitura da Ária 14 123 123 124 128 131 133 134 135 143 144 145 147 148 150 SUMÁRIO 1 MÚSICA, ÓPERA E EXPRESSÃO DAS EMOÇÕES HUMANAS PELA VIA DO MELOS E DO LOGOS ......................................................................................... 14 2 O SENTIDO PORVINDOURO: POR QUE OUVIMOS MÚSICA? ................... 24 3 MÚSICA E RUÍDO: UMA DIFERENÇA SUTIL ................................................. 26 4 “A NOITE DO MUNDO” E INEFABILIDADE DA MÚSICA VERSUS O SIGNIFICADO MUSICAL A PARTIR DA QUALIA ............................................. 29 5 MÚSICA, EMOÇÃO E MOVIMENTO ................................................................. 34 6 FENOMENOLOGIA E TEMPOS SOCIAIS MUSICAIS .................................... 36 6.1 O COMPOSITOR, A IDEIA COMPOSICIONAL, A PARTITURA E O TRABALHO MUSICAL ............................................................................................ 37 6.1.1 Composição e Perlaboração ........................................................................... 40 6.2 O INTÉRPRETE, A PERFORMANCE E O PROCESSO ACÚSTICO .............. 42 6.3 O OUVINTE E A CONCRETIZAÇÃO ............................................................... 44 6.3.1 A Escuta na Perspectiva Semiótica Peirceana................................................ 45 7 MÚSICA E SEMIÓTICA ......................................................................................... 48 7.1 DICOTOMIAS OU TRICOTOMIAS? ................................................................ 48 7.2 INTRODUÇÃO A CONCEITOS GERAIS DE SEMIÓTICA PEIRCEANA ..... 50 7.2.1 O Signo ........................................................................................................... 50 7.2.2 Objeto Dinâmico e Objeto Imediato e as Relações entre Signo e Objeto ...... 51 7.2.3 Interpretantes e suas relações com o signo..................................................... 52 7.3 QUESTÕES DE PRIMEIRIDADE: O QUALI-SIGNO, A QUESTÃO ICÔNICA E A RELAÇÃO DA MÚSICA COM AS EMOÇÕES............................................... 54 7.4 A PARTITURA COMO SIN-SIGNO .................................................................. 55 7.5 LEGI-SIGNOS MUSICAIS ................................................................................. 58 7.5.1 Aspectos da Duração das Notas Musicais ...................................................... 64 7.5.2 Elementos da Dinâmica do Andamento das Notas Musicais ......................... 65 7.5.3 Aspectos Concernentes a Altura das Notas Musicais .................................... 66 7.5.4 Elementos para a Indicação da Intensidade das Notas Musicais ................... 67 7.5.5 As Escalas e os Intervalos Musicais ............................................................... 67 8 RITMO, MELODIA E HARMONIA DO PONTO DE VISTA DAS TRICOTOMIAS PEIRCEANAS ................................................................................ 69 8.1 RITMO E PRIMEIRIDADE ................................................................................ 70 8.2 MELODIA E SECUNDIDADE ........................................................................... 73 8.3 HARMONIA E TERCEIRIDADE ....................................................................... 74 TOMO II – ANÁLISE DE UM CASO ....................................................................... 76 9 ESTUDO DE CASO SOBRE “A FLAUTA MÁGICA” ........................................ 76 9.1 WOLFGANG AMADEUS MOZART e EMANUEL SCHIKANEDER: A AUTORIA DA PEÇA A FLAUTA MÁGICA ........................................................... 76 9.2 A FLAUTA MÁGICA E O CÍRCULO DE OURO ............................................. 77 10 A VINGANÇA E O IDEAL DO EU NO CONTEXTO DA CLÍNICA E O CASO DA RAINHA DA NOITE ................................................................................ 81 10.1 ANÁLISE DO AFETO VINGATIVO DA RAINHA DA NOITE A PARTIR DOS VERBOS PATHICOS......................................................................................... 87 TOMO III – DESCRIÇÃO DA PARTITURA PARA CANTO VOCAL (SOLO) DA ÁRIA 14 DA “FLAUTA MÁGICA” .................................................................... 92 11 PARTITURA E EXPRESSÃO MUSICAL DA “FLAUTA MÁGICA” ............ 92 11.1 O PRIMEIRO VERSO ....................................................................................... 93 11.2 O SEGUNDO VERSO ....................................................................................... 94 11.3 O TERCEIRO VERSO ....................................................................................... 97 11.4 O QUARTO VERSO .......................................................................................... 99 11.4.1 O Quarto Verso (A) .................................................................................... 100 11.4.2 A Voz da Rainha da Noite (B) ................................................................... 102 11.4.3 O Quarto Verso (C) .................................................................................... 103 11.4.4 A Voz da Rainha da Noite (D) ................................................................... 104 11.4.5 O Quarto Verso (E) .................................................................................... 105 11.5 O Quinto Verso ................................................................................................. 106 11.6 O SEXTO VERSO............................................................................................ 107 11.7 O SÉTIMO VERSO.......................................................................................... 108 11.7.1 O Sétimo Verso (Extensão) ........................................................................ 109 11.8 O OITAVO VERSO ......................................................................................... 111 11.9 O NONO VERSO ............................................................................................. 113 TOMO IV – ANÁLISE ESQUEMATIZADA DA PARTITURA PARA CANTO VOCAL (SOLO) DA ÁRIA 14 DA “FLAUTA MÁGICA” .................................... 115 12 MONTANDO O ESQUEMA DE ANÁLISE: O SENTIR E A ARQUITETURA DA VINGANÇA ......................................................................................................... 115 12.1 PRIMEIRIDADE MUSICAL ........................................................................... 123 12.1.1 Primeiridade Musical, o Sentir e a Vingança ............................................. 123 12.1.2 Primeiridade Musical, a Ameaça e a Vingança.......................................... 127 12.2 SECUNDIDADE MUSICAL ........................................................................... 136 12.2.1 Secundidade Musical, o Sentir e a Vingança ............................................. 136 12.2.2 Secundidade Musical, a Ameaça e a Vingança .......................................... 137 12.3 TERCEIRIDADE MUSICAL .......................................................................... 141 12.3.1 Terceiridade Musical, o Sentir e a Vingança ............................................. 141 12.3.2 Terceiridade Musical, a Ameaça e a Vingança .......................................... 143 13 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 151 TOMO V – REFERÊNCIAS ..................................................................................... 156 ANEXOS ..................................................................................................................... 171 ANEXO A – PARTITURA DA ÁRIA 14 DA FLAUTA MÁGICA PARA FLAUTA, OBOÉ, FAGOTE, TRUMPETE EM FÁ, TROMPA EM RÉ, TIMPANO EM RÉ E EM LÁ, VIOLINOS, VIOLA, BAIXO E VOZ (SOLO) ......................................... 171 ANEXO B – A ÓPERA REAL DE ESTOCOLMO (SUÉCIA), À NOITE DA APRESENTAÇÃO DA FLAUTA MÁGICA, NO DIA 14 DE JANEIRO DE 2015 .................................................................................................................................. 180 ANEXO C: ILUSTRAÇÕES DO FOLHETO VENDIDO NA ÓPERA REAL DE ESTOCOLMO À DATA DA APRESENTAÇÃO DA FLAUTA MÁGICA, NO DIA 14 DE JANEIRO DE 2015 ....................................................................................... 181 14 TOMO I – PROLEGÔMENOS PARA UMA UMA SEMIÓTICA MUSICAL 1 MÚSICA, ÓPERA E EXPRESSÃO DAS EMOÇÕES HUMANAS PELA VIA DO MELOS E DO LOGOS Conhecer a música pela via de seu próprio sistema simbólico pode satisfazer a necessidade de compreender experiências desprovidas de mediação pela razão, que estão relacionadas ao problema da destruição e da vingança enquanto afeto (Kohut, 1972). Isso porque os elementos da dinâmica musical estão relacionados à vida interior do ser humano (Salomonsson, 1989). Cabe, nesse momento, lembrar uma das metáforas musicais elaboradas por Freud: E o que é um afeto, no sentido dinâmico? Em todo caso, é algo muito complexo. Um afeto inclui, em primeiro lugar, determinadas inervações ou descargas motoras e, em segundo lugar, certos sentimentos; estes são de dois tipos: percepções das ações motoras que ocorreram e sensações diretas de prazer e desprazer que, conforme dizemos, dão ao afeto seu traço predominante (Freud, 1996, p.103). No caso, a edição Standard das Obras Completas de Freud traduz o termo “Grundton” como “traço predominante”. No entanto, esse termo, no original, se refere à escala musical1 (Salomonsson, 1989). Cada um dos tons musicais pode ser associado com afetos específicos (Schubart, 1806). Esses aspectos da vida pessoal e afetiva estão presentes no domínio pathico, que afeta os processos de tomada de decisão do indivíduo (Weizsäcker, 1958). A expressão feita a partir do domínio pathico é feita por verbos modais que, enquanto metamodais, também estão articulados à atribuição de significado à musica (Tarasti, 2012). Isso implica que verbos como querer, poder e dever estão presentes na dinâmica pathica da vida pessoal e no ato de atribuição de sentido. Assim, é possível estabelecer uma relação de similaridade entre o domínio pathico e o sentimento2 (Tatossian, 1979). Esse sentimento puro carece de processos de significação sofisticados que permitem a descrição dele. Esse sentimento é conhecido como estado puramente afetivo (Maine de 1 2 Keynote. Feeling. 15 Biran, 1920). Ele é próprio ao domínio da música quando dizemos que comentários sobre ela, feitos sob a forma verbal, já fazem com o que estado mais puro se desfaça, assumindo uma forma verbalizada. Portanto, do ponto de vista semiótico, a relação entre música e afeto é icônica, já que em ambos os contextos estamos no domínio da qualia. Dessa maneira, é possível afirmar que há semelhanças entre ambas (Kruse, 2007). Assim, a música pode possibilitar uma significação que mostre um sentimento por meio de sua relação de semelhança, enquanto signo, para com o afeto sentido pelo ser humano (Santaella, 2001). Jean Philippe Rameau, compositor romântico francês que compôs a célebre “Les Indes Galantes” em 1736, nos disse que “a verdadeira música fala a linguagem do coração” (Riding & Dunton-Downer, 2010). Marin Mersenne (1636) já havia concluído que a música é forma de expressão mais apropriada e mais natural para descrevermos as paixões humanas. Marie-France Castarède, em “Les Vocalises de la passion – Psychanalyse de l’opéra”, nos traz uma visão primordializada acerca da música, como um campo essencialmente original. Ela coloca que “entregar-se à música, senti-la, apreciá-la, é permitir a manifestação de fortes sentimentos que existem em todos nós e deixar que ela nos leve para um mundo psíquico que é anterior ao da linguagem, onde apenas as emoções valem3.” (Castarède, 2002, p. 13). Assim, ela defende a posição de que o melos antecede o logos, ou seja, de que existe um primado ontológico da música sobre as palavras. Algumas óperas foram escritas sobre essa questão. Uma delas é conhecida pelo nome “Prima la musica, e poi le parole”, de Antonio Salieri, que estreou em Viena em 1786. O “Capriccio” de Richard Strauss também aborda a problemática, só que num sentido de dúvida: qual tem primazia sobre a outra? (Parker & Abbate, 2012). A ópera de Salieri sugere que toda fala deve estar fundada em um som de forma que possa ser escutada. A de Strauss aponta que não podemos ignorar nenhum dos dois recursos para compreender a formação do sentido da peça. Castarède coloca também que “ritmo e canto estão intimamente ligados desde as origens da expressão humana4” (Castarède, 2002, p. 23). Dessa maneira, o canto é a única forma de expressão ligada diretamente às origens da música e da fala (Castarède, 3 S’abandonner à la musique, la ressentir, en jouir, c’est abandonner à des sentiments puissants qui existent en chacun de nous et qui nous ramènent dans un monde psychique d’avant le langage où seules les émotions comptent. 4 Rythme et chant sont indissociablement liés aux origins de l’expression humaine. 16 2002). Segundo Jean Jacques Rousseau, o canto também está ligado às origens da comunicação humana: “As primeiras línguas foram cantadas e apaixonadas antes de serem simples e metódicas5” (Rousseau, 1781, p. 11). Nesse sentido, a origem do processo de formação das línguas e de toda comunicação humana está fundada num enlace entre dois aspectos: ritmo e canto. O canto ritmizado é repleto de sentido, o que sugere uma significação específica a partir dos aspectos rítmicos presentes na fala (Santaella, 2001). Se, por um lado, a linguagem verbal comunica aquilo que é sentido por meio do logos, os padrões musicais se assemellham aos padrões emocionais (Noy, 1979) e, portanto, irão expressar o que é sentido pela via do melos. Enquanto as línguas humanas, como o português e o inglês, são capazes de comunicar um determinado significado por meio do aspecto convencional da língua, estabelecido nos dicionários – ainda que haja o problema da polissemia (Santaella, 2001), aquilo que um ouvinte sente ao ouvir uma música pode variar devido a diversos aspectos – que podem resultar, por exemplo, da posição que o ouvinte ocupa no teatro onde ele está escutando uma peça ou então do conhecimento total de música que o ouvinte possui em relação a quem desconhece elementos de notação musical (Ingarden, 1966). Entretanto, é possível dizer que existe coerência entre o significado colocado pelo autor e aquele elaborado pelo ouvinte no ato de escuta, como podemos observar na tese de Serge Lacasse, orientada pelo musicólogo Philip Tagg6 (Lacasse, 2000): “‘Listen to My Voice’: The Evocative Power of Vocal Staging in Recorded Rock Music and Other Forms of Vocal Expression”. Ao ouvirmos uma música, podemos sentir algo que é de ordem fisiológica, como uma reação ao estímulo musical, que pode ser tristeza, alegria, excitação, suspense, etc. Aksnes (2001) coloca que esse é sentido atribuído com o corpo7. Essas reações podem variar a cada vez que o ouvinte entra em contato com o mesmo estímulo musical ou então quando analisamos diferentes sujeitos em contato com o mesmo estímulo ao mesmo tempo (Ingarden, 1966). Por exemplo, na cena em que Igor Stravinsky está apresentando sua nova peça no filme Coco Chanel & Igor Stravinsky, Gabrielle (conhecida como Coco Chanel) se sente estranhamente cativada pelo espetáculo enquanto que a plateia, de forma geral, se sente ofendida e torna a declamar 5 Les premières langues furent chantantes et passionnées avant d’être simples et méthodiques. Philip Tagg é professor de musicologia e foi homenageado no ano de 2014, no Congresso Internacional de Numanities, na Lituânia, devido à importância de sua obra para a área de Significação Musical. 7 A esse processo de significação chama-se, em língua inglesa, de embodied meaning. 6 17 desaforos e a sair do teatro com desgosto relativo à apresentação. O argumento de Kant (1764) para essa diferenciação no aspecto da apreciação de um mesmo objeto aponta para a disposição do sujeito para apreciar um objeto específico, como uma peça musical. A interpretação do sentido musical, por sua vez, requer a aplicação de conceitos técnicos relacionados à música e à notação musical (Santaella, 2001; Tagg, 2011), o que sugere a possibilidade de uma atribuição de significado à música que seja coerente com aquele contido no trabalho de composição musical. Isso porque aquilo que é expresso musicalmente por uma orquestra em ação deve se manter fiel a uma norma que está posta na partitura que, por sua vez é um índice da ideia composicional (Ingarden, 1966). O aspecto da fidelidade garante a coerência em parte, uma vez que ela se restringe ao nível do intérprete. Mas o ouvinte deverá conhecer os elementos apresentados na peça para então atribuir o sentido a ela, o que só pode ser feito caso o intérprete seja fiel à partitura. Dessa maneira, caso o intérprete execute a peça corretamente, e o ouvinte tenha conhecimentos musicais suficientes de forma que ele saiba dar o sentido à peça (Tarasti, 2012), o significado musical proposto pelo primeiro poderá ser alcançado pelo segundo. A ópera, por sua vez, abre uma possibilidade diferenciada de significação, já que permite a integração entre melos e logos em seu contexto de expressão uma vez que há o entretecimento entre texto e música nas conhecidas Árias, como em, “A vingança do inferno incendeia meu peito8” da Flauta Mágica, de Mozart, e “Ninguém dorme9” da Turandot, de Giacomo Puccini. No contexto das produções operísticas as famosas Arias se opõem conceitualmente aos Recitativos. A Ária envolve tanto o canto lírico com como a execução da partitura por parte de uma orquestra dirigida pela figura do regente. O Recitativo, cujo aspecto exclusivo é o discurso verbal – além é claro de outros aspectos cênicos, que também ocorrem durante a Ária, e da questão da tonalidade do canto, não possui acompanhamento orquestral, podendo vir com o acompanhamento de um instrumento de cordas (como o cravo), ou com a voz nua (Castarède, 2002). A ópera, entre as artes, é a que faz uso do maior número de elementos e, portanto, é a mais completa e complexa, uma vez que ela reúne aspectos de cenário, figurino, musica e texto. Ela pode nos oferecer recursos para analisar e compreender o aspecto afetivo do ser humano que se encontra ferido (Whitehead, 1978; Chumaceiro, 1992). Na ópera, o canto se faz presente de forma marcante por meio de artistas 8 9 Der Hölle Rache kocht in meinen Herzen. Nessun Dorma. 18 internacionais desde o século XVII quando a voz exprimiu sob a forma musical as experiências afetivas e emocionais de maneira evidente. A voz pode ser encontrada nos corais, nos recitativos e nas Árias (Castarède, 2002). Essa forma complexa de arte começa a surgir como fruto do Renascimento Italiano na última década do século XVI. Nesse cenário, um grupo de artistas plásticos, músicos e poetas, membros da chamada Camerata, empenharam-se em reavivar o teatro grego, na forma da opera in musica10 (Parker & Abbate, 2012). O Conde Bardi, Vincenzo Galilei11, especialista em teoria musical, e Girolamo Mei, pianista, eram nomes de destaque do pensamento filosófico da Itália que deu luz à ópera. À época do surgimento dessa forma de expressão artística, e particularmente em Veneza, eram utilizados termos como attione in musica, festa teatrale, dramma musicale, favola regia, tragedia musicale ou opera scenica para designá-la (Rosand, 1991). O termo “ópera” apenas passou a ser usado de forma consistente no século XIX (Parker & Abbate, 2012). O Orfeo de Angelo Poliziano, cuja partitura hoje está perdida pode ser considerado o marco histórico do surgimento da ópera, porque data de 1480. Nessa época, em Florença, a intenção de reviver a tragédia grega na forma musical crescia em interesse. Mas talvez não se tratasse ainda de ópera propriamente dita, o que nos leva a questionar se podemos escolher o final do século XV como época do nascimento dessa forma de arte. Conta-se que houve grande festa promovida pela família Medici, no ano de 1589, que durou três semanas, cujo climax foi uma apresentação da peça cômica, La pellegrina, que usou recursos da dança, do canto solo, de cenários elaborados e de madrigais. Apesar das influências do teatro e de proto-óperas que já existiam, esse momento também pode ser considerado como um marco, mas não apenas pelo critério da data, e sim porque surgiu algo novo. Essa nova forma artística, que de fato surgiria em Florença, exigia a narrativa teatral e que todos os atores cantassem – e cantassem o tempo inteiro. As primeiras óperas de fato teriam sido a Dafne, escrita por Ottavio Runiccini, com música de Jacopo Peri e Jacopo Corsi (datada de 1598) e a Euridice, de Rinuccini, com uma partitura composta por Peri, e outra por Giulio Caccini. Esta foi a primeira a ser oficialmente publicada, o que lhe dá o título de primeira ópera pelo critério da divulgação oficial da composição, nos remetendo ao ano de 1600 como o marco do 10 11 uma obra musical. Pai de Galileu Galilei, que herdou do pai a paixão pela física do som. 19 surgimento oficial da ópera, nova arte. No entanto, sete anos mais tarde, em 1607 a primeira ópera é estreada em Mântua, na Itália. Algo nascia de forma ainda mais especial. Sob composição de Claudio Monteverdi, músico já de renome na Europa, a peça L'Orfeo surge no contexto de inovação e do surgimento de uma nova forma de arte, pelas mãos de um artista com vasta experiência de composição musical. Em L'Orfeo vemos traços da festa dos Medici, assim como aspectos do recitar cantando, mas com o refinamento musical que apenas um grande mestre poderia ter criado (Parker & Abbate, 2012). Em 1637, Veneza inaugura o seu primeiro teatro de ópera. Menos de 70 anos mais tarde já havia na cidade 17 casas de ópera. Na França, Luís XIV, o Rei Sol, contratou Jean-Baptiste Lully para compor óperas francesas, entre elas “Alceste ou o triunfo de Alcides”. Henry Purcell compôs a primeira ópera na língua inglesa em 1689, intitulada “Dido e Aeneas” (Kobbé, 1997). A difusão da ópera se deu no percurso dos movimentos nacionalistas, como no caso da Alemanha e da Rússia (Leitão, 2009). Surgiria depois a opera seria, que se diferenciava do modelo da Poppea de Monteverdi e da ópera veneziana tardia por possuírem menos personagens e uma quantitade menor de formas musicais (Parker & Abatte, 2012). As óperas do tipo seria e buffa marcaram a evolução do estilo recitar cantando a partir do século XVIII, período em que a ópera inspirou grandes paixões e guerras ideológicas como a querela dos bufões12. A buffa foi inicialmente uma forma cômica que servia como descanso entre os atos das óperas do tipo seria. A fonte de seriedade nesta se torna fonte de riso naquela: o comportamento apropriado de acordo com o status social. Žižek e Dolar (2002) explicam que, enquanto a opera seria prima pela transcendência, a buffa se baseia na estrutura da imanência – o mesmo argumento pode ser encontrado em Nagel (1985). A seria se baseia na relação distante entre o sujeito e o outro, entre o social e a sua transcendência. O enredo irá se desenrolar na troca entre os dois e terminará na resolução dessa distância pelo ato de misericórdia. Por outro lado, a democrática buffa mostra uma perspectiva de equidade dentro dos limites dos homens e seus comuns. Ela é uma arma para mostrar o papel de ridículo desempenhado por pessoas com qualidades que não correspondem ao seu status social e que não se provam 12 Esse episódio dividiu o público frequentador dos espetáculos parisienses em dois. De um lado, os defensores da ópera italiana que defendiam a reformulação do teatro lírico no sentido da valorização das melodias baseadas em temas cômicos e do cotidiano, se juntaram a Diderot, D'Alambert e Jean-Jacques Rousseau. Do outro, haviam os defensores da ópera francesa tradicional, Voltaire e Jean-Philippe Rameau, seguindo os moldes de Jean-Baptiste Lully. A carta sobre a música francesa de 1753, de JeanJacques Rousseau, é um dos registros históricos sobre a querela. 20 merecedoras de participar da cena social. Mozart, gênio inquestionável da composição operística e com quem a ópera atingirá o seu auge, irá se valer, além da seria e da buffa, do Singpsiel, gênero musical alemão que não possuía uma forma definida, misturando elementos do folclore alemão, dos arranjos velozes da buffa, da coloratura complexa da seria e de composições solenes para o coro (Apel, 2000). No canto, elemento caro à ópera, podemos notar que, em virtude da presença do logos, temos fonemas que marcam a presença de uma língua particular, como o alemão ou o italiano. No caso do melos, temos uma característica mais ligada aos traços genéticos da espécie humana, que é capaz de cantar um intervalo específico de tons, conforme a técnica de cada cantor. É preciso então compreender o domínio do logos segundo a sua forma específica e a partir de áreas de estudo como a gramática e a linguística, enquanto que o estudo da sonoridade exige uma lógica diferenciada e deve ser estudada do ponto de vista da teoria musical (Žižek, 2004). O entretecimento entre o libretto musical e a emoção expressa musicalmente permite uma ampla análise da dinâmica afetiva humana por meio de um estudo detalhado da lógica dos legi-signos musicais utilizados, sob a forma de réplicas, em uma composição real. Diversos estudos explicaram e descreveram determinadas lógicas humanas pela via de composições clássicas que, propositadamente veiculam significados específicos, como a comédia social representada no Quarteto em Mi Menor de Joseph Haydn13 (Robinson, 2000), o amor adúltero em Tristan und Isolde (1858) de Richard Wagner, a paixão entre amantes de diferentes idades em La Damnation de Faust (1846) de Hector Berlioz (Castarède, 2002), o sentimento de nacionalismo como na Segunda Sinfonia de Jean Sibelius (Tarasti, 199914), o lamento em Dido and Aeneas (1689) de Henry Purcell (Monelle, 1991; Aksnes, 2001) que, possui uma linha vocal “cheia de sofrimento com trítonos lacrimejantes e cromatismos desesperados 15” (Castarède, 2002, p.83). O entretecimento entre música e libretto se aplica na proposta da própria experiência de apreciação operística, proposta por Hector Berlioz, expoente do romantismo francês na música, que defendia que a platéia deveria ter conhecimento do 13 Ainda que o quarteto de Haydn não possua uma parte em texto ela é apontada como uma peça essencialmente humorística (Robinson, 2000). 14 Apesar de Sibelius ter negado qualquer conteúdo programático em suas sinfonias, à 2ª é atribuída o senso de nacionalismo (Tawaststjerna, 1976). 15 plein de souffrance avec ses tritonts sanglotant et son chromatisme désespéré. 21 texto a ser entoado pelos atores durante a ópera antes que fosse realizada a perfomance. Dessa forma, os ouvintes poderiam dar atenção aos aspectos da peça que estivessem presentes apenas durante a ação, enquanto o texto permanece inalterado e acessível, antes e depois da peça (Riding & Dunton-Downer, 2010). Guillaume (1984) defende que a compreensão verbal, do ponto de vista lógicoverbal, ocorre num processo que se divide em três momentos: in posse, in fieri e in esse. A terminologia extraída do latim significa que, primeiramente, o saber está apenas ao nível de potência, é virtual – in posse. Enquanto está sendo feita a aquisição do saber, diz-se que está ocorrendo de maneira atualizada, no gerúndio do in fieri. Quando a aquisição está completa, então a noção verbal já está in esse, implicando que o sujeito tem posse do saber. O que Berlioz defendia é que o enredo do libretto estivesse na fase in esse quando o expectador se dirigisse para o espetáculo. A proposta de Berlioz para a compreensão do evento musical enviesa a percepção da obra de arte na tentativa de uniformizar a compreensão que os diferentes indivíduos da plateia terão por meio da redução do sentido da peça ao significado contido no texto. A leitura prévia pode também servir como suporte para uma experiência diferenciada, uma vez que os temas musicais podem se associar a personagens contidos no texto (Sousa, 1999). Segundo o crítico de ópera Rodney Milnes, nós vamos à ópera para ouvir e observar o espetáculo, e não para ler (Parker & Abatte, 2012). O entretecimento entre música e libretto na ópera pode ser observado nas produções do Leitmotiv e do Erinnerungsmotiv, que são também evidências da existência de significados musicais determinados. O termo Leitmotiv foi criado por August Wilhelm Ambros e serve para descrever o efeito produzido pela música programática de Liszt e pelas óperas de Wagner. No entanto, o termo só foi popularizado nos tratados de Hans von Wolzogen, os “Thematischer Leitfaden” (Meyer, 2009). O antecedente formal deste modelo é a idée fixe, utilizada por Hector Berlioz na Symphonie fantastique (1830), na qual um tema, apresentado no primeiro andamento, representa a intensidade da paixão do artista ao longo da mesma obra (Sousa, 1999). Carl Maria von Weber e Louis Spohr utilizaram em suas peças a noção do Erinnerungsmotiv, que é o uso recorrente de um motivo para relembrar uma personagem ou os seus sentimentos (Sousa, 1999). Weber havia regido, em Praga, a estreia de uma peça romântica com enredo alemão: Fausto, de Spohr, mas foi Weber 22 que compôs a primeira grande ópera romântica alemã: O Franco-Atirador16. Spohr desenvolveu uma técnica de composição em que a música acompanha o texto. Nesse sentido, a música fica entreleçada com os motivos semânticos da obra (suas ideias, imagens e cenários descritos no libretto). No caso do Erinnerungsmotiv, podemos relacionar a melodia-motivo com referência ao enredo e as suas personagens, de forma que a música assume uma função indicial. As obras de Weber projetaram a ópera germânica na nova estética de sua época: O Romantismo. Seu trabalho influenciou posteriormente o pensamento de Richard Wagner, compositor de música dramática alemã (Sousa, 1999). No contexto de produção de óperas germânicas em que encontramos o Leitmotiv e o Erinnerungsmotiv, é preciso apontar que se distinguem, enquanto programáticas, da música absoluta. Na primeira, as frases musicais portam informação. Apesar do termo “programático” ter sido cunhado por Richard Wagner, após a era Mozart, é possível dizer que essa proposta de composição com conteúdo não está restrita à época wagneriana, já que podemos falar de significados musicais anteriores à Wagner (Everett, 1991). A música programática é conhecida como drama musical, que requer o entretecimento da harmonia, com o ritmo, a melodia e o logos (Dahlhaus, 1989). Com relação à segunda, Hanslick (1922) e Hoffmann (1810) colocam que ela é uma música enquanto forma de arte autônoma, constituída por “movimentos instrumentais17”. Ambos se opuseram a Wagner que, por sua vez, preferia usar o termo música absoluta18 (ainda que em alemão "Musik" e “Tonkunst" sejam sinônimos). Hanslick (1922) e Hoffmann (1810) usaram o termo “Tonkunst" para se refererir à música enquanto uma arte19 que consiste especificamente num trabalho em torno da tonalidade musical20, opondo-se assim à visão de Wagner que via a música – programática, enquanto integradora dos aspectos tonais, gestuais e verbais (Bonds, 2014). Se a música carece de um sistema semântico convencional, ainda assim ela pode enviar mensagens precisas a partir do contexto que enuncia. Ou seja, a partir da compreensão musical de uma determinada peça é possível apontar elementos precisos de significação – o que é apoiado pela noção de idée fixe. Por outro lado, não se trata de 16 Der Freischütz. Absolute Tonkunst. 18 Absolute Musik. 19 Kunst. 20 Ton. 17 23 uma significação universal uma vez que os mesmos elementos musicais podem ser recombinados e serem utilizados em um contexto diferente que irá produzir uma significação necessariamente diferente, uma vez que irá se tratar de outra peça (Ingarden, 1966). Isso implica que uma sequência de três notas em intervalos melódicos descendentes de meio tom, marcados, por exemplo, por uma quinta aumentada sobre a escala de Fá Maior, pode ter um sentido diferente se estiver seguida por uma sequência de sétima aumentada numa peça, e se forem seguidas por uma terça aumentada em outra. Nesse sentido, a compreensão de uma frase musical de uma ópera fora do contexto em que ocorre e ignorando o libretto a que se remete se torna uma tarefa desfavorável à compreensão da composição musical. Assim, no contexto da ópera, a significação musical não pode se distanciar da possibilidade de significação verbal. Elas devem ser analisadas conjuntamente, ainda que a música permaneça ilustrada pela partitura, e as palavras, pelo libretto. 24 2 O SENTIDO PORVINDOURO: POR QUE OUVIMOS MÚSICA? Na obra de Kurt Huber, “Der ausdruck musikalischer elementarmotive, eine experimentalpsychologische untersuchung” (1923), os sentidos atribuídos a uma música envolvem a mudança tonal. A percepção do movimento tonal indica a direção, que é o ponto de partida do simbolismo psicológico da música, a partir da qual é possível identificar as emoções humanas articuladas a determinados arranjos musicais. Assim, em determinadas situações, como a da ópera, a música não apenas guarda em si um contexto semantizado, mas aponta para um sentido que está porvir, que se forma devenindo. Nesse sentido, podemos colocar a asserção de que a expectativa de um determinado som na sequência melódica pode influenciar a forma que o ouvinte a escuta (Schellenberg, 1996). O aspecto da expectativa como influência de determinada experiência temporal no presente remete ao próprio conceito de protensão em Husserl (1928) e, em virtude disso, podemos falar de um efeito que é gerado pela música que se confunde com as disposições prévias no indivíduo (Ingarden, 1966). O conceito de Ponto Azul, nascido nas correspondências entre Eugène Delacroix e Frederic Chopin, e que se define enquanto uma metáfora do porvir, foi explorado psicanaliticamente por Didier-Weill (1999) e nos remete também à noção de protensão em Husserl (1928). Eles podem ser postos em discussão com a noção da direção do movimento tonal, uma vez que ele é um aspecto que influencia na direção do movimento humano e na experiência do tempo do sujeito. O conceito husserliano de protensão nos fala a respeito da experiência do tempo, e de como esse tipo especial de futuro influencia a experiência do tempo no presente. Por sua vez, o Ponto Azul se configura com um devir. Podemos dizer que ele encerra uma esperança, e não apenas um desejo relacionado a um objeto. Isso se deve ao fato de que a esperança está associada ao sentimento de probabilidade (de algo ocorrer num evento futuro). Na esperança, não é apenas o objeto que funciona como gratificação, mas a própria probabilidade se torna um motor para colocar a pessoa em atividade. A questão da promessa enquanto possibilidade se remete a algo que é novo, que não está presente agora, mas sim no futuro. Essa possibilidade de uma nov(a)-idade é o ponto azul, que move a pessoa para além do objeto posto no presente do indicadivo, na realidade atualizada (Didier-Weill, 1999), em um condicional futuro, o que nos remete ao interpretante final de Peirce e, dessa maneira, à ideia de uma tendência 25 interpretativa (Romanini, 2006). Como as qualidades afetivas possuem relação de semelhança com as qualidades musicais e por estarmos nos referindo em ambos os casos a qualidades que são signos, (rementendo–nos ao conceito de quali-signo e do ícone, de Charles S. Peirce), a variação tonal e a expressão musical atual direcionam o processo psíquico para a compreensão da emoção que ela expressa, e que é o objeto com o qual a música possui relação de semelhança (Santaella, 2001), o que sugere a presença da primeiridade e da secundidade peirceanas. Nesse contexto, a compreensão do sentido musical geralmente é garantida, de forma que é possível observar a coerência entre o sentido que se quis expressar pela música e o sentido percebido por sujeitos colocados na posição de ouvintes (Lacasse, 2000). A identificação de determinada emoção, por meio da relação de semelhança, acaba influenciando na própria percepção, enquanto ato que se dá no presente do indicativo: qual sentimento a música evoca? A partir da noção do ponto azul, a esperança de que algo que esperamos que aconteça pode não ser vã e influencia a experiência no tempo do presente, no sentido da (e)moção a ser vivida. Não nos diz a expectativa musical algo sobre a própria esperança humana? A música ouvida pode gerar um efeito na ordem do sentir e da compreensão. Diversos estudos também apontam para uma expectativa de prazer ligada à repetição do ritmo musical (Wundt, 1897; Freud, 1914; Ranck & Sachs, 1915; Coriat, 1945; Faber, 1996; Santaella, 2001). Para Faber (1996), o prazer ligado à escuta musical se faz pela lembrança do estágio uterino e de quando o bebê ainda mama e está protegido pela mãe. No período pré-natal, a comunicação entre mãe e bebê ocorre por meio de ritmos (Castarède, 2002). Após o nascimento, mãe e bebê continuam se comunicando por sons, marcando a primazia do melos sobre o logos na história da comunicação humana. Enquanto o melos é puramente musical, irá envolver uma série de experiências temporais ligadas a algum tipo de ritmo orgânico. Essa experiência ligada à infância está diretamente ligada com o narcisismo primário é a ligação do polo Eu-sujeito com o prazer (Freud, 1915). A introdução do não-materno irá gerar uma ruptura dessa forma de se comunicar, impondo à criança que passe a usar palavras, de forma que possa se socializar com pares, ou seja, com outras pessoas além de sua mãe (Freud, 1923). O prazer se coloca como elemento que favorece a repetição e, dessa maneira, a escuta de sonoridades ritmizadas gera prazer e segurança, ou o que Gilbert Rose (1991) 26 chama de nyama, o que remete a uma força universal ligada com as vivências intrauterinas. A relação entre o prazer e o ritmo acaba por gerar um ciclo atrelado à energia vital. A escuta musical permite a entrada no universo das fantasias e também nas simbolizações sexuais (Ranck & Sachs, 1915). Há uma economia psíquica que permite o acesso às fantasias, já que a comunicação verbal exige uma interpretação ligada a palavras, enquanto que a música permite o acesso ao nyama de forma mais rápida, pois se articula com um canal expressivo ontologicamente primeiro . Assim, o aspecto protensivo marcado pelo retorno à matriz da força vital e a recarga energética do corpo por meio da sensação de prazer que estão presentes no ato de escuta musical, e em especial do ritmo, motiva o ser humano a ser um ouvinte de música. 