- Direito Processual do Trabalho, a Ordem Econômica e

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FILOSOFIA DO DIREITO:
Estudos em Homenagem
a Willis Santiago Guerra Filho
Marcelo Luis Roland Zovico
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FILOSOFIA DO DIREITO:
Estudos em Homenagem
a Willis Santiago Guerra Filho
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2012
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Zovico, Marcelo Roland (organizador)
Filosofia do Direito: Estudos em Homenagem a Willis
Santiago Guerra Filho. – São Paulo: Clássica, 2012.
recurso digital
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-99651-55-1 (recurso eletrônico)
1.Filosofia do direito. 5. Livros eletrônicos. I. Título.
CDU: 340
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a obra de nenhuma forma, nem utilizá-la para fins comerciais.
Prefácio
Willis Santiago Guerra Filho
Caminhos potentes da filosofia brasileira
Belmiro Jorge Patto
O nome já desvela o que se poderia supor, nesta vontade
guerreira, qual filho do trovão, a justeza das idéias. E aí está o seu
nome! Aí está o seu ethos; raro, dos poucos que sabem do assombro
do mundo. Nômade de uma trajetória brilhante, ilumina aquilo que está
aí, mas obnubilado aos olhos incautos. Sua obra agiganta a imagem
do pensamento sempre em busca da atualização, maquinando novos
agenciamentos capazes de devolver as potências da vida nesta atividade
nobiliárquica, ainda tão desprezada nestes sertões veredas.
Pensar a vida que nos faz pensar, encontrar clareiras, ainda
que não sejam. Uma profícua ficção de sentidos, e tudo ganha novas cores
e formas que brevemente serão transformadas em outras expressões.
Capaz da vertigem da memória nos arquivos mais recônditos está sempre
à velocidade da luz, atemporalizado, devindo Ereigins. Mas não se para de
pensar nas dobras, neste dentro e fora do pensamento que suas intensões
nos fazem agenciar, buscando sempre novos sentidos na caminhada.
Esta via – filosófica – é difícil de trilhar em muitos
sentidos. Suas encruzilhadas são constantes, é tudo muito mal sinalizado
e pode-se perder facilmente o referencial. De outro lado os transeuntes
nem sempre deixaram de ser bárbaros. Por isso é necessário mesmo ser
guerreiro de tradição. Sua verve ancestral denuncia a gravidade e a leveza
de seu pensamento.
Literato dos espaços e dos movimentos sua pena devém
pássaro nas linhas de fuga dos seus vôos acrobáticos. Nada escapa ao
seu afeto apaixonado na hora de pensar, e que cinco horas da tarde.
Tem também as noites dessa via. Sua poética, que vira de ponta cabeça
a vida e o mundo; que chacoalha as malhas e os nós lança os dados e
investe o jogo de uma outra dimensão: aquela onde o humano é mais
e é também menos, quântico dos cânticos. E também pode ser música,
geometria, aritmética, astronomia, as quatro vias da liberdade, e as
outras três que iniciam. Tudo isso é dito e feito neste calor que se
agita no fogo do encontro.
Caminhos que caminham. Alice no país das maravilhas,
um tempo absurdado que pula e não corre. Paradoxos de Zeno na via
diferencial.
Parresiasta total, assume o risco da verdade na filia das
suas idéias. Comprometido com a vida, sua arte é plena de positividade,
criadora, constituinte de mundos possíveis para o povo por vir. Já esteve
do outro lado da via, no múltiplo sentido da via que nos atravessa
e arrasta. Sem medo ou delongas rasga as fronteiras dos limites
estabelecidos não por gosto ou ressentimento, mas por necessidade de
espaço para nomadizar, para desejar.
Ensinar a aprender, talvez a missão impossível que acaba
se efetivando no horizonte do não sabido. Sonhar a vida que se quer,
fazer a vida acontecer na potência dos agenciamentos, experimentar os
mundos. Para os incrédulos encarquilhados, a Terra há de comer. Vieste
mesmo do fogo, sem medo da morte: Fênix do pensamento.
Poderia mesmo ser um manifesto antropofágico, seria
merecido também. Neste palco também se atua com desenvoltura,
metamorfoseando a larva dos nossos pensamentos larvares.
Paredes que construímos sem qualquer ciência, entulhos
que juntamos que nos oprimem e deprimem. Romper os gases e os fluxos,
sair para o passeio esquizo do pensamento que não julga, acontece.
Autofagia do pensamento que complica a matéria para criar imagens e
sentidos, vivências e temporalidades. Outridade do pensamento filosófico
que retorse o direito e devém justiça. Húmus da terra de ninguém, veio de
alguma riqueza desconhecida, o pensamento desliza os platôs da certeza
e nomadiza os desejos. Nem chefe nem juiz.
E já não se tem qualquer dúvida de que existe uma filosofia
brasileira, e não nos interessa saber das grandezas de um pretenso
primeiro lugar, somente as potências do pensar criador de mundos
melhores, amorais, porque construídos na diferença e na intensidade dos
afetos, dos perceptos, dos conceitos.