3 MÚSICA E RUÍDO: UMA DIFERENÇA SUTIL Do ponto de vista do que é isso que nos move e nos afeta, o que podemos reconhecer como diferença entre aquilo que é ruído e o que é o som, para nos aproximarmos da música enquanto objeto de arte? Helmholtz (1912) afirma que o som é oriundo apenas de instrumentos musicais, enquanto o ruído se apresenta como uma combinação irregular desprovida de intencionalidade musical. O ruído também carece de uma partitura e de um trabalho de composição musical. A música, por sua vez, é membro de um grupo de expressões humanas a que podemos chamar artes. No entanto, o ruído pode possuir algo semelhante ao processo acústico que é o efeito que a execução de uma peça musical gera, e que pode ser percebido pelo ouvinte. Por outro lado, a música, devido ao seu caráter intencional, produz uma sonoridade regular o que é uma condição necessária para toda e qualquer música, mas que não é necessária para a definição de ruído, já que este não requer regularidade sonora. A esse aspecto de regularidade damos o nome de ritmo, sem o qual não se pode instalar uma melodia. Segundo Santaella (2001): “o som se distingue do ruído porque é produzido por vibrações regulares do ar, enquanto no ruído as vibrações são irregulares” (p. 167). Helmholtz (1912) alerta para o fato de que a divisão entre o que é ruído e o que é música é tênue e pode ser flexibilizada. Como não haveríamos de chamar de música a peça 4’33’’de John Cage, em que podemos escutar apenas os sons gerados pela plateia enquanto que, do palco onde estão os músicos, não se pode escutar uma nota musical 27 sequer? (Santaella, 2001). A estética do silêncio aplicada à composição musical no âmbito da arte não se aplica à lógica da composição de forma a questionar a sua existência enquanto arte. Sendo assim o reconhecimento de 4’33’’ como música não destitui o trabalho composicional de Mozart do seu caráter de “ápice da formalidade artística”, no caso das obras sacras de Mozart. No entanto, é permitido a John Cage a inserção na esfera artística com a sua arte contemporânea que gera ruptura com os modelos formais de composição artística (entre eles a ideia de regularidade sonora). O alerta de Helmholtz (1912) no sentido da flexibilização entre música e ruído pode ser aplicada nessa questão e permite que determinadas composições da música contemporânea sejam também consideradas como música, e não como ruído puro. No entanto, é impossível aplicar a noção de ruído a uma execução de qualquer peça de Mozart que possa ser ouvida com alta qualidade de reprodução, uma vez que as composições do austríaco são consideradas o ápice do perfeccionismo da composição musical (Einstein, 1945). Susanne Langer (1957) apresenta uma discussão em torno da diferença entre uma obra que pode ser considerada arte e outra que não pode. A arte tem a preocupação com a perfeição aos limites do que o ser humano pode alcançar, enquanto objetos nãoartísticos podem ter apenas uma preocupação funcional. Hegel (1842) apontaria que a necessidade de produção artística surge do impulso do homem de produzir uma imagem de si e da natureza para si mesmo. Apesar de ela possuir uma essência morta, ela pode aparentar estar viva. No entanto, não é o seu aspecto mortificado que a faz dela arte, mas sim o fato de ter sido batizada pelo espírito humano. Hegel (1842) iria ainda acrescentar um reforço ao argumento da semelhança entre música e emoção, já que a primeira se preocupa com os movimentos completamente indeterminados do espírito interior e os seus sons são como sentimentos, sem pensamentos. Sendo assim, para dizermos que um som é artístico, ele deve representar algo da natureza espiritual do homem para ele mesmo. Podemos também considerar como música apenas aquela que tem preocupações formais ligadas ao convívio social permitido em que os sujeitos possuem a ânsia em realizar suas obrigações e seus deveres para com a sociedade com quem convivem, marcados pela vontade destinada ao dever moral no sentido weiszackeriano21. Na Grécia Antiga, a Doutrina do Etos trazia essa noção de que a 21 Sollen como dever moral. 28 música exercia um efeito na formação moral das pessoas (Grout & Palisca, 1994). Assim, a música é dedicada àqueles que intentam para a manutenção das noções da ética, da moral e dos deveres, e não para a transgressão desses, marcando um dos papéis sociais da música: a preservação de costumes que promovem o bem-estar social. Nesse sentido, para além da aspiração à musa e perfeição estética, a música possui preocupações ligadas à moral humana. Na Grécia Antiga corria o ditado, que brinca com o trocadilho em torno da palavra nomos, que signifca costume ou lei, mas que também designa o esquema melódico de uma canção lírica ou um solo instrumental: “deixai-me fazer as canções de uma nação, que pouco me importa quem faz suas leis” (Grout & Palisca, 1994, p.21). Podemos mencionar, num período da história da música mais recente, uma abertura para expressões mais livres, que fogem aos moldes tradicionais de composição de uma época anterior, típico das revoluções artísticas (Santaella, 2001) e que, como vimos parágrafos acima, implicam a distinção entre música e ruído puro. Cláudio Santoro, conhecido compositor brasileiro utilizou o método criado pelo compositor e escrito Arnold Schönberg, criador do método dodecafônico que, segundo Santaella (2001) eliminou toda tonalidade que era utilizada na composição musical. O processo de significação musical, para Schönberg, deriva tanto da tonalidade quanto do aspecto motívico. Arndt (2014) sugere uma continuidade entre a música do período tonal e a músical pós-tonal a partir de uma metodologia de análise motívica e de uma compreensão das sucessões harmônicas. Segundo Schönberg, na arte representamos algo sem limites lançando mão de recursos que cercearão o objeto a ser indicado. Nesse sentido, o recurso é a matemática. No entanto, com ela, é provável que não estejamos lidando de forma adequada com a ordem natural da liberdade, da irregularidade do que é livre (Schönberg, 1911). Face à limitação aparente por conta da aritmética, Schönberg propõe inovações para a composição musical aumentando o leque de possibilidades rítmicas e melódicas. Olivier Messiaen também foi um conhecido defensor do dodecafonismo. Ele dizia que a música: “não é feita somente de sons; em parte ela é feita com sons, mas tambem e principalmente com Durações, Arrebatamentos e Repousos, Acentuações, Intensidades e Densidades, Ataques e Timbres, […] o Ritmo” (Messiaen citado por Ferraz, 1998, p.188). Vimos como a composição musical tem se diferenciado do ruído devido ao aspecto da intenção, que pode incluir o uso de legi-signos e suas réplicas (Monelle, 29 1991), preocupações morais e éticas (Hegel, 1842), a promoção de prazer (Wundt, 1897), a reflexão (Langer, 1957) e a veiculação de diversos significados, dependendo da obra em questão. A composição musical vem se modificando ao longo da história da música o que não implica que o que fora música deixou de ser a partir de determinada revolução no campo da composição, seja a introdução do método dodecafônico ou a contemporaneidade artística, mas que novos elementos vêm sendo introduzidos no âmbito da produção artístico-musical. 4 “A NOITE DO MUNDO” E INEFABILIDADE DA MÚSICA VERSUS O SIGNIFICADO MUSICAL A PARTIR DA QUALIA Em O Moisés de Michelangelo, não podemos deixar de constatar a dificuldade de Freud no sentido de que qualquer sentido que seja atribuído à música constitui um problema do ponto de vista da apreciação estética da obra de arte. Nas palavras dele: [...] Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber porque sou assim afetado e o que é que me afeta. Isto me levou a reconhecer o fato — um paradoxo evidente — de que precisamente algumas das maiores e mais poderosas criações da arte constituem enigmas ainda não resolvidos pela nossa compreensão. Sentimonos cheios de admiração reverente por elas e as admiramos, mas somos incapazes de dizer o que representam para nós. Não tenho leitura suficiente do assunto para saber se esse fato já foi constatado (Freud, 1974, p. 253). A posição de Freud, além de não reconhecer o amadurecimento da música após Richard Wagner e o seu sentido programático, remete ao problema da Noite do Mundo, que encerra aspectos desprovidos de mediação racional e aparentemente inefáveis (Žižek, 2004). Se por um lado Freud nega o fato de que já havia em andamento trabalhos de composição musical com um sentido expresso por leitmotivs e erinnerungsmotivs, por outro ele atribui a ideia de falta de sentido a algo que ele não consegue explicar. 30 Em contrapardida, a partir da semiótica, é possível verificar que a música é a expressão lógica dos sentimentos, emoções, tensões e resoluções mentais (Kruse, 2007). A música e suas qualidades musicais são de uma ordem anterior à expressão verbal, sendo, portanto, mais ligadas à ordem das possibilidades de sentido. Isso se deve ao seu aspecto quali-sígnico, em relação a si mesmo, enquanto um estado puro, que pode ser traduzido para uma partitura, um sin-signo que irá conter uma combinação de legisignos sob a forma de réplicas (Monelle, 1991). A música não possui bordas, ela é translucente. É como uma pura e imediata qualidade. É uma sensação pura, sem uma clareza a respeito dela. Assim, ela se assemelha às qualidades afetivas puras e pode significá-las por meio da relação de semelhança. Portanto, sua relação com os objetosafetivos é icônica, já que se trata de uma relação de semelhança. Assim, ela pode inclusive substituir o seu objeto para representá-lo. A partir da constatação da relação icônica entre música e afeto e da necessidade apontada por Žižek de que a música seja descrita segundo sua lógica e elementos próprios, podemos propor que uma leitura dos elementos musicais, que serve ao conhecimento que se tem acerca de uma peça, permite também a compreensão do afeto, já que há semelhança entre música e afeto (Žižek, 2004). Descrever uma música pela sua terminologia própria auxilia na descrição desses afetos que se assemelham à música, por sua relação icônica e por serem, ambas, ligadas com qualidades, a primeiridade e a qualia. Por sua vez, uma partitura é uma descrição existente que descreve os estados puramente afetivos sob a forma musical. Por um lado ela é estática, mas guarda em si a expressão de uma natureza viva: ainda que sua natureza seja morta (Hegel, 1842). Por um lado, existe a identificação do sentido musical com a noite do mundo, esse domínio da negatividade radical hegeliana (Žižek, 2004). Como se não houvesse possibilidade lógica para concebermos sentidos musicais, ameaçando a compreensão do sentido musical por meio de palavras. Para Eco (1986), quando nos debruçamos sobre uma obra de arte, ela nos dá acesso à emoção estética que ela provoca e oferece um esquema para uma emoção possível. Nesse contexto, a inefabilidade não se origina no tecido da obra estudada, mas, esta nos fornece a “armação de uma máquina geradora do inefável” (Eco, 1986, p.163). O esquema dessa armação surge para explicar o inefável, o que estava no meio, reduzindo esse núcleo misterioso e do qual se deve calar a uma estrutura comunicativa e a uma resposta que combina elementos emotivos e intelectuais. O desaparecimento do aspecto inefável nos diz o que é a obra de arte e qual sentimento 31 ela gera (Eco, 1986). Ainda assim, enquanto inefável, a música é como uma noite escura para o homem. Essa identificação com a noite é feita pela via da negatividade radical hegeliana, que estabelece uma relação lógica entre a música e os aspectos irracionais humanos como componentes da “Noite do Mundo” que, por sua vez, se liga à questão da experiência da produção de representações e imagens impessoais e inconscientes que são violentas e destrutivas (Žižek, 2004). Isso implica que a música é uma forma possível de representação desses aspectos mais profundos da experiência humana, ligados ao desejo de destruição. É dessa escuridão que parte o sujeito natural para então se tornar um sujeito social e cultural (Žižek, 2004). Essa ligação da música com aspectos obscuros da natureza humana permite uma forma de explicar o que a princípio, segundo Heinz Kohut (1972) se põe como uma tarefa difícil, mas muito importante do ponto de vista de clínico, já que lançar luzes sobre as trevas é a própria tarefa do psicólogo clínico (Freud, 1900). Essa tarefa é a de compreender o que nem sempre é acessível pela via do relato clínico, que escapa à relação terapeutica e que não deve ser reprimida, mas trazida de volta na terapia. O afeto vingativo é um exemplo clássico desse tipo de problema marcado por expressões destrutivas (Kohut, 1972). Ir de encontro com exemplos musicais do afeto vingativo pode ajudar a compreender a questão. Mas antes, é preciso desmantelar o caráter inefável da música para abrir a possibilidade de sentido a ela, ou seja, é preciso dar sentido a angústias profundas e sombrias do ser humano e não reprimi-las, dizer que são inalcançáveis e esquecê-las. O sentido musical do afeto não é apenas uma possibilidade lógica ou de um dever da clínica pathica, mas configura-se como um método que permite ilustrá-lo por meio de recursos que tem, no seu âmago, relação de semelhança com ele. A “Noite do Mundo” é o aspecto que permite a destruição e a recombinação sem nenhuma contenção. Žižek (2004) aponta que ela é combatida de frente pelo universo simbólico da ordem das palavras. Na ópera “A Flauta Mágica”, podemos observar esse contraste se analisarmos o confronto entre a fraternidade de Sarastro e a vingança da Rainha da Noite que se esforça para destruir a referida sociedade (Whitehead, 1978; Chumaceiro, 1992). No contexto das forças antagônicas da peça, temos a Rainha da Noite que representa os sentimentos humanos de ordem destrutiva, enquanto a fraternidade prima pela sabedoria e a ordem moral e social. Kohut (1972), ao comentar sobre o narcisismo e a ferida narcísica, menciona os termos ambição, vontade de dominar e brilhar: É o caso da Rainha, que deseja reobter o círculo de ouro e brilhar 32 com ele. Kohut (1972) pontua que devemos aprender mais sobre nossas forças narcísicas, de forma a reinventá-las, ao invés de suprimi-las. Ele relaciona o narcisismo com ciclos de triunfo e autoconfiaça em alternância com a depressão apontando para fantasias edípicas de sucesso e do repúdio à lembrança da cena originária em que se observa a troca amorosa entre os pais. A Rainha da Noite nos parece se encaixar nesse papel de sofrer uma ferida narcísica, uma vez que é o triunfo sobre a fraternidade que ela almeja, e é a posição depressiva que a faz colocar a própria filha sob a pena de banimento caso ela não atenda a sua solicitação. Por outro lado, a representação de um forte ressentimento em virtude de um grande ideal projetado para si pela Rainha, nos sugere a necessidade de análise sobre os verbos páthico dever-ser22 e dever (como permissão23) (Weizsäcker, 1958), junto com elementos ligados à formação do ideal do eu. Segundo Castarède (2002), a busca pelo ideal do eu é representada na relação da Rainha da Noite com o Círculo de Ouro, objeto de desejo da Rainha. Ocorre que o afeto sentido pela personagem que canta a Ária é revelado pela partitura para canto que, por sua vez, permite compreender a relação entre a vingança e o ideal do eu pela via da permissão moral que a Rainha se dá para poder efetivar sua conquista do Círculo de Ouro, cuja perda lhe provocou enorme ressentimento, indicado pelos versos da Ária 14 e pela partitura que determina seu canto e revela a dinâmica dos seus sentimentos (Castarède, 2002). Tudo isso se dará em detrimento dos valores morais24. A oposição entre o mundo musical e o mundo verbal é ilustrada também por Didier-Weill (1999), quando comenta a saída do cantor do coro para ele se tornar um ator, que irá falar, e não mais cantar. Essa sequencia nos remete a Maria-France Castarède (2002) e ao fato de que o canto é primeiro em relação à fala. Segundo DidierWeill (1999), aquele cantor irá então possuir uma fala, e não um canto, o que o cria uma descontinuidade e um recalque com relação à vivência ligada ao coro, por entrar numa regra que, no caso, é a da gramática, saindo do contexto puramente musical. Pierre Kaufmann (1996) constata que a intenção do músico no ato da composição é intraduzível por palavras, já que não há uma gramática da música. Žižek (2004) nos alerta que é necessário compreender a música segundo sua lógica própria, o que implica que não podemos assumir, por similaridade entre frases musicais e frases 22 Sollen. Dürfen. 24 Esse tema sera abordado em profundidade no tópico 10 e 10.1. 23 33 verbais que existe uma gramática da música25. De fato, a intenção que se efetua no arranjo enquanto está na mente do compositor está acessível somente a ele. O que é revelado é a elaboração daquilo que o artista conhece sobre as emoções (Langer, 1957; Leader, 2010) e não por meio de palavras, mas por meio da notação musical que é uma representação que envolve legi-signos e suas réplicas contidas numa partitura que, por sua vez é um sin-signo. Esse sin-signo é uma forma de presentificar os quali-signos que marcam as qualidades musicais e as qualidades afetivas puras. (Monelle, 1991). Por um lado Santaella (2001) coloca que, em certo nível da escuta musical surge “um sentimento que resiste a definições ou explicações” (Santaella, 2001, p.82). Apesar da resistência em utilizar o logos para falar do melos, este retrata aspectos pulsionais e irracionais por sua relação de semelhança com eles e, por isso, pode chegar a falar das emoções por meio de uma forma de se comunicar que é musical. O pensamento musical não está acessível a qualquer um e não se deveria falar do que sente ao ouvir uma música sob o risco de cair na imprecisão ou no erro na tentativa de precisar o significado contido na expressão musical. Dessa forma, não é qualquer leitura acerca da sonoridade musical que é válida para explicá-la. É necessária uma introdução na terceiridade musical, campo dos sentidos convencionais em música, terreno da musicologia. Mas voltemos ao problema do inefável. Podemos dizer que algo é inefável não apenas porque algo acerca de algum objeto é indizível, mas porque ainda não se falou a respeito dele, e que é inefável enquanto ainda não se falou. No entanto, o próprio fato de indicarmos que ainda não se falou já é algo dito sobre o tal objeto. Se, por um lado, a música requer que a explicação seja restrita aos aspectos próprios de sua notação, a passagem para a explicação e a interpretação musical por meio da linguagem verbal ilustra uma passagem do melos para o logos. Assim, a música comunica. A semiótica mostra essa possibilidade. No entanto, a música parece ser adequada para comunicar apenas aspectos ligados ao sentir humano, como as emoções, os sentimentos e as tensões e nada além do que ela é ou com o que possui relação de semelhança (Kruse, 2007). Didier-Weil (1999), ao discutir a tragédia das mênades de Eurípedes, em que todas as mulheres da cidade abandonam os respectivos deveres, para moverem-se 25 O uso de homologias estruturais é frequente na comparação entre formas de arte com natureza distintas e muitas vezes é válido que sejam usadas metáforas. No entanto, a comparação literal entre artes de naturezas diferentes confere vício metodológico nas análises que se propõem a esse estilo (Eco, 1986). 34 guiadas pelo som da flauta dionísica que as convida para o ritual na floresta revela o aspecto musical de quebra temporária com a realidade. Esse aspecto promove, sem muito esforço, a abertura para experiências ligadas às fantasias (Rank & Sachs, 1915). Isso nos indica que a musicalidade permite uma nova forma de pensar. Muitas vezes, o processo de racionalização fere o real sentido emocional vivido pelo homem. Por outro lado, a música permite conhecer a lógica acerca da dinâmica do sentimento humano. Assim, para conhecer determinadas paixões humanas é necessária uma explicação segundo a lógica dos signos musicais. O problema freudiano com esse continente negro, musical e feminino não se fez por ele não explorar questões musicais para estudar determinados casos do ponto de uma semiótica musical? É provável que o afastamento freudiano em relação à música constatado em “O Moisés de Michelangelo” não seja uma postura que coloca a música no campo de uma impossibilidade no que tange uma compreensão sobre ela, mas de colocar que é necessário compreender o campo da música para poder conhecer o que ela realmente expressa e comunica, caso contrário ela permanece inefável. Dessa maneira, nos parece que a condição de inefabilidade da música se restringe àqueles que não conhecem o potencial da música de revelar as emoções e os afetos humanos por meio da interação dinâmica dos elementos utilizados na composição musical, uma vez que estes podem marcar precisamente conceitos que são verbalizados (Dahlhaus, 1989). Um exemplo disso é a representação da posição vingativa da Rainha da Noite (Whitehead, 1978; Chumaceiro, 1992) e do seu problema com o afeto vingativo e o ideal do eu (Castarède, 2002). 5 MÚSICA, EMOÇÃO E MOVIMENTO O que é isso que a música provoca em nós? O fato de a música gerar ou provocar emoções no ouvinte não se constitui como um problema de ordem mágica, mas de lógica (Langer, 1957). Quem escuta música geralmente tem a sensação de experimentar determinada emoção. Charles Avison (1752), em “An essay of musical expression”, colocou que a música provoca efeitos similares à sonoridade que expressa. Ao ouvir uma música, nossas emoções se aproximam da emoção do artista projetada na obra dele por meio da combinação de interpretantes emocionais (Kruse, 2007). Pierre Kaufmann (1996) coloca que a música torna manifesta a esfera dos sentimentos. Para Langer (1957) é importante compreender como as músicas são capazes de eliciar 35 emoções segundo um argumento lógico demonstrado pela via dos aspectos dinâmicos da música como o crescendo, o diminuendo, a tensão e o relaxamento. Henry Prunières, em “Musical symbolism” (1933), expôs que um artista não pode colocar em sua música alguma emoção que não tenha ele mesmo vivido, o que restringe a possibilidade de significação musical da peça musical à esfera da história de vida do compositor. A doutrina do Etos, surgida na Grécia Antiga, se preocupava com a capacidade da música de influenciar a dinâmica de tudo que pertence ao universo (Grout & Palisca, 1994). Àquela época, sabia-se que a música podia realçar algumas emoções no espírito humano. Por isso, Platão defendeu a proibição de um estilo musical que levava os cidadãos a praticarem atos contra a moral vigente (Langer, 1957; Grout & Palisca, 1994). Mais tarde, no Concílio de Trento26, os Pais da Igreja proibiram o modo frígio devido ao fato de que ele encerra o acorde da quinta diminuta, conhecido como triton diabolicum (Didier-Weill, 1999). Conta-se que o rei Eric da Dinamarca cometeu homícido e que nessa situação ele estava comovido pelo som de um harpista que realizava experimentos musicais (Langer, 1957). Hoje não se acredita mais nessa qualidade quase que hipnótica da música. No entanto, ela é reconhecida por ser capaz de afetar o batimento cardíaco, a respiração, a concentração e excitar ou relaxar o corpo, enquanto ela soa. Assim, apesar de invocar o impulso para cantar e dançar, a música não é reconhecida enquanto capaz de influenciar o comportamento humano da maneira como outrora se imaginava, como no caso do monarca dinamarquês homicida (Langer, 1957). Santaella (2001) coloca que, ao nível de secundidade, em relação ao efeito emocional da música, existe um sentir que nos põe em movimento, que nos comove e faz o coração estremecer, como naquela famosa passagem em que Prosperpina, esposa de Plutão, alega estar comovida com o canto de Orfeo e solicita a Hades que permite ao herói resgatar a esposa, Eurídice27. Encontramos outro exemplo no personagem Kaspar Hauser, do filme “O enigma de Kaspar Hauser28” (1974), do diretor alemão Werner Herzog. Kaspar alega, ao ouvir uma peça ao piano: “[...] sinto algo forte. Sinto a música com força em meu coração. Sinto-me velho de uma forma inesperada”. Esses casos ilustram a comoção que a música pode provocar no homem. Em um caso, o destino de uma mulher (Eurídice) poderá mudar, e no outro, a própria 26 Realizado no século XVI, entre 1545-1563. Esse episódio é narrado na peça L’Orfeo, cujo libretto foi compost por Alessandro Striggio (Striggio, 1607) e a música por Claudio Monteverdi. 28 Jeder für sich und Gott gegen alle. 27 36 percepção da idade que o homem (Kaspar Hauser) tem, foi mobilizada. Na primeira situação, o efeito da música em Proserspina favorece a Orfeo no sentido de que ele obtém uma concessão. Na segunda, Kaspar Hauser desloca sua autopercepção como pessoa para o futuro. Assim, algo (musical) o faz se sentir mais velho. Assim, podemos dizer que existem diversas formas de mobilização que a música é capaz de efetuar (Ingarden, 1966). Mas o que é isso que nos faz mover e que é musical? O que ouvimos é parte de um processo que envolve quatro momentos e três sujeitos que podemos descrever a partir da obra de Roman Ingarden, “O trabalho musical e o problema de sua identidade29” (1966), em que se afirma que cada performance musical é um processo acústico determinado por uma partitura ou um improviso, que por sua vez são formado de ações físicas complexas e atos mentais do intérprete. Mas todo esse processo começa com o compositor. Henri-Georges Clouzot, no filme “O Mistério de Picasso30” (1956), alerta para o fato de que não podemos conhecer a mente do artista enquanto ele compõe uma peça. De fato o que podemos ter acesso está restrito a uma peça executada ou à leitura da partitura da peça, como registro de suas ideias composicionais. 6 FENOMENOLOGIA E TEMPOS SOCIAIS MUSICAIS A aplicação do método fenomenológico à compreensão do que é o trabalho musical foi explorada por alunos de Edmund Husserl, como Alfred Schutz, Waldemar Conrad e Roman Ingarden (Mazzoni, 2010). Quando esse método é aplicado ao universo musical, pode ser proposta uma análise dos indivíduos envolvidos na experiência musical da fenomenologia social musical. Entre eles estão o compositor, o intérprete e o ouvinte (Ingarden, 1966). Para uma música existir é preciso, primeiramente, que a música seja criada, o que é feito pelo compositor. No caso da improvisação o intérprete é o responsável pela criação. No caso de o compositor não ser o intérprete, o ouvinte terá contato com a expressão musical por meio de um segundo intermediário entre a partitura, criada pelo compositor, e o ouvinte. Essa consideração tem levado a diversos questionamentos quanto à identidade do trabalho musical, que, quando executado por distintos intérpretes, já poderia ser considerada uma peça diferente. Mas não é isso que a 29 30 Utwór muzyczny i sprawa jego tożsamości. Le Mystére Picasso. 37 fenomenologia mostra. Existem pontos de determinação na partitura que, caso não sejam seguidos, não é possível continuar intitulando a peça com o mesmo nome da peça original (Ingarden, 1966). No entanto, nem sempre uma peça é reconhecida a partir da execução conforme o que determina exatamente a partitura (Parker & Abatte, 2012). É preciso levar em consideração também o fato de que nem sempre o processo acústico está alicerçado completamente em pontos determinados, uma vez que a existência de pontos de indeterminação permite ao intérprete deixar a sua marca pessoal na execução da peça. Isso ocorre principalmente no caso de trabalhos orquestrais (Ingarden, 1966). A posição do ouvinte pode ser ocupada tanto por alguém que executa a música ou alguém que se situa na posição da plateia (Ingarden, 1966). Esse último sujeito, aquele que está na posição de ouvinte, quem percebe o fenômeno sonoro, tem sido estudado por diversos autores na psicologia e em áreas afins (Wundt, 1897; Helmholtz, 1912; Langer, 1957; Ingarden, 1966; Schellenberg, 1996; Didier-Weill, 1999; Castarède, 2002). 6.1 O COMPOSITOR, A IDEIA COMPOSICIONAL, A PARTITURA E O TRABALHO MUSICAL Esse homem que é (co) movido pela música pode ocupar três posições do ponto de vista da fenomenologia. O primeiro sujeito das relações sociais musicais é o compositor. Ele é quem elabora a ideia composicional, criando o seu trabalho musical e fixando-o na forma da partitura (Ingarden, 1966; Mazzoni, 2010). O ato de imortalizar a ideia composicional na forma de um sin-signo não se refere somente ao fato de tornar uma composição reconhecida por um grande público, como é o caso da “Flauta Mágica31”, mas por cravar aspectos que serão eternizados naquela composição. O compositor deverá colocar na partitura aquilo que ele elabora a partir de uma ideia composicional, esclarecendo dinâmicas emocionais representadas por meio de legi-signos da notação musical e suas réplicas, dispostas na partitura (Monelle, 1991). Ele poderá incluir as emoções que está vivendo e já viveu, assim como o conhecimento que ele possui a respeito da relação do ser humano com esses afetos (Langer, 1957; Kruse, 2007). Assim, não basta o artista viver as emoções, como fora especificado por Henry Prunières em 1933. Ele precisa ter a clareza sobre o funcionamento dos afetos 31 “A mais bonita e mais devastadora música já composta” (fala do filme A Hora do Lobo, de Ingmar Bergman, fazendo alusão à Flauta Mágica, na voz do irmão de Papageno, segundo o enredo do filme). 38 humanos (Langer, 1957). Dessa forma, o compositor precisa ser um grande conhecedor do espírito humano, que vive em um corpo afetado pelas questões do mundo que despertam sensações prazerosas e desprazerosas. No entanto, a música não é algo que possui exclusivamente uma preocupação estética de revelar algo da ordem do belo, mas também da beatitude, da moral, da regra, da tristeza e da alegria. Assim, gerar prazer não é a única finalidade do objeto musical artístico, mas também a reflexão e o estudo dos mais diversos afetos humanos (Langer, 1957). Não é descartada a preocupação da perfeição estética na música - os gregos afirmavam que toda a busca pela beleza é uma música (Grout & Palisca, 1994), mas por outro lado, é necessário reconhecer que ela pode provocar outros efeitos, como tensão, desprazer e até melancolia (Wundt, 1897). A partitura, conforme nossa demonstração, se efetiva como um exemplo da transdução das ideias composicionais para um objeto de arte na forma de escrita musical que, por sua vez, resulta do trabalho de composição do artista (Ingarden, 1966). Denomina-se trabalho musical à combinação de todos os aspectos contidos nela (Ingarden, 1966). Este é um modelo e uma medida para as performances musicais. Podemos fazer uma metáfora entre a partitura e uma questão em saúde mental. Existe na fenomenologia musical pós-husserliana o acordo de que a música escrita na partitura se estabelece enquanto uma referência análoga àquela que, enquanto ausente ou modificada, inclui o sujeito nos quadros do delírio (Schutz, 1976; Mazzoni, 2010), conforme apontam Martins, Costa e Aquino (1999): “No caso de um paciente eminentemente delirante (paranóia) o modo de constituição do pensamento paralógico em suas diversas modalidades também segue a lógica de quebra das regras de operação da referência” (p. 4). Nesse sentido, existe uma ligação entre o mecanismo de referência e a identidade daquilo a que se faz referência. No âmbito da composição musical, é preciso que as relações tonais exijam que cada tom melódico esteja referenciado a um ponto fixo, de forma que todos os tons estejam referenciados a uma tônica (Conrad, 1908). Essa ideia de regra inclusive justifica o argumento da harmonia como terceiridade, já que envolve a ideia de uma regra (Santaella, 2001). Existe inclusive uma posição da psicanálise em relação à tônica, ou baixo, colocando que ela exerce a função paterna, reforçando o aspecto legislativo, referencial e normativo da música: “Toda composição musical é feita de ritmo e de uma 39 linha de baixos (a voz paternal32)” (Castarède, 2002, p.138). Ora, não é a função paterna que exerce a castração que irá efetivar a constituição da linguagem no ser (Didier-Weill, 1999)? O sistema de referência se constitui numa partitura por meio da observância da lógica de uso das réplicas dos legi-signos ali dispostos. A linha de baixos opera, além do nível das réplicas e da identidade, como um mecanismo que exige a relação de referência entre a execução da peça e o que está colocado na partitura. Os pontos de determinação da partitura são como regras estabelecidas e podemos compreendê-las a partir de sua condição anáforica, já que a partitura antecede existencialmente à execução da peça e ela tem a finalidade de garantir que essa execução musical seja perfeita. Isso implica que ela determina como deverá ser executada a peça e a execução, com a finalidade de ser mais fiel à partitura deve tê-la como ideal a ser alcançado. Nesse sentido, quem não executa uma peça conforme o que está específicado pela partitura, não está executando aquela peça no seu sentido mais original, mas outra, uma variação daquela (Ingarden, 1966). A composição musical desajustada se aproxima dos enunciados verbais de crianças que ainda não desenvolveram a habilidade de falar propriamente, apesar dessa inabilidade se diferir do problema de referência dos delírios (Martins, Costa & Aquino, 1999). Segundo Freud (1905), os indivíduos na segunda fase da infância não se arriscam a enunciar contra-sentidos, uma vez que a fala incoerente é vista como desajustada. Isso implica que, com o desenvolvimento da linguagem no ser, gerar sentidos indesejados na comunicação passa a se configurar como algo indesejável. Essa constação nos faz pensar no elemento anafórico na esfera musical. No entanto, a composição musical não é como a composição dos enunciados verbais uma vez que possui características que lhe são próprias e dela se difere por exigir uma compreensão a partir de sua própria realidade (Žižek, 2004). Apesar disso, é possível dizer que uma determinada expressão musical se refere a algo específico, que só será acessível para quem puder se debruçar sobre a obra de arte e compreendê-la – eliminando o seu mistério inefável. É por isso que Felicia Kruse (2007) destaca a eventual necessidade de interpretantes lógicos para a compreensão do significado musical. O trabalho musical não varia independente do espaço que ocupa, assim como a partitura. Ele é o conceito da peça e inclui a dinâmica de pontos de determinação (explícitos) e indeterminação, não programados pela partitura. Permanece como algo 32 Toute composition musical est faite de rythmes et d’une ligne de basses (la voix paternelle). 40 que antecede a expressão musical na sua forma de processo acústico. Dessa forma, ele é inexorável enquanto ligado à partitura. Por sua vez, o processo acústico é ligado mais à execução da peça e ao processo de escuta (Ingarden, 1966). 6.1.1 Composição e Perlaboração Podemos notar nos debates da psicologia alemã do século XIX discussões sobre como as associações mentais formam ligações entre si. Os teóricos da época recorriam à música com o argumento de que ela podia evocar memórias, emoções e associações e, por isso, um estudo da dinâmica musical poderia levar à compreensão sobre a formação psicológica dos elos entre memórias, emoções e associações. O conceito freudiano de perlaboração também veio do campo da música (Leader, 2010). Enquanto Isador Coriat (1945) e Heinrich Racker (1965) destacam a relação entre as repetições contidas na elaboração musical e uma força que a resistência exerce sobre o homem, Freud ressalta a importância do estudo das repetições porque elas podem conter instintos patogênicos, observáveis em comportamentos compulsivos. A posição freudiana é de que as repetições geram óbice à realização de se lembrar de eventos, justamente aqueles que estejam alimentando as resistências (Freud, 1914). Quanto ao processo de perlaboração como analogia com a história de vida, indicamos a passagem em “História do movimento psicanalítico”, de 1914, quando é comentada a constatação de que alguns estudos já: “detectaram algumas nuanças culturais da sinfonia da vida e mais uma vez não deram ouvidos à poderosa e primordial melodia das pulsões” (Freud, 1996, p.69). Nessa metáfora, Freud está mencionando a importância da pulsão no psiquismo. A incapacidade de viver as tarefas da vida é a gênese do sofrimento do neurótico, ao passo que as repetições oriundas de gratificações conquistadas nas fases infantis foram negligenciadas, colocando a pessoa em processos de automatismo (Freud, 1914). O processo de perlaboração deve revelar a dinâmica do afeto ou do aspecto que foi reprimido assim como permitir a sua reformulação. A clínica visa a sua reemergência, e não o seu desaparecimento. Consideremos o reaparecimento do sintoma. Ele pode ser compreendido como o disfarce da patologia, ou um índice. A tomada da consciência dos motivos que levaram o paciente a produzir o sintoma pode favorecer a perlaboração e, portanto, a reinvenção do adoecimento (Bergler, 1954). Dessa forma, a partitura musical assim como a perlaboração, envolvem o ressurgimento 41 do que estava presente desde o princípio. Isso implica que, as introduções musicais são perlaboradas ao longo da peça, como se ela contivesse a semente que floresce ao longo dos atos e movimentos (Leader, 2010). E a perlaboração, enquanto reinvenção do adoecimento, exige o resgate dessa parte introdutória da sinfonia da vida. A ideia de perlaboração envolvida no processo catártico é fundamental para compreender o processo de composição musical a partir dos sentimentos vividos pelo compositor (Leader, 2010). Para Freud (1914), o processo de perlaboração é comparável à ab-reação catártica. Susanne Langer (1957) também comenta a relação entre o trabalho de composição musical e o processo catártico. Durante a composição e a perlaboração podem vir à tona novos conteúdos do inconsciente, o que irá requerer uma nova interpretação: novas modificações surgem ao longo do adoecimento e da partitura, modificações essas relativas à ideia da introdução. Isso ocorre porque durante a reinvenção dos conflitos psíquicos originários podem ressurgir outros conflitos, o que gera novos desdobramentos (Weizsäcker, 1958). Assim, na partitura, um tema que está em elaboração em determinado trecho da obra pode sofrer um menor ou maior grau de reelaboração, e isso depende, nos termos da clínica, de quanto o sentimento em relação aos conflitos presentes na pessoa foi mobilizado. Isso implica dizer, do ponto de vista da fenomenologia da música que, durante a fase criativa do ato de composição musical, as ideias composicionais não cessam de surgir, o que pode implicar na necessidade de ajustes no trabalho composicional durante a sua elaboração. Esse aspecto da tarefa composicional, o perlaborar, é típico do tratamento analítico e requer tempo para que possa acontecer. O tempo serve à superação de resistências do paciente, assim como as repetições infantis dele (Leader, 2010). Durante o processo de reinvenção da vida que ocorre pela perlaboração, novas verdades podem ser apreendidas (Karush, 1967) e eventos traumáticos da infância devem ser reconstruídos (Greenacre, 1956). Otto Fenichel (1938) coloca que a perlaboração significa apontar para o paciente, repetidamente, aquilo que o paciente faz. Nesse sentido, perlaborar é demonstrar, mostrar. No entanto, Freud (1914) aponta para a ineficácia dessa atitude clínica. É necessário que o paciente consiga se reinventar a partir de um reconhecimento prévio de sua própria situação (Freud, 1914) e não apenas que ela seja mostrada para ele. Mas a posição de Fenichel quanto à perlaboração nos remete à possibilidade apontada por Susanne Langer (1957) de que a música é também a apresentação do afeto. Se cuidarmos do alerta de Freud, seria necessário considerar que a música mostra para o seu próprio compositor aquele afeto que está nele, e não apenas para uma 42 audiência que irá escutar a peça, na posição metafórica do paciente que ouve os apontamentos do terapeuta. Para Fenichel (1938), a ideia de perlaboração também envolve o cuidado com o fator patogênico que alimenta padrões repetitivos de comportamento (pergunta: Quais são os fatores que alimentam a manutenção do sintoma e a patologia que lhe é subjacente?). Charler Brenner (1987) coloca que perlaborar é fazer uma releitura da vida vivida pelo sujeito assim como implica em reexperienciar a ansiedade e a depressão. É preciso, dessa maneira, perlaborar todos os aspectos de um conflito psíquico na realidade do trabalho clínico. Essa totalidade, que deve estar contida no processo de perlaboração, indica que a música, enquanto análoga ao processo terapêutico analítico, pode alcançar a revelação total ou parcial da dinâmica do afeto sentido e vivido, desde seu estágio reprimido, até o seu desvelamento pela via da recordação e da perlaboração. Assim, consideramos que não apenas a música pode revelar o afeto, o que é sugerido pela semelhança semótica entre ambas, mas que deve revelá-la, em virtude da aproximação com a ideia de perlaboração como tarefa clínica e da composição musical como trabalho do compositor. 6.2 O INTÉRPRETE, A PERFORMANCE E O PROCESSO ACÚSTICO Uma música, ao ser executada, pode variar a partir dos pontos de indeterminação da partitura e de como a situação psíquica que o músico se encontra no momento da execução vai agir sobre essas indeterminações (Ingarden, 1966). Enquanto que no trabalho musical todas as partes coexistem, dando existência ao todo que está imortalizado na forma da partitura, durante a execução, a música é temporalizada na direção apontada pela partitura. Apesar da existência de pontos de indeterminação, o que implica em algum grau de variação, isso não implica em uma deformação ou na execução de uma peça diferente como na situação em que fizemos analogia ao problema da referência no debate sobre saúde mental. Isso porque os pontos de indeterminação permitem a existência de diferenças entre as execuções de uma mesma peça, ou seja, de variações entre as performances. No entanto, a existência dos pontos de indeterminação não exclui a existência dos pontos de determinação, que se configuram como espaços de referência mais delimitados (Ingarden, 1966). Essa discussão abre para o questionamento sobre qual performance é mais fiel 43 à partitura e ao que o compositor quis comunicar numa mensagem musical. Mesmo quando consideramos as execuções realizadas pelo próprio artista irão existir variações, o que significa que não é possível dizer que a mensagem musical somente pode ser veiculada na interpretação do compositor. Aquela mensagem estará presente caso esteja de acordo com a partitura e na execução que se aproxime dela e da ideia composicional (Ingarden, 1966). Isso implica que, do ponto de vista da estabilidade do significado musical, é preciso considerar os pontos de derminação da partitura, que não podem variar e garantem a identidade daquele trabalho musical. Existe também a questão da temporalização concernete à experiência músical, que se refere ao reconhecimento da existência do processo acústico. Gutheil (1954) compara o espaço simbólico com o espaço musical: ambos ocorrem a partir de uma experiência internalizada do tempo. A internalização do tempo é, no âmbito da fenomenologia, uma questão vital: À medida que a música é tocada, cada parte em execução vai deixando de existir (passando a existir como um ter-sido, uma forma especial de passado, ainda presente), passando a constituir o degradé retensivo da experiência de percepção temporal (Husserl, 1928). No âmbito do processo acústico, a ausência de som não significa a ausência da música. Dessa maneira, a pausa, assim como as notas musicais, pode gerar um efeito no ouvinte enquanto ela é tocada (Langer, 1957). O que fica no sujeito é a lembrança da música, e não a música em si. A lembrança retida influencia na experiência do presente o que cria uma possibilidade perceptiva no ponto da protensão, ou da nota azul. Assim, podemos dizer: a partir daquilo que já escutei espero ouvir algo específico dessa descontinuidade musical. A música, enquanto está sendo executada, ocupa um espaço determinado, objetivamente e fenomenicamente. No primeiro caso, a perfomance parte de um determinado lugar, no qual possui a natureza de ondas sonoras, para ocupar outro, enquanto efeito do movimento dessas ondas e enquanto natureza elétrica a partir da sua percepção pelo ouvido. No segundo caso trata-se de um reconhecimento de que a música está ali, aspecto esse que é o ponto de partida para a análise de Didier-Weill (1999) quando ele conta que dizemos “Sim!” para a música que se constitui como uma verdadeira alteridade, que é capaz, inclusive, de escutar as perguntas que não fazemos, porque põe em movimento (co-move) o sujeito recalcado, aquilo que esquecemos que somos. 44 6.3 O OUVINTE E A CONCRETIZAÇÃO Os pitagóricos usavam músicas para adormecer e músicas para acordar (Cheshire, 1996). De fato, não se pode negar que alguns tipos de música estão mais aptos a produzir determinadas emoções do que outras (Santaella, 2001), de forma que cada uma delas pode ser utilizada para regular um estado emocional específico (Thoma, Ryf, Ehlert, Nater & Urs, 2006). Nesse sentido, podemos dizer que músicas diferentes provocam efeitos diferentes. E, se consideramos as diferenças individuais entre ouvintes, distintas formas de ouvir podem ser dadas na apreciação musical. Podemos também considerar diferentes situações que um mesmo sujeito ouve uma mesma música. Trata-se apenas de posições fenomenológicamente diferentes (Ingarden, 1966). A nossa percepção ao nível do contato afetivo individual com a expressão musical produz a formação de impressões originárias. A retenção é o que permite a apreensão do tempo presente e da música executada, enquanto atualizada e temporalizada. Existe também a influência das relembranças, que são representações de um dado objeto, frutos da imaginação sobre o objeto e não oriundos da perceção direta, mas da recordação desses diversos pontos contidos no degradé retensivo. Assim, a consciência do tempo põe em jogo não apenas os objetos temporais percebidos, mas também os objetos advindos da imaginação. Isso implica que a escuta, ainda que se dê no presente do indicativo, envolve aspectos ligados ao ter-sido e também ao porvindouro, formas especiais da ideia de passado e futuro que se atualizam no tempo presente (Husserl, 1928). Essa ideia sugere que a nossa prévia constituição como sujeito pode influenciar na apreciação de determinado objeto musical. A protensão é outro aspecto da experiência temporal e diz respeito sobre a influência que a expectativa do que irá acontecer no futuro gera sobre a forma como percebemos aquilo que percebemos – que já é uma fusão entre a nossa imaginação sobre o objeto retido e a percepção direta do objeto acumulada na nossa memória (Husserl, 1928). No contexto fenomenológico, é dito que a escuta musical exige a atenção sobre uma consciência de temporalidade mais internalizada do que a atenção aos fatos do diaa-dia. Essa proposta busca eliminar todos os traços da transcendência (Mazzoni, 2010). A percepção dos significados que concernem às unidades musicais pode ocorrer a partir de uma reflexão a partir dos aspectos da retenção e protensão. Isso implica que, na atividade de escuta, é preciso perceber os elementos que estão se atualizando no momento do presente ao nível do degradé da retenção e perceber o elemento da 45 protensão, que influencia as representações e as percepções acerca do objeto musical a ser temporalizado (Husserl, 1928). A escuta e a percepção dos significados ocorre então na percepção temporalizada e efetivada do trabalho musical num processo acústico. A partir da fenomenologia de Husserl, Schaeffer (1966) cria a possibilidade de realização da escuta reduzida, que independe da causa e do sentido e se remete às qualidades próprias do som como objeto de observação. Nessa escuta há uma maior pureza de aspectos musicais que a consubstanciam. Ele também explora o conceito de escuta causal que procura detalhar o que causa um determinado som. Abraham Moles (1978) explica que o som em si é uma vibração que, para nós, não é perceptível. O que escutamos é o processo acústico gerado por essa vibração (Ingarden, 1966). Para Schaeffer (1966) existe ainda a escuta semântica que irá envolver aspectos interpretativos. Santaella (2001) estabelece no ponto de confluência entre a fenomenologia e a semiótica que existe a diferença de que esta “nos fornece um conjunto de distinções analíticas bastante operativas para a aplicação a fenômenos concretos de signos” (p.87). Santaella (2001) defende que determinado nível de escuta intelectualizada da música requer um saber musical que está restrito àqueles que se aprofundaram na arte. Certamente é para esses que algo mais supreendente na música é revelado. Nesse sentido, a escuta musical é uma atividade que, quando realizada com a ciência dos aspectos normativos que envolvem a apreciação musical, resulta numa experiência diferenciada. Segundo Santaella (2001), escutar é diferente de ouvir. O psicanalista holandês Frans Schalkwijk (1996) coloca que a primeira atividade se relaciona mais diretamente com a emissão sonora e se limita à apresentação dos sons para nós. Já a segunda tarefa envolve percepções e esboços, que se constituem a posteriori, e podem inclusive se relacionar com experiências musicais vividas no passado que estão guardadas na memória e com os aspectos protensivos, ou seja, a expectativa acerca do que estamos por ouvir (Husserl, 1928). 6.3.1 A Escuta na Perspectiva Semiótica Peirceana Santaella (2001) expõe uma análise sobre três formas de ouvir e a semiótica pierceana. Ouvir emotivamente é da ordem de primeiridade. Marin Mersenne e outros teóricos ligados ao grupo da doutrina dos afetos colocaram que determinados arranjos 46 musicais eram capazes de representar um estado emocional e de fazer reconhecer essa emoção num ouvinte (Apel, 2000). Ouvir com o corpo é da ordem de secundidade. Nesse nível, a ação de escuta é executada no ato de recepção de um signo, o que indica a existência de uma escuta ativa e não uma experiência musical meramente receptiva, passiva. Ouvir intelectualmente é da ordem da terceiridade. Nesse nível se inserem princípios lógicos que guiam a percepção da música. Quanto ao efeito emocional provocado pela música, Santaella (2001) faz uma subdivisão em três aspectos. O primeiro é o mais puro, em que ocorre o estado de desligamento da realidade concreta e quando nos encontramos desligado do nosso eu, e por isso esse estado se relaciona à pura qualidade do sentir, quando estamos: “cândidos, porosos e despoliciados [...] se a música nos colhe em momentos como esse, ela nos converte em uma pura qualidade de sentir” (Santaella, 2001, p.82). Na segunda modalidade temos o nível da comoção, que se refere ao que se move em virtude da percepção musical. Um dinamismo interno é acionado a partir da escuta musical. Cada pessoa se sente acionada por uma música diferente. No terceiro nível há uma elaboração verbal superior sobre o que sente a partir do momento de escuta. Nesse contexto, qualifica-se uma música como alegre, triste, melancólica, etc. Aqui estamos no nível da emoção enquanto um sentimeno codificado. Nossos hábitos e convenções culturais nos permitem atribuir noções emocionais às músicas (Santaella, 2001; Castarède, 2002). Em relação ao aspecto corporal, Santaella (2001) novamente divide em três tipos. Na primeira modalidade ela coloca a música sentida dentro do corpo após a percepção do som. No entanto, a sensação é de que o próprio corpo é que está gerando o ritmo, o que implica numa sensação de tomada do corpo pela música. No contexto da escuta corporal trata-se mais da questão rítmica da música, o que pode se relacionar com a experiência temporal da fenomenologia, já que é o ritmo que determina o andamento da música e, portanto, envolve necessariamente a questão do tempo (Santaella, 2001). Na segunda modalide da escuta corpórea, há uma contigüidade entre música e o corpo. Nessa situação, a música vem de fora e afeta o corpo. Da terceira modalidade nascem a dança e a coreografia que são a “conversão do ritmo sonoro em realidade plástica e visual” (Santaella, 2001, p.84). A sua natureza de terceiridade se faz em virtude do uso de convenções de representações visuais que indicam posições e movimentos corporais no espaço. Assim, um sistema de regra é usado como referência para marcar determinadas frases e 47 movimentos musicais (Santaella, 2001). O terceiro nível, da escuta intelecutal, está reservado aos conhecedores de música. Nele há a possibilidade de um prazer ativo, interativo e produtivo, reservados a quem conhece o universo musical (Santaella, 2001). Na primeira modalidade de escuta desse nível, alguns sons possuem: “formas inusitadas, […] que se desmancham antes de chegarem a se instaurar, o que coloca o ouvinte em situação de incerteza, imprevisibilidade e conjecturas” (p.84). Santaella (2001) aponta que esse nível é hipotético, em que não se tem certeza sobre a sonoridade expressada. Já na segunda modalidade, o ouvido é capaz de distinguir cada detalhe da música, quais sejam: “os jogos das sobreposições das linhas sonoras, entrada e saída de vozes, instrumentos e materiais, movimentos de progressão, reversão, texturas e conglomerados” (p.84). Na terceira modalidade, o ouvinte é capaz de avaliar a música como forma de pensamento e reconhecer os seus sistemas de referência. Essa escuta é realizada, por exemplo, pelos grandes compositores que são capazes de compreender as emoções humanas e transduzi-las para um esquema musical (Langer, 1957), uma vez que essa é a escuta de quem conhece música (Santaella, 2001). 48 7 MÚSICA E SEMIÓTICA 7.1 DICOTOMIAS OU TRICOTOMIAS? Ao propor um estudo de semiótica sobre a música poderia haver num primeiro momento uma dúvida sobre qual modelo é mais adequado. Seria o das relações diádicas, como o da Escola de Paris (Saussurre, Levi-Strauss, Greimas), ou o das relações triádicas, como a de Charles Sanders Peirce? Como o aspecto icônico permite a identificação da ideia composicional com as emoções humanas, e como o conceito de ícone deriva das relações triádicas, ficaria fácil responder que toda a metodologia desse estudo ficaria restrita à semiótica peirceana. Mas, sem deixar de explorar apenas a semiótica peirceana, é possível considerar aspectos complementares à questão icônica que justificam a metodologia. Peirce irá trazer uma visão mais dinâmica da semiótica enquanto a tradição estruturalista propõe uma análise mais linear e temporalizada. Para Saussurre, o signo é uma entidade psíquica com dois lados, enquanto Peirce defende a existência dos signos independente dessa entidade psíquica. As relações entre os elementos semióticos serão lógicas, e não psicológicas (Parret, 1984). Outro ponto desse debate gira em torno da expressão antiga “aliquid stat pro aliquo”, que vale tanto para as semióticas diádicas como para as triádicas, uma vez que ela sugere que o signo é algo que está no lugar de outra coisa. Um dos primeiros registros do uso dessa expressão foi encontrado nos escritos de Alberto, o Grande 33. É possível dizer, inclusive, que nem sempre é possível discernir claramente as semióticas diádicas das triádicas. Por exemplo, Saussurre traz o termo “chose” como algo para além do significante/significado, mas nega a participação de “chose” como um terceiro elemento (Nöth, 1995). Já no pragmatismo, é assumida a presença de um terceiro elemento, para além do signo e do objeto que ele representa. Ele é denominado por Peirce como interpretante (CP 2.9234). Esse terceiro elemento é, além de um signo, o que provoca a ação do signo. Para que a relação entre representamen e objeto seja semiótica, é preciso que essa 33 Ou Alberto da Saxônia, filósofo medieval. Optamos por usar a referência ao “The Collected Papers of Charles Sanders Peirce” de forma que é possível, por meio do formato utilizado, identificar o volume e o parágrafo na qual a citação ou o conteúdo do parágrafo, se encontram na coletânea dos escritos de Charles Sanders Peirce, organizada pela Universidade de Harvard. As traduções para a língua portuguesa foram feitas pelo autor dessa dissertação. 34 49 relação seja concebida, dita e inferida. O aspecto da concepção envolve o interpretante como uma qualidade. O aspecto dito envolve o interepretante como existente e o aspecto inferencial traz um interpretante mais como ideia ou pensamento (Parret, 1984). Além da oposição entre dois e três, existe ainda um problema de outra ordem. Isso porque as análises estruturalistas procuram, por meio de uma justificativa metafórica, usar como que uma gramática musical a partir de uma glossemática que deveria englobar todo o conhecimento humano (Carmo Júnior, 2007). No entanto, o seu método de aproximação com a linguística por meio de uma analogia estrutural não nos parece suficiente do ponto de vista da necessidade apontada por Slavoj Žižek (2004), que requer um estudo da música pelos seus elementos próprios. Por outro lado, a análise da partitura e a sua relação com as ideias composicionais na fenomenologia musical de Ingarden (1966) e o uso da lógica peirceana, principalmente no que concerne à semelhança entre afetos e música pela via das qualidades e quali-signos icônicos (Kruse, 2007), nos permite que seja feita uma aproximação em relação à música e aos afetos por meio dos seus próprios recursos. Outro problema metodológico concerne o uso da partitura. Apesar das críticas à essa metodologia de análise (Aksnes, 2001; Lisi & Stefani, 2006; Parker & Abbate, 2012) e, ainda que ela seja uma forma limitada de análise musical, restrita à partitura, trata-se um elemento relevante do ponto de vista semiótico uma vez que garante a identidade daquela composição musical (Ingarden, 1966). Na análise estruturalista, a partitura pode atuar tanto como langue como quanto parole, uma vez que, no primeiro caso, ela funciona como matriz para a performance e, no segundo caso, ela existe a partir da matriz que seriam os estilos musicais de um época (Lidov, 2005). Isso geraria uma confusão na análise, já que seriam momentos distintos de reflexão para o mesmo objeto e os conceitos de langue e parole. Já do ponto de vista da semiótica, a partitura é um sin-signo, um existente, o que possibilita uma análise menos ambígua. É preciso notar que, enquanto marca da identidade musical, ela serve como matriz a performance, o que implica que poderíamos estar lançando mãe de um sin-signo que funciona como langue. No entanto, interessa-nos ainda o problema da semiose da composição musical e como se dá o processo de transdução do afeto para a partitura, por meio também da semiótica peirceana, o que desloca o foco das nossas questões sobre a partitura do problema referencial para o composicional. Enquanto parole, ela estaria ligada ao estilo da época, que influencia a forma que tomará a composição. No entanto, restringimos a análise da composição aos afetos vividos e os legi-signos de notação musical. 50 7.2 INTRODUÇÃO A CONCEITOS GERAIS DE SEMIÓTICA PEIRCEANA 7.2.1 O Signo Para Peirce, signo é tudo que transporta qualquer noção definitiva de um objeto. A partir dessa ideia eu faço a melhor analise que puder acerca do que é mais essencial para esse signo e defino como representamen como aquilo que essa análise puder ser aplicada. Não pode haver nenhuma ideia falsa sobre o signo para que possamos chamar essa ideia de representamen. O representamen gera um signo equivalente a si-mesmo na mente de alguém, que é o interpretante. O signo se relaciona com o objeto, mas não de todas as formas, mas com referência a um tipo de ideia, que pode ser chamada de fundamento do representamen (CP 1.540). Em 1903, Peirce realizou palestras no Lowell Institute e em Harvard University, quando propôs que os signos poderiam ser divididos em três categorias (Romanini, 2006). A essas subdivisões ele denominou de “Primeira Tricotomia dos Signos”. A primeira subdivisão é definida pelo signo-em-si-mesmo, a segunda é dada na relação do signo com o seu objeto e a terceira é dada na relação com o seu interpretante (CP 2.264). Um quali-signo é uma qualidade que não pode agir enquanto um signo até tomar forma. Mas a sua materialização não influencia o seu caráter de signo (CP 2.244). Um exemplo é o timbre da voz de Karolina Andersson, que estrelou o papel da Rainha da Noite na temporada de ópera de 2015 de uma capital europeia35. Um sin-signo é um evento singular (a sílaba "sin" traz o significado de ser único, como em singular ou simples). Ele pode envolver um ou mais quali-signos (CP 2.245). Um exemplo de sin-signo é a partitura da peça “A Flauta Mágica”, elaborada por Wolfgang Amadeus Mozart36. Um legi-signo é uma lei que é um signo. Dessa maneira ela é geralmente convencional. Não envolve a ideia de existente ou de singular, mas de uma generalização importante a partir de um consenso. O legi-signo exige a presença do sin35 Alguns dos exemplos para as dez classes de signos foram extraídos a partir de situações ligadas à apresentação da peça “Trollflöjten”, versão adaptada para a língua sueca a partir da peça “Die Zauberflöte”, de Mozart e Schikaneder. A peça Trollflöjten foi apresentada na Ópera Real de Estocolmo no dia 14 de Janeiro de 2015. O folhetim vendido no evento encontra-se escaneado nos elementos póstextuais dessa dissertação, no Anexo C. 36 Uma versão digitalizada da partitura da Ária 14 da peça “A Flauta Mágica” encontra-se anexada nos elementos pós-textuais dessa dissertação (Vide ANEXO A). 51 signo para se manifestar, mas um tipo especial de sin-signo, conhecido como “réplica” (CP 2.246). Os elementos de notação musical que definem o tempo de duração da nota são legi-signos. Os seus diversos registros nas partituras que podemos observar, por exemplo, na partitura da “Flauta Mágica”, são chamados de réplicas (Monelle, 1991). 7.2.2 Objeto Dinâmico e Objeto Imediato e as Relações entre Signo e Objeto Nas cartas para Lady Welby e William James entre 1904 e 1909, Peirce colocou, a partir de uma inspiração estóica, que havia dois objetos para o signo (Short, 2007). O primeiro é um objeto formalmente reconhecido no signo de forma que já é uma ideia, denominado então de objeto imediato. O segundo objeto independe de qualquer um dos seus aspectos. Peirce coloca que ele é o objeto das ciências dinâmicas e, por isso, ele recebe o nome de objeto dinâmico (CP 8.183). O objeto dinâmico é já um objeto em termos de eficiência, mas ainda não é um objeto imediatamente presente, como deverá ser o objeto imediato. Enquanto o objeto imediato é o lekton dos estóicos, o objeto dinâmico existe independente da sua representação (Short, 2007). Ressalta-se que não faz sentido dizer que esse objeto dinâmico se aproxima à coisa-em-si37 kantiana, que sempre escapa à possibilidade de conhecermos acerca dele, uma vez que negar essa possibilidade já é uma ideia sobre esse objeto. Para Peirce, o objeto dinâmico é mais o objeto independente da sua representação do que um objeto irrepresentável (Short, 2007). A segunda tricotomia do signo é dada com referência ao objeto. Dessa maneira, ele pode ser um ícone, um índice ou um símbolo (CP 2.247-9). Um ícone tem como essência da sua relação com o objeto a semelhança. Isso porque ele partilha com o objeto uma série de qualidades (CP 2.247). Os melismas agudos cantados pela Rainha da Noite na Ária 14 representando a profunda dor que ela sente são um exemplo de relação icônica. O índice se relaciona com o seu objeto por meio de uma relação de existência. Ele o representa por meio de relações dinâmicas com ele (Martinez, 1997). Um exemplo de índice são as linhas vocis da Ária 14 da peça “A Flauta Mágica” com relação à opulência do canto vocal italiano do século XVIII (ainda que a Flauta esteja em língua alemã, a imponência das dramáticas linhas vocais indica a influência do canto vocal operístico italiano do século XVIII). 37 Ding an sich. 52 O símbolo é uma lei ou uma regularidade ligada a um futuro indefinido. Mas uma lei governa ou deve necessariamente ser incorporada em indivíduos e prescrever algumas de suas qualidades. A relação do símbolo com o objeto é ordenada por associações de ideias gerais que fazem com que o símbolo seja interpretado com referência àquele objeto (CP 2.249). A peça “A Flauta Mágica”, apesar de pertencer às salas de ópera mais do que a rituais maçonicos propriamente ditos, está ao lado das outras peças de Mozart voltadas para cerimoniais da maçonaria como a “Gesellenreise” (K.46838) (Eisen & Keef, 2006). Dessa forma, é possível dizer que, simbolicamente, “A Flauta Mágica” é uma “Ópera Maçônica”. 7.2.3 Interpretantes e suas relações com o signo Ao longo das obras completas de Peirce é possível encontrar uma vasta gama de tipos de interpretantes (Short, 2007). Nesse contexto, é possível distinguir duas tricotomias. A primeira, criada em 1904, está dentro da estrutura teleológica da semiose, na qual Peirce irá incluir o interpretante imediato, o interpretante dinâmico e o interpretante final. Essa estrutura teleológica se engaja com a faneroscopia peirceana, criada em 1907, e subdivide os interpretantes em emocional, energético e lógico (Short, 2007). A tentativa de igualar o primeiro, o segundo e o terceiro interpretante de cada uma das duas séries não procede. Isso porque cada um dos três interpretantes da série teleológica possui três diferentes subdivisões, definidas pelo seu engajamento com a série da fanerescopia. Essa é a posição mais próxima daquela dada por Peirce (Martinez, 1997; Short, 2007). O interpretante imediato, assim com o objeto imediato, pertence ao signo e, enquanto interpretante, compreende uma potencialidade que é a base de toda interpretabilidade. O interpretante imediato consiste numa qualidade da impressão que o signo foi feito para produzir (CP 8.315). O interpretante dinâmico ultrapassa o limite da potencialidade, exigindo a presença de um signo formado (CP 8.343). O interpretante final, além de ser uma possível qualidade a ser interpretada, é um interpretante ideal, uma tendência interpretativa final a ser reconhecida como verdadeira caso haja um consenso unânime sobre o fato de ele ser verdadeiro (CP 8.184). Esse último conceito foi um dos mais difíceis de serem definidos, ora sendo 38 As numerações seguidas pelo K dizem respeito ao Catálogo Köchel, que enumera as obras de Mozart. A Flauta Mágica é conhecida como K.620. Uma variação do uso do K é o KV, quando mencionada a publicação em alemão (Köchel, Giegling & Sievers, 1964). 53 chamado de "interpretante significante", ora de "interpretante representativo". Em nove de outubro de 1905, Peirce colocou que o interpretante representativo é aquele que corretamente representa o signo como sendo um signo do seu objeto. Em dois de abril de 1906, Peirce irá chamar o interpretante final de "interpretante normal", ou "genuíno", que envolveria tudo que um signo pode revelar acerca de um objeto para uma mente suficientemente suscetível (Short, 2007). No âmbito da faneroscopia peirceana, o interpretante emocional é um sentimento, só que mais do que isso. Muitas vezes ele é o único efeito significativo que o signo produz. De acordo com Peirce, “a performance de um uma peça musical concertada é um signo. Ela carrega e tem a intenção de carregar as ideias musicais do compositor; mas essas geralmente consistem meramente numa série de sentimentos39” (CP 5.475). Caso a peça musical citada acima produzir algum efeito apropriado em termos de significação ela o irá fazê-lo por meio de um interpretante energético. Este envolve um esforço, que pode ser muscular ou mental. O interpretante energético nunca pode ser intelectualizado já que ele é um ato singular, enquanto que o âmbito da intelectualidade é de natureza geral (CP 5.475). Peirce irá denominar de interpretante lógico um pensamento que irá interpretar, por exemplo, um comando militar (Short, 2007). O interpretante lógico é um efeito para além daquele de ordem mais somática, ligada ao interpretante energético. Ele pode ser um pensamento intelectual (CP 5.476). Nem todo contexto de comunicação é preciso pensar e refletir, de forma que nem toda interpretação deve ser intelectual. Isso porque, por vezes, algumas palavras que chegam a nós são já transformadas em ação, por efeito do interpretante energético, e não exigem a presença de um pensamento (Short, 2007). A terceira tricotomia dos signos é dada com relação aos interpretantes. Nesse contexto, temos os remas, os signos dicentes e os argumentos. Um rema é um signo de possibilidade qualitativa, ou seja, é compreendido enquanto sendo representante de um objeto possível (CP 2.250). Qual será a vestimenta do personagem Sarastro de forma que se adeque à proposta de compor uma paródia para a peça Flauta Mágica40? Trata-se de um exemplo de rema. Um dicente é um signo que se dá como um existente para o seu interpretante 39 the performance of a piece of concerted music is a sign. It conveys, and is intended to convey, the composer's musical ideas; but these usually consist merely in a series of feelings (CP 5.475). 40 Na ocasião da apresentação da “Flauta Mágica” em Janeiro de 2015, Sarastro foi representado como líder de um grupo de escoteiros e, portanto, vestia-se a caráter. 54 (CP 2.251). Um exemplo dessa classe sígnica surge no contexto de uma visita à ópera de Estocolmo quando um convidado, levado às escuras para assistir uma peça que ele não sabe antecipadamente qual é, de repente reconhece a “Flauta Mágica” em execução. Um argumento é um signo que representa seu objeto de forma a produzir um interpretante comunicativo final lógico (Romanini, 2006). É um signo que, para o seu interpretante, é um signo de lei (CP 2.252). Um exemplo de argumento musical é o pensamento, ou uma série de reflexões de um profundo conhecedor da peça “A Flauta Mágica” enquanto ele aprecia a execução da mesma numa casa de ópera. 7.3 QUESTÕES DE PRIMEIRIDADE: O QUALI-SIGNO, A QUESTÃO ICÔNICA E A RELAÇÃO DA MÚSICA COM AS EMOÇÕES Os elementos da semiótica peirceana têm sido utilizados no contexto da música (Monelle, 1991; Martinez, 1997; Santaella, 2001). É considerada a relação do que Peirce irá denominar de qualidades, no âmbito da primeiridade e da relação de semelhança entre as qualidades musicais e as emoções e os afetos humanos (Kruse, 2007). A relação musical mais direta, iconicamente, se dá entre as qualidades que permeiam a ideia composicional e as emoções que a música virá a expressar. Os personagens sociais da fenomenologia social musical de Roman Ingarden nos permitem um estudo mais organizado, já que contextualiza a ideia composicional ao nível do compositor. Antes de escrever a partitura, ele deve utilizar seu conhecimento sobre as emoções humanas para formular e registrar a composição musical (Langer, 1957). Além disso, precisará lançar mão de técnicas composicionais específicas que são necessárias à criação de um trabalho artístico musical (Tagg, 2011), que será eternizado na partitura (Ingarden, 1966), que já não é mais um possível arranjo de qualidades musicais, mas um existente concreto (Monelle, 1991). Dessa maneira, a ideia composicional se configura como signo que representa o arranjo dos quali-signos musicais que possuem semelhança com os sentimentos humanos e que, portanto, os representam, funcionando como signos icônicos em relação aos objetos afetivos (Kruse, 2007). Sendo a ideia composicional um arranjo de qualisignos que representam determinada emoção humana, a sua relação com o objeto emocional será necessariamente icônica. Do ponto de vista da teoria peirceana, esse objeto enquanto já representado é o objeto imediato, do qual já temos uma ideia sobre ele. Por outro lado, esse objeto, enquanto independe da sua representação é o objeto 55 dinâmico, alvo da observação científica (Short, 2007). Os signos podem ser de três tipos, segundo a classificação original proposta por Peirce. A primeira classe de signos são os quali-signos. Peirce utilizou-se do termo qualia, a partir do sensacionaista francês Pierre Maine de Biran (Martins, 2005) para criar o quali-signo. A qualia está ligada aos estados puramente afetivos, sobre os quais não há uma tomada de consciência sobre o afeto. Trata-se apenas das qualidades desse afeto. Nessa análise dos tempos sociais musicais, os quali-signos se articulam nas ideias composicionais de forma que irão fundamentar a possibilidade de representação ao nível da secundidade. Dessa forma, a ideia composicional precisará lançar mão de uma série de qualidades de emoções para permitir que o compositor crie uma partitura real. As possíveis qualidades em formato de combinação, enquanto ideias composicionais possíveis são, também, quali-signos. Essa forma de ver o processo de produção e de composição musical ajuda a entender como o compositor, segundo Susanne Langer, precisa fazer um arranjo no formato de uma ideia composicional e escrevê-la na partitura a partir das emoções humanas que ele conhece. Tendo como meta a utilização da partitura da Ária 14 e o canto da “Rainha da Noite” para compreender o afeto da vingança a partir da dinâmica musical de sua mais famosa Ária, “A vingança do inferno incendeia meu peito41”, isso não impede que a Salomé de Richard Strauss não possa apresentar outras possibilidades de significados musicais da vingança (Coriat, 1914). O quali-signo elicia o seu objeto devido a um ingrediente ou qualidade comum que possui com ele (Kruse, 2007). Nesse sentido, as proposições musicais de “Salomé” e “A Flauta Mágica”, possuem afetos semelhantes quando tratam da vingança (Whitehead, 1978; Diaz de Chumaceiro, 1992; Castarède, 2002) e denotam o seu objeto por possuírem relação de similaridade com o afeto da vingança (Kruse, 2007). 7.4 A PARTITURA COMO SIN-SIGNO A música, enquanto ideia composicional, é um arranjo dos quali-signos que possuem relação de semelhança com os afetos que representa. No entanto, essa constatação vale somente para o momento em que a música permanece enquanto ideia composicional, e remática, enquanto possibilidade (Monelle, 1991; Santaella, 2001). Por outro lado, quando falamos de uma música atualizada, que saiu do seu aspecto 41 Der Hölle Rache kocht in meinen Herzen. 56 possível, e agora pode ser percebida, já estamos em um nível, que é segundo e sinsígnico. Dessa maneira, é possível dizer que a partitura pode ser um sin-signo icônico remático enquanto conectada com a ideia composicional, representar apenas as qualidades afetivas e provocar apenas um efeito emocional (já que se trata de uma relação remática com o interpretante, de primeiridade). Por outro lado, a partitura pode ser um sin-signo indicial remático quando a relação com o objeto não mais for icônica, ou seja, estiver produzindo as qualidades do som, mas quando for indicial e, portanto, possuir uma relação material com o objeto. Quando a ideia composicional toma a forma de frases musicais por meio da sua codificação a partir dos legi-signos musicais e sua atualização na forma de réplicas, ela já assume a forma de uma frase, tal como na partitura. Nesse caso, a partitura pode revelar a ideia composicional que já tomou a forma de frase musical. Em ambos os casos, o efeito da partitura no que concerne o interpretante é apenas uma possibilidade. Ela apenas irá permitir a incorporação de um significado quando a partitura for um sinsigno indicial dicente. Na figura 1 podemos observar a música como quali-signo e como sin-signo nas suas formas de se relacionar com seu objeto e na forma como produz efeitos. Nela, podemos observar o compositor: Mozart, que possui as ideias composicionais que encerram os afetos conhecidos por ele, mas também a ideia composicional numa forma já elaborada, como um existente que corresponde ao que está escrito na partitura. As ideias composicionais são quali-signos icônicos remáticos relativos aos afetos conhecidos pelo compositor e a partitura, por sua vez, é um sin-signo que pode ser um ícone em relação às qualidades afetivas da música ou índice da ideia musical na forma que o compositor a conceber antes de escrevê-la de fato. Nesse último caso já se trata mais de uma “partitura mental”. Esses dois últimos tipos de sin-signo podem gerar um efeito emocional ou energético, dependendo da tricotomia ativada: a primeiridade ou a secundidade. 