E quantas problemáticas são capazes de fazer uma
filosofia? São inúmeras, talvez infinitas para o espaço/tempo de uma
vida. Mas nem por isso se vai recusar a tarefa de fazer filosofia. Seu
dom e sua vocação, sua voz. Mas não se trata de apologia nem elegia,
somente a constatação de uma força que nos atravessa e nos obriga
a pensar. Questionamentos que inquietam nossa alma em direção ao
movimento constante. Nomadizar o pensamento para agenciar novos
encontros: acontecimento!
Vem de longe sua peregrinação portentosa de uma coleção
quase que inenarrável de expressões inovadoras que agitam a cena do
pensamento jurídico nacional. Transversal em todas suas empreitadas,
desde logo já anunciava não a novidade, mas a criação. Autopoiético,
sem dúvida; poético, com certeza. Filósofo pleno de incertezas, erros
e descaminhos que faz dessas características sua maior arma em prol
do pensamento. Humildade socrática, humor cínico, coragem espartana,
tudo isso se pode encontrar nos agenciamentos de sua filosofia que não
renega a tropicalidade do calor entrópico.
Quem já presenciou suas intervenções fica marcado com
o fogo do acontecimento assombroso. Já se sabe no estar aí, no devir
potente do eterno retorno, nas dobras de um sistema autopoiético, na
vertigem dos vapores da aurora de uma grande aventura. Não se indicam
caminhos nem soluções, isto seria mais a função de um professor. O que
se passa na indeterminação de um encontro que dá ensejo ao pensamento,
aí está seu milieu.
E poderia até ser peripateticamente, se isto ainda fosse
permitido neste mundo que se construiu cheio de cercas e paredes. E na
verdade é mesmo o passeio do esquizo que faz com que suas aulas sejam
o que são: puro desejo fluindo e arrebatando o pensamento.
Multiplicidades que nunca se reduzem ao duplo falso
mestre/aluno, não, nada disso. Do que se trata é da delicadeza do que
passa entre os corpos, seus afetos, suas paixões que criam espaço/tempo
e ancoram um ponto essencial no pluriverso das idéias. Já não há pessoas,
sujeitos, mas hecceidades.
E tudo isso também pode incomodar. E que deliciosa
incumbência para o filósofo, não como um centro de agitação, mas como
caixa de ressonâncias; porque como se sabe, são elas as criadoras de
mundos. Um demiurgo que converge as forças divergentes da Natureza,
e já não se sabe em que sentido se faz esta distinção arbitrária entre
passado/presente/futuro: a Grécia Antiga como um grande acelerador de
partículas. Dobras do espaço/tempo. E é nelas que se instala a criação
criadora, a retorsão.
Recusar pensar na representação, agenciar movimentos
díspares como o direito e as funções biológicas, ou mesmo a quântica da
proporcionalidade. Inserir a poética na política como potência da vida,
não se deixar cooptar pelas forças territorializadoras do poder neurótico
da substancialização, guerrear sempre, nomadizar os fluxos para fazer
surgir outras imagens do pensamento, atualizar as ficções.
Seria apequenar as trajetórias citar títulos, produções,
números quantitativos que interessam às estatísticas do cálculo racional.
Mais interessante nos parece buscar a intensidade do que se passa
enquanto passa. A passagem, seja aquela de Whitehead ou de Don Juan,
buscar na vida o que pode a filosofia, sair da caverna e entrar nos túneis
do espaço/tempo/pensamento das fitas de Möbius, dos sons das Musas,
dos mundos dos Deuses.
Religar os pontos nos cortes de Dedekind onde a reta se
curva. Fazer paradoxos na matrix filosófica, dar testemunho da própria
vida para acender o fogo da filosofia. Fricção ou ficção, já não há grande
diferença, pois é justamente nestas distinções menores que se começa
a pensar, a retorser, a dobrar, a deslocar este centro ilusório que nos
aprisiona em sujeitos, leis, hierarquias, cavernas.
E também não se trata de luz, mas das cores do pensamento,
suas freqüências, seus graus de dissolubilidade que nunca tendem ao branco.
Deixar borrar o pensamento nas bordas das sombras que possibilitam os
volumes que fazem erigir os blocos de sensações: afetos.
Desejar o outro do pensamento do outro, humanizar.
Fazer direito ainda que por caminhos tortos porque somos humanos,
seres improváveis, anti-natureza da natureza, autopoiésis. É na busca
que se descobre o caminho que começa sempre pelo meio porque
não há começo ou fim, deserto profícuo de imensidões que somente o
pensamento pode dar conta.
Não platonicamente, nomadicamente. Atravessar o
deserto semeando os manás da filosofia de uma vida inteira, constituir
oásis não como paraísos, mas como lugares provisórios onde se bebe
a água da inquietude que ferve ao fogo do conhecimento. Ebulir na
caminhada e quem sabe fazer chover no deserto.