57 Figura 1: A relação entre a partitura, a ideia composicional e o afeto 58 A partitura musical não é considerada como música por que, em si, não é da mesma ordem que os processos físicos de vibração que produzem o som. Ela é apenas uma “aide-mémoire”. Nesse sentido, Celestine Deliège coloca que: “O desenvolvimento da história da música precisou da partitura porque a nossa cultura musical é essencialmente notacional” (Deliège, 1987, p.243). É certo que, enquanto um existente real, seja o processo acústico ou a partitura, é preciso que se lançe mão de legi-signos que são extraídos do universo da composição musical e das leis da física para que a ideia composicional possa ter uma existência real. Segundo Tarasti (1987), os legi-signos servem como modelo para criação do objeto artístico que, particularmente, é um sin-signo, e pelas suas qualidades aurais e concretas, é um quali-signo. 7.5 LEGI-SIGNOS MUSICAIS Uma única nota musical em meio ao fio melódico cantado é portadora de uma série de parâmetros. Tem uma altura, uma duração e uma intensidade. A nota também possui dinâmica, andamento e timbre. A atividade de variar a dinâmica, o andamento e o timbre é típica dos intérpretes que fazem novas versões de músicas já existentes. A escolha dos timbres também é fundamental na composição musical. É possível resgatar da teoria musical os aspectos que irão determinar a altura, o andamento e a intensidade sonora, reconhecendo-os como elementos necessários para a elaboração da ideia composicional concretizada na partitura: São os legi-signos musicais (Tarasti, 1987; Monelle, 1991; Martinez, 1997). Eles dividem-se em seis: 1) Argumento (ou Legi-signo Simbólico Argumentativo); 2) Símbolo Dicente; 3) Símbolo Remático; 4) Legi-signo indicial remático; 5) Legi-signo icônico. Tomemos como exemplo a fotografia 1, extraída da História da Música Ocidental, de Donald Grout e Claude Palisca (Grout & Palisca, 1994, p.410). Ela ilustra um excerto de partitura elaborada por Arcangelo Corelli, o adagio da Sonata Opus 5, nº 3. Segundo Grout e Palisca (1994), essa peça constitui “uma prefiguração das longas cadenzas dos concertos dos períodos clássico e romântico” (p.411). Ainda segundo os historiadores, John Ravenscroft publicou em Roma, no ano de 1695 uma série de doze trio sonatas, “num estilo praticamente impossível de distinguir do de Corelli” (p.411). Isso faz com que a Sonata de Corelli possa servir como legi-signo no auxílio de compositores posteriores. Esse tipo de influência da partitura sobre outras composições 59 faz com que, a partir do momento em que ela já é um sin-signo, possa funcionar como um legi-signo. Assim sendo, ela poderá servir como lei, devendo antes configurar-se como um existente singular. Segundo Kruse (2007), caso um ouvinte esteja inserido na terceiridade e possa lançar mão de interpretantes lógicos, ou seja, possua os meios lógicos para decifrar a música e o seu significado, ela poderá perceber a influência de uma Sonata de Corelli sobre uma de Ravenscroft. Para Martinez (2007), também é possível tratar a partitura como um legi-signo, mas apenas o ouvinte especializado poderá entrar em contato com esse signo. Fotografia 1: Página 410 da História da Música Ocidental de Donald Grout e Claude Palisca: No tópico 7.2.3. tratamos das possíveis denominanações para as relações entre o signo e o o interpretante. Tomemos o exemplo do argumento, que será sempre Legisigno simbólico argumentativo. A sua réplica é um sin-signo dicente (CP 2.263), que, conforme vimos na figura 1, é a forma lógica da partitura enquanto permite a incorporação de um significado, e não representa apenas as características do seu objeto 60 e possibilidades de significação42 (no seu caso enquanto sin-signo remático). Segundo Martinez (1997), os pensamentos de um conhecedor de música que acompanha a execução de um raga executado por um grande músico é um exemplo de argumento. Nesse sentido, esse pensamento se dá por meio da apreciação de legi-signos, já que estamos falando de um ouvinte especializado (lançando mãos de interpretantes lógicos) que está acompanhado de um intérprete cuja técnica na execução permite a identificação dos diversos elementos que viabilizam a construção do significado musical. O caráter argumentativo da música se torna real por meio da sua réplica, o sinsigno dicente, que contém os pontos de determinação da partitura, ou seja, o seu arranjo melódico único. Nesse caso, é a partitura daquela música que está sendo executada que deve ser acessada pelo ouvinte especializado. É por meio dessa réplica que o signo veicula informação, já que essa é característica do dici-signo (CP 2.309). É preciso também considerar que a natureza do signo dicente não permite distinguir se ele é verdadeiro ou falso, será apenas na sua ligação com o argumento que virá a conclusão sobre a veracidade da proposição musical. Nesse sentido, no caso de uma descrição séria do ouvinte especializado sobre o porquê daquela música se configurar de uma forma e não de outra deve ser ouvida reconhecendo o seu caráter argumentativo. Não é o caso de um discurso ad hominem, mas sim de uma argumentação com base no sentido veiculado pelo sin-signo indicial dicente e a comprovação de que aquela proposição é uma verdade. Mas o argumento não é o único caso de legi-signo musical. Consideremos também o Símbolo Dicente (ou Legi-signo simbólico dicente). Ele é um signo conectado com o seu objeto por meio de uma associação geral de ideias, mas, atua como um símbolo remático. Diferencia-se deste porque o seu interpretante representa o símbolo dicente, no que tange àquilo que ele significa, sendo afetado pelo seu objeto. Sendo assim, podemos dizer que ele envolve um Símbolo Remático para expressar a informação e um Legi-signo indicial remático para indicar o sujeito (lógico) da informação. A réplica do símbolo dicente é também um sin-signo dicente (como no caso do argumento), mas um tipo especial desse signo já que ele transmite uma informação sobre um fato atual, ou de uma lei instanciada. Nesse caso, o símbolo dicente possui essa característica de apenas indicar um fato, sem que se possa afirmar a verdade sobre o fato, já que não há terceiridade no aspecto relacional entre o signo e o 42 Esse aspecto é o que faz com Monelle (1991) defenda a ideia de que não existem dicentes musicais. Portanto, a partitura não poderia ser um sin-signo indicial dicente porque ela não veicula um existente, um fato. 61 interpretante (CP 2.262). Diferentemente do caso da escuta especializada que citamos para ilustrar um argumento, em que o ouvinte é capaz de afirmar sobre a relação entre os legi-signos musicais utilizados na peça executada e o processo acústico gerado pela sua execução, o símbolo dicente envolve uma afirmação sobre a qual não se pode afirmar a verdade, ainda que se dê como um fato. Ela é a premissa do Argumento (CP 2.2.53). Com relação à partitura, um intérprete pode fazer uma asserção sobre a lógica musical da composição, mas não é possível verificar a veracidade delas, já que a tendência para representar a verdade é defesa ao argumento. Outro tipo de Legi-signo é o Símbolo Remático (ou Legi-signo Simbólico Remático). Ele suscita uma imagem que age sobre o símbolo, que já está numa dada mente, para produzir um conceito geral. A imagem gerada pela réplica tende a produzir um conceito geral, e a réplica (um sin-signo indicial remático) é interpretada como um Signo de um Objeto que é uma instância daquele conceito. Nesse caso não temos os aspectos que permitem a identificação de um argumento (a verificação da veracidade daquele sentido) ou de um dicente (a verificação de algum sentido), mas apenas a suscitação de uma imagem sobre o símbolo. O símbolo remático é o predicado lógico. Na ausência de um fato, ficamos apenas com os exemplos tais como “é filha”, “é ardente”. Já que não se trata de uma proposição universal e apenas de nomes comuns, é possível agrupar trechos musicais que permitam a identificação desse nome comum. Martinez (1997) menciona exemplos de música indiana que imitam o roar de um leão como uma imagem musical. Vejamos ainda o caso do Legi-signo indicial dicente. Ela é a forma da partitura como uma lei, materialmente afetada pelo objeto que ela denota e que, ainda, veicula uma informação que, em virtude do seu caráter de secundidade, não permite a constação sobre a veracidade da proposição (mas não se trata somente de uma possibilidade de significação). É o caso de uma significação atualizada, mas que não possui caráter de lei com relação ao objeto, apenas de afetação material, ainda que envolva signos convencionais. É o caso, portanto, do trabalho composicional, capaz de veicular informação, que se atualizará na sua réplica, o sin-signo indicial dicente. Ele precisa daquilo que Monelle define como “Art Work”, ou seja, que haja a possibilidade interpretativa daquele signo de lei e ainda, que se possa denotar o sujeito da informação. Mas precisa do Legi-signo icônico (remático) para significar a informação. É essa articulação que Monelle (1991) nega. Isso porque a música nunca pode funcionar como dicente. Mas, como Martinez (1997) coloca, o reconhecimento de uma peça musical ao 62 escutá-la, já é um signo dicente. Retomemos então ao que Monelle define como “Art Work” para explicar o que é o legi-signo indicial remático e a sua réplica, uma partitura que, segundo ele, é um sinsigno indicial remático (Monelle, 1991). Segundo a nossa semiose do processo composicional (figura 1), essa definição da partitura já nos permite identificar a “representação da ideia composicional sob a forma de frases musicais elaboradas”, mas que gera um efeito emocional, uma possibilidade qualitativa de interpretação. É o caso de uma primeiridade, própria da naïvidade artística (Peirce in Monelle, 1991). Mas, nesse contexto, não é permitida a incorporação de significados. Por outro lado, é preferível reconhecer a instância do legi-signo indicial remático como uma partitura que já funciona como lei, que foi materialmente modificada pelo seu objeto (no próprio processo de sua criação) e que oferece possibilidades interpretativas, mas nunca uma proposição ou constatação. Sendo assim, ela é a regra que determina que a partitura da “Flauta Mágica” estará, no caso da necessidade de sua presença, de fato presente numa situação específica, como quando a uma orquestra precisa dela para auxiliar a execução da peça (Romanini, 2006). É a relação de lei entre a partitura e a sua concepção convecional. Como a sua réplica é o sin-signo indicial remático, podemos dizer que ela se relaciona ao conceito mais exato que Raymond Monelle tem sobre a partitura, que assume uma posição marcada pela virtualidade da obra de arte e, portanto, não poderia ser um dicente, o que impediria, inclusive, a argumentação peirceana no campo da musicologia. Mas, segundo Aksnes (2001), podemos falar de metonímias musicais. Mais ainda, quando observamos o elemento motivacional da significação musical, podemos observar não uma virtualidade, mas verdadeira atualização (Aksnes, 2001). Isso implica que o campo da musicologia não se restringe ao da formação de metáforas, o que seria o caso da visão sobre a experiencia estética marcada por símbolos icônicos43 (Dewey, 1934). Se considerarmos significados musicais apenas por meio de metáforas, ficamos impedidos de trabalhar com dicentes, como sustentado por Monelle. No entanto, não parece que o caso do símbolo indicial44 impede a existência de dicentes (Romanini, 2006). Isso implica que negar a possibilidade da obra de arte de se configurar como um dicente é também negar a possibilidade de criação de metonímias, o que é viabilizado pelo legi-signo metonímico dicente (Romanini, 2006). 43 44 Metáfora (Romanini, 2006). Metonímia (Romanini, 2006). 63 No entanto, é preciso considerar que o que Monelle chama de “Art Work” não se restringe ao conceito de Dewey, e se assemelha mais como o trabalho composicional contido na partitura, conforme a definição de Roman Ingarden (1966). Mas tomemos o caso então do conceito de Produto Artístico, em vez do conceito de “Art Work” para John Dewey e vejamos se há saída para consideramos a possibilidade de dicentes musicais. O Produto Artístico, na sua própria definição, é uma atualização da imaginação do artista e nesse sentido pode ser a partitura ou a execução de uma peça. Não seria ele, o Produto Artístico, que deve estar presente na atribuição de sentido musical com o auxílio dos interpretantes emocionais e lógicos? (Kruse, 2007). E o efeito desse Produto Artístico não seria exatamento o que Dewey denomina como “Art Work”?45 Ora, se por um lado o signo dicente é justamente o signo que veicula informação (CP 2.309), a sua ausência no processo de semiose, impediria a transmissão dela. Nesse caso, parece impossível a articulação com interpretantes lógicos que permitam a identificação de elementos com sentido numa determinada peça caso consideremos o “Art Work” apenas no seu caráter remático. Mas, permanece a situação: Um trabalho composicional sem incorporação de significados será certamente o legisigno indicial remático, mas se o caso for outro, então já se trata de um legi-signo indicial dicente. O último caso dos legi-signos é o do legi-signo icônico. Para Peirce, ele é uma lei-geral, à medida que ele requer que cada instância sua incorpore a qualidade específica que o confere a capacidade de suscitar na mente a ideia de um objeto com o qual possua relação de semelhança (CP 2.258). As qualidades musicais presentes numa partitura são legi-signos icônicos, conquanto se trate apenas das qualidades musicais ligadas aos respectivos legi-signos (por exemplo, a qualidade de uma nota de dois tempos, ou de um intervalo de quinta aumentada). Basta notar que são as qualidades dos parâmetros musicais que se assemelham aos da dinâmica dos afetos e que, enquanto elementos convencionais, se configuram como legi-signos. Para Peirce, são eles que vão significar a informação denotada pelo Legi-signo indicial remático, envolvidos na ação do legi-signo indicial dicente (CP 2.260). Consideradas essas noções sobre os legi-signos musicais, cabe identificar uma 45 As reflexões sobre a estética de John Dewey foram apresentes pelo Prof. Dr. Robert Innis, da University of Massachussets, quando da ocasião do congresso em homenagem ao centenário da morte de Charles Sander “Santiago” Peirce, em Lowell, MA, em um julho de 2014. 64 série de elementos usados na notação musical que irão nos auxiliar a identificar a dinâmica do afeto (objeto do estudo de caso). 7.5.1 Aspectos da Duração das Notas Musicais Ao observamos o aspecto da notação musical referente à duração da nota e as pausas, temos diversas notações. Ateremos aqui às notas de duração de quatro tempos, até a com duração de um dezesseis avos de tempo. A semibreve é a nota que indica a execução em quatro tempos. A mínima representa metade da semibreve, indicando dois tempos. A semínima indica a metade da mínima, exigindo a execução de um tempo inteiro. A colcheia indica a metade da duração da semínima, exigindo a execução de meio tempo. A semicolcheia indica a metade da colcheia, e indica a execução de um quarto de tempo. A fusa, por sua vez, representa 1/32 avos do tempo da semibreve, enquanto a semifusa a razão de 1/64 avos. Na tabela 1 podemos observar a semibreve na 1ª linha com representação da duração das notas. Abaixo dela podemos observar a mínima, e assim por diante. Utiliza-se um ponto à esquerda do símbolo para indicar que aquela nota deve ser acrescida à sua duração o equivalente a metade do seu tempo. 65 Tabela 1: A representação do tempo das notas musicais Nota Duração Semi-breve Quatro tempos Mínima Dois Tempos Semínima Um tempo Colcheia Meio tempo Semi-colcheia Um quarto de tempo Fusa Um oitavo de tempo Semi-fusa Um dezesseis-avos de tempo Símbolo 7.5.2 Elementos da Dinâmica do Andamento das Notas Musicais No que tange à dinâmica do andamento da execução de uma peça, existem termos italianos que indicam como se deve proceder. Os andamentos Prestissimo e Presto são os dois mais acelerados. De fato, o termo prestissimo sugere que a peça seja tocada o mais rápido possível (Brown, 1987). As nomenclaturas Vivace, Allegro, Allegretto e Moderato, dizem respeito a velocidades que vão do vivaz (Vivace) a uma velocidade moderada (Moderato). Os termos Andantino, Andante e Adagio referem-se a formas mais lentas de executar a peça do que o Moderato. Os termos Larghetto, Largo, Lento e Grave são as formas mais lentas de executar a peça (Brown, 1987). Ainda a respeito da dinâmica do andamento, pode-se considerar a possibilidade de inserir uma variação na velocidade de tocar a peça entre um de seus trechos e outro. Para isso, surge o termo rallentando, que sugere a diminuição da velocidade de forma gradual, e o termo accelerando, que sugere o aumento da velocidade, de forma também gradual. O termo Meno mosso pede que a peça seja executada de forma mais lenta abruptamente. O termo Piú Mosso pede que a peça seja executada mais rapidamente, de forma abrupta. Os termos Ad libitum ou A piacere sugerem que o músico execute a peça como desejar (Brown, 1987). 66 7.5.3 Aspectos Concernentes a Altura das Notas Musicais A organização da notação musical para altura das notas, na forma como concebemos hoje, teve como um dos maiores responsáveis o nome de Guido D’Arezzo. De forma a orientar a formação na técnica de leitura à primeira vista, D’Arezzo propôs o método da solmização que é usado até hoje no ensino da música. A solmização constitia numa método que ajudava na memorização da sequência das notas com base num hino sáfico anterior ao século IX. Na sua proposta, que segue da nota Ut (ou Dó) até a nota Lá, existe um meio tom entre a terceira e quarta notas (Mi e Fá, respectivamente). Entre todas as outras o intervalo é de um tom (Grout & Palisca, 1994). Ressalta-se que, hoje em dia, adiciona-se após a nota Lá a nota Ti (Si, em línguas latinas), mas que exige a presença de mais um meio-tom, entre ela e o Dó (ou Ut). Até hoje alguns músicos franceses preferem o uso do Ut em vez do Dó (Grout & Palisca, 1994). Na figura 2, podemos observar uma ilustração do hino sáfico citado, com realce na cor vermelha, para as sílabas que indicam as notas musicais. É possível notar que a escrita da altura das notas não é feita como hoje em dia, a começar pelo uso de quatro linhas, em vez da cinco, usadas no pentagrama (Vide Anexo A). Figura 2: Hino sáfico homenageando São João Fonte: https://michelinewalker.files.wordpress.com/2011/11/809585948.jpg 67 7.5.4 Elementos para a Indicação da Intensidade das Notas Musicais Quanto aos aspetos que marcam a intensidade do som podemos citar o piano, (p), o Pianíssimo (pp) e o Pianíssimo (ppp), que determinam a execução de um som pouco intenso, fraco. O termo Mezzopiano (mp) indica a execução do som de forma moderadamente fraca. Já o termo Mezzoforte (mf) exige a execução do som de forma moderamente forte. Os termos forte (f), fortíssimo (ff) e fortissíssimo (fff), indicam, de forma crescente a intensidade sonora a ser executada pelo intérprete (Brown, 1987). 7.5.5 As Escalas e os Intervalos Musicais A unidade da harmonia é o intervalo (Piston, 1941). Schenker (1954) resgata a postura dos antigos mestres da composição musical que utilizavam a notação do baixo contínuo, ou seja, de sinais numéricos sobre o pentagrama para comunicar ao cantor quais intervalos eram desejáveis naquele trecho. Havia muita preocupação com o uso de intervalos desejáveis, tais como a segunda maior, menor ou aumentada; a terceira maior, menor ou diminuta; a quarta perfeita, diminuta ou aumentada; a quinta perfeita, diminuta ou aumentada, a sexta maior, menor diminuta ou aumentada; a sétima maior, menor ou diminuta, entre outros. Enquanto Schenker (1954) coloca que o conceito de intervalo é inseperável da ideia de harmonizabilidade, o que tem como consequência o fato de que o número de intervalos possíveis não é infinito, mas fixo. Mas hoje já não é preciso usar figuras para delinear os intervalos musicais (Piston, 1941). Piston (1941) propõe que o conceito de intervalo pode ser melhor definido pela ideia de distância entre duas notas. Quando duas ou mais notas são ouvidas simultaneamente, trata-se de um intervalo harmônico. Quando os sons não são ouvidos simultaneamente, trata-se de intervalo melódico. Mas a ideia de distância entre as notas permanece a mesma. Dessa maneira, os intervalos que surgem da teoria da harmonia, podem ser aplicados tanto sincrônica quanto diacronicamente. Independente do intervalo ser de um tipo ou outro, podemos classificá-los da seguinta maneira: 1 – Uníssono; 2 – Segunda; 3 – Terceira; 4 – Quarta; 5 – Quinta; 6 – Sexta; 7 – Sétima; 8 – Oitava; 9 – Nona. Quando o intervalo for maior do que o de oitava, trata-se de um intervalo composto. 68 Os intervalos podem ser aumentados, justos, maiores, menores ou diminutos. Outra categorização de intervalos é que faz a diferenciação entre consonantes e dissonantes. Os primeiros são os intervalos perfeitos, as terças e sextas maiores e menores. Os intervalos dissonantes são os intervalos aumentados ou diminutos e as segundas, sétimas e nonas maiores ou menores (Piston, 1941). O conceito de intervalo é fundamental para compreender as escalas musicais. Os tons que formam os intervalos são extraídos das escalas. Elas se organizam a partir da distribuição de tons inteiros ou semi-tons. Vejamos como se comportam as escalas do ponto de vista da sua nota fundamental e como os intervalos da escala irão determinar a presença de um ou mais acidentes musicais (os sustenidos e os bemóis). Na figura 3 podemos observar três círculos concêntricos. No círculo de menor raio temos as escalar menores. Por exemplo, quando observamos a escala sem nenhum acidente musical46 temos a escala de lá menor. A circunferência de segundo maior raio apresenta as escalas maiores. Dessa maneira, quando observamos a escala sem nenhum acidente musical, temos uma escala de Dó Maior, conhecida pela sequência das seguintes notas: Dó-Ré-Mi-Fá-Sol-Lá-Si. As escalas com sustenidos são representadas pelo símbolo “#” disposto no pentragram e o símbolo “b” representa a bemolização da nota que está presente na escala. 46 Que pode ser o sustenido, o bemol ou o bequadro. 69 Figura 3: Escalas e acidentes musicais Para além das relações matemáticas utilizadas na construção das escalas, é possível mencionar a obra de Schubart (1806), o seu “Ideen zu einer Ästhetik der Tonkunst” em que ele propõe uma série de significados musicais para cada uma das escalas apresentadas na figura 3. Por exemplo, a escala musical utilizada para a partitura do solo vocal da Ária 14 da “Flauta Mágica”, a de Fá Maior (Vide Anexo A), significa melancolia feminina, ou então um humor persistente. Ela pode ser observada na figura 3, contendo apenas uma nota bemolizada (o Si). Seu equivalente na escala menor é a de Ré Menor. 8 RITMO, MELODIA E HARMONIA DO PONTO DE VISTA DAS TRICOTOMIAS PEIRCEANAS Santaella (2001) propõe que os elementos de ritmo, melodia e harmonia sejam analisados a partir da semiótica peirceana em relação à primeiridade, secundidade e terceiridade, respectivamente. Nesse tópico propomos a análise de cada um desses parâmetros e, no TOMO IV dessa dissertação, realizamos uma investigação por meio desse recurso didático, verificando se ele nos auxilia ou não na compreensão da dinâmica do afeto. Dessa maneira, no TOMO IV, os elementos musicais e as tricotomias 70 serão tomadas como sinônimos, substituindo-se ao longo do texto. Ao final, no subtópico 13 “CONSIDERAÇÕES FINAIS”, do TOMO IV, essa relação sinomínica será avaliada no sentido de ser ela válida como metodologia musicológica. 8.1 RITMO E PRIMEIRIDADE O condutor e pianista Hans von Bülow deixou registrada a sua ideia de que no princípio era o ritmo (Walker, 2010). Para compreender o ritmo é preciso situa-lo junto aos conceitos de tempo e metro: “O tempo é uma palavra italiana que se refere à velocidade. […] O metro se refere aos diferentes agrupamentos do pulso” (Santaella, 2001, p. 169). No entanto, pode existir música sem metro. O cantochão medieval é um exemplo típico de música sem metro. Outra situação é o uso irregular do metro como no caso do segundo movimento da “Sexta Sinfonia” do compositor russo Piotr Ilych Tchaykowsky (Santaella, 2001). As noções de relaxamento e tensão corporal também se associam ao ritmo (Wundt, 1897; Langer, 1957; Santaella, 2001). Wilson Coker expõe em sua obra Music and Meaning (1972) que o ritmo pode ser percebido em três momentos: acumulação47, descarga48 e relaxamento49. Este aspecto, por sua vez, é uma preparação para que aconteça uma nova acumulação. Similarmente, a pulsão50, consiste em um processo dinâmico que exerce uma pressão51 sobre o corpo, acumulando uma tensão, que poderá ser aliviada por meio de um objeto52, que auxiliará a realização da meta da pulsão, que é sempre a satisfação (Freud, 1915). Santaella (2001) constata que “padrões rítmicos regulares criam expectativas cujo preenchimento funciona como uma fonte de prazer para o ouvinte, gerando um estado de bem-estar físico inerente ao movimento regular do corpo” (Santaella, 2001, p.170). Essa constatação nos permite fazer uma articulação com a noção da protensão de Husserl (1928) como a expectativa de um acontecimento que se dará no futuro e sua influência sobre a experiência do presente e os estudos que discutiram a questão da 47 Arsis. Thesis. 49 Stasis. 50 Trieb. 51 Drang, como em Sturm und Drang. 52 Em um sentido estritamente freudiano, ainda que o conceito “objeto” nos remeta aos objetos da semiótica peirceana. 48 71 música e o prazer. O ritmo pode mover algo no sujeito e provocar emoções, que podem ser prazerosas ou desprazerosas (Wundt, 1897). Para Otto Rank e Hans Sachs, o aspecto repetitivo do ritmo também está associado com questões relacionadas ao prazer: “A ação de uma pressão, que exige uma preparação e que de repente se torna supérflua, é transformada em prazer pelo reconhecimento de que um padrão está se repetindo 53” (Rank & Sachs, 1915, p.101). O ritmo também pode ser categorizado nas tricotomias peirceanas (Santaella, 2001). Em um nível mais puro e primeiro do próprio ritmo, encontramos o proto-ritmo, que se revela como algo aleatório. Não há uma ordem que se repete de forma constante, mas sim a impressão de uma sequência ritmíca que aparece e some. Em um nível segundo, notamos que há repetição e um ritmo cíclico que, por sua vez, já pode gerar sensações prazerosas. Determinado e percebido, ele serve ao homem na realização de rituais de evocação da chuva e para clamar aos deuses pela colheita, o que sugere que o ritmo em secundidade está associadao não apenas ao prazer, mas às experiências míticas de religiosidade. Os ritmos da vida em geral pertencem a esse domínio, como o ato sexual e os instrumentos musicais que acompanham um(a) solista (Santaella, 2001). Para Ferenczi (1962), o ato sexual é como uma profunda regressão na qual se busca restaurar a harmonia do estágio pré-natal em que se faz uma união total do bebê com a mãe. Sendo assim, o ritmo em secundidade surge também como recurso para resgate da sensação ligada à vivência intra-uterina da pessoa. Em um nível terceiro já se tem o ritmo na forma de lei e na convencionalidade que lhe é própria, como apontado no campo da ritmologia, em que se observam as isometrias, parametrias e alometrias (Herbert, 2012). Na primeira, todas as unidades de tempo num determinado intervalo de tempo possuem a mesma duração. Na segunda, algumas unidades possuem a mesma duração e outras, diferentes. Nas alometrias, todas as unidades possuem duração de tempo diferente (Herbert, 2012). Por meio do ritmo é possível pensar o tempo, enquanto que com a linguagem verbal pensamos sobre o tempo, isso porque a linguagem humana está aprisionada no tempo. O debate verbalizado sobre o tempo se aproxima dele sem nunca atingi-lo, enquanto que a percepção do ritmo é um contato mais íntimo e natural possível com ele (Santaella, 2001). Esse argumento reforça a superioridade da proximidade lógica da música em relação à vivência afetiva, do ponto de vista do ritmo, se comparamos com a 53 the exertion of force, for which one must be prepared and which suddenly becomes superfluous, is transformed into pleasure by the repeated recognition of the same thing. 72 argumentação verbal, já que o ritmo da música está instrinsicamente ligada à ideia de tempo vivido. Vejamos como esse argumento se consolida na figura 4. Nela, podemos observar que o ritmo está inscrito nos ciclos temporais. O argumento da iconicidade da música em relação às emoções e afetos (que também se dão no tempo) sugere que a música pode inclusive substituir as emoções como forma de representação de uma determinada emoção (Kruse, 2007). Mas esse é o caso do ícone puro, que apesar de existir conceitualmente, mas que geralmente não é demonstrado com exemplos (Kruse, 2007). Para Peirce, o “ícone puro não possui traços que permitam a sua distinção com relação ao seu objeto” (CP 5.74). A figura 4 mostra como o tempo, propriedade do ritmo, sugere que este possui como atributo o eixo circular que representa o tempo, o que permite que os afetos também sejam vividos no tempo. O verbo, excluído do sistema temporal, tenta tocá-lo, sem nunca atingi-lo. Figura 4: Ritmo e Verbo em relação ao Ciclo Temporal 73 8.2 MELODIA E SECUNDIDADE Se o ritmo é primeiro, a melodia é segunda e diacrônica e tem o ritmo, em alguma das suas modalides, como condição sine qua non para existência. A melodia revela a sucessão de uma sequência de alturas determinadas pelo trabalho musical contido na partitura. Além do ritmo, a melodia possui a propriedade da dimensão que envolve a extensão das alturas, que se define pela diferença entre a nota mais aguda e a mais grave. Outra propriedade da dimensão melódica é o comprimento, que pode ser longo ou curto. No campo da melodia fala-se de motivos, que são formados de segmentos curtos enquanto que pode haver também melodias longas (Santaella, 2001). O lugar relativo (mais agudo ou mais grave) é uma propriedade de extensão. A variação das alturas, por sua vez, é uma propriedade de direção. Ela leva uma música a ser estática se ela ocupa apenas uma mesma parcela do espaço disponível do pentagrama. O ponto mais agudo da extensão é chamado de clímax. Ao notarmos como ocorre a variação intervalar entre as notas estamos falando de propriedade de progressão, que pode ser conjunta – quando acontece passo a passo, ou disjunta – quando acontece abruptamente (Santaella, 2001). A melodia também se discute em três níveis semióticos. Vista como primeira, ela revela sempre uma sucessão aleatória de eventos sonoros. Apesar da ideia de improvisação sugerir uma melodia de primeiridade, essa ideia não se sustenta em virtude da carga de aspectos convencionais presentes num improviso musical, por exemplo, quando o solo ou improviso obedece à tonalidade da peça. Já o caso da peça 4’33’’ de John Cage se encontra no âmbito da primeiridade. Podemos entender essa instância da seguinte maneira: não há uma intencionalidade que defina uma regra e um trabalho musical específico determinado por uma partitura. É quando uma criança toca, livremente, as teclas do piano ou, no caso de 4’33’’, o movimento das pessoas da platéia circulando pelo anfiteatro ou o som de suas conversas. (Santaella, 2001). A música como secundidade se aproxima da noção da execução musical ingardeniana, uma vez que se trata da música enquanto uma atualização da sequência melódica (Ingarden, 1966). Assim, o gesto do condutor coerentemente articulado deve ser fiel ao trabalho musical contido na partitura que expressa ideias composicionais do compositor que, por sua vez, será escutado quando da execução de sua peça por parte de uma orquestra. A melodia em terceiridade exige a presença da escala, uma vez que um compositor não deve fugir às possibilidades que ela lhe abre. Nesse sentido, a 74 terceiridade melódica sugere uma complementação teórica ao problema das referências e a psicose uma vez que a escala se estabele como uma lei que o compositor deve respeitar como uma verdadeira limitação e que, por outro lado, lhe possibilita uma série de liberdades dentro dela. É dessa maneira que opera a castração advinda da dissolução do Complexo de Édipo: permitindo ao homem que incorpore leis, que ressignifique as pulsões agressivas presentes desde os tempos primitivos (Freud, 1918). A saída desse espaço de lei e convenção impossibilita o estabelecimento de diálogo coerente. O aspecto da terceiridade se torna mais evidente quando consideramos o “zeitgeist” relativo ao uso de determinadas escalas. Ainda assim, qualquer que seja a escala, tratase de um aspecto da terceiridade melódica (Santaella, 2001). 8.3 HARMONIA E TERCEIRIDADE Finalmente, podemos falar da harmonia enquanto aspecto de terceiridade da música (Santaella, 2001). Ela revela a profundidade e funciona como a perspectiva no âmbito da pintura. Trata-se da sincronia dos elementos musicais presentes na melodia. As leis da harmonia permitem que um grupo de notas de diferentes alturas soe conjuntamente: A isso se chamar acorde. Entre as propriedades da harmonia temos a consonância e a dissonância (Santaella, 2001). A consonância revela uma sensação de relaxamento e repouso enquanto a dissonância provoca tensão. A história da música ocidental apresenta uma progressiva aceitação do uso de dissonâncias no trabalho de composição musical. As harmonias podem também ser simples e complexas e também a história da música ocidental caminha numa progressiva abertura a uma dessas características, que é a complexa, que suporta uma diversidade maior de notas (Schönberg, 1911). O ponto de partida de uma música é a tonalidade, que gira em torno da tônica, que é o primeito tom de um acorde. Esse é o ponto de vista dos compositores da corrente tonal (Dahlhaus, 1989). Por outro lado, existem diversas experiências com a tonalidade no meio musical, entre elas o obscurecimento de um tom central projetado por Richard Wagner, o dodecafonismo nos exemplos de Arnold Schönberg, Olivier Messiaen e Cláudio Santoro e a música politonal, utilizada por Igor Stravinsky e Darius Milhaud, que lançaram mão da combinação simultânea de tons (Santaella, 2001). Para a harmonia também podemos fazer uma organização conceitual no campo das tricotomias peirceanas. Em um nível primeiro, necessariamente trata-se de ordem 75 mais aleatória como os ruídos produzidos aleatoriamente pela natureza. Por exemplo, podemos citar as gotas da chuva caindo no telhado junto ao barulho que as árvores fazem enquanto o vento sopra forte (Santaella, 2001). Em um nível segundo temos o estabelecimento da harmonia da natureza estabelecida pelas próprias leis da física. Não há um construto organizado, no sentido de uma escala musical convencional ou de intervalos de oitava, mas apenas a lógica natural da harmonia. Nesse contexto, é preciso distinguir entre leis físicas que determinam diretamente o fenomonêno acústico e as convenções estabelecidas sobre essas leis (Santaella, 2001). Para Santaella (2001), o compositor empresta da natureza os recursos sonoros consagrados ao nível da terceiridade nos acordes da harmonia musical. No entanto, se tomamos as convenções humanas a partir de arranjos acústicos, já alcançamos a ordem da terceiridade, que é o âmbito das leis criadas pelo homem para que ele possa reger o mundo. É importante notar que, enquanto terceira, a música não exclui o seu aspecto segundo ou primeiro, mas coexiste em harmonia com eles. 76 TOMO II – ANÁLISE DE UM CASO 9 ESTUDO DE CASO SOBRE “A FLAUTA MÁGICA” 9.1 WOLFGANG AMADEUS MOZART E EMANUEL SCHIKANEDER: A AUTORIA DA PEÇA A FLAUTA MÁGICA É evidente a influência do Singspiel e da Sturm und Drang no trabalho de confecção do enredo da “Flauta Mágica” (Guimarães, 1991), além de elementos oriundos da mitologia grega, egípcia e persa (Van Den Berk, 2004). O Singspiel foi criado por Johan Adam Hiller. Esse método de composição substituiu a expressão do Barroco inserindo um tom que imita a ingenuidade, típico das histórias para crianças, recheadas de fantasia (Apel, 2000). O Sturm und Drang é o movimento filosóficoliterário dos grandes românticos alemãos, entre eles Goethe e Schiller, que muito influenciou, além da “Flauta”, a obra de Sigmund Freud. O trabalho autoral de Mozart recebe ainda a influência da ópera seria e da ópera buffa (Žižek & Dolar, 2002). Entre os responsáveis pela criação da peça está Emanuel Schikaneder, nascido em Straubing, na Alemanha. No entanto, ele ficou conhecido em Viena, na Áustria, especialmente entre os apreciadores do teatro. Foi um dramatista, cantor, compositor, dançarino e ator. Após dirigir uma série de companhias ele se estabeleceu no FeihausTheater auf der Wieden, em Viena, lugar de estréia da peça “A Flauta Mágica”, no dia 30 de setembro de 1791. Whitehead (1978) destaca que a autoria do libretto pode ter sido dividida por Schikaneder com outros personagens eruditos da cena vienense, entre eles o próprio Mozart. O libretto foi inspirado em duas fontes: um conto de fadas oriental intitulado “Lulu oder Die Zauberflöte” e um “romance de educação”, conhecido como “Sethos”, cujo conteúdo remete aos Mistérios do Antigo Egito (Guimarães, 1991). Goethe foi um grande apreciador dos elementos teatrais de “A Flauta Mágica”, inclusive ele comparou-a com a segunda parte do seu “Fausto” como uma peça cujo significado superior não escaparia aos iniciados, uma vez que possui inspiração direta na Revolução Francesa e na ideia de uma fraternidade que cultiva o ideal ético do enobrecimento humano através de uma aproximação com as luzes da racionalidade (Grout & Williams, 2003). Esse amor romântico que inspira a composição da peça “A Flauta Mágica” é como aquele que também fora representado na personagem Margarida, do Fausto de 77 Goethe, a qual Eça de Queirós descreve como: [...]o símbolo da alma alemã, simples, casta, sofredora, daquela alma alemã que, como na Melancolia de Alberto Dürer, quando a matéria, a tirania, a desesperança a oprimem, só sabe, resignadamente, dobrar as suas asas; aquela alma alemã que exala toda a sua imensa dor em frescas cantigas religiosamente humanas, que tem todas as simplicidades, todas as inteligências, todos os deveres, que quando olha para a terra é para amar, quando olha para o céu é para orar, quando olha para si é para morrer (Queirós, 1951, p.209). Wolfgang Amadeus Mozart, compositor da partitura musical da peça, é o filho pródigo da Áustria. Ele fez grande fama na capital, Viena. Mozart será para sempre lembrado pela magnitude e pela excelência estética de suas composições musicais (Einstein, 1945). Ele está no rol dos artistas que começaram a realizar suas obras muito cedo e que morreram jovens. Entre eles estão Chopin, Rimbaud, Raphael, Purcell e Watteau - todos morreram com idade entre 35 e 39 anos (Anzieu, 1986). Michael Balint em “The Basic Fault” (1979) considera Mozart como um trabalhador ágil. Um aspecto que para ele servia como força motriz para a velocidade com que trabalhava era a inveja: “Sinto esse indizível desejo de compor outra ópera... Invejo todo aquele que esteja compondo uma” (Riding & Dunton-Downer, 2010, p. 102). 9.2 A FLAUTA MÁGICA E O CÍRCULO DE OURO Após a estreia da “Flauta Mágica” em Viena, Praga e Berlin também receberam a peça com aplausos. Todo homem respeitável na Viena da época conhecia a afamada peça, entre eles Sigmund Freud (Anzieu, 1986). A “Flauta” exalta os ideais do homem como um ser moral e da vontade humana voltada para a realização do trabalho para o benefício da humanidade (Einstein, 1945). A peça pode ser considerada um dos pilares da civlização ocidental uma vez que reúne questões acerca da paixão humana, da história da razão no ocidente, da formação de sociedades historicamente relevantes, de aspectos míticos, de problemas morais, além de oferecer subsídios para a investigação de cunho psicanalítico (Whitehead, 1978). A peça trata do processo de amadurecimento do homem que terá de 78 se desligar da ligação infantil com os laços matrimoniais para aliar-se a alguém por meio do matrimônio. O rito iniciático pelo qual o casal deve passar é o de atravessar o mundo dos mortos. Essa passagem tem a função de marcar a entrada no mundo onde o compromisso com a alteridade advém da obediência ao sistema normativo vigente. Outros exemplos literários dessa passagem podem ser encontrados na “Comedia” de Dante Alighieri, na “Eneida” de Virgílio, no “Orfeu” de Gluck ou o de Monteverdi e em “Sethos” de Terrasson (1732). O caso da “Flauta” é uma incorporação clássica do mito órfico. No caso, a flauta substitui a lira de Orfeu como instrumento para operacionalizar o resgate da amada. Tanto Orfeu como Pamino devem passar por uma série de provações, dotados da proteção da música, para que possam reaver as suas amadas (Whitehead, 1978). O poder da lira e da flauta tem a finalidade de auxiliar os amantes (Orfeu e Pamino) nas tarefas mais árduas, servindo aos heróis como talismãs para a realização dos seguintes dizeres: “Se eu não puder dobrar a vontade dos céus, moverei o inferno54” (Žižek & Dolar, 2002). É possível notar uma inversão do papel da Rainha da Noite e de Sarastro entre os dois atos da ópera. No Ato I, a primeira se revela como alguém que acredita na pureza e nobreza do amor e o segundo é retratado como um tirano obcecado pelo poder. No Ato II, a verdadeira face de ambos é revelada. A Rainha da Noite, personagem que ilustra a vingança, se rebela contra a fraternidade de Sarastro o que se alega ser uma alusão à perseguição sofrida pela Maçonaria, no ano de 1784, pela Rainha Maria Teresa da Áustria (Einstein, 1945; Everett, 1991). Fotografia 2: Representação de um Círculo de Ouro fotograda no The Metropolitan Museum, no dia 12 de julho de 2014 54 Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo. 79 Na sua ira, ela nos deixa conhecer o que acontece em relação ao sentimento de perda do objeto desejado – O Círculo de Ouro. A simbologia desse precioso objeto está relacionada com o círculo astronômico em ouro maciço, que, de acordo com Diodoro de Sicília55, foi colocado na tumba de Ramsés II (Ozymandias) (Terrason, 1732). HansGeorg Gadamer (1994) coloca que a referência do círculo astronômico de Ozymandias, contida na vida de Sethos de Jean Terrasson (1732), é inconteste referência para a criação do enredo da flauta mágica. Outra hipótese acerca da origem do enredo da “Flauta” é encontrada em Heródoto56: Rhampsinitus desceu às regiões infernais e jogou dados com Ceres57, recebendo o Ramo de Ouro (dádiva que permite reencontrar os mortos) após um balanço positivo de vitórias e derrotas. Essa situação se assemelha ao jogo de dados de Thoth com a Lua e a sua vitória a cada 72ª parte do dia, da qual ele fez os cinco dias chamados de Epagomenae, com os quais ele somou aos 360, totalizando assim os atuais 365. Esse calendário foi legalmente autorizado por Ozymandias e representado em seu magnífico Círculo de Ouro (Hales; 1812; Mayo, 1819; Galloway, 1869). Narrien (1833) coloca que a datação que pode ser encontrada no Círculo de Ouro marca o ano de 716 a.C. Essa data é encontrada partir de cálculos astronômicos: a distância de duas estrelas entre Arcturus, Antares, Fomalhaut e a beta de Pegasus e a distância delas para o centro, encontrando o pólo entre a beta de Ursa Menor e a chi de Draconis. Apesar de não haver relação direta com a Roma Mitológica, esse ano marca a abdução misteriosa de Rômulo, primeiro Rei de Roma, na passagem que o transforma em deus, Quirino58 (Engels, 2007). Após o reinado de Rômulo, Numa Pompílio assume. Entre as realizações do novo monarca está a instituição do novo calendário. O calendário de Rômulo possuía dez meses de 304 dias. Numa acrescente 51 dias e os meses de Janeiro e Fevereiro. Sendo assim, ainda faltavam 11 dias para fazer o ano solar59. Para que o calendário passe a ser solar de fato, Numa inclui um 13º mês, o 55 Historiador grego que viveu no século I a.C. Historiador grego do século V a.C. 57 Ceres é a deusa equivalente à deusa grega Demeter na mitologia romana. Van der Berk (2004) assinala que ela pode ser compara à Rainha da Noite já que ambas tiveram suas filhas abduzidas (Perséfone no caso da primeira, e Pamina, no caso da segunda). 58 A apotoese de Rômulo. A morte de Rômulo o faz com que ele seja visto não apenas como um homem, mas como um deus. Na última forma, ele é conhecido como Quirino. Em “How Jesus Became God”, Bart Ehrman conta como transcorreu a abdução de Rômulo, ao fazer revista às tropas no Campo de Marte. De repente, uma tempestade enviada por Marte faz com que Rômulo desapareça (Ehrman, 2014). 59 A relação entre o calendário solar de Numa Pompílio e o culto monoteísta ao deus-sol no Egito Antigo é apenas matéria de especulação do autor dessa dissertação. Não há referência que mostre a relação da 56 80 Mercerônio60, com 22 dias. De quatro em quatro anos, o Mercedônio fica com 23 dias (Barradas, 1758). Outra referência nos alega que Thoth foi o descobridor dos 365 dias que completam o ano solar e que na tumba de Ozymandias, sétimo rei61 do Egito a partir de Akhenaton, foi preservado o Círculo de Ouro, dividido em 365 porções, correspondendo aos dias do ano (Rowbotham & Rutter, 1829). O Círculo de Ouro indica que o seu portador é o sucessor na linha de grãosmestres que veneram Osíris, deus-sol e maior deidade do Egito Antigo. Enquanto portador original do Círculo de Ouro, o pai de Pamina é a representação do Osíris mítico. Sarastro, seu sucessor, vive e ensina a viver de acordo com os princípios propostos por Osíris (Grant, 2012). Na abertura do Ato II, o grão-mestre, herdeiro do círculo, anuncia os dizeres que confirmam a sua identidade: "Ó servos dos grandes deuses Osíris e Ísis, que fostes iniciados no Templo da Sabedoria!62" (Guimarães, 1991, p. 80). O Círculo de Ouro é símbolo de disputa no enredo da “Flauta Mágica”. Com a morte do marido da Rainha da Noite, toda a herança é deixada para ela a não ser o Círculo de Ouro, deixado para Sarastro. Como consequência da perda da posse sobre o Círculo de Ouro, irrompe na Rainha o ódio por quem o possui. O desdobramento é um destino movido pela vingança (Whitehead, 1979). A Rainha da Noite proclama a morte a quem detém o Círculo e ordena à sua filha que mate Sarastro e que lhe traga o seu objeto de desejo, sob a pena do oblívio. A Rainha invejosa deseja um objeto que lhe falta, e se a filha falhar em consegui-lo, ela será desligada dos laços familiares. Temos nessa questão a efetivação da lógica entre autorizar-se a vingar-se a partir de um afeto doloroso sentido pela Rainha. A ferida narcísica que se revela nela evidencia o caráter de instrusão do outro masculino que gera óbice à realização de ter posse do objeto de desejo dela – o Círculo de Ouro. Mais ainda, a sua posição em relação à ferida é a de combate, e não a de fuga. A Rainha poderia, do ponto de vista de sua escolha, ter vivido no esquecimento do objeto e na aceitação do não pertencimento à sagrada ordem de Sarastro. No entanto, ela decide destruir a ordem sagrada por não ser autorizada a participar da fraternidade e a partilhar do Círculo de Ouro (Kohut, 1972). A trama assume um novo destino a partir do datação do Círculo de Ouro e a Apoteose do Primeiro Rei de Roma, que antecedeu ao reinado romano em que ocorreu a mudança para o calendário solar. 60 Mercidonii Dies: O mês para o pagamento dos salários (Latina Merces). 61 Faraó. 62 Ihr, in dem Wisheitstempel eingeweihten Diener der groβen Götter Osiris Und Isis! 81 momento que a Rainha não consegue renunciar à ferida de forma feliz. Nessa situação, temos o Ideal do Eu colocado numa posição difícil pela via do interdito que vem de Sarastro aliado ao não encontro com uma disposição mais humilde da Rainha, que não irá abrir mão da sua vontade. Assim, a filha da Rainha, cujo destino é se casar com o príncipe Tamino, recebe a ordem de assassinar Sarastro e de roubar o Círculo de Ouro, o que são evidências do enfrentamento ao poder moral e quem representa ela, que a Rainha deseja destruir (Castarède, 2002). 10 A VINGANÇA E O IDEAL DO EU NO CONTEXTO DA CLÍNICA E O CASO DA RAINHA DA NOITE A vingança é um complexo estado emocional que advém de uma dor e uma raiva que, por sua vez, é consequência de alguma perda. Nesse sentido, a vingança se perfaz no presente do indicativo, pois é somente nesse momento que a pessoa pode sentir no seu corpo vivido a experiência emocional de vingança. Enquanto mais próximo do que é sentido em vez do que é percebido, o sentir ligado à vingança é de ordem pathica e, portanto, de grande interesse para o pensamento clínico (Weizsäcker, 1958; Tatossian, 1979). Socarides (1977) observou algumas características de pessoas que querem se vingar a partir de observações clínicas. Elas desejam se afastar de ameaças de castração ou tomar uma ação violenta contra quem promoveu a castração sobre elas. No contexto de produção artística, “A Guerra de Tróia” (narrada na Eneida de Virgílio), “O Conde de Monte Cristo” (Alexandre Dumas) e a “Rainha da Noite” (Mozart e Schikaneder) são exemplos de narrativas com a presença de personagens que sofrem uma ação castradora e que tem a vingança como forma reação (Socarides, 1977). O objetivo do vingador nem sempre é somente o de punir quem lhe provocou alguma dor. Por vezes, existe a vontade de gerar no outro que opera a ameaça da castração (ou a castração de fato) a admissão: “Me desculpe por ter feito isso com você; você é superior, mais poderoso e eu devo me curvar ao seu julgamento e decisão 63” (Socarides, 1977, p. 372). A tristeza e a depressão são as respostas mais comuns ao sofrimento ligado a uma perda – perda essa ocorrida em virtude da castração. Nesse caso, a agressão pode surgir como uma ação do indivíduo em resposta às desventuras da 63 I'm sorry I did it to you; you are superior, more powerful, and I bow to your judgment and decision. 82 vida, no entanto não é sempre que a depressão devém para atos vingativos (Socarides, 1977). Entre outras características da pessoa vingativa podemos citar, entre outras, a presença do sentimento de inveja, a ausência da vontade de perdoar e de ser compassivo, a implacabilidade, a inflexibilidade, o ódio, o desejo de destruir o objeto perdido e de submeter a pessoa que ameaçou ou feriu ao seu subjugo. A pessoa vingativa vive para a vingança: ela é o seu único propósito. Passionalmente, quem deseja se vingar realiza ações punitivas ou retaliatórias desejando ficar quite com alguma situação que lhe foi desagradável. Ela também não mostra preocupações com as consequências sociais e morais de seus atos (Socarides, 1977). Freud, em “Das Ich und das Es” (1923), forneceu uma pista para o desvendar do mecanismo psíquico que opera na vingança (Socarides, 1977). Freud (1923) colocou que, nas neuroses obsessivas, o que garante a segurança do eu é o fato de que o objeto de amor está retido por meio de uma regressão para a organização pré-genital64. A neurose obsessiva envolve a retenção do objeto de amor, que não pode ser abandonado que, por sua vez, toma refúgio na identificação narcísica enquanto que, na depressão, o objeto em si é abandonado. Em contrapartida, na depressão, o objeto foi perdido e o componente destrutivo se incorpora ao supereu e se volta contra o eu. Nesse sentido, nem sempre a pessoa na posição depressiva se deprecia, podendo ela se colocar como muito superior aos outros (Abraham, 1970). Já a pessoa na posição vingativa pode tratar a pessoa de quem ela quer se vingar como as fezes das quais ela quer se livrar (Abraham, 1970). É preciso notar que inicialmente esse objeto perdido seja introjetado, como os cabelos grisalhos de um paciente de Groddeck (1923), que tomou esse aspecto do pai, após o seu falecimento, por meio da incorporação física, oral-canibalística. Depois, a pessoa em crise vingativa irá expelir o objeto retido, o que é típico da fase sádico-anal (Abraham, 1970). No desenvolvimento de afetos vingativos, existe a necessidade da presença de sentimentos ambivalentes de amor e ódio. É preciso que as energias sexuais sejam usadas para suplementar as energias hostis do vingador. O afeto vingativo busca oferecer essa necessária sensação de segurança para o eu, de forma que a pessoa não se culpabilize, como se costuma observar na depressão. Isso implica que a aparência da 64 Karl Abraham (1970) iria enfatizar que a regressão ligada à neurose obsessiva está ligada à fase anal sádico-tardia. A regressão ligada à depressão vai além da fase anal, chegando à fase oral tardia. 83 depressão no afeto vingativo não pode ser exatamente a do tipo que se autodeprecia65, mas a do tipo que deseja destruir o objeto que a pessoa estando ligada, portanto, à fase anal mais tardia (Abraham, 1970). O supereu não deve ser tomado pelo componente destrutivo já que isso implicaria num raiva voltada contra o eu. No lugar da não tomada dos impulsos agressivos do supereu, que se voltariam contra o eu, impulsos amorosos são transformados em agressivos, mas agora se voltam para um objeto secundário à regressão sofrida pela pessoa: o objeto expelido. O Isso66 também se envolve com a cena, agindo livre e constantemente por meio de operações de deslocamento. Isso porque é possível se vingar de alguém ou de uma situação por meio da escolha de outro objeto (Arlow, 1961; Socarides, 1977). Na dinâmica da vingança, o eu incorpora objetos externos com ódio em relação a eles, ou seja, pela via do mecanismo presente no traço depressivo: a introjeção. No amor, o modo do eu se relacionar com os objetos é feita com o interesse de provocar prazer no objeto e de cuidar dele. O objeto de amor será mantido via retenção, traço da neurose obsessiva enquanto que o objeto expelido passará a ser o alvo do ódio (Socarides, 1977). No que concerne à perda que promove o surgimento do afeto vingativo, não se trata apenas de uma perda recente (Socarides, 1977). Isso porque, na crise do afeto vingativo, todas as ameaças ao eu vividas na infância são trazidas à tona por algum evento vivido na fase adulta (Arlow, 1980). Nesta, pode ocorrer a atualização de vivências ligadas às fases edípicas recheadas de sentimentos de rivalidade, ciúmes, inveja e competitividade que podem criar ou exacerbar uma disposição afetiva vingativa (Lane, 1995). Assim, não é possível dizer que a Rainha assume uma posição vingativa somente pelo fato de perder a posse direta sobre o Círculo de Ouro, mas por todo simbolismo que envolve o objeto, como questões que remetem ao Ideal do Eu, que sofreu um abalo devido à desilusão provocada pela transferência do Círculo de Outro para outra figura masculina – a cena da herança deixada para Sarastro apenas desencadeia uma série de processos afetivos: Aqui a Rainha é colocada de fora do 65 Anointe Vergote coloca que a depressão não envolve culpa, mas sim uma espécia de vergonha. Esse autor propõe uma análise dos conceitos de melancolia (cultural), luto, depressão e melancolia (psicótica) sem considerar a posição objetivista dos manuais diagnósticos como o DSM. É possível notar que, a depressão, segundo Vergote, envolve a perda do lugar da pessoa no mundo. Não é esse o caso da Rainha da Noite? (Vergote, Ver Eecke, Sadowsky & Chwastiac, 2003). O artigo foi escrito pelo primeiro autor e traduzido pelos demais, mas a revista que possui essa publicação sugere a citação nesse formato. 66 Das Es. 84 espaço de pertencimento, ligado à cena originária, próprio da relação amorosa entre os pais. O supereu está fortemente associado ao que conhecemos como Ideal do Eu, herdeiro do Eu Ideal. Na formação do Ideal do Eu temos a presença do interdito do nãomaterno que desmantela a experiência de “sua majestade o bebê” como um ser a quem todos devem servir. Agora, a criança passa a se submeter a uma nova ordem, na qual ela não mais será o centro das atenções. Na formação do Ideal do Eu, pode ser notada a incorporação canibalística do pai, numa identificação primária por incorporação intrusiva e oral (Gérez-Ambertín, 2003). Socarides (1977) comenta o quanto os pacientes vingativos foram privados oralmente e o quanto sofreram com isso. Na incorporação necessária à formação do Ideal do Eu, o núcleo deste será sempre a figura castradora que colocou esse não. Na vingança, esse supereu assume a posição de depreciar a própria pessoa de forma que ela não possa ser mais amada. Existe também a oscilação de forma que a pessoa vingativa exija o reconhecimento de que ela é superior, numa tentativa de controlar a ansiedade ligada à evocação da cena originária. A vingança se opera então pela livre descarga do Isso, autorizada pelo supereu, de forma a fazer os outros sofrerem como objetos expelidos, indesejáveis, e a torná-los inferiores ao seu Eu. Esse Eu sofre ainda, já que a presença dos sentimentos ambivalentes da depressão ora fazem com que ela se sinta “um nada”, e ora como alguém superior, provocando uma confusão na comunicação. No caso da Rainha da Noite podemos observar a frustração do ideal do eu que remete a questões da infância que, por sua vez são, possivelmente, de valor traumático e, portanto, fazem emergir uma sensação de raiva e ardor, como ela mesma irá narrar na Ária 14 (Castarède, 2002). É o caso então de aprofundarmos o que Arlow (1980) propõe como uma leitura da vingança a partir de experiências de perda vividas num tempo anterior e distante em relação ao que é vivido por pacientes vingativos já adultos. Tomemos a situação em que um cuidador falha em atender às demandas de seu filho, ou quando não reconhece qual é a exata demanda dele. Nessas situações, podem começar a surgir sintomas como choro, grito, afastamento afetivo e expressões de raiva. Com a intensificação dessas demonstrações de desconforto, a criança fica mais frustrada, mais suscetível a se irritar, a ficar nervosa e vingativa (Lane, 1995). É possível citar também a retirada do seio como algo decisivo para a separação entre mãe e filho, o que faz despertar um impulso por retaliação e promove o desenvolvimento de sentimentos de vingança e inveja (Klein, 1935; Fenichel, 1945). Indivíduos que sentem uma forte 85 ansiedade de separação possuem marcantes traços vingativos de personalidade quando em crise (Abraham, 1924). Outra possibilidade para a efetivação de atos vingativos por parte do sujeito tem como origem a cena primária, na qual a criança presencia o intercurso sexual entre os pais, provocando uma excitação que, por sua vez, se transforma em ansiedade. Podem ocorrer, por parte da criança, erros de interpretação no sentido da atribuição à cena originária como uma cena violência entre o homem e a mulher (Freud, 1905; Freud, 1918; Freud, 1925; Arlow, 1980). Anna Freud (1967) coloca que traumas ligados à cena primária se fundem com fantasias e ansiedades primitivas levando a pessoa a um grande estado de transtorno. A derrota edípica da cena primária, na qual a criança é excluída da cena de cópula, leva a um senso de inferioridade anatômica e uma profunda mortificação narcísica. É muito comum que os pacientes na clínica do cotidiano não se lembrem de presenciar de fato a cena de intercurso sexual dos pais, o que pode surgir no ambiente terapêutico sob a forma de uma fala fantasiada, de que ela presenciou o ato (Arlow, 1980). Otto Fenichel (1945) coloca que a reação à cena originária é marcada por um voyeurismo perverso que ocorre repetidas vezes, compulsivamente, como expressão da vontade do eu de controlar a cena, com a finalidade de permitir à pessoa que se sinta capaz de dominar o trauma primário. Nesse sentido, a pessoa tenta resgatar a cena para que possa tentar controlá-la. A pessoa, quando adulta, pode fazer com que os pais experimentem a sensação de humilhação, exclusão e traição sentida por ela que, quando criança, presenciou a cena originária. O ato de vingança a partir do trauma da cena primária se dá no sentido de provocar a ira dos pais ininterruptamente. A insônia, o exibicionismo e o voyeurismo se mostram como sintomas relativos à identificação com ambos os pais enquanto eles realizam o ato sexual (Lewin, 1932). Na vida adulta, a rejeição e o abandono em uma relação amorosa podem ser fontes para o desencadeamento de afetos vingativos. Acessos de vingança também podem ocorrer em virtude de conflitos narcísicos, ou seja, a partir de eventos psíquicos envolvendo a culpa ou a partir de experiências de falhas cometidas pela pessoa. Nesses casos, vingar-se de alguém é uma consequência do redirecionamento da descarga da raiva de si mesmo para objetos do mundo exterior (Socarides, 1977). A Rainha da Noite, após perder a posse do Círculo de Ouro e ser impedida de participar da ordem de Sarastro passa por um conflito ligado ao ideal do eu, o que se desdobra numa tragédia de proporções gigantescas. Isso porque ela havia construído 86 uma expectativa de grandiosidade a partir do desenvolvimento do narcisismo. Seu casamento lhe permitia a satisfação dessa expectativa de grandeza. Nesse sentido, dizemos que Rainha da Noite “[...] construiu uma expectativa idealizada do mundo, na qual suas esperanças narcísicas e expectativas podiam criar um sonho glorioso para o futuro67” (Murray, 1964, p. 480). No entanto, com a morte do marido ela fica sem o Círculo de Ouro e apartada da Ordem Sagrada de Sarastro. A morte do marido da Rainha irrompe nela elementos psíquicos que irão compor a ruína de sua estrutura emocional. Quando notamos a sua vontade marcante em reobter o Círculo de Ouro podemos notar a ânsia pela gratificação ligada à posse do mesmo estando ligada ao seu casamento e à partilha da sabedoria que pertence à Ordem e que está ligada ao Círculo de Ouro. É o mecanismo típico da depressão, que, após a perda do objeta, tentará reobtê-lo. Temos aqui o narcisismo da Rainha da Noite que a impele a utilizar de todos os meios para (re)obter o objeto (Círculo de Ouro) ligado à sua relação amorosa-matrimonial, ferida pela castração. A relação entre o narcisismo e o comportamento repetitivo marcado por uma regressão pré-genital no caso de um desconforto tremendo que leva o sujeito a um vôo de retorno às fantasias do mundo pré-genital é próprio da dinâmica vingativa: O narcisismo valida suas atitudes defensivas e permite que ele (ela68) use todo amor objetal como recurso para o foco de suas explosões de raiva [...] Mas também há uma tremenda sensação de insegurança, isso porque, se uma das funções pré-genitais falhar, a lógica do tudo-ou-nada e o seu mundo tornar-se-ão cinzas69 (Murray, 1964, p. 490). Do ponto de vista da vingança ligada ao corpo feminino, é possível mencionar o trabalho de Karl Abraham e seu artigo Manifestations of the Female Castration Complex (1922). A ocorrência de uma situação em que a mulher foi prejudicada dá vazão ao desejo de se vingar do homem privilegiado. O objetivo desse desejo é o de castrar o homem. Do ponto de vista do desenvolvimento da sexualidade, a mulher já é castrada, o que se efetiva no imaginário feminino quando a mulher (menina) percebe 67 [...] constructed an idealized expectant world, in wich his (her) narcissitic hopes and expectations could create a glorious dream for the future. 68 Destaque dado pelo autor dessa dissertação. 69 The narcissism validates his defensive atitudes and allows him (her) to use all love object as a milieu for the focus of his (hers) explosive rages (…) But there is also a tremendous insecurity, beacause if one of these pregenital functions fails, the all-or-none law works and his (her) world falls apart. 87 que a sua genitália é como uma ferida, um buraco. As expectativas da mulher com relação à perfeição do corpo-próprio pautadas por uma disposição narcísica são frustradas pelo reconhecimento de que não há nela um pênis. Essa constatação se efetiva como uma dor sentida devido à perda de um objeto importante, ou seja, a ameaça de castração se efetivou (Abraham, 1922). É preciso considerar uma leitura de gênero não necessariamente segundo critérios anatômicos, mas de uma feminilidade ou masculinidade, que estão presentes na vida das pessoas de forma geral (Schotte, 1970). Dessa maneira, o comportamento vingativo da Rainha da Noite, além de envolver a necessidade de promover segurança para o eu, resgatar vivências da infância ligadas à época da formação do seu Ideal do Eu, simbolizados na vida adulta pelo Círculo de Ouro, ela irá declarar vingança contra Sarastro em virtude de uma necessidade de reparação ligada ao desenvolvimento da sua sexualidade, cujas energias deverão estar presentes de forma complementar nas descargas agressivas que ela irá realizar. 10.1 ANÁLISE DO AFETO VINGATIVO DA RAINHA DA NOITE A PARTIR DOS VERBOS PATHICOS A categoria pathica introduz a pessoa no nível biológico, porque ela cria o laço entre percepção e movimento (Weizsäcker, 1958). O pathico é praticamente inacessível à conciência conceitual. Ela é imediata, intuitiva e se dá num nível pré-conceitual. É mais o sentido do que é percebido, o que permite uma aproximação ao status do conceito de “feeling”, ligado aos estados puramente afetivos de Maine de Biran (Maine de Biran, 1920; Tatossian, 1979). Todo movimento do corpo está atrelado à categoria pathica. Para Weizsäcker (1958), a estrutura dos atributos pathicos está contida numa série de verbos modais, o querer, o dever (como necessidade biológica e como obrigação moral) e o poder (como aptidão e como autorização/permissão), além de questões que concernem a liberdade e a necessidade. De forma a compreender a dinâmica da vingança no nível pathico, é preciso fazer uma análise do percurso modal. Vejamos como isso acontece: 1. O querer da Rainha da Noite está marcado por uma pulsão repetitiva com foco em (re)obter o Círculo de Ouro e em destruir todos aqueles que estão entre ela e o seu objeto de desejo. Querer se vingar se dá como uma vivência que renova eternamente o narcisismo, necessário à sua própria existência. Desistir de querer seria aceitar compensação, o que seria plausível no caso de um eu mais resistente às feridas 88 narcísicas – mas não é o caso da Rainha. O querer, na vingança é algo a ser satisfeito a toda custa, o que é uma característica recorrente em personagens vingativas: é o desejo de ficar quite (Socarides, 1977). 2. As questões ligadas ao verbo dever (no sentido moral70) estão na dinâmica entre o supereu e o eu. Enquanto o supereu busca promover a segurança do eu, o querer pode livremente ser alcançado (Socarides, 1977). A ocupação do supereu com o eu abre caminho para o advento das questões da negatividade radical hegeliana, ou seja, dos desejos mais destrutivos do ser humano (Žižek, 2004), mas sobre o objeto oriundo da regressão. Isso implica que, no afeto vingativo, o dever moral pode ser ignorado em prol da atividade do verbo querer que, no caso, está ligado aos impulsos destrutivos da Rainha que, caso estivesse submetida às regras do dever moral, teria que abrir mão do seu querer, o que, por sua vez, poderia promover formas mais saudáveis de adaptação a esse afeto (Socaridades, 1977). 3. O verbo dever (como necessidade71) é o que se liga ao querer da Rainha. Nesse sentido, querer se vingar se efetiva por uma questão de necessidade sentida no corpo. A ardência por vingança é relatada na Ária 14 como algo a ser saciado pela obtenção do Círculo de Ouro e da morte de Sarastro (Castarède, 2002). Aqui estão presentes componentes que irão reforçar o sentimento de vingança junto à mobilização do verbo querer. 4. O verbo poder (como capacidade72) está na capacidade da Rainha de declarar vingança. Ela possui os meios e recursos psíquicos necessários para a realização da empreitada. Ela arma a trama, entregando a Flauta a Pamino. No entanto, seu intuito fracassa. Dessa maneira, ela pede à filha que lhe traga de volta o Círculo de Ouro. Finalmente, ela mesma tentará resgatar o Círculo. Por meio de comportamentos sádicos envolvendo a filha e Pamino ela tenta reobter o seu objeto de amor. A falha de ambos irá envolver o verbo poder ligada a ela mesma, numa última tentativa. Ela é capaz disso... 5. A dialética da dinâmica pulsional se revela numa oposição clara entre o querer e a questão do poder como permissão moral, o que indica o domínio do poder moral73 no âmbito pathico do problema da vingança da Rainha da Noite: “Rejeitada do reino da claridade, a Rainha se encontra soberana do mundo noturno com uma imensa 70 Sollen. Müssen. 72 Können. 73 Dürfen. 71 89 frustração. [...] Ela não pode compreender a ignorância em que se mantém a sua natureza feminina decaída74” (Castarède, 2002, p. 119). O que realça o problema da permissão é justamente a sua condição enquanto rejeitada: A ela não é permitido fazer parte da Ordem Sagrada. A logica da autorização que atravessa o poder moral (“eu me autorizo”) se realiza para que a Rainha possa alcançar o seu objeto de desejo. A personagem se permite a querer se vingar devido às questões suscitadas pelo desvio do Círculo de Ouro que deveria ser parte de sua herança. Com essa ação de se autorizar emergem problemas ligados à formação do Ideal do Eu e, consequentemente, ao retorno de operações narcísicas nas quais ela irá se permitir tudo para alcançar o seu desejo. Isso porque sentimentos de perda se somam contra o inderdito do não-materno. Dessa maneira, o supereu organizado e promotor da castração será negado. Apenas a sua parte que promove o conforto do eu será mantida. Sabemos também que o círculo da forma se faz em um ato que forma outro (conforme o Figura 5). A estrutura aparece na análise dialética da decisão crítica no processo de tomada de decisão. Quando a Rainha se vê prejudicada, ela procura se vingar do homem que a prejudicou: Sarastro e, possivelmente, Pamina. Ambos podem estar assumindo simbolicamente o papel do marido defundo da Rainha, deslocados na psiquê da Rainha. 74 Rejetée du royaume de la clarté, la Reine s’est retrouvée souveraine du monde nocturne avec une immense frustration. [...] Elle ne peut comprendre l’ignorance où se maintient sa nature feminine déchue. 90 Figura 5: O pentagrama pathico do círculo da forma75 de Victor Von Weizsäcker O psicólogo pode intervir na vida de um paciente marcado pela posição vingativa crônica de forma a fazer com que o último possa aceitar a vida como uma experiência de trocas e como a oportunidade para se aproveitar bons momentos ao invés de o sujeito encaminhar-se para destinos trágicos ocorridos em virtude de uma ideia obssessional de se vingar (Lane, 1995). A verdadeira vitória que o terapeuta pode alcançar junto com um paciente dominado pela disposição vingativa é a superação dos danos feitos ao eu enquanto o sujeito era uma criança e a construção de um eu mais estável e maduro, pautado na realidade e sendo capaz de superar desapontamentos (Lane, 1995). O foco nos aspectos pathicos da pessoa deve ser o foco terapêutico, que 75 Jacques Schotte prefere a tradução de Gestaltkreis para “Círculo da Forma”, em vez de “Círculo da Estrutura” conforme a sugestão de tradução de Michel Foucault, que lançou mão de uma linguagem mais estruturalista (Schotte, 1970). 91 irá considerar a vivência do paciente como algo tão importante quanto a visão médica objetiva, contra uma tendência do pensamento clínico em priorizar o segundo em detrimento do primeiro (Martinsen, 2013). Isso implica que, em virtude da correlação entre o domínio pathico e a primeiridade dos estados puramente afetivos, que a clínica pathica envolve um resgate da primeiridade peirceana para o pensamento clínico, em contraposição à clínica clássica dos índices entre sintomas e pathologias. 92 TOMO III – DESCRIÇÃO DA PARTITURA PARA CANTO VOCAL (SOLO) DA ÁRIA 14 DA “FLAUTA MÁGICA” 11 PARTITURA E EXPRESSÃO MUSICAL DA “FLAUTA MÁGICA” A análise do esquema musical revelado pela partitura e atualizado no processo acústico pode revelar a dinâmica do afeto humano (Ingarden, 1966). A seguir, serão analisados trechos da partitura da Ária 14 da “Flauta Mágica” a partir da sua organização em versos. Essa escolha se faz em virtude do caráter entretecido da partitura musical com o libretto de forma que permita a sistematização da análise inicial da partitura de acordo com sua própria estrutura. Dessa maneira, opta-se por uma análise a la “Capriccio”, ópera de Richard Strauss, em que fica marcada a impossibilidade de escolha entre o que é mais importante, o libretto ou a partitura. No entanto, ao destacar a partitura e os seus elementos de composição musical abre-se a possibilidade de análise do recurso musical que possui relação icônica com os afetos, o que não é necessariamente válido para o caso do libretto. Para cada um dos versos é apresentado o respectivo trecho da partitura para o solo vocal no formato de imagem. É também apresentada uma descrição por extenso dos elementos de notação musical utilizados. O verso é citado no texto a partir da tradução para o português (Guimarães, 1991). O verso no original em alemão é apresentado em uma nota de rodapé, segundo o libretto bi-língue da peça alemãoportuguês (Guimarães, 1991). O resultado da análise irá revelar aspectos do dinamismo dos afetos humanos, em especial, o da vingança. A Ária 14 da peça A Flauta Mágica foi escolhida como trecho musical para ser analisado devido a ser o ápice do poder da Rainha da Noite (Van der Berk, 2004), além de ser o momento que marca a inversão da sua posição benevolente no Ato I para a posição vingativa (Everett, 1991). É o momento do desmascaramento (Whitehead, 1978; Castarède, 2002). O solo vocal da Ária 14 é reservado à Rainha da Noite, personagem que é deixada sem um tesouro de grande valor e, para consegui-lo, ela ameaça a sua própria filha da forma mais terrível que pode de forma a convencê-la a satisfazer seu desejo de morte em relação àquele que possui o tesouro cobiçado e que o recebeu legitimamente por meio do testamento do falecido marido da Rainha da Noite. A Ária 14 é a expressão de uma revolta que dá início a um destino trágico que se desenrola com uma maldição 93 lançada sobre Pamina, filha da Rainha, caso ela não satisfaça o ódio da mãe matando Sarastro, detentor do Círculo de Ouro. As notas agudas entoadas pela Rainha da Noite nessa área são de uma presença marcante: “Podemos sentir na música a crepitação de sua fúria com os arrebatados staccatos das vocalizes, os quatro fás superagudos e o tom de mal controlada arremetida” (Kobbé, 1997, p. 105). 11.1 O PRIMEIRO VERSO A figura 6 indica o trecho da partitura para solista vocal da Ária 14 referente ao primeiro verso da Ária 14, marcada pelos dizeres: “Arde em meu peito a vingança infernal76”. Nele a, a Rainha da Noite declara o que sente em relação ao fato de não possuir o Círculo de Ouro. Não é qualquer coisa que arde, mas a vingança infernal. E ela arde em seu peito. O primeiro verso é cantado de forma preparativa para os famosos melismas, como um prenúncio da profunda ferida narcísica evidenciada nos agudos melismas da Ária 14 (Everett, 1991). Figura 6: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao primeiro verso da Ária 14 No primeiro compasso podemos identificar uma pausa para a solista e ouvir os instrumentos de corda dialogando com o restante da orquestra que preparam a entrada da Rainha da Noite. No segundo compasso podemos ler três Lá 3 de mesma duração, colcheias de meio tempo, que dão ênfase à sonoridade da enunciação da Rainha da Noite. Assim, o verso começa com um cantar que faz menção ao aspecto infernal do que a Rainha está sentindo, marcado por uma sequência enfática das três notas Lá 3, não muito agudas. No terceiro compasso observamos duas sequências decrescentes. A primeira é de duas notas (Ré 4 e Lá 3) e apresenta uma variação de altura maior do que a sequência que segue (Fá 4 e Mi 4). No quarto compasso observamos uma nova sequência 76 Der Holle Rache kocht in meinem Herzen 94 decrescente de apenas duas notas: Ré e Lá, idêntica àquela utilizada para expressar “vingança77”, se considerarmos as alturas das notas. No entanto, em relação ao tempo delas, observamos um prolongamento da primeira nota quando tratamos de “vingança” em vez de “peito78”. Aqui temos a menção ao próprio afeto vingativo, marcado por um Ré 4 com duração proporcional à sequencia inicial de três notas, e meio tempo mais longa do que o Ré 4 usado para mencionar “peito”. Trata-se de uma semínima aumentada em meio tempo. É possível observar que a segunda nota da sequência que define a vingança é aquela mesma encontrada em “Infernal79”, sugerindo uma incorporação desse aspecto adjetivado, infernal, ao sentimento de vingança. Isso porque temos o Lá 3 de mesma altura mas que se encontra reduzido em uma só nota, ao passo que “Infernal” possui três notas daquela altura. Na sequência de “vingança”, observam-se quatro notas cuja variação na altura é de apenas meio tom, ou seja, um intervalo de segunda menor que intervala duas sequências melódicas uníssonas. Com relação a esse trecho, é preciso observar que nele se dá a atualização, no corpo, do afeto vingativo, que traduz verbalmente a experiência de uma vivência dolorida. Existe também a presença do aspecto narcísico típico da vingança, já que a Rainha se refere a si mesma por mesmo de “meu80” no Mi 4. Observa-se também o clímax do primeiro verso: O Fá 4, em “Arde em81”, seguido de uma linha melódica descendente. A partir do clímax começa a ocorrer um esvaziamento ininterrupto na altura das notas que irão decrescer até o peito. 