E já aqui se dobra o pensamento em busca de pajés e
tambores ancestrais, os logos potentes da percussão dos sonhos tropicais.
Atabaques e tacapes no horizonte do guerreiro incansável que cruza
terreiros e retoma as flechas de seus Orixás qual um Zaratustra equatorial.
Redescobrir o Brasil do lixo ocidental, desmacunaimizar as brasas
desse território inóspito, de tantas riquezas naturais. Buscar na selva o
pensamento que agencia outras naturezas, outros devires. Encontrar os
povos, democratizar.
Tudo isso é sim inerente ao pensar filosófico. Por
certo poderia parecer uma sandice tropicalista, aos olhos de gélidos
pensadores encarquilhados em seus departamentos universitários. Mas,
justamente, quem já viveu os múltiplos caminhos da vida filosófica
é que poderia avaliar à distância, quais as retorsões mais potentes.
Constatar a morte do centro já não é novidade, o que se busca é a
criação na repetição da diferença nas dobras do pensamento. O que se
busca não é interpretar, mas experienciar.
A vida filosófica de Willis Santiago Guerra Filho é
testemunho vivo das potências do pensamento brasileiro.
O pensamento ainda não morreu!
Apresentação
Faltam-me palavras para expressar o misto de honra,
satisfação e gratidão que sinto ao publicar este pequeno projeto, dedicado
a homenagear o estimado professor, orientador e amigo, Dr. Willis
Santiago Guerra Filho. É, em verdade, uma ideia antiga, que há algum
tempo vínhamos maturando, mas que, agora, na condição de Presidente
da Associação de Pós-Graduandos da PUC/SP, com o apoio de colegas,
parceiros e amigos, tenho a grata oportunidade de concretizar.
Trata-se de homenagem mais que merecida e, porque não
dizer talvez até tardia. Há muito tempo o professor e filósofo – renomado
e conhecido em todo o Brasil e também internacionalmente – Willis
Santiago Guerra Filho, está a merecer um tributo, por sua inestimável
contribuição acadêmica.
Willis é professor inato, que, além de arguto pesquisador
e filósofo, compartilha com seus alunos a sua amizade e as suas
experiências, encantando a todos com sua forma ímpar de ministrar
aulas. Além disso, é orientador dedicado, fiel amigo. Tais predicados,
e tantos outros aqui não referidos, fazem do homenageado uma figura
humana muito querida por todos.
As contribuições aqui trazidas não têm a pretensão de
esgotar os temas discutidos, mas apenas marcar e expressar a profunda
admiração que todos nós – os que aqui escreveram e também todos seus
demais alunos, atuais e antigos, que não puderam contribuir para esta
singela homenagem – nutrimos pelo mestre.
Ao professor Willis, só tenho a dizer: muito obrigado pelas
lições, pelas oportunidades e pelo compartilhar. A todos os que para esta
obra contribuíram, igualmente registro a minha mais sincera e profunda
gratidão. E ao público leitor desejo, profundamente, que possam usufruir
dos textos aqui escritos, em torno de uma única temática: a admiração
mútua ao professor e amigo Willis Santiago Guerra Filho. E que esta seja
a primeira homenagem, de muitas outras que hão de vir!
São Paulo, outubro de 2012.
Marcelo Luis Roland Zovico
Presidente da Associação de Pós-Graduandos da PUC/SP
Sumário
O HOMENAGEADO PELO HOMENAGEADO
Entrevista com o professor Willis Santiago Guerra Filho
por Paola Cantarini..........................................................................
16
1. O DIÁLOGO ENTRE UM FILÓSOFO E UM JURISTACONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO IX – O DIREITO CRIMINAL
NA OBRA “AS LEIS” DE PLATÃO
Álvaro de Azevedo Gonzaga e Marco Aurélio Florêncio Filho...........
32
2. A EVOLUÇÃO SOCIAL E A EVOLUÇÃO DO DIREITO CONFORME O
MODELO HABERMASIANO
Andréia Fogaça Maricato................................................................
43
3. CONSTITUCIONALISMO TRADICIONAL E CONSTITUCIONALISMO
MODERNO: UMA ABORDAGEM CONFORME O PENSAMENTO DE
JOSÉ PEDRO GALVÃO DE SOUSA
Anthony Tannus Wright .................................................................
65
4. ENSAIO SOBRE DIREITO E CIDADANIA NA CULTURA POPULAR
Belmiro Jorge Patto ........................................................................