11.2 O SEGUNDO VERSO A figura 7 ilustra a partitura da solista vocal durante a Ária 14 no que concerne ao seu segundo verso, marcado pelos dizeres: “Sinto morte e desespero a me inflamar82”. Nesse verso temos novamente o aspecto narcísico típico da vingança, que agora revela um sentimento inflamado permeado de desespero e ideias de morte que, como veremos, irá culminar num atentado homicida. Nesse sentido, temos o desespero enquanto um elemento que torna a vivência sofrida em algo ainda mais dolorido (Siirala, 1969) e que está ligada também a uma ideação homicida. 77 Rache Herzen 79 Der Hölle 80 Meinen 81 Kocht in 82 Tod und Verzweiflung flammet um mich her 78 95 Figura 7: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao segundo verso da Ária 14 No Primeiro compasso desse trecho temos a exclamação da Rainha da Noite: “Morte!83”. A Nota Sol 4 está acima de todas as notas anteriores na partitura, o que já sugere uma ascendência no clímax em relação ao verso anterior. Isso evidencia uma maior amplitude sonora na descrição da vivência dolorida da Rainha, indicando que o verso anterior não encerrou toda a negatividade radical que a Rainha pretende invocar no canto. No entanto, a primeira nota não se trata do clímax do segundo verso. Neste, um novo sofrimento, indicado por notas mais agudas, será anuciado, o que se efetiva como um segundo passo na representação da dor que encontraremos quando observarmos os agudos melismas da Ária 14, expressão da sua dor profunda (Everett, 1991). Na sequência do Sol 4 do primeiro compasso do segundo verso, podemos notar uma pausa sucedida de duas notas curtas, duas colcheias (ainda no primero compasso). As três notas do primeiro compasso estão em uma sequência descendente de altura. A sequência melódica descendente geralmente expressa sentimento de tristeza (Aksnes, 2001) e aqui ela aparece atrelada ao sentimento que invoca a morte e à preparação para a descrição do desespero humano, também numa sequência descendente. Temos também o sentimento de tristeza atrelado à ferida narcísica e um sentimento de humilhação, que a Rainha tentará reparar pela arquitetura do seu projeto vingativo, como forma de garantir a segurança do seu eu. Numa análise conjunta do primeiro e do segundo compasso, as notas que indicam o desespero na divisão silábica em língua alemã (und + Ver-) e (-zweif + lung) são formadas por duas sequências melodicas descendentes, com uma sequência ascendente entre as sílabas Ver e Zweif. No entanto, do ponto de vista da duração das notas, a primeira estrutura tem a metade da duração da segunda. Os dois vocábulos iniciais do verso “Morte” e “Desespero” são então repetidos no terceiro compasso em uma sequência ascendente que começa em um Mi-bemol 4 e 83 Tod! 96 segue para o Fá# 4, modificações sobre o sétimo e oitavo graus, alterando o intervalo de meio tom (caso não houvessem acidentes) para um e meio, criando uma segunda aumentada. Essa sequência é, por sua vez, complementada por "-zweif lung" no retorno às notas naturais da escala de Fá Maior em que poder observar uma sequência de uníssona aumentada e, finalmente, da segunda maior que gera o clímax do verso. Essa harmonização se diferencia do trecho anterior, cuja sequência é inicialmente descendente de segunda aumentada por duas vezes seguidas, chegando à modificação de meio tom no grau dominante, criando o Dó# 4, que será seguido de uma quinta aumentada ascendente que, por sua vez, é seguida por uma quinta justa descendente. Dessa maneira fica declarado o desespero e o desejo homicida da Rainha, com a presença de três intervalos de segunda aumentada, como modificações sobre uma dominante, uma sensível e uma tônica. O quarto compasso, assim como o segundo, possui duas notas de um tempo que completam a repetição de “Morte e Desespero”. A nota clímax do verso aparece no auge da sequência ascendente após o segundo enunciado de “Morte” e “Desespero”. Esse evento se dá nas “chamas” indicadas pela nota Si 4, como podemos observar na figura 7. Quando a Rainha da Noite canta “flammet” há também uma prolongação da sonoridade por meio da ligadura. No quarto compasso começa o trecho musical relativo a “a me inflamar84”. Ao final dele, começa uma nota longa que indica a enunciação de “chamas 85”, que termina no compasso seguinte. O quinto compasso marca a continuação de “–flam” e conclui a enunciação do termo. As duas notas (e até a terceira, considerando o último compasso) que se seguem são de mesmo tempo que a da sílaba –met. A partir das “chamas” mencionadas no quarto compasso, podemos notar a apresentação do esvaziamento do verso pela resolução numa sequência melódica descendente, encerrando a significação em torno do sentimento de desespero e a ânsia pela morte pulsando na Rainha da Noite. Isso é feito por meio de dois intervalos de terça menor e dois de segunda menor (até o sexto compasso), que ilustram a referência narcísica ligada ao sentir inflamado no corpo da Rainha da Noite. A ligação entre corpo e sentir começa nesse Mi bemol 4, modificação do grau sensível, seguido pelo submediante e, finalmente, por uma modificação do grau dominante. 84 85 flammet um mich mer flammet 97 11.3 O TERCEIRO VERSO A figura 8 ilustra o trecho da partitura para a solista vocal durante o terceiro verso da Ária 14, marcada pelos dizeres: “Se não matar Sarastro pelo teu punhal86”. Nela, podemos observar as duas sequências descendentes que marcam a referência a Sarastro, que deverá sentir a dor pelo punhal entregue à Pamina. Nesse verso cabe observar uma dinâmica de ascendência e descendência que se dá na sequinte sequência: ascende no primeiro compasso que é seguido por um deslizamento nos dois compassos seguintes, fechando um circuito. No quarto compasso, a voz novamente ascende e, depois, irá fazer um deslizamento ainda mais grave, ao passo que ela enfatiza para Pamina quem ela quer que sofra. O terceiro verso revela o interesse da Rainha da Noite e a condição para que seja mantido o laço familiar com Pamina. Ela oferece uma missão para sua filha, que deverá quebrar duas leis: Ela deverá matar e roubar de forma que sua mãe possa então possuir o Círculo de Ouro. Nesse verso temos o caso da expressão da vingança, pela via da ópera, mostrando o destino de um afeto vingativo sob a forma da luta, como reação à ferida narcísica, em virtude do sentimento de desrespeito sentido pela Rainha da Noite (Kohut, 1972). A Rainha não cede ao seu desejo devido a um eu ideal fraco e irá engolir a todos, se puder, de forma que reste somente ela e o seu objeto de desejo (Schneider, 1988). Para ela, não importam os laços de amor, os vínculos familiares saudáveis ou as leis da sociedade que visam o bem-estar assim como a manutenção da paz homem. Para a Rainha, importa apenas a posse do Círculo de Ouro e vingar-se daqueles que ameaçam o seu bem-estar. É nesse contexto que observamos a derrocada do dever-ser87 em prol de uma ânsia pelo poder. Encontramos aqui um paralelo com a personagem “Salomé”, da peça de Oscar Wilde que foi adaptada para o teatro por Richard Strauss. Essa articulação nos permite identificar que não é apenas o caso de uma ferida narcísica, mas de sua articulação com o sadismo. “Salomé” deseja inicialmente beijar São João Batista e, na medida em que ele se nega, a personagem pede ao Tetrarca Herodes que arranque a cabeça do prisioneiro, que ela então beija. O desejo dela não dialoga com o desejo do outro, mas tem o gozo no desmantelamento da felicidade e da vida alheia (Coriat, 1914). No caso, Sarastro ocupa simbolicamente uma posição semelhante a de São João Batista: objeto 86 87 Fühlt nicht durch dich Sarastro Todesschmerzen. Sollen. 98 de ódio da personagem vingativa. Quando a Rainha da Noite acaba deixando a adaga nas mãos de Pamina, que deverá matar Sarastro, ela pode ser vista na posição sádica em relação à sua filha. Ao invés de Pamina ser ajudada pela mãe, ela recebe em mãos o dever de matar, o que irá desencadear toda uma encenação melancólica por parte da heroína ameaçada pela mãe sádica e vingativa. Figura 8: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao terceiro verso da Ária 14 Como podemos observar na figura 8, a voz varia entre notas agudas e notas mais graves nos deslizes do terceiro e do quinto compasso. As notas mais agudas são acompanhadas de determinados trechos cruciais para o entendimento da fala. Isso porque é possível observar o núcleo depressivo da Rainha. Sua dor fica ligada a Sarastro e ao desejo de que ele morra. Esse é o caso do afeto vingativo da Rainha que, no caso, está ligado a um grau de tristeza que deseja trazer para baixo junto com ela a figura de Sarastro. No primeiro compasso temos uma escala ascendente iniciada em Fá 3, seguido de um Lá 3 e, posteriormente, um Dó 4. Nota-se uma ascendência na altura dessas notas. A primeira nota é a mais longa, enquanto que as duas seguintes possuem metade de seu tempo. Se considerarmos o primeiro e o segundo compasso marcando a expressão de “Se ele não sentir por você88”, temos os termos “sentir89” e “você90” expressos de forma semelhante no aspecto da duração das notas, sugerindo a ideia musical de que Pamina (quem a Rainha se refere ao dizer “você”) deverá provocar uma ação sobre alguém: São notas de dois tempos, mínimas, que sugerem essa ação. No segundo compasso, a nota Fá 4 é a mais alta da sequência iniciada no compasso anterior. Seguindo o Fá 4, há uma pausa que antecede o endereçamento da missão. Uma nota de meio tempo fecha esse compasso e marca o início do processo de enunciação consequente que anuncia o destinatário: Sarastro. O segundo compasso funciona como uma conexão, apresentando o fechamento da frase iniciada no primeiro 88 Fühlt nicht durch dich. Fühlt. 90 Dich. 89 99 compasso e oferecendo a abertura para a frase que irá se construir a partir do terceiro. Neste, há uma escala descendente iniciada em Lá 4, que termina em um Lá 3, uma oitava abaixo, que desliza por meio de notas interligadas de meio tempo. Esse é o primeiro compasso desse verso do tipo “intervalo descendente de oitava”. No quarto compasso há uma sequência ascedente do Si-bemol 3 para o Sol 4, que destaca a dor enunciada no verso: É grande e em estado de inflação esse desejo de vingança da Rainha. Portanto, a morte de Sarastro deve ser efetivada. Isso fica ainda mais evidente no quinto compasso desse verso que também é do tipo “intervalo oitava”. Ele aparece após uma pausa que marca o fechamento do pedido feito na conjunção do terceiro com o quarto compasso. Ao final do quarto compasso, uma nota de meio tempo abre a repetição da solicitação a se realizar no compasso seguinte. No quinto compasso a Rainha enfatiza o seu pedido, só que agora marcada por uma nota mais aguda (Si-bemol 4) em relação ao primeiro pedido de que Sarastro fosse assassinado (Lá 4). Essa sequência é ascendente no seu início e possui o clímax do verso. A Rainha da Noite deixa bem claro para Pamina quem deve pagar por ter provocado nela tamanha dor. O sexto compasso equivale ao quarto e evidencia a dor e a ânsia crescente de vingança da Rainha. Pamina já entendeu que Sarastro deverá pagar com a morte. A dor anunciada anteriormente ja foi expressa numa sequência ascendente de Si-bemol 3 para Sol 4, e agora, no último compasso desse verso, ela é expressa numa sequência de Lá 3 para Fá 4; A sequência de altura das notas nesses trechos varia de forma que se realça o aspecto da dor ligado assassinato a ser cometido por Pamina. Esse aspecto é expresso no mesmo intervalo (quinta aumentada) que a expressão anterior, ainda que com a variação de um tom inteiro abaixo. 11.4 O QUARTO VERSO A seguir, propomos a análise do quarto verso da Ária 14, separada em cinco partes. O verso contido na figura 9 aparece repetido três vezes nessa análise. Primeiramente no subtópico 11.4.1 e depois no subtópico 11.4.3, apenas parcialmente e, mais uma vez, no trecho 11.4.5. No entanto, no intervalo dos três subtópicos, é executada uma série de notas agudas (analisadas no subtópico 11.4.2., que se repete no subtópico 11.4.4). Nele, a voz da cantora executa algo mais dionisíaco, ligado às questões musicais em interseção com a negatividade radical, já que é somente música 100 que ela canta, não havendo nenhum recurso da ordem do libretto. 11.4.1 O Quarto Verso (A) A figura 9 ilustra a partitura da solista vocal durante a Ária 14 no seu quarto verso, marcado pelos dizeres: “De filha nunca mais vou te chamar91”. Essa fala realça a ameaça de separação apresentada na ordem dada a Pamina de que ela deve matar Sarastro. No entanto, no quarto verso vemos como a Rainha se apresenta a Pamina como alguém capaz de fazer com que ela suma do mapa, assim como feito com Akhenathon e os templos solares no antigo Egito (Mokhtar, 1981). Figura 9: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao quarto verso da Ária 14 No primeiro compasso observa-se uma ascendência na altura das notas marcando o começo do verso nas notas Si 3, Ré 4 e Fá 4, de mesma duração, encadeadas. No segundo compasso temos o clímax desse trecho quando a Rainha completa o trecho “E então de minha92”. Quando ela canta “minha”, faz o uso do clímax musical desse trecho do quarto verso, na nota Si 4 que segue para um Lá 4. As questões de narcisismo em torno do devir da Rainha da Noite se evidenciam nesse trecho da partitura. Esse clímax reforça a ideia do banimento, que se organiza como uma chantagem emocional, em virtude da provocação de uma ansiedade de separação em Pamina, com o intuito de que ela obedeça à mãe. O clímax desse trecho do quarto verso realça aquilo que será quebrantado na ameaça, que é a relação efetivada no pronome 91 92 So bist du meine Tochte nimmermehr. So bist du meine. 101 possessivo: minha93. No terceiro compasso vemos uma dupla sequência melódica descendente que começa numa modificação sobre o grau submediante, seguido por três intervalos de terça menor, oscilando entre ascendências e descendências. Esse tipo de estrutura também pode ser observado no primeiro verso, ainda que em quartas justas, sem modificação sobre o esquema padrão da escala original, e com quatro notas intercalando esse padrão descendente. Nesse trecho do quarto verso, a lógica melódica marca a relação estabelecida entre “filha94” e “nunca mais95”, que se encerra no início do quarto compasso, em uma nota de dois tempos, uma mínima, de mesma duração da nota do clímax apresentado na figura 9. No quarto compasso temos uma pausa entre a frase musical iniciada no primeiro compasso desse trecho, e a abertura da segunda frase. A primeira nota faz o fechamento do primeiro verso em uma nota prolongada marcando o fechamento da enunciação de “nunca mais”. A segunda começa em uma nota de um tempo e introduz os dizeres do quinto compasso. No quinto compasso, temos a segunda nota da escala ascendente que começou na última nota do quarto compasso. Na sequência, outra nota marcando a sequência da melodia ascendente, de mesma duração da primeira desse compasso. No sexto compasso essa sequência ascendente é encerrada no Lá 4. A pausa que segue o Lá 4 é seguida pelo fechamento do verso permitindo que a cantora respire. Nesse trecho temos um aspecto modificado no momento da repetição no que se refere à sonoridade da fala da mãe endereçada à filha. A partícula “-mein” está agora representada por uma nota um tom abaixo do clímax. A repetição de “-mein’” é seguida de uma pausa que traz mais uma vez a partícula “minha96” em duas colcheias representando um Dó 4. No sétimo compasso temos novamente quatro notas que marcam a relação entre “filha” e “nunca mais”. No entanto, aqui, elas possuem uma nova configuração melódica. Diferentemente do terceiro compasso, a repetição se perfaz em uma sequência ascendente, ainda que a duração das notas seja colocada de forma idêntica. No oitavo compasso se encerra esse trecho, que finaliza uma sequência melódica ascendente iniciada na última nota do sexto compasso no Lá 4. 93 Meine. Tochter. 95 Nimmermehr. 96 meine 94 102 11.4.2 A Voz da Rainha da Noite (B) A figura 10 ilustra o trecho da partitura utilizado no quarto verso da Ária 14, no entanto, ele é puramente musical. Segundo Abbate (1991), podemos dizer que essas formas musicais são traços marcantes da personalidade da Rainha da Noite, isso porque ela é música, ela mata a linguagem. Não seria essa uma das formas mais adequadas de expressão da negatividade radical? Na figura 10, podemos notar as notas agudas utilizadas para expressar a profunda dor sentida pela Rainha da Noite (Everett, 1991). Figura 10: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao intervalo da voz, no quarto verso da Ária 14 No primeiro compasso desse trecho a Rainha começa a cantar sua fala sem palavras no libretto. Ela abre com uma apoggiatura97 que se executa de forma súbita: É uma nota que abre a frase musical, marcando uma sequência melódica no seguinte formato: Descende – Ascende – Ascende. No segundo compasso podemos ler oito notas de mesma altura e mesma duração que são executadas de forma pontilhada devido ao uso do staccato98. A primeira nota do terceiro compasso finaliza a primeira frase musical desse trecho em uma semínima, mais longa que as outras notas dessa frase. Após a pausa, uma nova apoggiatura, dois tons abaixo daquela do primeiro compasso, inicia uma frase musical de estrutura rítmica semelhante, mas com variação melódica e na estrutura intervalar. No quarto compasso notamos uma repetição idêntica no aspecto rítmico em relação àquela sequência do segundo compasso, e o mesmo vale para a comparação da duração das notas do primeiro e das colcheias do terceiro compasso. No entanto, as 97 Tartini descreveu a appoggiatura breve di passaggio, que logo depois passou a ser chamada apenas de appoggiatura que incluem a noção de antecipação da batida. Muitos autores e compositores divergem com relação à duração da appoggiatura e ao seu aspecto harmônico (Apel, 2000). 98 A palavra "staccato" significa "destacatado". Tocar o "staccato" requer mais respiração por parte do intérprete (Galpe, 2010). 103 notas do segundo compasso estão um tom e meio abaixo em relação ao segundo compasso, as notas se executam numa altura fixa em Lá 4. No quinto compasso se encerra a segunda frase. Após uma pausa uma nova apoggiatura, um tom e meio abaixo da última, abre a mesma sequência de notas de meio tempo aninhadas por uma ligadura. No entanto, o intervalo entre a primeira da nota da terceira e da segunda frase se dá em um tom e meio, e não em dois tons como vimos na análise da primeira nota da primeira e da segunda frase. No sexto compasso temos a continuação da frase iniciada após a pausa do compasso anterior. No entanto, a variação melódica é mais radical do que no segundo e quarto compassos, havendo agora uma variação na altura da quarta e da oitava nota da sequência. Ainda, a quinta, sexta e sétima notas estão um tom acima da primeira, segunda e terceira. Sugere-se aqui uma distorção do padrão melódico repetido em notas de mesma altura que irá culminar em uma grande variação de alturas no compasso seguinte. No sétimo compasso inicia-se uma inovação na variação das alturas que agora acontece na sequência: Ascendência (relativa à estrutura de oito notas do sexto compasso) -Descendência – Ascendência – Ascendência – Ascendência – Descendência – Ascendência – Descendência. O clímax dessa sequência ocorre após a terceira ascendência nesse compasso e irá se repetir no compasso seguinte, num Fá 5. O oitavo compasso inicia-se em nota mais aguda do que o início do compasso anterior, mas o clímax ocorrerá na mesma altura já alcançada o que sugere a seguinte leitura: A variação de amplitude entre a nota que abre o compasso e o clímax é menor no oitavo compasso do que no sétimo. No entanto, a variação de todas as alturas do compasso é a mesma. A sequência da variação das alturas nesse compasso: Ascendência (relativa à estrutura de oito notas do sétimo compasso) – Descendência – Ascendência – Ascendência – Ascendência – Descendência – Ascendência – Descendência. No nono compasso a frase termina em uma nota de um tempo cuja altura é a mesma utilizada na abertura do compasso anterior, ainda que a nota tenha o dobro da duração. 11.4.3 O Quarto Verso (C) O primeiro compasso desse trecho inicia-se com uma nota longa que fecha a frase puramente musical na voz da Rainha da Noite. Esse trecho é seguido por uma 104 nova sequencia puramente musical. Após uma pausa, a Rainha retorna a pronunciar “De minha filha nunca mais99”. A figura 11 ilustra o trecho da partitura utilizado no quarto verso da Ária 14, que se dá logo após a primeira frase puramente musical que o atravessa. Figura 11: Trecho referente ao intervalo entre os dois trechos puramente musicais enunciados durante o quarto verso da Ária 14 No primeiro compasso, após uma nota que fecha a frase anterior, notamos a presença de uma pausa seguida de duas notas: O primeiro Fá 4 acompanha a enunciação de “mei-” em um tempo e meio. O segundo possui apenas meio tempo de duração e conclui a fala do pronome com a sílaba “-ne”. No segundo compasso podemos observar duas notas de dois tempos em uma sequência ascendente que nos direcionam a atenção para quem a Rainha se refere no trecho: A filha. No terceiro compasso existe a pronúncia da sílaba “nimmer-” na seguinte sequência ascendente de notas: Uma nota longa de três tempos seguida de duas colcheias marcadas por uma ligadura. O trecho mehr, no quarto compasso, fecha a frase em uma mínima, na mesma altura das notas iniciais do trecho, o Fá 4. 11.4.4 A Voz da Rainha da Noite (D) A figura 12 ilustra trecho da partitura utilizado no quarto verso da Ária 14 referente à segunda frase puramente musical que atravessa esse verso. Ele é idêntico ao trecho do subtópico “11.4.2 A Voz da Rainha da Noite (B)”. 99 meine Tochter nimmermehr 105 Figura 12: Trecho referente ao segundo intervalo puramente musical durante o quarto verso da Ária 14 11.4.5 O Quarto Verso (E) Após a perfomance das notas agudas do segundo motivo puramente musical da Rainha da Noite, ela canta os dizeres do quarto verso novamente, marcando uma repetição da enunciação que configura a formulação da ameaça que ela faz à filha. Esse trecho marca o fechamento do quarto verso. Nele a Rainha canta novamente: De filha nunca mais vou te chamar100. A figura 13 ilustra o trecho da partitura utilizado no quarto verso da Ária 14, no fechamento dele. Figura 13: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao quarto verso da Ária 14 O primeiro compasso se inicia no fechamento do subtópico 10.4.4 e, após uma pausa, notamos a presença de uma nota Fá 4 de dois tempos, indicada por uma mínima, que acompanha a enunciação de “So”. No segundo compasso temos uma sequência de quatro notas. As duas primeiras estão na mesma altura (Sol 4), mas de duração diferente. A altura das duas notas seguintes é maior, sendo que a lógica do ritmo permanece idêntica em comparação com as duas notas anteriores, ou seja, um tempo e meio seguido de meio tempo. O acidente, indicado pelo Lá-bemol 4 marcando a enunciação de “mein”, indica a ascendência a partir do Sol, num intervalo de segunda menor, para uma bemolização no grau 100 So bist du meine Tochte nimmermehr. 106 submediante. A posição de pertença da filha aqui é enfatizada por esse registro uníssono em “minha”, na sequência de “bist du”, também uníssono, só que numa segunda menor abaixo. No terceiro compasso temos uma sequência descendente de duas notas. A modificação na submediante desaparece nesse compasso, que apresenta um intervalo de terça maior. No quarto compasso temos uma sequência ascendente de notas. A primeira é a de maior duração, exigindo três tempos. As duas seguintes são semi-colcheias ligadas uma a outra. Notamos o mesmo padrão utilizado no trecho 10.4.3, tanto no aspecto melódico quanto no rítmico. Também não há variação harmônica ou de intervalo em relação aquele trecho ilustrado na figura 11. No quinto compasso encontramos a resolução dessa frase musical que se perfaz realizando a lógica de ascendência das alturas iniciada no compasso anterior. Dessa forma, Mozart ilustra como a Rainha está chamando a atenção da filha para o fato de que “nunca mais” ela será uma mãe para ela caso Pamina não lhe traga o Círculo de Ouro. 11.5 O QUINTO VERSO Nesse trecho temos a repetição de uma frase musical duas vezes seguidas. O trecho se refere ao destino que terá Pamina caso ela não traga o Círculo de Ouro para a mãe. A Rainha canta: “Serás banida e abandonada à própria sorte101” A figura 14 ilustra o trecho da partitura utilizado no quinto verso da Ária 14. Podemos notar uma sequência de notas que culminam, sempre, em uma nota numa oitava abaixo. Figura 14: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao quinto verso da Ária 14 O primeiro compasso é aberto com três tempos e meio de pausas. O único som 101 Verstoβen Sei auf ewig, verlaβen sei auf ewig. 107 que se pode ouvir da Rainha é uma nota de meio tempo sinalizada pela semi-colcheia em um Fá 4. No segundo compasso temos uma sequência de notas sem variação alguma de altura, apenas de tempo. São duas semínimas aumentadas em meio tempo seguidas de uma colcheia. No primeiro e segundo compasso nota-se uma repetição da lógica rítmica em “verstos-” = “-sen se”. No terceiro compasso temos a última nota da sequência de seis notas na mesma altura que acaba por repousar numa oitava abaixo, o que marca o fim da enunciação de “Serás banidas (para sempre)102”. Seguida de uma pausa temos uma nova nota Fá 4 na mesma altura e de mesma duração que a do primeiro compasso. No quarto compasso temos a mesma sequência de alturas e tempos observada no segundo compasso. Cabe aqui destacar a ênfase na declamação de “Banida, Abandonada e Rompidos” em virtude da repetição dos motivos no canto. No quinto compasso temos a resolução da frase, idêntica a do terceiro compasso desse trecho: Um intervalo descendente de oitava em duas notas de um tempo. 11.6 O SEXTO VERSO O sexto verso da Ária 14 inicia-se com “Rompidos para sempre serão os laços naturais103”. A figura 15 ilustra trecho da partitura utilizado no quinto verso da Ária 14. Podemos notar uma sequência de notas que culminam em uma nota numa oitava abaixo, assim, como no quinto verso. No entanto, no sexto, é feita menção aos “laços naturais”. Figura 15: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao sexto verso da Ária 14 O primeiro compasso do sexto verso é uma continuição do último compasso do quinto. A partir dele, temos a presença do termo “Rompidos” à mesma moda que “Banida” a “Abandonada” no quinto verso: Três notas na altura do Fá 4. Essas notas se 102 103 Verstoβen sei auf ewig. Zertrümmer sei’n auf ewig alle Bander der Natur. 108 estendem até o terceiro compasso, repousando no intervalo descendente de oitava, no Fá 3. Após o intervalo de oitava para o termo “eternamente104”, uma pausa de um tempo aparece. Ela é seguida por duas colcheias na altura do Fá 3 que são seguidas em lógica ascendente em sétima menor para uma modificação sobre o grau sensível, o Mi-bemol 4, no quarto compasso do sexto verso. Ainda nesse compasso, um Dó 4 segue ao Mibemol 4 e, no compasso seguinte, um Lá 3 fecha a sequência descendente, interrompida pela presença do Ré 4. No sexto compasso, o Sol 3 fecha a enunciação de “laços naturais105”. 11.7 O SÉTIMO VERSO Nesse trecho temos a repetição de uma frase musical duas vezes seguidas, seguida ainda de uma terceira, acrescida, em seu início, por uma nota de meio tempo, idêntica à primeira nota das duas frases anteriores. Apesar desse verso não estar contido no libretto, ele é exigido pela partitura da Flauta Mágica, como um momento intermediário entre o sexto e o sétimo verso originais. Dessa maneira, optamos por reenumerar os versos do libretto, de forma que o sétimo verso original passa a ser o oitavo e, o oitavo verso original passa a ser o nono verso. Dessa maneira, o subtópico 10.7 referente ao sétimo verso, se refere, ao destino que terá Pamina caso ela não traga o Círculo de Ouro para a mãe. A Rainha canta: “Banida, abandonada e rompidos serão os laços naturais106” A figura 16 ilustra o trecho da partitura utilizado no sétimo verso da Ária 14. Podemos notar uma sequência de notas que culminam em uma nota numa oitava abaixo. Após essa sequência, a rainha faz menção aos laços naturais. Figura 16: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao sétimo verso da Ária 14 O segundo trecho do 2º verso apresenta uma semi-colcheia no primeiro compasso, em Sol 4. No segundo compasso, a mesma nota se repete. No entanto, 104 Ewig. Alle Bande der Natur. 106 Verstoβen, verlaβen, und zertrümmert, alle Bande der Natur. 105 109 observamos o dobro da duração do tempo da nota. A segunda nota desse compasso apresenta a mesma duração que a primeira, no entanto um intervalo de oitava descendente existe em relação à primeira. Ainda no segundo compasso, um intervalo de um tempo e meio antecede a repetição do mesmo esquema de notas do final do primeiro compasso e começo do segundo. Essa segunda frase, que dura até o terceiro compasso, é antecedida por uma colcheia na altura do Sol 4, que divide o espaço desse compasso com um intervalo de tempo menor do que o insterstício anterior: apenas um tempo inteiro de duração de pausa, contra os dois tempos e meio do primeiro compasso. No quarto compasso se encerra a apresentação dos termos “Banida, Abandonada e Rompidos107” que, por sua vez, trazem o intervalo de oitava de “para sempre108”, extraído do primeiro trecho do Quinto Verso (ainda que um tom inteiro acima). Isso implica que o sentido do termo “para sempre” foi incorporado aos três termos da penalidade a ser aplicada a Pamina. Isso implica considerar que há um realce da ideia perpétua da pena. Ainda no quarto compasso, após uma pausa de um tempo, duas semi-colcheias, na altura do Sol 3 são seguidas por um Fá 4 na duração de uma semínima, já no quinto compasso. Outra semínima, na altura do Ré 4, fecha esse compasso. No sexto compasso, a sequência descendente iniciada no compasso anterior segue passando, em um intervalo de terça menor, do Ré 4 para o Si 3, uma modificação do grau subdominante. Esta nota é seguida por um Mi 4 no intervalo de quarta justa, mantendo o esquema de duração das notas do compasso anterior. Esse trecho se encerra no sétimo compasso em um Lá 3 de duração igual a um tempo. 11.7.1 O Sétimo Verso (Extensão) Esse trecho é entrecortado por um novo motivo puramente musical no canto da Rainha da Noite durante a Ária 14. Ao nível da semântica, temos uma ênfase da posição que Pamina irá ocupar em relação à mãe caso ela, como filha, não obedeça à imposição feita pela mãe de trazer o Círculo de Ouro. Quando a Rainha afirma que serão rompidos os laços naturais ela está se referindo à relação mãe e filha estabelecida desde o nascimento de Pamina a partir do ventre da Rainha da Noite. A indicação da fala no 107 108 Verstoβen, verlaβen e zertrümmert ewig 110 tempo do futuro e o resgate do critério condicional nos revela que Pamina deixará de ser filha caso ela não obedeça à mãe. A Rainha canta: “todos os laços naturais109”. A figura 17 ilustra o trecho da partitura utilizado no sétimo verso da Ária 14. Na figura está ilustrada uma repetição do verso anterior enfatizando a ameaça à Pamina que, por sua vez, irá temer o abandono de sua mãe. Uma sequência puramente musical com a presença de tercinas e staccatos pode ser observada. Figura 17: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao sétimo verso (extensão) da Ária 14 No primeiro compasso do da figura 17 temos duas mínimas, uma na altura de Lá 3 e outra na altura do Mi 4, marcando a presença do terceiro e do sétimo grau de Fá Maior. No segundo compasso iniciam as tercinas que ilustram a vogal "a" contida na sílaba "Ba" de "Bande". As tercinas desse compasso possuem, a partir da nota central, uma sequência na seguinte dinâmica: ascendente (Sol 4 para Si 4), descendente (Si 4 para Sol 4), descendente (Sol 4 para Mi 4). As tercinas continuam no terceiro compasso caindo numa segunda menor do Ré 4 do final do segundo compasso para o Dó#4 do terceiro (modificação do grau dominante). A nota central da primeira tercina desse compasso, um Ré 4, cai para o Sibequadro 3 (modificação do grau subdominante, marcando a nota central da segunda tercina), como que numa segunda aumentada, voltando para o Ré 4 (na nota central da 109 alle Bande der Natur… 111 terceira tercina) que depois segue para o Fá 4, também em segunda aumentada. No quarto compasso, a sequência melódica das tercinas inicia-se em Sol 4 (segunda maior na nota central da primeira tercina), subindo para Si 4 (por meio de uma terça maior), descendendo de volta para o Sol 4 e, finalmente, descendendo para o Mi 4 (numa segunda aumentada). No quinto compasso, as modificações sobre a dominante e a subdominante do terceiro compasso voltam a aparecer, de forma que o terceiro e o quinto compasso são idênticos, rítmica, melódica e harmonicamente. O sexto compasso encerra a longa frase das tercinas em um Fá 4. Quatro tempos inteiros de pausa antecedem o sétimo compasso que, após uma pausa de meio tempo, apresenta notas em staccato. As quatro primeiras notas do sétimo compasso estão numa sequência ascendente, culminando no clímax de todo o trecho (Ré 5). Após o clímax, a sequência retorna para o Lá 4, sobe para o Si 4 e, depois, descende um pouco mais para o Sol 4. No oitavo compasso a sequência repousa num Lá 4 de um tempo inteiro. A nota é seguida por três tempos de pausa. O nono compasso é idêntico ao sétimo. No entanto, a sequência desse compasso não é dada numa semínima, mas numa colcheia, ainda que tenhamos notas de mesma altura (Lá 4). Esse Lá é seguido por uma série de colcheias que seguem numa sequência que ora ascende e ora descende, sempre em stacatto. Essa sequência se desdobra até o 12º compasso, quando a série vocalizada a partir do "a" de “laços110” se encerrra. O 13º compasso começa com uma nota de dois tempos numa segunda menor descendente em relação ao 12º, numa modificação da sensível que é seguida por uma quarta diminuta na sequência do Mi-bemol 4 para o Sol 4. A mesma quarta diminuta aparece na sequência do 13º para o 14º compasso na sequência para o Si 4. Após essa nota, temos uma sequência descendente dupla de quartas diminutas e, no final do 14º, assim como na passagem dele para o 15º, temos intervalos de segunda menor. A modificação na dominante é o registro do encerramento desse trecho. 11.8 O OITAVO VERSO A figura 18 ilustra o trecho da partitura utilizado no oitavo verso da Ária 14. 110 Bande. 112 Nesse verso temos uma repetição do que Pamina deve fazer para manter os laços de família com sua mãe. A repetição da menção ao nome de Sarastro indica uma posição da Rainha que é a de enfatizar. Ela está fixada na atualização do seu desejo de se vingar daquele que agora possui o Círculo de Ouro e que lhe veta à entrada na fraternidade. Nesse trecho a Rainha canta: “Se não levares Sarastro à sua Morte111!”. Figura 18: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao oitavo verso da Ária 14 O primeiro compasso inicia-se com o fechamento do verso anterior e uma pausa que antecede o novo verso. O termo “wenn” está assinalado por uma nota Lá 3 de um tempo, marcando o início do oitavo verso. No segundo compasso temos o Dó# 4 indicando a presença do intervalo de terça maior, com uma modificação sobre o grau subdominante, nota que possui dois tempos. Ela é seguida de uma pausa com duração de um tempo. No terceiro compasso temos a resolução da enunciação de “por você112” que repete a dinâmica da duração das notas de “se não113”. Ambas são também organizadas em sequências ascendentes. O intervalo entre “por você” é meio tom menor do que em “se não”, por isso o intervalo deste trecho possui uma amplitude maior. Uma pausa de um tempo separa o primeiro trecho do segundo que, por sua vez, fará menção a Sarastro. A sílaba “Sa” possui a mesma altura do termo “por114”, mas apenas a metade do tempo. No quarto compasso completa-se a enunciação de Sarastro em duas notas de um tempo, assim como a da nota que canta Sa, no compasso anterior. A sequência do tempo marca a divisão silábica do nome do chefe da ordem sagrada, na seguinte sequência de notas: Mi, Sol, Mi. O compasso termina com duas notas de um tempo acompanhando a enunciação de “wird er(blassen)”. “Wird” está acompanhada de um 111 Wenn nicht durch dich Sarastro wird erblassen. durch dich. 113 wenn nicht. 114 Dich. 112 113 acidente de Dó# 4 em “er”, no mesmo grau subdominante modificado no segundo compasso, na sequência descendente em relação ao Mi 4. Na sequencia de “wird” temos a quebra da sequência de intervalos de terças menores, passando a apresentar uma terça maior, o mesmo que intercala os termos “wenn” e “nicht” do início do oitavo verso. O quinto compasso está preenchido por um longo Si-bemol 3 de dois tempos, que surge a partir do intervalo de terça diminuta ascendente. O compasso acompanha a sílaba "blas” que pertence ao termo “tornar pálido115”. No sexto compasso se encerra a enunciação de “tornar pálido” em um retorno a nota inicial desse trecho, o Lá 3, na terça diminuta descendente. Dessa maneira, notamos que tanto os termos “Sarastro” como “empalidecer” são dados em três notas na seguinte sequência: ascendência – descendência em terças diminutas. 11.9 O NONO VERSO O último e nono verso da Ária 14 é uma expressão de clamor e chamado aos deuses da vingança. Nele, a Rainha expressa a sua posição de aliança com entidades divinas. Nele ela canta: “Escuta, escuta, escuta. Deuses, ouvi as juras maternais 116!”