95
5. O DILEMA ENTRE A POÉTICA E O MERCADO JURÍDICO
Gustavo S. Paulino........................................................................... 117
6. DIREITO, DOMINAÇÃO E VIOLÊNCIA: PARA UM DIÁLOGO SOBRE
AS POSSIBILIDADES DE UMA TEORIA POLÍTICA DO DIREITO
Henrique Garbellini Carnio............................................................. 130
7. A HERMENÊUTICA JURÍDICA NA PERSPECTIVA PÓS-POSITIVISTA:
A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS
Haradja Torrens............................................................................... 143
8. UM MODO DE OLHAR E SITUAR O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Joaquim Eduardo Pereira ................................................................ 168
9. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DOS DIREITOS HUMANOS
Keilla Ellen Borges ........................................................................ 186
10. “ÉDIPO REI” DE SÓFOCLES E A VERDADE SEGUNDO HEIDEGGER
Márcia Regina Pitta Lopes Aquino .................................................. 224
11. DIVINDADE NO BBB: MITO OU REALIDADE?
Roberta Lopes da Cruz Antonio....................................................... 248
12. A SOCIEDADE DO RISCO NA PERSPECTIVA DE NIKLAS LUHMANN
Marcelo Luis Roland Zovico.....................,..................................... 263
13. (NEO)CONSTITUCIONALISMO E PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE:
ALGUMAS REFLEXÕES DE RELEVO
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug e Mônica Bonetti Couto.............. 276
14. O DIREITO E O CIBERESPAÇO
Tiago Janini....................................................................................... 297
15. JUSTIÇA E BEM COMUM
Victor Emanuel Vilela Barbuy....................................................... 316
16. O ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO E A PRISÃO DO
DEPOSITÁRIO INFIEL: A EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL DO STF
Vladmir Oliveira da Silveira e Samantha Ribeiro
Meyer-Pflug.......................................................................................... 343
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
O HOMENAGEADO PELO HOMENAGEADO
Entrevista com o professor
Dr. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO
Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Livredocente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Ceará.
Doutor em Ciência do Direito pela Universität Bielefeld, Alemanha.
Doutor e Pós-doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Professor nos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP -, onde
coordena o Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos, e também do
Curso de Mestrado em Direito da Universidade Cândido Mendes no Rio
de Janeiro – UCAM. Pesquisador das Universidades Paulista (UNIP) e
Presbiteriana Mackenzie.
Paola Cantarini – Em seu mais novo artigo “Primórdios e Atualidade
da Luta pela Constitucionalização no Brasil: Considerações filosóficas
no Bicentenário da Constituição de Cádiz”, o professor ressalta o papel
do filósofo, na interpretação do direito. Poderia explicar melhor tal
relação com a frase, que consta do trabalho “no tempo histórico, futuro
é passado”.
WSGF – Esta frase é de Kosseleck, professor da universidade de
Bielefeld, ainda na época em que fiz meu doutoramento lá. Ele era uma
das estrelas, das maiores, só não era maior do que o Luhmann, e antes
deles, o Norbert Elias. Bem, como acho que você sabe, deles a minha
ligação era com o Luhmann; a frase referida, como o pensamento do autor,
é de proveniência heideggeriana; significa que em geral só vivemos o
que tínhamos como possível de ser vivido. Logo, ela revela a nossa triste
condição de eternamente reviver o passado – mas essa tristeza precisa ser
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FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
transformada em um sentimento que nos eleve, ao invés de abater, pelo
que Friedrich Nietzsche chama de amor fati, e justamente diante desse
que considera o maior pensamento que o acometeu, o do eterno retorno
do mesmo.
Paola Cantarini – Por quê? Não entendi o reviver o passado, assim como
também não entendo, e gostaria de entender, essa ideia do Nietzsche,
esse tipo de amor, ao fado, ao destino...
WSGF – É como o direito que pretende regular o futuro, o que vai
acontecer. E ele faz isso como? A partir do que já aconteceu no passado;
essa para mim, no momento é a principal questão da filosofia do direito.
Eu cunhei neste artigo a que você se refere, para nominar esta ação do
direito, o verbo retroprojetar, ou seja, projetar no futuro o passado, o
que está atrás, retro. Portanto, não tem nada a ver com este simpático
aparelho em vias de extinção, o retroprojetor (risos). E o amor fati é
uma ideia com uma clara descendência estoica, reproposta no contexto
do pensamento nietzscheano por alguém que, é preciso lembrar, sofreu
muito, física e afetivamente, e que mesmo assim identificava no
dionisíaco o sentido da vida.
Paola Cantarini – Depois queria voltar a esse ponto, mas agora
não, mais para o final. Então, no mesmo artigo, o professor ressalta a
relação do direito e o tempo. Poderia melhor explicitar tal relação, de
acordo com sua perspectiva e se teve influência da obra Sein und Zeit,
de Martin Heidegger.
WSGF – Sim, claro, porém, Heidegger é um autor-chave, para mim, para
o Foucault, como ele mesmo diz em uma de suas entrevistas, para toda
a chamada filosofia continental contemporânea, a que não é analítica,
pois esta se referencia em Wittgenstein – que tem Frege antes dele, assim
como Heidegger tem Husserl, não esqueçamos. Mas neste artigo de que
você fala, dentre outras coisas, e num lugar, talvez inapropriado, ou, no
mínimo, inusitado - por não ser um texto que tenha nascido da filosofia,
mas que eu o criei como se tivesse –, enfim, nele procuro mostrar o
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FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
quanto Heidegger deve a Kant, o da primeira edição da crítica da razão
pura, o que colocou a imaginação como a faculdade primordial, anterior
e superior à própria razão.
Paola Cantarini – A passagem é a seguinte:
“(...) Mas agora nos interessa realizar uma reflexão jusfilosófica, que
nos leve adiante na compreensão do que seria o seu tema central, isto
é, o modo de ser do Direito. E nesse sentido fica patenteada a relação
ontológica que ele guarda com o tempo, donde se poder verificar o quanto
o ser do direito, tal como o ser em geral é (no) tempo, uma perspectiva
que foi consagrada na – e consagrou a – obra Sein und Zeit, de Martin
Heidegger, publicada em 1927, causando grande impacto, embora
assista em nosso modo de ver toda razão a este mesmo A., quando em
obra publicada no ano seguinte, Kant e o Problema da Metafísica, credita
a Kant – ainda que para kantianos de estrita observância numa jogada
de criação retrospectiva das condições para legitimar o seu próprio
pensamento – o mérito maior por esta descoberta filosófica. (...)”.
WSGF – Sim, é isso – dá vontade de continuar falando do que vem na
sequência, mas o texto está aí para quem quiser conferir, não? Aliás,
está destinado a uma coletânea que organiza meu Mestre e amigo Paulo
Bonavides, mas está às ordens de vocês. para divulgá-lo por aqui, pois
tem lá colocações que eu gostaria de ver em discussão o quanto antes,
as que são pertinentes à nossa atualidade e, mais especificamente, a
“Comissão da Verdade”.
Paola Cantarini – Segundo o professor, em outros textos, como a tese
de filosofia defendida no final do ano passado no IFCS-UFRJ e também
naqueles de psicanálise, tal como os entendi, o Direito seria criado
para justificar nosso desejo de nos preservar a vida, a nossa e a dos
outros sem que saibamos o porquê. Essa é nossa herança, o legado que
recebemos e repassamos, a nossa Lei: a letra que somos, que nos obriga
e liberta, sendo, por ambos os motivos, e em seu duplo sentido, de se
comemorar. Por nos obrigar a libertar, de que? Estranha essa ideia de
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FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
uma obrigação de ser livre; e é de se comemorar em que sentido?
WSGF – O desejo é regulado pelo direito, mas, a regra é que produz
o desejo, então, sem regra, não há desejo, a regra existe para criar o
desejo. O desejo é a verdade da regra, a regra é o desejo externalizado.
E exatamente é uma confirmação do que eu disse antes, a propósito do
Nietzsche, do amor fati, pois é o que nos torna humanos, essa regra ou
Lei, que barrando os instintos nos liberta deles, produzindo o desejo em
seu lugar. Só que, para continuarmos com Nietzsche, não podemos nos
acomodar em sermos apenas “humanos, demasiado humanos”, temos de
ir além, em direção ao que está além, mas aqui, não no além, sendo o que
ele chama de Ubermensch, “super-homem”, que melhor se traduzirá por
“além-do-homem”, pois o desejo é infinito e sem objeto pré-determinado,
está para além de toda determinação e condicionamento, é a liberdade, e
se nós o fixarmos, estagnamos, apodrecemos, morremos, ainda em vida
– são os “sepulcros caiados”, de que falava Jesus Cristo, a propósito dos
fariseus, dos que viviam para a Lei, e não pela Lei, como muitos de nós,
cristãos, ateus ou de outras crenças.
Paola Cantarini – E o sonho? Também seria superior ao que vivemos
acordados? Acho que Nietzsche diria que sim. Poderia explicar o
entendimento do professor, de que vivemos um direito sonâmbulo, da
natureza da ordem do desejo, função do desejo (e não da vontade ou da
necessidade, do utilitarismo), possuindo o mesmo estatuto dos sonhos,
isto é, um caráter onírico; há relação com a “poética dos sonhos
(rêverie)” de Bachelard, para quem: “Um mundo se forma em nossos
sonhos, um mundo que é nosso mundo. E esse mundo sonhado nos ensina
possibilidades de crescimento de nosso ser nesse universo que é nosso”?
Assim, o sonhar também permitiria ter experiências sem limites, nos
ensina a liberdade, é isso?
WSGF – Sim, e eu sou mesmo muito influenciado pelo Bachelard,
como, aliás, muita gente, sem que dê margem a que se perceba, e aí
talvez eu mesmo me inclua, mas é que talvez também essa seja uma
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FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
característica de obras como a dele, de reviver ou reacordar em nós o
que lá já estava, adormecido, e daí temos como nosso mesmo. Eu adoro
ele há muito tempo, mas a primeira frase que você cita é de outro que
também curto há muito tempo, o Oswald de Andrade, está no Manifesto
Antropófago, de 1922. O resto é meu, eu assumo, e espero que com a
resposta dada à questão anterior possa ter ficado mais claro, sem também
querer esclarecer demais, pois uma certa obscuridade é o que favorece o
sono e o sonho, a interpretação de cada um. Eu diria que sua pergunta já
dá pistas suficientes para uma resposta também suficiente.