. A figura 19 ilustra o trecho da partitura utilizado no nono verso da Ária 14: Figura 19: Trecho da partitura de Die Zauberflöte, de Wolfgang Amadeus Mozart, referente ao nono verso da Ária 14 No primeiro compasso do trecho apresentado na figura 19, podemos observar uma nota Ré 4, de dois tempos, seguida de uma pausa, de igual valor. No segundo compasso podemos observar uma nota Fá 4, de dois tempos, seguida de uma pausa com o mesmo valor que a do compasso anterior. No terceiro compasso, uma sequência de dez tempos é iniciada em uma nota Si 4, encerrando uma sequência ascendente nas notas da tríade: “Escuta, escuta, escuta”. Este será o clímax do nono verso, já que se 115 116 Erblassen. Hört, hört, hört. Rachegötter! Hört der Mutter Schwur. 114 trata da nota mais aguda a ser executada. Trata-se de um clímax de extensão prolongada, que irá atravessar todo o quarto compasso e o início do quinto. Neste, após a nota Si 4 conectada pela ligadura, podemos observar uma sequência descendente para o Sol 4, seguida de um Mi-bemol 4. Os dois intervalos são de quarta diminuta. É possível notar ainda que o tempo da enunciação de cada sílaba é menor à medida que são transcorridas as notas nesse compasso: Após o Si 4 com duração de dois tempos, temos uma nota de um tempo e meio seguida de uma nota de meio tempo. Nesse compasso, ocorre a segunda aparição, na Ária 14, do termo “Vingança”, num intervalo de quarta diminuta com uma modificação sobre o grau sensível. No sexto compasso, duas notas são executadas numa sequência descendente numa dupla sequência de segunda menor a partir do quinto compasso, partindo do Mib4 para o Ré 4 que, por sua vez, cai para o Dó# 4. Uma pausa fecha o compasso. No sétimo compasso uma nota de quatro tempos da mesma altura da segunda enunciação de “escuta” aparece isolada, três tons abaixo do “escuta” executado pelos Si 4 conectados pela ligadura. O oitavo compasso é aberto em uma pausa marcando uma separação entre “escuta” e “as juras de uma mãe117”! Após a pausa, uma sequência de dois Ré 4 são intercalados por uma modificação sobre a dominante, criando o Dó# 4 entre dois intervalos de segunda menor (o primeiro descendente e o segundo ascendente). Esse intervalo é o mesmo daquele em “deuses118”, mantendo-se a altura das notas, o que indica uma aproximação ao nível de secundidade e terceiridade entre a “Mãe” e os “Deuses (da vingança)”. Ao nível do ritmo ocorre uma acentuação do tempo empregado na sílaba “Mut-” de “Mãe119”. Inclusive, o termo “Mãe” possui uma lógica rítmica semelhante a “Rache”, o que indica uma fixação à nível de primeiridade, oferecendo uma aproximação de significado musical entre “Vingança” e “Mãe” – ao nível da primeiridade. No nono compasso temos a enunciação do termo “jura120” em uma nota de dois tempos, a mais grave de todo o compasso, o Lá 3. Uma pausa fecha o compasso. No décimo compasso temos uma pausa de quatro tempos. 117 der Mutter Schwur. Götter. 119 Mutter 120 Schwur 118 115 TOMO IV – ANÁLISE ESQUEMATIZADA DA PARTITURA PARA CANTO VOCAL (SOLO) DA ÁRIA 14 DA “FLAUTA MÁGICA” 12 MONTANDO O ESQUEMA DE ANÁLISE: O SENTIR E A ARQUITETURA DA VINGANÇA O andamento da Aria é Allegro Assai, que significa muito rápido, o que pode apontar para o descontrole emocional da Rainha. A chave enganosa do Fá Maior e suas variações sugerem que a Rainha, do ponto de vista da sonoridade do canto, promove uma comunicação voltada para a efetivação de uma chantagem emocional de forma que seja montado um plano de vingança. Além de Sarastro, a sua filha Pamina também passa a ser alvo da vingança por meio de operações de deslocamento. Isso porque já não é possível se vingar diretamente do marido viúvo, mas de quem, por relações de contiguidade com ele, possa assumir essa culpa, ainda que por meio de certa dose de deslocamento. O ódio da Rainha provoca um aumento da dor o que irá, do ponto de vista do reforço energético, oriundo das energias sexuais, mobilizar um ataque de proporções que seguem a ideia geral: os fins justificam os meios. Os trechos das notas agudas dos melismas cantados pela Rainha são a projeção da sua natureza mais interna, revelando seus desejos íntimos de destruição e de posse daquele objeto que dá a ela o direito a participar do campo do Poder Moral121, o da autorização de fazer parte da fraternidade. No entanto, como a ela é negado, há uma ferida narcísica que toma o lugar da sua psiquê e, consequentemente, ela fica impedida de amar, já que agora ela só consegue sentir o ódio, que toma conta dela. Mas esse sentimento não fica voltado para ela, como no caso da depressão crônica, mas voltado para figuras secundárias, alvos da vingança eleitos pela operação de deslocamento. Podemos dizer que a voz da diva está em oposição à fonte do Poder Moral que lhe é negado por Sarastro. Essa intervenção do supereu representado por Sarastro é uma interveção que institui a separação simbólica entre mãe e filho e que não possui o encantamento paradisíaco proporcionado somente por uma estada na Shangri-la do júbilo afetivo. Isso provoca a sensação da ferida, que a Rainha, via regressão, irá buscar reparar procurando o conforto no supereu mais próximo ao que tinha quando era uma 121 Dürfen. 116 criança, evidenciado por certos padrões rítmicos repetitivos ao longo da Ária 14, como em “Infernal122”. No caso da Rainha da Noite podemos identificar ainda o Círculo da Forma, proposto por Weizsäcker, que revela a dinâmica da vingança como uma resposta ao limite imposto pelo verbo pathico Poder Moral: “À Rainha não é permitido”. Questões relativas ao verbo Dever Moral123 não são levadas em consideração em virtude do supereu estar voltado para garantir a segurança do eu pela via da satisfação que o verbo “Wollen” busca encontrar, em virtude da necessidade gerada no âmbito do verbo “Müssen”. É possível sistematizar a Ária 14 em duas partes. Uma mais voltada para a descrição do que é sentido pela Rainha, e outra voltada para a constituição da arquitetura da vingança. Os dois primeiros versos estão contidos na primeira estrutura, enquanto os demais se encontram na estrutura da arquitetura da vingança e da constituição da ameaça. Na tabela 2 é possível observar cada um dos versos na língua original do libretto, assim como a estrutura à qual pertencem. É possível ainda notar como que o libretto precisa se adaptar à partitura, conforme demonstrado no TOMO III dessa dissertação. 122 123 Der Holle. Sollen. 117 Tabela 2: A Ária 14 da Flauta Mágica de Mozart em duas estruturas Verso Verso Trecho do libretto original em alemão (libretto) (libretto e referente a cada verso Estrutura Partitura) 1º verso 1º verso Der Hölle Rache kocht in meinem 1ª estrutura herzen Tot und verzweiflung 2ª verso 2ª verso O Sentir Tot und verzweiflung flammet um mich her! Fühlt nicht durch dich Sarastro 3º verso 3º verso Todesschmerzen Sarastro todesschmerzen, So bist du meine tochter nimmermehr So bist du mein', meine tochter nimmermehr 4º verso 4º verso -Trecho sem texto 2ª estrutura Meine tochter nimmermehr -Trecho sem texto So bist du meine tochter nimmermehr 5º verso 5º verso Verstossen sei auf ewig, Verlassen sei auf ewig 6º verso Zertrümmert sei'n auf ewig Alle bande der natur Verstossen Verlassen 6º verso 7º verso Und zertrümmert Alle bande der natur Alle Bande… (Trecho sem texto) Alle bande der natur 7º verso 8º verso Wenn nicht durch dich Sarastro wird erblassen! 8º verso 9º verso Hört, Hört, Hört, Rachegötter! Hört Der Mutter Schwur! A Constituição da Ameaça 118 Na 1ª estrutura, a Rainha revela como está o seu sentimento em relação ao corpo próprio. De forma a organizar as ideias ligadas ao problema do sentir, propomos a sistematização conforme a figura 20. Figura 20: O sentir da Rainha da Noite na primeira estrutura da Ária 14 Na figura 20 estão dispostos os nomes que qualificam o sentir da Rainha da Noite. Os verbos que ela enuncia são arder e inflamar. O primeiro está ligado à ideia “infernal”. O segundo está localizado no eixo “morte-desespero”. Os dois verbos estão expressando o que é típico do indivíduo na posição vingativa: A raiva que decorre da ferida narcísica e uma regressão egóica associada ao supereu enquanto o Isso está livre para pulsar em plena ardência “à flor da pele”. Esse arder gera um alerta que promove o retorno do Supereu para a garantia da segurança do Eu, enquanto o Isso age livremente. Segundo a lógica do círculo da forma, o querer da Rainha da Noite é movido pela ardência e inflamação sentidas no seu corpo. Esse sentimento doloroso é qualificado pelo desespero, a morte e a vingança. A Rainha de fato sofreu uma perda e isso requer a vingança. Arder e inflamar são verbos que qualificam a pulsão vinda do Isso e a qualificam no sentido de mobilizarem a garantia da segurança pessoal que se coloca à frente de outras questões humanas, como a moral social ligada ao verbo Dever Moral. Assim, a primeira estrutura da Ária 14 revela o funcionamento da vingança no âmbito do sentimento e do querer124 em oposição ao poder moral125 e à moral social126. É preciso também que a personagem que deseja se vingar é obtenha os meios para satisfazer-se. Esses meios são apresentados na segunda estrutura da Ária 14, que revela a dinâmica do querer numa dialética com o poder moral na lógica da vingança efetivada na ameaça verbal da Rainha da Noite. 124 Wollen. Dürfen. 126 Sollen. 125 119 Em virtude da negação imposta ela pela via do verbo Poder Moral (a ela não é permitido), a Rainha irá buscar o poder para que ela possa obter o Círculo de Ouro e vingar-se de Sarastro. Assim ela buscará reocupar o lugar almejado pelo seu Ideal do Eu, que é a de possuidora do Círculo, que lhe permite regojizar-se narcísicamente, o que lhe foi roubado pela negação imposta pela retirada do Círculo de seu domínio. Para Abraham (1922), a figura vingativa não deseja apenas se reparar obtendo o objeto que lhe foi tirado, mas também deseja diminuir o poder de quem lhe ameaçou e concretizou a ameaça. Na Ária 14, essa afirmação oriunda do contexto clínico encontra-se no fato de que a Rainha buscará tentar matar Sarastro pedindo a sua própria filha que o faça. Nesse contexto, podemos notar a posição da Rainha em relação à filha que é típica daquela mãe vingativa que não permite aos filhos um processo de individuação que é saudável (Whitehead, 1978). Isso implica que a filha não pode realizar-se e ser feliz, tampouco tornar-se adulta, já que deve se curvar à mãe. Abraham (1922) constata que a ameaça à filha é realizada enquanto que a mãe quer se vingar do falecido marido o que ocorre devido à desorganização do pensamento que ocorre na mente da mãe e que devido a operações de deslocamento no seio dos laços familiares, ou seja, por contiguidade, a Rainha se vinga projetando seu ódio sobre Pamina. Por isso ela tentará fazer a filha infeliz. Existe ainda outro problema em questão: Mães podem sofrer de alguma ferida narcísica, cujo processo teve início no reconhecimento da genitália durante a infância. Ela nota que há uma ferida, um corte. Na vida adulta elas exigem dos filhos que exerçam a função do pênis faltante. Assim, a filha está fadada a ceder aos seus próprios intentos de se tornar mulher e casar com Pamino para que possa ajudar a sua mãe na trama de sangue. Ela assumirá a responsabilidade de promover o bem-estar do eu da orgulhosa e decaída Rainha da Noite. Assim, enquanto a Rainha está provocada por uma dor narcísica ela irá arquitetar um plano que irá possibilitar o retorno para a sensação de segurança, necessária ao seu eu. A tabela 3 apresenta um resumo dos verbos de ação usados na cena da Ária 14 pela Rainha da Noite. 120 Tabela 3: Ameça à Pamina na Ária 14 Verbo conforme Verbo no infinitivo Destinatário do verbo Matar Matar (Levar à morte) Sarastro Chamar (Não) Chamar Pamina Banida Banir Pamina Abandonada Abandonar Pamina Rompidos Romper Laços naturais com Pamina Ouvir Ouçam Deuses da vingança conjugação na Ária 14 A tabela 3 revela uma série de ações. Primeiro, ela indica o que Pamina deve fazer: Matar Sarastro, ação a ser tomada com um punhal. Esse ato se coloca como uma condição sine qua non para que a Rainha da Noite continue sendo uma mãe fiel à filha. O latrocínio enquanto transgressão do direito à vida se faz sem haver qualquer preocupação moral por parte da Rainha, uma vez que sua ferida narcísica a impede de se ocupar com questões que não concernam diretamente à segurança do seu eu. A Rainha recebeu tudo como herança de seu marido, a filha, as terras e as riquezas, mas não o Círculo de Ouro, símbolo da honra, reconhecimento do (grande) outro. O falecido o deixou como herança para Sarastro, protetor da ordem que preza pela razão, a fraternidade e a caridade como grandes ideais. A má formação do supereu da Rainha da Noite a coloca nessa busca pelo Ideal do Eu e de formas de reobter a sensação de segurança perdida, já que o Eu sente-se roubado, ferido e com a honra perdida. A disposição para formar um Ideal do Eu que viva em harmonia com os outros não existe enquanto que o Círculo de Ouro ocupa a posição do Ideal do Eu extraviado (Castarède, 2002). Dessa maneira, mandar Pamina matar Sarastro e trazer de volta o Círculo de Ouro significa pedir à filha que resgate a honra da mãe. Como complemento ao pedido feito pela Rainha, existe também uma situação de chantagem, marcada pelos verbos chamar (em negação), Banir, Romper e Abandonar. Na figura 21 podemos observar a esquematização dos quatro verbos. Caso observemos os trechos da partitura que se referem aos verbos dessa figura veremos que eles estão próximos aos trechos puramente musicais. 121 Figura 21: Os verbos utilizados na ameaça à Pamina. Enquanto matar é a condição imposta, o restante dos versos vem a indicar a punição caso Pamina não obedeça, qual seja o ostracismo que lhe será imposto. O banimento da convivência em sociedade era uma punição severa na Grécia Antiga. O ostracismo se configura como uma ameaça poderosa na mente de Pamina e a Rainha a impõe de forma repetida. Ao analisar a figura 21 em sentido horário, primeiramente ela não irá chamar Pamina de filha, trazendo uma fala puramente musical. Em segundo lugar ela coloca que Pamina será abandona à própria sorte, sendo banida da convivência com sua mãe: para sempre serão rompidos os laços naturais. Em terceiro, a ameaça se repete excluindo o termo que marca o aspecto temporal, mas, inserindo ele nos verbos por meio de operações de deslocamento e condensação. Também no terceiro momento está o terceiro enunciado puramente musical da Ária 14. Esse trecho, segundo Kobbé (1997), é uma das mais famosas passagens da ópera. Segundo Everett (1991), ele é a expressão da profunda dor sentida pela Rainha da Noite. A Ária é fechada com a conjuração dos deuses da vingança. Esse momento marca o fechamento da arquitetura da vingança, que traz a ordem para Pamina para que mate Sarastro. Dessa maneira, ela faz o pedido para Pamina, buscando apoio para o resgate da segurança do seu eu e da sua honra. Essa ordem aparece duas vezes, intercalada pela questão da ameaça. Ela surge como uma tentativa inicial da Rainha de reparar a própria ferida narcísica, fazendo com que Pamina sofra alguma ameaça de castração, ligada ao ostracismo. Essa imposição de ameaça à Pamina é uma forma de 122 lutar contra o mecanismo conjugado entre ameaça e efetivação da castração. A rainha opta por ameaçar em vez de ficar se culpando numa posição depressiva. A figura 22 revela a sequência da segunda estrutura que incorpora o pedido a Pamina de que ela mate Sarastro, a ameaça à Pamina, e a conjuração dos deuses da vingança. Figura 22: O plano vingativo da Rainha em quatro momentos (Segunda estrutura) Após a sistematização da primeira e da segunda estrutura, é possível identificar exemplos de aspectos de primeiridade, secundidade e terceiridade musical, cujos correlatos são o ritmo, a melodia e a harmonia, respectivamente (Santaella, 2001). As duas estruturas, a do sentir e a da ameaça serão analisadas separadamente devido a uma finalidade didática em explicar a lógica da vingança na personagem que estamos conhecendo. 123 12.1 PRIMEIRIDADE MUSICAL 12.1.1 Primeiridade Musical, o Sentir e a Vingança No âmbito da primeiridade musical, Santaella (2001) considera o ritmo e os seus parâmetros como foco de análise. Um aspecto que pode ser analisado do ponto de vista do ritmo é a duração das notas, e se há repetição ou variação entre elas a partir de determinados trechos de uma partitura. A duração diz respeito ao próprio tempo que é utilizado na execução das notas no seu processo acústico. As figuras 23 e 24 ilustram os trechos da partitura relativos à primeira estrutura da Ária 14, ligada ao sentir da Rainha da Noite, conforme a tabela 2 e a figura 20. Figura 23: Trecho da partitura referente ao primeiro verso da Ária 14 Figura 24: Trecho da partitura referente ao segundo verso da Ária 14 Nas figuras 23 e 24 podemos observar repetições e variações na duração das notas. Se articularmos essas figuras que indicam as qualidades do sentir da Rainha, com as respectivas marcações indicadas na partitura, iremos obter a figura 25: 124 Figura 25: O sentir da Rainha da Noite referenciada na partitura da Ária 14 Podemos extrair, a partir da análise da figura 25, os aspectos que são mobilizados a partir de um poder moral de negação imposto por Sarastro à Rainha da Noite colocando o seu Isso127 em ação e em condição de descontrole em virtude da sua posição vingativa. As ações tomadas pela Rainha são mobilizadas pelo seu sentir doloroso. A partir desse sofrimento provocado pela ansiedade de separação, ela irá se autorizar-se a recorrer à vingança. Isso porque existe uma necessidade, inclusive ligada ao corpo, alimentada pela necessidade física128. Ao nível da duração temporal, o sentir ligado à vingança infernal é marcado por uma repetição na enunciação de “infernal129” o que nos permite indicar a obstrução oferecida pela resistência ao processo de perlaboração, o que é também característica de muitos pacientes vingativos crônicos (Socarides, 1977; Brenner, 1987; Lane, 1995). Essa fixação irá adjetivar a ideia de vingança e irá se manifestar na fonte da pulsão: O peito130, sob o qual fica o coração131. A repetição, nesse caso, é típica de um processo libidinal que atingiu um desenvolvimento, mas que não consegue se reinventar a partir de um ponto o qual recebe forte influência da resistência devido à ansiedade da castração (Freud, 1914). Ademais, podemos denominar esse evento como isométrico, uma vez que todas as notas no intervalo possuem o mesmo tempo (Hérbert, 2012). Essa constatação nos remete à verificação de que o mecanismo da repetição pode ser 127 Das Es. Müssen. 129 Der Holle. 130 Herzen. 131 Herz. 128 125 encontrado paralelamente na linguagem musical e psicanalíticas (Leader, 2010). Na Ária 14 da Flauta Mágica, isso ocorre quando observamos o problema do supereu e o problema de negação social do Poder moral, mobilizador de um auto-autorização, cuja decorrência é uma forte mobilização do Isso que irá atuar livremente, manifestando-se em repetições rítmicas que, no caso da partitura da Ária 14, estão encerradas, por exemplo, na sequência de três notas lá de meio tempo. Outra duração que nos revela um aspecto do Id em chamas da Rainha é o aspecto da morte, indicado por notas longas. As duas menções à morte a partir da repetição do segundo verso são representadas por notas de mesmo tempo, indicando uma estrutura do sentir ligado à morte132. A estrutura revela que a Rainha da Noite sente no corpo uma sensação prolongada marcada por pensamentos ligados à morte já que o processo de enunciação representa temporalmente esse sentir, indicado pelo uso de mínimas nos dois momentos nos quais a Rainha menciona o termo “morte”. Ainda, notamos uma terceira estrutura que é aquela que se liga ao termo desespero. Notamos que Mozart repetiu a estrutura da dinâmica temporal da mesma forma que fez quando marca o termo morte, indicando ambos por meio de interisometrias. O desespero133 é indicado por uma sequência de três notas, a primeira tem a metade da duração que as duas seguintes. O tempo de duração para cada nota referente a desespero é indicado assim: meio-tempo (colcheia); um tempo (semínima); um tempo (semínima). O pensamento clínico sobre o desespero compreende que ele é um fato que provoca o avanço mórbido dos processos pathologicos (Siirala, 1969). Por outro lado, a psicoterapia e o caso dele promover a melhora do paciente, exije o partilhamento da responsabilidade entre terapeuta e paciente, o que se opõe a uma ideia de clínica ôntica que toma o paciente como objeto (Weizsäcker, 1958; Siirala, 1969). No caso da Rainha, como ela é excluída da fraternidade e por não possuir o Círculo de Ouro, ela precisa se permitir a um método que procure devolver o sentimento de segurança para o seu eu. No caso da variação na duração das notas nos trechos referente ao desespero, temos uma parametria, já que a segunda e a terceira nota possuem a mesma duração e se diferem, no mesmo aspecto, da primeira nota (Hérbert, 2012). Isso indica uma sequência sentida que, inicialmente, possui uma sonoridade mais curta que é seguida por uma série de duas sonorizações de tempo maior. O desespero surge como algo súbito e permanece prolongadamente após o espanto da constatação de se estar 132 133 Tod. Verzweiflung. 126 desesperado. Um detalhe relativo ao termo “e134” que precede “desespero” é que ora ela é iniciada por um tempo de pausa mais uma nota de meio tempo preenchida pela nota Mi 4 e ora ela é antecedida por dois tempos de pausa e uma nota Mib 4, sendo então executada em um tempo e meio de Fá# 4. Dessa maneira, a partícula aditiva “e” ora é marcada por meio tempo de música e ora é marcada por um tempo e meio. A repetição da partícula aditiva sugere uma sensação de tempo que se arrasta, e que cada vez se percebe enquanto mais demorado. Isso implica na inflação do aspecto desesperado já que ele parece durar cada vez mais. A supressão da pausa gera a ideia de que há uma contiguidade entre os termos, no sentido de que essas ideias se aproximaram mais (morte e desespero). Os aspectos isométricos encontrados na primeira estrutura da Ária 14, marcados por repetições, representam a relação entre a mãe e o bebê à época do regozijo pleno, do júbilo na Shangri-la dos afetos, marcado por trocas fundadas mais em aspectos rítmicos do que em aspectos verbais. A regressão operada pelo aparelho psíquico da Rainha faz com o núcleo do Supereu, herdeiro do Eu Ideal, seja mantido, e revelado nessas repetições. O problema do narcisismo ligado ao afeto da vingança é indicado no primeiro verso pela sequência isométrica “arde em meu135” (figura 23). Mais específicamente, a sequência de dois Mi 4, representados por colcheias, mostram que há uma fixação de primeiridade. Essa sequência isométrica de quatro notas que se dá em “arde em meu” intercala a presença de “Vingança”136 e “Peito”137, que possuem uma dinâmica de duração que valoriza a primeira nota de “Vingança” que, por sua vez, em “Peito”, passa a ser idêntica à segunda nota do termo. Outro destaque relativo à duração das notas na primeira estrutura é o tempo de duração prolongado de “em chamas138”, ligado ao processo de incitação no corpo e aparelho psíquico da Rainha da Noite, que irá se armazenar no Isso e irá desencadear uma série de ações dela por meio da realização ligada ao verbo pathico “querer139”. Aquele termo é seguido por um trecho de quatro notas de mesma duração, ou seja, marcando uma sequência isométrica ligada ao problema do narcisismo, já que é quando a Rainha faz menção ao problema que ela revela em relação a si mesma. Dessa maneira, 134 Und. kochte in meinem. 136 Rache. 137 Herzen. 138 Flammet. 139 Wollen. 135 127 podemos dizer que há isometria nos dois relatos narcísicos da primeira estrutura da Ária 14, ainda que a duração das notas ligadas à incitação de “em chamas”, que está ligada a “morte” e “desespero” seja maior do que quando ela conta que a “vingança arde”. 12.1.2 Primeiridade Musical, a Ameaça e a Vingança A segunda estrutura da Ária 14 revela o plano da Rainha da Noite, o qual deverá ser obedecido pela filha. Esse é o caso típico da mãe intrusiva que deseja monitorar os pensamentos da filha, se instalando como ideal na mente dela, o que pode desencadear crises vingativas. Enquanto a vingança se dá como uma manifestação da experiência de humilhação vivida na infância e força outra pessoa a experimentar essa sensação, é possível considerar que a Rainha da Noite tenha vivido essa frustração e agora realiza um ato vingativo de forma a expor a filha a esse sentimento (Lane, 1995). Como vimos, a estrutura desse trecho marca o encerramento da Ária 14 e pode ser representado em articulação com a partitura da peça conforme a figura 26, que já destaca o primeiro e o terceiro momento da arquitetura da vingança. 128 Figura 26: O primeiro e o segundo momento da segunda estrutura da Ária 14 Os dois momentos trazem Pamina como destinatária imediata das frases musicais do primeiro e terceiro momento da arquitetura da vingança. No entanto, a ação a ser realizada deverá ter como alvo o personagem Sarastro. No primeiro momento, podemos observar a isometria rítmica entre os termos “sentir140” e “você141”, assim como entre “não142” e “você143” no terceiro momento. Outro aspecto isométrico se dá entre os termos “não” e “por144” no primeiro momento, assim como entre “se145” e “por” no terceiro momento. Isso permite observar uma correlação em nível de primeiridade no que tange a formação da ameaça à Pamina. Enquanto “você” está 140 Fühlt. Dich. 142 Nicht. 143 Dich. 144 Durch. 145 Wenn. 141 129 sempre apresentado por uma mínima de dois tempos, ela se assimila a “sentir” e a “não”. A estrutura “por você146” está sempre posta na sequência de semínima acrescida de mínima, o que também configura uma fixação de primeiridade. A mãe repete o ritmo, no seu aspecto da duração das notas, o que é característica da comunicação entre mãe e bebê: o seu aspecto ritmizado. A ênfase é dada nesse aspecto, o que remete Pamina a um estado emocional pré-natal na compreensão do que sua mãe fala. A filha tem grande certeza de que “é por meio dela”. Trata-se de uma certeza que não é apenas lógica, mas emocional, ao passo que primeiramente é uma certeza que nõ se compreende por palavras. Por outro lado, o termo “se”, que dá o tom de ameaça aos dizeres, tem a mesma duração que “por” e ao “não” do primeiro momento. No entanto, o termo “se” está próximo ao “não” do terceiro momento, que tem o dobro de duração do primeiro. Dessa maneira, a partícula negativa do terceiro momento que acompanha o termo condicional “se” possui uma duração maior do que quando do primeiro momento, no acompanhamento do verbo que indica algum dano: “sentir”. Isso nos revela que o marcador temporal é prolongado quando a condição é repetida, e que quando a condição é anunciada, a partícula negativa é enunciada durante um tempo menor. Nesse sentido, há um realce quanto à indesejabilidade de que Pamina não obedeça à mãe. Ao considerar a menção ao nome de Sarastro como quem deve morrer, podemos notar que no primeiro momento há uma isometria rítmica nos dois trechos da enunciação da Rainha, enquanto que no terceiro momento da segunda estrutura, o nome de Sarastro também é mencionado a partir de uma isometria rítmica. No entanto, podemos observar uma diferença entre o 1º e o 3º momento: No último, o nome de Sarastro é mencionado em semínimas, ou seja, em três tempos inteiros, enquanto que no primeiro, o total é de dois tempos e meio de som, ou seja, cinco colcheias. Isso nos revela que no primeiro momento, há uma hesitação na fala da Rainha, e que só aos poucos ela vai consolidando o plano: os três tempos cheios apenas aparecem no terceiro momento. A hesitação se evidencia pela variação da duração das notas, marcando uma imprecisão. Como já constatamos que o sentir ao nível da primeiridade envolve a noção de uma inflação do ódio, na segunda estrutura notamos uma progressão na certeza de quem 146 durch dich. 130 deverá pagar o preço por ter provocado aquele ódio. Ao passo que a Rainha vai realizando a ameaça ela vai se comprometendo com o seu Isso que está procurando aginr livremente, não só para reobter o círculo, mas para se vingar de quem ameaçou a sua estabilidade psíquica: Sarastro, que recebeu o Círculo de Ouro pela herança do marido, falecido, da Rainha da Noite. Vale ressaltar que a isometria só é válida se considerarmos os trechos do primeiro momento entre si, e os tempos do terceiro momento também entre si, sendo que ao considerar a progressão do primeiro para o terceiro temos uma parametria, já que há uma dilatação do tempo das notas. Também podemos observar a estrutura do ritmo a partir do fechamento do primeiro e do terceiro momento da segunda estrutra da Ária 14. Na tabela 4 podemos sumarizar os fechamentos das frases musicais: Tabela 4: O fechamento do primeiro e do terceiro momento da segunda estrutura da Ária 14 Momento Libretto original Tradução do libretto 1º Sarastro Todesschmerzen Morte dolorosa Sarastro Todesschmerzen 3º Sarastro wird erblassen Tornar pálido (como a morte) Ao considerar o aspecto rítmico da partitura quando da enunciação de “Dar a pena de morte”, podemos notar uma repetição na estrutura do tempo, notando a presença de duas estruturas que são intra-isométricas e inter-paramétricas quando comparadas as estruturas “Sarastro Todes”- e “Schmerzen” e inter-isométricas quando comparamos as duas enunciações do primeiro momento. Já a enunciação de “tornar pálido147” possui uma sequência temporal diferente. Temos três notas de um tempo e uma nota de dois tempos. Nesse sentido, a metáfora “tornar pálido” remete à mesma ideia de “Morte dolorosa148”. No entanto, ao nível da primeiridade, constatamos uma das duas sequências do primeiro momento, para uma total reinvenção rítmica no fechamento do terceiro momento. Podemos então analisar o segundo momento, que diz respeito ao jogo de ameaças que a Rainha faz à filha para que ela aceda à sua vontade. Esse jogo aparece 147 148 wird erblassen. Todesschmerzen. 131 entre o primeiro e o terceiro momento (figura 26), como podemos constatar na figura 27. Nela, podemos observar o vértice superior da figura 21. A figura 28 apresenta o vértice inferior direito da figura 21 e a figura 29 apresenta o vértice inferior esquerdo da figura 21. A figura 27 ilustra o quarto verso da Ária 14. Figura 27: Vértice superior do segundo momento da segunda estrutura da Ária 14: A ameaça à Pamina Na figura 27, podemos observar uma sequência de duas frases seguidas de uma frase puramente musical. Na sequência, uma parcela da primeira frase reaparece e ela, por sua vez, é seguida novamente por duas frases puramente musicais. Esse trecho se encerra com uma última repetição da frase na qual a Rainha da Noite alega que, caso Pamina não traga de volta o Círculo de Ouro e mate Sarastro, ela não será mãe de Pamina. Tomemos como ponto de partida análise o primeiro compasso da figura 27. Nele, temos três notas de mesma duração. No entanto, esse padrão não se repete no segundo compasso ou no momento em que a Rainha canta “So bist du”. Essa variação indica o tom de incerteza com relação ao futuro via primeiridade. A ameaça que traz uma condição para a manutenção dos laços familiares carrega essa incerteza, o que irá 132 promover angústia em Pamina, que deverá escolher entre o amor de Tamino e o amor da mãe (a Rainha da Noite). Outro aspecto de ritmo é encontrado no termo “filha149”, que possui a mesma duração tanto na primeira quanto na segunda frase: Uma semínima acrescida de um tempo seguida de uma colcheia. Na terceira vez que aparece ela possui a mesma duração que a da quarta: duas mínimas. Outra estrutura semelhante no que tange à duração das notas é encontrada na enunciação de “nunca mais150”. Aqui, a primeira e a segunda estrutura são idênticas do ponto de vista da duração das notas. A terceira e a quarta se diferem apenas no que concerne à duração da última nota que, na quarta aparição, possui a metade da duração da terceira. Ao observarmos a estrutura rítmica do pronome possessivo “minha151”, notamos que, na terceira e na quarta aparição, ela é idêntica, do ponto de vista da duração das notas, às duas primeiras aparições do termo “filha”, o que acaba marcando o relacionamento mãe-filha via primeiridade. Por sua vez, a primeira vez que o termo “minha” aparece, surge com uma estrutura de duração de notas idêntica à da terceira e quarta aparição do termo “filha”, o que reforça a ideia da vinculação mãe-filha por meio da primeiridade. A segunda presença do termo “minha” traz uma variação no arranjo da duração das notas que está inclusive intercalada por uma pausa. Essa variação sugere a presença da ameaça que a Rainha da Noite faz: existe a possibilidade do laço natural marcado pelo pronome “minha” se desfazer. A frase puramente musical é uma marca registrada da Ária 14. Ela é aberta por uma apoggiatura seguida de quatro semi-colcheias unidas por uma ligadura. Os agudos desse trecho são as projeções de seus sofrimentos mais profundos e indicam, musicalmente, a dinâmica da vingança (de forma bem peculiar). A estrutura fixada no ritmo é bem evidente: “appoggiatura seguida de semi-colcheias pontilhadas” mais “oito colcheias destacadas por pontilhados que se encerram em uma nota longa, de dois tempos”. Se por um lado esse trecho ilustra a profunda dor sentida pela Rainha, ela deve ser considerada como uma representação musical da ferida narcísica e, portanto, como uma das fontes do sofrimento psíquico da Rainha. A terceira frase possui uma diferença quanto à duração das notas em relação às duas anteriores: Em vez de uma nota longa indicar a resolução da frase, ela se faz em uma nota de um tempo. 149 Tochter. Nimmermehr. 151 Meine. 150 133 A figura 28 ilustra o trecho referente ao quinto e ao sexto verso da Ária 14. Nele, a Rainha irá reforçar a ideia da ameaça por meio do ostracismo que será imposto à Pamina caso ela não obedeça à sua mãe (a Rainha da Noite). Figura 28: Vértice inferior direito do segundo momento da segunda estrutura da Ária 14: A ameaça à Pamina Na figura 28 temos os três termos que compõe a primeira parte da ameaça do eixo: “Banida152”, “Abandonada153” e “Rompidos154”. Os três termos estão acompanhados pelo termo “ewig” que dá uma ideia temporal de eternidade ligada à ameaça. Inclusive, o termo “para sempre155”, é sempre marcado por uma sequência de duas notas de um tempo, ou seja, com a mesma duração temporal. Quanto aos três termos, também podemos notar uma estrutura temporal também idêntica. A sequência: colcheia seguida por semínima mais um tempo seguida então por outra colcheia é a mesma para os três verbos, o que indica uma aproximação no nível da primeiridade entre os termos utilizados para marcar a separação entre Pamina e a Rainha da Noite: Banir, abandonar e romper. Os conectivos “sei” e “auf” também possuem sempre o mesmo tempo, representado por uma semínima mais um tempo, sendo seguido por uma colcheia. 152 Verstoβen. Verlaβen. 154 Zertrümmert. 155 Ewig. 153 134 A conclusão da ameaça se resolve em uma sequência de duas colcheias que marcam a enunciação de “alle”, duas mínimas que marcam a enunciação de "laços156" e a sequência de uma mínima seguida de uma semínima que marcam a enunciação de "natureza157". Essa estrutura também é observada na figura 29, que ilustra a continuação do sexto verso que, por possuir uma estrutura musical diferente, denomino nesse estudo como “sétimo verso”. Ele ilustra o vértice inferior esquerdo, relativo ao terceiro momento da segunda estrutura da Ária 14, o da ameaça à Pamina. Figura 29: Vértice inferior esquerdo do segundo momento da segunda estrutura da Ária 14: A ameaça à Pamina Além da semelhança da estrutura de duração das notas de “todos os laços naturais158” entre a figura 28 e o que aparece a partir do quarto compasso da figura 28 (vide figura 16), temos uma frase puramente musical que acompanha o canto da vogal “a” de “Bande”. A marca registrada da duração das notas nesse trecho são as tercinas. Elas são seguidas por aqueles agudos que representam a ferida narcísica, complementando a representação da figura 27. Inclusive, a duração das notas usadas para ilustrar a ferida na figura 29 é idêntica à daquelas utilizadas no 13º e 24º compasso da figura 27. 156 Bande. Natur. 158 alle Bande der Natur. 157 135 As tercinas apresentam o primeiro momento puramente musical da figura 29 e trazem a ideia de gratificação prazerosa ligada ao ritmo que surge com a regressão. Na dinâmica da regressão, o objeto de amor mantido é o da identificação primária, cuja finalidade é a de garantir a sensação de segurança e bem-estar do ego. Junto ao problema da ameaça da mãe-intrusiva, essa repetição das tercinas junto com a repetição das colcheias do vértice superior (figura 27) e as do nono ao 12º compasso do vértice inferior esquerdo (figura 29) ajudam a compreender a ambivalência típica dos pacientes que sofrem com o afeto vingativo: Eles sentem ódio por terem sido rejeitados, mas, ao mesmo tempo, guardam um afeto amoroso em relação ao núcleo do Supereu, aquele oriundo da introjeção canibalística dos pais. Na figura 29, temos ainda a presença dos termos “Banida”, “Abandonada” e “Rompidos”. Novamente, os três verbos possuem a mesma sequência temporal, que agora é de uma colcheia seguida por duas semínimas, o que indica uma divisão temporal igual entre as duas últimas sílabas de cada termo. Na figura 29 é possível notar que o termo “para sempre”, que aparecia na figura 28 apresentado por um intervalo de oitava, agora não mais aparece, a não ser pela sugestão feita pelo intervalo de oitava que surge ao final e inscrito nos três termos. Ainda que o intervalo seja uma medida de terceiridade, a perspectiva da duração das notas também pode ser observada sendo deslocada de “para sempre” para cada um dos três termos, todas ilustradas por semínimas. O quarto momento da segunda estrutura pode ser encontrado na figura 30. Nele, a Rainha da Noite conjura os deuses da vingança a participar da sua trama. Figura 30: A invocação dos deuses da vingança Na figura 30, podemos observar um primeiro aspecto do tempo que é a longa duração dos verbos que marcam o chamado aos deuses da vingança. Ao todo são quatro chamados, os dois primeiros são de dois tempos, intercalados por uma pausa de também dois tempos e, após um chamado de dez tempos, se revela o destinatário do chamado: 136 “Deuses da vingança159”. Um aspecto que pode ser notado é a exata relação entre a enunciação do termo “Vingança160”, nesse último momento da Ária 14 com aquele da primeira estrutura quando a Rainha canta “A vingança infernal161”. Nesse caso, a enunciação de “vingança” é criada na mesma estrutura rítmica no seu aspecto de duração: uma semínima seguida por uma colcheia. Podemos dizer que o processo narcísico ferido é informado aos deuses na mesma proporção que a fala endereçada à Pamina, em nível de primeiridade. Após os três primeiros chamados aos Deuses, é feito ainda um quarto para marcar a ideia de uma promessa. Dessa maneira, o pedido à Pamina feito na forma de uma ameça com chantagem emocional é feito sob a forma de um juramento pela Rainha da Noite. É feita a promessa aos Deuses da Vingança de que as condições estipuladas na ameaça à Pamina e a sua vontade de que Sarastro morra serão realizadas. 