Paola Cantarini – Gostaria então que o professor comentasse a frase de
Foucault concluindo seu livro “O governo de si e dos outros”, objeto de
seu curso de filosofia do direito este semestre no mestrado da PUC-SP:
“A parresía filosófica que joga nesse diálogo entre o mestre e o discípulo,
conduz não a uma retórica, mas a uma erótica”. (“O governo de si e dos
outros”. São Paulo: Editora Martins Fontes. 2ª. ed., 2011).
No mesmo sentido: “(...) o erotismo, é, na realidade, um mundo com
existência própria”. (“Reflexões sobre o problema do amor e o erotismo.
Lou Andreas- Salomé, São Paulo: Landy. 2005, Contracapa)
E tem ainda, me permitindo uma referência mais forte, “a chama da
filosofia se acenderá sempre na chama do esperma e nos templos ela não
será apagada, ainda que mil seres supremos se agitem para lhe sufocar
a centelha”. (Marquês de Sade,citado em “Sade contra o ser supremo”,
Philippe Sollers. Tradução Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação
Liberdade, 2001).
WSGF – Sim, claro, porque não – já Platão dizia algo semelhante, na
Carta VII, sobre a necessidade da fricção entre as almas para produzir a
chama do conhecimento, e uma alma não pode se friccionar com outra se
não for pelo corpo, pois ele está falado do que ocorreria aqui no plano das
almas encarnadas (risos). Bem, no erotismo é como no sonho – lembro
que ainda estamos no universo nietzscheano, pois a autora que você
menciona, como sabemos, foi um grande amor dele, para quem teria
20
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
escrito o “Assim falou Zarathustra”, pelo menos a primeira versão, depois
ele acrescentou uma outra parte, menos poética e mais filosófica. Eu
citaria o Bataille para fazer uma ponte entre o Foucault e os já chamados
de divinos, Platão e o Marquês, ao associar o erotismo com o sagrado,
já que o chamado “último Foucault”, o da época a que você se refere,
para surpresa de seus seguidores, mostrou-se mais espiritualizado, talvez
pelo enfrentamento da doença mortal que o acometia; o Marquês era um
naturalista, assim como talvez também o fosse Platão, o da “doutrina
esotérica”, transmitida só no contato pessoal, com seus discípulos, tal
como Aristóteles, que seria, assim, mais seguidor de seu Mestre do que a
tradição nos fez – e faz - acreditar.
Paola Cantarini – O Sade tem mais jeito de ser um anarquista...
WSGF – Sim, um anarquista e um naturalista, antissocial.
Paola Cantarini – No entendimento do professor haveria, talvez, uma
relação entre a parresía e a literatura; e entre a parresía e o pensamento
de Nietzsche?
WSGF – O parresiasta, aquele que se utiliza da parresía, é no entender
de Foucault “o homem verídico, isto é aquele que tem a coragem de
arriscar o dizer-a-verdade num pacto consigo mesmo”, podendo sim ser
associado tal conceito à veridicidade nietzschiana, que seria uma certa
maneira de fazer agir essa noção, cuja origem remota se encontra na noção
de parresía como risco para quem a enuncia. Logo, tem sim relação com
Nietzsche, que, de resto, é um – quase o - autor que Foucault reivindica
como seu avatar. Lembremos que Nietzsche proclamava a necessidade
da aventura, de correr riscos, para se obter um aprendizado que de outro
modo não conseguimos, confortavelmente instalados em nossas cadeiras
ou poltronas de estudo.
Paola Cantarini – Gostaria então que o professor explicasse melhor o
conceito da expressão abaixo, que aparece no seu comentário sobre o
Manifesto Antropófago - de qual tabu se trata e de qual transformação?
“É o tempo mítico, conceituado por Lévi-Strauss, em sua antropologia
21
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
estrutural, como abrangente do passado, presente e futuro... ‘Antropofagia.
A transformação permanente do Tabu em totem’”.
WSGF – É mais uma citação do manifesto nonagenário, correlacionando
com o Lévi-Strauss, que em seu clássico “Estruturas Elementares do
Parentesco” disse ser a lei que proíbe o incesto, sobretudo com a mãe,
a primeira norma, verdadeiramente universal, a que se encontra em
qualquer sociedade humana, sendo por isso a que é, a um só tempo,
social e natural. Claro que isso tem a ver com o Freud, a quem o Oswald
está citando, que muito antes e de outra perspectiva, informado por uma
antropologia mais antiga, em sua obra “Totem e Tabu”, para explicar a
universalidade do complexo de Édipo, afirmara algo muito próximo do
que dirá Lévi-Strauss e, antes do próprio Freud, um outro autor, muito
apreciado por Oswald, e também pelo Nietzsche, um jurista alemão do
século XIX, Bachofen, o autor de “Mutterrecht”, “Direito Materno”,
em que postula a origem matriarcal da sociedade, bem na linha do que
dirá depois o Freud naquele livro. Enfim, o que é proibido, como tabu, e
louvado, idolatrado, como totem, “tampona” a origem de nosso desejo,
a nossa origem, de seres antinaturais, sociais, portanto, sim, mas por
conveniência e convenção.
Paola Cantarini – Para o professor qual seria o desejo de direito e
de vida que temos? Entende ser a felicidade, assim como o era para
Oswald de Andrade, quando proclama também no Manifesto “A alegria
é a prova dos nove”? Não poderia ser o amor?
WSGF – É, se for um amor alegre – nada de paixões tristes, como diria
Spinoza. “Amor, humor” – essa eu já não lembro se é do Oswald ou
da montagem do Manifesto Antropófago pelo Teatro Oficina, da qual
participei, pelo menos da versão que foi para a FLIP do ano passado...
Paola Cantarini – Quando o professor alude a uma das finalidades do
ensino voltado às artes, ao teatro, ao possibilitar o contato da dor, ódio, a
fusão cósmica de corpos, sensações, também todos estes contatos, trocas
e buscas podem se dar fora da sala de aula, fora do teatro, em especial
22
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
nos relacionamentos humanos, na relação homem e mulher, onde apesar
do trabalho profissional se enquadrar em tal perspectiva “perfeita”, não
se verifica o mesmo interesse em se buscar o mesmo no resto da vida,
com os demais relacionamentos?
WSGF – Na verdade, a ideia é reduzir mesmo essa distância entre a
sala de aula e a vida lá fora, trazer a vida para dentro da sala de aula, e
transformar as aulas em lições de vida – mesmo, ou porque não dizer,
sobretudo, em se tratando de aulas de direito, ou, pelo menos, de filosofia
do direito, pois eu sei que se forem de direito administrativo fica mais
difícil, mas por que não? (risos) Teria de tentar, para que o direito fique a
serviço da vida, boa, a que se pode ter depois de avançar no aprendizado
sobre o próprio desejo.
Paola Cantarini – No “Manifesto” escrito com seu amigo e grande
filósofo do direito, lamentavelmente falecido, Luis Alberto Warat, os
professores fazem forte e direta crítica ao autoritarismo no ensino e
sua estrutura formal, dominada pelo capitalismo, afetando à liberdade
de cátedra, de estudo, e criando obstáculos ao alcance do verdadeiro
conhecimento, fazendo menção ao ensino encontrado em diversas fontes,
como nas ruas, nas comunidades, e no teatro – citam a Oficina, e também
um cineasta que não é conhecido -, voltado a “uma vivência mais real,
mais forte, como vivência mesmo”. Como superar o sistema capitalista
que continua vigente, ainda mais por ser um sintoma global? Como
humanizá-lo? É a proposta de dois outros amigos seus, os professores
Ricardo Sayeg e Wagner Balera, que me parece conta com seu apoio...
WSGF – Bem, são muitas perguntas em uma só. Começando pelo
Manifesto que escrevi com o meu fraternal amigo Luis Alberto Warat,
alguém que politicamente estava muito próximo do anarquismo, inclusive
de maneira cada vez mais assumida por aquela época em que escrevemos
o texto – que vem de ser publicado em livro lançado no corrente mês de
maio, em Fortaleza, comemorativo da primeira década de existência do
curso de direito da Faculdade Christus. O cineasta a que você se refere era
23
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
um dos artistas que por aqueles dias circulavam em torno dele, dos que
estavam querendo levar para o Rio a proposta do Cabaret Macunaíma,
incluindo filmagens. Era – ou é - um baiano, apesar do sobrenome
cearense, o Luis Alencar, que propunha um cinema radical e lembro que
na época desenvolvia algo abordando o tema da zoofilia – o Warat se
encantou com o rapaz, que tinha uma verve glauberrochiana. Não sei o
que foi feito dele, se realizou o projeto, mas as experiências requeridas
parece que ele já estava fazendo (risos). E isso pode ser relacionado ao
capitalismo, com a concepção antropológica que lhe é subjacente, do
homem como um ser de interesses gerados por necessidades, tal como
os animais, donde a necessidade de humanizá-lo, o que tanto pode ser
visto de maneira mais reformista, numa perspectiva cristã, católica
– lembremos que a ideia de “ecclesia semper reformanda est”, depois
do Concílio Vaticano II, passou também para a igreja romana -, como
é aquela dos igualmente fraternais amigos paulistas que propuseram o
Capitalismo Humanista, e daí o que se busca é a compatibilização dos
conflitos, digamos principiológicos, no campo do direito econômico, em
face dos direitos humanos, ou de maneira antes revolucionária, como
seria mais a linha do falecido pensador do direito argentino, naturalizado
brasileiro, pela qual humanizar o capitalismo significa acabar com ele.
De algum modo, vejo isso de uma maneira circular, em que os extremos
do espectro ideológico se tocam.