12.2 SECUNDIDADE MUSICAL 12.2.1 Secundidade Musical, o Sentir e a Vingança Como podemos observar uma linha melódica na qual a Rainha faz uma descrição de como ela se sente, é possível compreendê-la, musicalmente, em nível de secundidade (Santaella, 2001). No primeiro termo que qualifica o sentir “A vingança infernal”, na qual temos uma sequência de três notas de mesma altura, notamos uma fixação na altura indica pela nota “Lá” na expressão de “Infernal162”. A altura das notas de “vingança” é idêntica a de “Herzen”, ao passo que a duração das notas não é mesma. Isso implica na semelhança entre esses termos do ponto de vista da secundidade, mas não da primeiridade. É interessante notar a importância do peito na ferida narcísica e suas origens na infância, quando a mãe retira o seio e esse ato se configura como uma ameaça, comparável à cena originária em que a criança observa a relação de amor entre os pais e é, portanto excluída do ciclo de amor e afeto. No que concerne ao trecho “arde em meu163” podemos dizer que uma sequência descendente ilustra a localização da dor no relato da Rainha da Noite. Como a ardência irá funcionar como fonte que irá abastecer o Isso, essa sequência descendente 159 Rache götter. Rache. 161 Der Holle Rache. 162 Der Holle. 163 kocht in meinem. 160 137 marca também a incitação da Rainha sobre o seu corpo próprio, o que implica na existência de um componente narcísico na sequência descendente. Esse autoinvestimento incitatório é representando pelo clímax do primeiro verso, a nota Fá 4. A primeira nota do segundo verso já é mais aguda que o clímax do primeiro. No entanto, essa primeira nota não é o clímax do segundo verso, que só aparecerá no quarto compasso desse trecho (vide figura 7). O primeiro compasso desse trecho se dá numa sequência descendente, assim como o segundo compasso, ainda que a última nota do primeiro seja mais grave que a primeira do segundo. Se por um lado podemos observar a repetição do aspecto da duração das notas que cantam “morte164” e “desespero165”, essa fixação já não vale para a lógica melódica, já que a altura das notas não é a mesma em nenhuma das sílabas. Notamos também que o primeiro canto, referente a “morte e desespero”, se dá numa oscilação entre ascendência e descendência, enquanto no segundo canto ela é ascendente, salvo entre “und” e “ver”, em que a altura das notas se mantém. O clímax desse trecho se dá no final do quarto compasso e no início do quinto, no Si 4, acompanhando a sílaba flam de “chamas166”, que é seguida de uma sequência descendente de notas até o final do verso, que irá trazer, assim como no primeiro verso e o canto de “arde em”, a questão da incitação por meio do investimento sobre o corpo próprio que irá abastecer o Isso167, de forma que ele possa realizar as operações do seu plano vingativo com a eliminação do aspecto do Dever Moral168 e de um Querer169, movido por esse arder, e pela necessidade170 de ficar quite. 12.2.2 Secundidade Musical, a Ameaça e a Vingança Como primeiro passo da análise melódica da constituição da ameaça da Rainha na Ária 14, retomemos a figura 26, na qual temos o primeiro e o terceiro momento da 164 Tod. Verzweiflung. 166 Flammet. 167 Das Es. 168 Sollen. 169 Wollen. 170 Müssen. 165 138 segunda estrutura, na qual podemos ncontrar diversas diferenças em nível de secundidade. A primeira é que o primeiro momento é aberto por uma sequência sempre ascendente de notas, enquanto que no terceiro momento há uma manutenção na altura da segunda e terceira notas, e o restante está numa sequência ascendente. Isso implica que a ideia musical ligada a “sentir” é dada numa sempre ascendente sequência, enquanto que o elemento “se” é dado numa interrupção da lógica da sequência ascendente. O primeiro momento é seguido de duas frases que mantêm tanto sua estrutura rítmica, como melódica no que concerne à lógica de ascendências e descendências. Nelas, é possível observar uma sequência de notas descendentes aproximadas por ligaduras. Dessa maneira, o nome “Sarastro” é iniciado por uma sequência descendente seguido de uma sequência descendente de notas nas duas primeiras situações ligadas ao primeiro momento. Essa padronização em nível de ritmo e de melodia já não vale para o canto ligado ao terceiro momento, uma vez que teremos três notas que possuirão a estrutura das tercinas do segundo momento (a ameaça à Pamina), ou seja, uma nota mediana mais aguda, antecedida e seguida por duas notas de mesma altura, mais graves que a nota mediana. Podemos observar esse tipo de construção nas bordaduras. A enunciação que menciona o nome de Sarastro é marcada por uma sequência descendente de notas que termina em uma sequência ascendente entre as sílabas “Schmer-” e “-Zen”. Aqui ocorre um deslocamento na sequência de variação: Enquanto que o termo Sarastro é aberto por uma sequência ascendente, o termo que define o seu destino na vontade da Rainha é fechado também por uma sequência ascendente – apesar de que a altura das notas não seja a mesma. No terceiro momento ocorre que a enunciação do nome “Sarastro” é marcada por uma variação “AscendenteDescendente”, a sequência que indica seu destino se assemelha caso tomemos apenas o termo “erblassen171”. No segundo momento da segunda estrutura temos, em sua abertura, uma repetição do enunciado “de filha nunca mais irei te chamar172”. Nos dois primeiros momentos em que é cantado “so bist du mei” temos uma sequência sempre ascendente de notas. Na segunda aparição de “minha173” temos uma pausa que atravessa os termos “mein-” e “meine”, com uma variação descendente no canto desse trecho. Na primeira e 171 Empalidecer. so bist du meine Tochter nimmermehr. 173 Meine. 172 139 na segunda aparição de “meine”, a sua a sílaba “-ne” encontra-se numa posição descendente em relação à “mei-”. Por sua vez, o primeiro “minha” apresenta-se como o clímax do verso, na mesma altura que a sílaba “flam-” de “flammet”, clímax do segundo verso, presente na primeira estrutura da Ária 14. No entanto, no segundo momento da segunda estrutura, esse clímax recai sobre o aspecto ameaçador da fala da Rainha da Noite endereçada à Pamina. O primeiro canto de “filha nunca174”, ainda que analisado com o isolamento da sílaba “-mehr”, que irá completar a ideia de “nunca mais175”, possui uma estrutura rítmica e melódica semelhante a “vingança” e “peito” do primeiro verso, sugerindo que a relação mãe e filha, fortemente pautada em aspectos rítmicos, sofre influência do problema da vingança e da dor infernal sentida no coração da Rainha. Essa lógica musical tem a intenção de fazer com que Pamina também sinta essa dor, configurandose como estratégia da mãe intrusiva que deseja convencer a filha a manter a aliança com ela, de forma que reobtenham o Círculo de Ouro. A segunda expressão de “filha nunca mais176”, ainda que possua a mesma dinâmica de duração das notas que a primeira que é cantada, varia do ponto de vista da lógica da ascendência e descendência e na altura das notas. Após a primeira parte do canto do quarto verso temos uma sequência puramente musical onde temos quatro notas introdutórias e uma frase musical que possui uma descendência entre a quiáltera e a primeira nota e entre esta e a segunda nota, sendo concluída numa sequência ascendente até alcançar os oito Dó 5, de mesma altura. Isso se repete em dois momentos (primeiro e quinto compasso – vide figura 10), o que indica uma fixação em nível de secundidade. Já a terceira frase, ainda que introduzida por uma sequência de notas mais graves, que guardam a mesma sequência de descedência e ascendência, é uma preparação para uma sequência de notas que varia entre múltiplas sequências de mesma altura alternadas por uma sequência descendente, que então irão se alternar numa nova configuração, a partir do sétimo compasso (vide figura 10), de sequências ascendentes e descendentes, o que indica uma variação entre notas agudas e graves nela. Na sequência à frase puramente musical temos uma sequência de notas repetidas seguidas de uma sequência ascendente de notas marcando a enunciação de 174 Tochter Nimmer. Nimmermehr. 176 Tochter Nimmermehr. 175 140 “minha filha177”, que é seguida de uma sequência descendente que abre para uma nova sequência ascendente. Essa estrutura melódica também é encontrada no segundo canto de “minha filha”, ainda que a dinâmica de duração das notas varie. Se por um lado podemos observar uma fixação nas duas sequências que ocorrem nesse trecho, por outro, há um abismo entre “minha filha” e “nunca mais”. Assim, a sequência descendente no meio desse trecho significa uma separação entre os sujeitos envolvidos na cena: a Rainha e Pamina. Na sequência temos a repetição da frase puramente musical. Após a sua exibição, temos novamento o canto de “de filha nunca mais irei te chamar178”, que possuirá uma relação de semelhança melódica, com a última frase, apenas para o trecho “nunca mais179”, indicando uma ênfase no aspecto temporal (nimmermehr) atrelado à ameaça que a Rainha da Noite faz à sua filha, via secundidade. Na sequência da figura na lógica horária, temos a enunciação do verso “verstoβen sei auf ewig, verlaβen sei auf ewig, zertrümmert sei’n auf ewig” que culmina em “alle Bande der Natur”. Nesse trecho temos a evidência final de que o desfazimento da relação entre mãe e filha devém para o infinito, já que o termo “ewig” indica o fechamento da frase. A estrutura melódica para os três termos “Banida, Abandonada e Rompidos” é a mesma. Isso implica que, ainda que o libretto traga palavras diferentes, elas funcionam como sinônimos já que a estrutura melódica delas é idêntica. O último vértice do triângulo também traz a mesma ideia de uma estrutura melódica fixa para os três termos “Banida, Abandonada e Rompidos”, ainda que agora ela seja mais curta e o intervalo descendente se dê no interior dos termos, e não na sequência delas, já que o canto de “para sempre” foi suprimido no vértice esquerdo do canto inferior do triângulo. A sequência melódica de ascendências e descendências para “todos os laços naturais” é idêntica nos eixos direito e esquerdo do triângulo, enquanto que a altura das notas varia. No vértice inferior esquerdo temos um novo trecho puramente musical que é atravessado por diversas variações de altura entre suas tercinas. Quanto às tercinas, é possível notar que elas são compostas de uma nota central mais aguda, seguida por duas notas de mesma altura, mais graves que a nota central. A primeira nota central de uma das tercinas é o Sol 4, seguido pelo Si 4, voltando para o Sol 4, seguido por uma 177 meine Tochter. so bist du meine Tochter nimmermehr. 179 Nimmermehr. 178 141 descendência para o Mi 4 que, por sua vez, é seguido por uma descendência para o Ré 4, que segue descendendo para o Si 3, nota mais grave entre as notas centrais da tercina desse trecho. Após o Si 3, uma sequência ascendente refaz a trilha descendente, com execção ao Mi 4 que agora é cantado na altura do Fá 4. Após retornar ao Si 4, novamente temos uma sequência descendente até o Si 3 que será seguido por uma sequência ascendente interrompida no Fá 4. Fechando as tercinas, temos staccatos que possuem o clímax do vértice inferior esquerdo. Esse clímax é a ilustração da ferida narcísica e da profunda dor sentida pela Rainha da Noite (Everett, 1991). Esse trecho está ligado à segunda estrutura embora pudesse estar ligada à lógica do sentir da primeira estrutura. No entanto, aqui ele tem a função de montar a estrutura da chantagem na tentativa de convencer a Pamina de que ela deve ajudar a mãe. No quarto momento da segunda estrutura, referente à conclamação da participação dos deuses da vingança, os três primeiros verbos estão encadeados numa sequência ascendente, semelhante àquela que revela o sentir ferido mais profundo na Rainha. Isso nos revela que a personagem vingativa em momento de grande dificuldade pede ajuda aos deuses. Os três primeiros chamados aos deuses estão apresentados numa sequência ascendente de notas. Podemos notar que a altura das notas de “deuses180” e “Uma mãe181” é a mesma, Ré 4 seguido de Dó# 4, ainda que precisemos excluir a sílaba “-ter” de “mutter” para reconhecer essa semelhança. Ela sugere que há alguma aproximação dela, enquanto mãe, e os deuses, em nível de secundidade. De fato, segundo Van der Berk (2004), ela é a única personagem chamada de “deusa” ao longo da peça. O termo “vingança”, que aparece novamente no último verso, assim como no primeiro, possui uma estrutura melódica descendente, mas a altura das notas varia. 12.3 TERCEIRIDADE MUSICAL 12.3.1 Terceiridade Musical, o Sentir e a Vingança 180 181 Götter. der muttter. 142 A figura 31 nos revela o aspecto dos intervalos entre as notas segundo os pontos de determinação da partitura da Ária 14 para a voz. No primeiro momento, temos três notas com nenhuma variação de intervalo. No processo de enunciação de “Desespero” podemos observar no primeiro trecho uma sequência ascendentedescendente. A primeira sequência é de quatro tons e a segunda de três tons e meio. Aqui, a sequência ascendente possui um intervalo maior do que a sequência descendente. No segundo “Desespero” a sequência sempre ascendente é marcada por intervalos de um tom. Enquanto as notas do primeiro “Desespero” estão dispostas em intervalos de sexta menor e sexta diminuta com uma modificação sobre a dominante que, por sua vez, inicia o canto do termo, o segundo não possui acidentes musicais (sustenidos, bemóis ou bequadro), sendo apresentado em dois intervalos ascendentes de segunda maior. Quando da repetição do termo “Morte” temos uma nota dois tons abaixo do primeiro momento (quarta diminuta). No termo “Desespero” também temos o mesmo intervalo, no entanto, para morte o intervalo se dá numa sequência descendente, enquanto que no termo “Desespero” o intervalo de dois tons ocorre numa sequência ascendente: “Morte” aparece dois tons abaixo e “Desespero” dois tons acima. Enquanto o primeiro canto de “Morte” não possui acidentes musicais, o segundo se dá numa modificação do sétimo grau, o sensível. 143 Figura 31: Intervalos entre as notas referentes à qualidade do sentir na fala da Rainha da Noite na partitura da Ária 14 Tomando as figuras 23 e 24, referentes ao primeiro e ao segundo verso, respectivamente, notamos que o primeiro não apresenta acidentes, enquanto que o segundo possui modificações na dominante em “Desespero” e em “her”, e na sensível de “Morte” e “sobre182”, no quinto compasso do segundo verso. 12.3.2 Terceiridade Musical, a Ameaça e a Vingança A figura 32 traz a arquitetura da vingança e a sequência de intervalos presente no primeiro e terceiro momento, no qual a Rainha da Noite manda Pamina matar Sarastro. 182 Um. 144 Figura 32: A Arquitetura da vingança e os invetvalos harmônicos na declaração de Morte a Sarastro na partitura da Ária 14 Enquanto que o primeiro momento se apresenta sem acidentes, o segundo terá a presença de uma modificação sobre a dominante em “não183” e “deve184”. Ou seja, a marcação condicional da ameaça pelo “se não185” traz a modificação da dominante e um intervalo uníssono. Essa necessidade está ligada a uma metáfora do primeiro momento, cujo é apresentado em acidentes, enquanto a metáfora traz a mesma modificação sobre a dominante. O segundo momento da arquitetura da vingança pode ser observado nas figuras 33, 34 e 35. Esse trecho está localizado no triângulo inserido no vértice inferior do losango da figura 32. O trecho “chamado em negação” é entrecortado por dois tipos de frases puramente musicais. O primeiro tipo é repetido duas vezes, indicando uma 183 Nicht. Wird. 185 Wenn Nicht. 184 145 manutenção dos intervalos nos cantos puramente musicais, que se encontram destacados pelas chaves sobre o triângulo da figura. Trata-se de uma réplica harmônica, o que destaca o caráter da repetição no cantar da Rainha, apontando para a pressão do Isso sobre o seu querer, marcando insistentemente uma vontade fixada. A Figura 33 ilustra os intervalos presentes no vértice superior do triângulo presentes no vértice inferior do losango da figura 32. Figura 33: Intervalos entre as notas referentes ao vértice superior do triângulo que representa a ameaça à Pamina na segunda estrutura da Ária 14 146 No trecho “minha filha nunca mais irei te chamar186” pode-se observar o uso de mesmo intervalos quando observamos o primeiro e o quarto “minha”, quando não há intervalo entre as sílabas. Esse aspecto marcado por unissonidade, pode ser notado ainda no segundo canto de “filha” e “nunca”. As frases puramente musicais também trazem notas de mesma altura, como os oito Dó 5 e os oito Lá 4, sugerindo que a ideia expressa na frase puramente musical se liga por meio da terceiridade ao encadeamento das ideias: “minha”, “filha” e “nunca”. Outro aspecto de terceiridade que pode ser observado na figura 33 é a relação entre “filha” e “minha” na primeira e última vez a Rainha canta essas palavras. Isso porque, na primeira, o termo “filha” está marcado pela terça menor, antecedido pela segunda menor em relação a “-ne”, que também aparece entre “-ne” e “filha” na última. No entanto, a modificação da mediante na sílaba “-toch”, na última recai sobre “mei-”. Ainda, enquanto a altura das notas dos dois últimos cantos de “nunca mais” são idênticas ao comparar a terceira com a quarta, é necessário que também os intervalos o sejam. A figura 34 ilustra os intervalos presentes no vértice inferior direito do triângulo que representa a ameaça da Rainha da Noite à Pamina. 186 so bist du meine tochter nimmermehr. 147 Figura 34: Intervalos entre as notas referentes ao vértice inferior direito do triângulo que representa a ameaça à Pamina na segunda estrutura da Ária 14 Na figura 34 podemos observar três frases musicais que culminam no termo “para sempre”, que indica a eternidade associada à punição que se aplicará à Pamina: O banimento da família e o rompimento dos laços familiares. Nas três primeiras frases temos a repetição de um padrão harmônico entre as notas que cantam “Banida, Abandonada e Rompidos”, e um intervalo de oitava entre o primeiro termo e a marca da eternidade: “para sempre”. Na sequência, em “todos os laços naturais” ocorre um desdobramento dos intervalos trazendo uma diferenciação em relação aos três termos. Notamos ainda a presença da sétima menor que faz a passagem entre “todos” e “laços”. Esse último termo traz uma modificação no grau sensível e inicia a sequência descendente com duas terças menores até “Natur”. A figura 35 ilustra os intervalos presentes no vértice inferior esquerdo do triângulo que representa a ameaça da Rainha da Noite à Pamina. 148 Figura 35: Intervalos entre as notas referentes ao vértice inferior esquerdo do triângulo que representa a ameaça à Pamina na segunda estrutura da Ária 14 Podemos observar que os intervalos de oitava presentes na figura 34 agora estão inseridos ao final dos três termos que compõem a ameaça à Pamina - ainda que altura das notas esteja marcada pelo Sol, e não mais pelo Fá. Também temos a presença da sequência de mesma altura, assim como na figura 34. Podemos também notar que o intervalo em “alle” continua sendo de nenhum tom, mantendo também altura da nota, como na figura 34. De fato, toda estrutura intervalar é mantida para a frase “de todos os laços naturais187”. No entanto, na figura 34 temos uma modificação sobre a sensível e, na figura 35, a modificação se dá na subdominante, sugerindo que, para a mesma frase se manter do ponto de vista dos intervalos, graus diferentes da escala devem ser modificados. 187 alle Bande der Natur. 149 Nas tercinas, podemos observar que os compassos em Fá maior possuem a nota intermediária da sua composição a uma distância de um tom (terça diminuta) da nota que a antecede e a que a sucede. O intervalo entre uma tercina e outra é de dois tons, salvo entre as duas últimas, cujo intervalo é de um tom e meio. No entanto, nos compassos com modificações na sub-dominante e a dominante, o intervalo entre a nota intermediária e a que a antecede e a que a sucede, no caso da primeira e da última tercina, é de meio tom. As duas tercinas intermediárias possuem um tom de distância em relação às duas notas mais próximas a elas, assim como nos compassos das tercinas sem acidentes. No entanto, o intervalo entre as três primeiras tercinas nos compassos com modificações na sub-dominante e a dominante é de um tom e meio (assim como o intervalo entre as duas últimas nas tercinas nos compassos sem acidentes). Por sua vez, o intervalo entre as três primeiras tercinas, dos compassos sem acidentes, é encontrado entre as duas últimas tercinas dos compassos com modificação no quarto e quinto grau. Após as tercinas, as notas staccato possuem uma dinâmica variegada de intervalos. A frase que conclui a ameaça, marcando o banimento das relações naturais existentes entre a Rainha e Pamina, se faz de forma fixada no aspecto harmônico entre o segundo e o terceiro vértice do triângulo. No entanto, o terceiro vértice repete por três vezes: “de todos os laços naturais”. Essa fixação existe entre a primeira enunciação do terceiro vértice e a enunciação que conclui o segundo vértice. A segunda enunciação do terceiro vértice está entrecortada por uma fala puramente musical cuidadosamente planejada no aspecto harmônico. Podemos notar a variação de intervalos planejados nas tercinas. A última enunciação do terceiro vértice revela uma reinvenção do arranjo harmônico encontrado nas enunciações anteriores, o que sugere uma possibilidade de salvação à Pamina, já que a ênfase se desfaz do ponto de vista da terceiridade musical, sugerindo uma reinvenção do destino e das regras das relações familiares entre Pamina e a Rainha, como se a mãe dissesse para a filha: “Isso não precisa acabar assim... por que você não me ajuda?”. Finalmente, passamos à análise dos intervalos harmônicos encontrados no fechamento da Ária 14 (figura 36), quando a Rainha da Noite conclama os Deuses da Vingança para que estejam presentes no momento do desafio à Sarastro. Notamos o intervalo das alturas dobrar entre o primeiro “escuta188” e o segundo. A altura dos 188 Hört. 150 melismas, já estudada por Everett (1991) e analisada em detalhes nesse estudo, pode ser retomada nessa fala, que expressa um inflacionamento na altura e no intervalo das notas de forma que a distância da primeira para a segunda nota é menor do que a distância da segunda para a terceira. Podemos também notar o mesmo intervalo entre hört-Ra e Ra-che, o que sugere a aproximação dos dois termos pela via da quarta diminuta. É o que ocorre com “Escuta” (3ª enunciação localizada no terceiro compasso do trecho da Figura 25) e “Vingança189”. No entanto, em “Vingança” , temos uma modificação sobre a sensível. Na conclusão do verso, notamos a repetição do intervalo harmônico em um quarto do valor encontrado entre os termos “escuta” e “Vingança”. Agora, o intervalo de meio tom sugere uma aproximação entre os termos “Deuses190”, “che-got”, “derMut” e “mãe191”. A modificação na dominante reforça essa semelhança em nível de terceiridade, ainda que na sequência “che-got” tenhamos o intervalo de segunda menor na sua forma descendente, enquanto que em “der Mutter”, o temos na forma ascendente e descendente, em torno da dominante. Figura 36: Os intervalos harmônicos entre as notas da partitura no trecho referente ao chamado dos deuses da vingança na partitura da Ária 14 189 Rache. Götter. 191 Mütter. 190 151 13 CONSIDERAÇÕES FINAIS À primeira vista, a análise semiótica permite esclarecer porque um estudo da partitura permite a compreensão da dinâmica afetiva, ainda que possuam naturezas aparentemente distantes. A partitura, sin-signo que apresenta o arranjo das qualidades musicais a partir de códigos musicais específicos, é uma representação estática da dinâmica afetiva que é vivida pelo ser humano. Ainda que estática, sua dinâmica interna é viva. Tomando a partitura como recurso, a análise realizada nesse estudo permite relacionar aspectos da notação musical com questões da clínica dos afetos, como por exemplo, aspectos que envolvem o “Isso” junto às paisagens pathicas e a sua expressão na duração das notas que, por sua vez, ilustram o funcionamento do afeto vingativo investido de uma incitação promovida pela ferida narcísica e o problema do ódio. A partitura também revela como se faz a dinâmica dos aspectos melódicos, como a altura das notas, que mostram uma possibilidade de compreensão da Rainha da Noite enquanto pessoa adoecida segundo as variações das alturas e das sequências ascendentes e descendentes. Os elementos do arranjo harmônico mostram também como os acidentes musicais podem mostrar conexões entre aspectos notados na fala que não ficam evidentes somente pela sequência de sentido trazida pelo libretto. Dessa maneira, mostramos como é possível realizar a compreensão do afeto não apenas pela fala, mas pela via original do melos. Isso implica que constitui tarefa do clínico escutar o que é sentido pela pessoa no contexto da dinâmica das experiências vividas pelo paciente de forma que seja realizada uma aproximação para com os afetos sentido pela pessoa. Essa aproximação é permitida pelo aspecto icônico entre os elementos da dinâmica musical e o afeto vivido pela pessoa. A exposição do afeto da vingança feita por Mozart não exclui outras possibilidades de composição musical ligada com essa mesma questão. No entanto, ela surge como um exemplo clássico para mostrar como a vingança afeta a pessoa que convive com esse sentimento marcado por uma experiência pessoal sofrida e de como ela faz as pessoas próximas a ela sofrerem. Além dessas demonstrações que enriquecem a compreensão clínica sobre o afeto, foi possível observar que o modelo semiótico das tricotomias adaptado à música (ritmo como primeiridade, melodia como secundidade e harmonia como terceiridade) não procede, já que podemos dizer que existem qualidades musicais tanto do ponto de 152 vista do ritmo, quanto da melodia ou da harmonia. Dessa maneira, podemos dizer que “no princípio era o ritmo” apenas enquanto falamos do desenvolvimento da linguagem no ser. E dessa maneira, o ritmo, enquanto movimento, está ligado mais à ideia de ato que, por sua vez, antecede o verbo. No entanto, quando observamos o argumento que justifica a melodia ser de secundidade esbarramos numa questão que nos força a reconhecer que o ritmo também é de secundidade. O estudo da escansão e da duração das notas nos permite notar a presença da diacronia no ritmo que, quando se evidencia no pentagrama musical, se revela como secundidade. Mas caberia questionar: Mas a melodia, que é segunda, precisa do ritmo que é primeiro, para existir. Mas também o ritmo só pode existir, na partitura, na presença da indicação da altura da nota, que é parâmetro da melodia. Isso vale para a partitura para a voz da Rainha da Noite da Ária 14 como modelo exemplar. Outro problema é encontrado quando nos deparamos com a questão dos intervalos que, apesar de surgirem no contexto teórico da harmonia, podem aparecer como intervalos melódicos que, apesar de estarem atrelados à melodia, trazem em si uma questão de harmonia, surgindo mais como uma fusão entre o que seria secundidade e terceiridade (Se consideramos válidas as analogias, por exemplo, entre melodia e secundidade). Quanto ao intervalo, a terceiridade seria a regra que define a distância entre as notas (por exemplo, de que o intervalo pode ser de meio tom) e a secundidade um existente. No entanto, quando se fala de intervalo harmônico existente estaríamos também em secundidade, e não exatamente na terceiridade. Se o intervalo harmônico passa então a ser de secundidade, quando ouvimos um acorde, como fica a situação desse intervalo que é de secundidade por ser caracteristicamente melódico? Ora, ela passa a ser de secundidade não por ser a melodia a guardiã da secundidade, mas porque passa a ser um existente, assim como o no caso do intervalo harmônico. Essas considerações nos levam a pensar na impossibilidade de pensar ritmo como primeiridade, melodia como secundidade e harmonia como terceiridade. Inclusive, é preciso questionar se o estudo dos legi-signos musicais podem ser feitos, todos eles, apenas como um estudo da harmonia ou da melodia, uma vez que a música acaba sendo mais a fusão desses elementos, de forma que a divisão didática esbarra nas dificuldades citadas. Nesse sentido, ao considerar a análise das partes, seria importante pensar não apenas a dinâmica interna presente na lógica da duração das notas ou dos arranjos harmônicos, mas como esses legi-signos, presentes na partitura sob a forma de réplicas, se articulam com as outras partes e com a peça musical total, como um todo. 153 Assim, restringindo a concepção interativa entre verbos pathicos e a dinâmica do afeto vingativo do ponto de vista da psicanálise sobre a estrutura que propomos (tabela 2, figuras 20 e 22) para analisar a Ária 14, notamos que: O primeiro triângulo nos leva a pensar no problema do erotismo anal ligado à repetição compulsiva presente nos esquemas de duração das notas, como a intraisometria de "Infernal" que adjetiva os termos "Vingança" e "peito". Notamos também a inter-isometria entre os dois momentos que a Rainha canta "desespero" e entre os dois cantos referentes à "morte", cuja presença se faz em notas prolongadas (as mais prolongadas desse trecho). É importante lembrar que esse termo possui relação íntima com a questão da herança do Círculo de Ouro, já que a perda do objeto está ligada à morte do marido e, portanto, sugere uma dupla perda objeto (Marido e Círculo de Ouro). Esse é o contexto da fusão de aspectos (maníaco-) depressivos e (obsessivo-) compulsivos no problema ligado ao sentir da Rainha e que será a fonte para o desencadeamento de uma série de ações. Assim, no triângulo do sentir (figura 20) temos a presença dos elementos que irão alimentar o “Isso” a procurar uma forma de reparar a ameaça feita à Rainha de forma que ele nos permite observar a presença do verbo pathico dever (enquanto necessidade). É como se a Rainha da Noite dissesse: “Preciso me livrar dessa ameaça ao meu eu, preciso me vingar”. Nesse contexto, temos ainda a presença de terças maiores separando os dois enunciados de “morte” e “desespero”, como modificações na sensível e na dominante, respectivamente. Inclusive, as mesmas modificações podem ser encontradas, via deslocamente, em "inflamam a mim". Esse quadro é consequência da ferida narcísica ligada à perda do objeto e a necessidade de recuperá-lo e retê-lo. Mas, a vingança não trata apenas de recuperar o objeto, mas de humilhar quem tenha realizado a ameaça ao seu bem-estar, o que implica que o estudo do fenômeno introjetivo da depressão não explica todo o problema do afeto vingativo. A segunda estrutura nos permite verificar a sequência da experiência pathica a partir do inflacionamento ligado à necessidade de se vingar. Como vimos, é possível identificar que o primeiro e o terceiro momento funcionam como exemplos do que a Rainha da Noite quer. Além de recuperar o Círculo de Ouro, ela quer se livrar de Sarastro. A ideia de "querer se livrar" está próxima ao ato de expelir que, enquanto ligado à fase sádico-anal, é exemplo da melancolia, que regride ainda à fase oral (que, como vimos, irá envolver fenômenos introjetivos). Esses momentos são marcados pela saída encontrada pela Rainha face à necessidade ligada ao verbo pathico dever (como necessidade física) que está ligada à 154 perda do objeto e o sentimento melancólico. Mas temos também a ação do verbo poder (moral) em caráter de negação (ela não pertence à fraternidade) gerando uma postura auto-permissiva por parte da Rainha que irá acabar por se convencer de que ela pode e ela consegue recuperar o Círculo de Ouro. Isso irá implicar no desfazimento das sublimações ligadas com o verbo dever (moral), fazendo-se presente em três momentos musicais (os dois primeiros são de um tipo e o terceiro é metafóra para os dois primeiros192). Nos primeiros, temos fixações na duração das notas e variação melódica, ainda que os intervalos melódicos variem. No entanto, a metáfora "emapalidecer" aparece com uma modificação sobre a dominante, o mesmo que fora modificado na condição ligada à ordem de matar Sarastro (wenn nicht durch dich), com esquemas diferentes para a duração das notas, a altura e a sequência harmônica em relação ao primeiro momento. No segundo momento da estrutura, a ordem de matar é complementada por uma operação de ameaça à Pamina, que será literalmente expelida dos vínculos familiares caso ela não obedeça à mãe. Aqui, a mãe intrusiva apresenta-se numa disposição maníaco-depressiva associada com a resolução de uma chantagem emocional. Nesse contexto, a Rainha fará a ameaça de expelir a própria filha em um dos vértices do triângulo da ameaça à Pamina, que contém ainda os melismas melancólicos marcados por padrões repetitivos das notas, indicando também um problema de regressão à fase anal e o problema compulsivo. Temos também estruturas idênticas para os dois últimos momentos que a Rainha canta "Nunca mais", reforçando a questão da chantagem por meio de um esquema idêntico de notas. Outra questão é a oscilação dos trechos que cantam “so bist du meine Tochter”, que aparecem sem modificações, ora com modificação sobre o terceiro grau. Na primeira aparição ela surge para criar um intervalo de segunda menor entre “meine” e “Tochter”. Na segunda a modificação se desfaz, mas surge uma variação na duração das notas que trazer “meine”, que estará em uníssono, assim como o terceiro e o quarto canto desse termo, sendo que no quarto, o Lá novamente aparece bemolizado, também trazendo a diferença de uma segunda menor entre “meine” e “Tochter”, o que não ocorre no terceiro canto. Dessa maneira, o aspecto oscilatório da depressão funciona como um recurso que imprime uma mensagem, reforçando a trama da Rainha. 192 Aqui faço referência aos dizeres: Sarastro Todesschmerzen e Sarastro wird erblassen. 155 No que concerne aos três termos que denunciam um querer expelir (caso a chantagem precise ser aplicada), temos a sua evidência em um padrão de notas de mesma duração e altura, o que sugere a presença de sinonímias, em vez de um afeto marcado por fixações de primeiridade e secundidade. Também é possível dizer que o intervalo de oitava em “ewig”, estará presente introjetado e deslocadamente no outro vértice. Se por um lado podemos notar a presença de traços melancólicos no triângulo da primeira estrutra, nesse trecho fica evidente a introjeção do termo ewig, que no vértice inferior esquerdo do triângulo aparece então incluído nos três termos que ameaçarão Pamina a ser expelida. Isso implica que a ideia introjetada, ou seja, "para sempre", irá ser aplicada ao banimento de Pamina, assim como a ideia de "para sempre" que está ligada ao problema da morte do seu marido. Assim, o seu luto tem como devir a vingança. É preciso notar ainda que, no mesmo momento em que notamos o termo “ewig” engolido, temos a presença dos tristes melismas acompanhados por tercinas que trazem modificações no quarto e guinto grau. No último vértice do triângulo ligado à estrutura da vingança, temos ainda o termo “alle Bande der Natur” marcado por uma modificação nos graus sensível e dominante, diferenciando-se do alle Bande der Natur que observamos no vértice direito, apenas com a modificação no sétimo grau. É possível considerar que esses três primeiros momentos formam o eixo do pedido. Nele, vemos o impulso dado a partir da necessidade de se vingar gerando um "arder infernal" que se articula ao verbo modal "precisar" (dever como necessidade). A partir daí, a Rainha se autoriza a vingar-se e estabelece um plano que ela é capaz de executar. Inicialmente ela dará a Flauta Mágica a Pamino e, no Ato II, ela dará a adaga à Pamina para que ela mate Sarastro, já que Pamino se juntou aos iniciados. Aqui temos o “Isso” atuando livremente em detrimento do verbo pathico dever (moral). Esse é o grande eixo do "pedido", que se opõe ao vértice superior do losango, que simboliza a promessa. Nesse vértice temos a promessa feita aos deuses da vingança nomeados com modificações na dominante e na sensível, assim como quando Mozart usa para ilustra o último “alle Bande der Natur”, marcando um vínculo entre o pedido e a promessa por meio dos referidos detalhes. Além disso, quatro notas longas são utilizadas no verbo que evoca os deuses: "Escuta". 156 TOMO V – REFERÊNCIAS Abbate, C. (1991). Mozart, or the Feminin Genius. In J. L. Poole (org.) Mozart Metropolitan Opera. Nova York: Metropolitan Opera Guild. Abraham, K. (1922). 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Retirado de 1/Slavoj_Zizek/slavoj_zizek.html. http://www.philosophyandscripture.org/Issue2- 171 ANEXOS ANEXO A – PARTITURA DA ÁRIA 14 DA FLAUTA MÁGICA PARA FLAUTA, OBOÉ, FAGOTE, TRUMPETE EM FÁ, TROMPA EM RÉ, TIMPANO EM RÉ E EM LÁ, VIOLINOS, VIOLA, BAIXO E VOZ (SOLO) 172 173 174 175 176 177 178 179 180 ANEXO B – A ÓPERA REAL DE ESTOCOLMO (SUÉCIA), À NOITE DA APRESENTAÇÃO DA FLAUTA MÁGICA, NO DIA 14 DE JANEIRO DE 2015 181 ANEXO C: ILUSTRAÇÕES DO FOLHETO VENDIDO NA ÓPERA REAL DE ESTOCOLMO À DATA DA APRESENTAÇÃO DA FLAUTA MÁGICA, NO DIA 14 DE JANEIRO DE 2015 182 183 184 185 186 187 188 189 190 191 192 193 194 195 196 197 198 199