Paola Cantarini – As novas bases de sustentação da sociedade, a fim
de que esta se mantenha íntegra, então, precisariam mesmo de alguma
forma de ideologia seja a mitologia, a religião ou mesmo, mundividências
filosóficas, reafirmando ou invertendo valores, ao invés de criar algum
novo valor, para que este produza a afirmação de outros valores, em um
círculo que não seria vicioso, mas virtuoso, é isso?
WSGF – Sim, você pegou bem o “espírito da coisa”.
Paola Cantarini – O poema de Charles Baudelaire abaixo põe também em
relação opostos – a paixão, até o estupro, e o fato da alma nada arriscar na vida:
24
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
“se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada
não bordaram ainda como desenhos finos
a trama vã de nossos míseros destinos
é que nossa alma arriscou pouco ou quase nada”.
O poema acima fala da relação entre paixão e estupro, do sofrimento
como condição para o desfrute dos prazeres, haveria alguma relação
quanto à sua colocação em texto de seu livro Conceitos de Filosofia, o
que fala em “... medo da morte, medo da vida, medo de transformação...¨,
ao final, na última frase: ¨Tempo, morte, desejo: gozo”.
WSGF – Bem, esse texto foi escrito para uma apresentação em
Florianópolis, a convite do Warat, em um evento do que ele propunha à
época, princípio dos anos 1990, como sendo uma “cinesofia”. Então, a
gente discutia filosoficamente filmes. E normalmente a discussão se dava
depois da exibição do filme, como hoje em dia se faz muito e tal. Só que
eu escrevi aquele texto, “Tempo e Morte”, e li antes da apresentação do
filme, que então seria visto da perspectiva proposta no texto, então os
dois, texto e filme, formariam uma unidade de sentido, explicando-se
mutuamente. Daí que a melhor explicação para o que consta no texto
encontra-se no filme, “El Matador”, do Almodóvar – Você viu?
Paola Cantarini – Não lembro.
WSGF – É o do toureiro, manco e assassino, em que na cena final ele e a
advogada dele terminam fazendo sexo, gozando e se matando...
Paola Cantarini – Vou procurar p’ra ver, claro. Mas o professor hoje
em dia está mais para o teatro do que para o cinema, não? Por que a
proposta de teatraulas e não outras formas imaginárias, lúdicas, como a
própria linguagem escrita ou outras formas de arte – pintura, escultura,
música, dança?
WSGF – Bem, as teatraulas que temos feito, dirigidas pelo Francisco
Carlos, envolvem outras formas de arte, sobretudo a música, como
também deverão se aprimorar no aspecto cenográfico, agora que estamos
contando com o patrocínio, que esperamos seja duradouro e consistente,
25
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
do banco Santander – para o dia 23 de agosto está marcada a apresentação
no Tucarena, com esse patrocínio, da “trilogia tebana”. Penso que por
meio do teatro se pode vivenciar mais, em seu mundo artisticamente
criado, do que na vida concreta, nos preparando melhor para ele, ao
criar situações de possibilidades abertas, criando assim a sensação de
poder realizar a constante transmutação que é inerente à vida, de que
falo naquele artigo que comentamos na última pergunta, e em outros,
posteriores, especificamente sobre as teatraulas, ou sobre o Kafka, pois
foi trabalhando dramaturgicamente textos dele que comecei com a atriz
que faz comigo as teatraulas, a Fabianna Serroni, essa pesquisa com o
teatro, a performance.
Paola Cantarini – Sim, e lembro que no texto sobre o Kafka está dito
que o conhecimento só começa quando se deseja a morte, ou, o que seria
o mesmo, no desejo de mudar de vida, de “cela” - que é também desejo
de se pôr a caminho, de ser transportado, aventurar-se, isto é, consoante
Kafka, o que seria representado pela cavalgada, em textos como “Desejo
de virar Índio”. Então, que diferença faz o método de ensino, se não se
teve já essa experiência?
WSGF – Realmente, do que se trata é de provocar essa experiência,
da qual nos afastamos cada vez mais, quando mais entramos por esse
caminho da virtualização, da descorporificação, desmaterialização, que
é o da sociedade atual, então a ideia central da teatraula, como também
das oficinas de teatro, filosofia e literatura, a partir dos textos do Kafka,
é corporificar e materializar o conhecimento, o que me parece a grande
contribuição que uma sala de aula ainda pode trazer, e só algo assim pode
trazer, nesses tempos de informações disponíveis de forma massiva para
quem se concentrar na rede mundial de computadores.
Paola Cantarini – Não seria mais um problema o retrocesso à
animalidade, recuperando a sensibilidade, contrapondo-se ao que no
texto sobre Kafka, também, é referido como a “alienação do próprio
corpo, por força das ideias, em que tendemos cada vez mais a nos
26
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
tornarmos, deixando de ser reais, animais”, pois isso não implica no
fato de que além da sensibilidade as demais características do retorno
ao animal seriam incorporados, a ausência de limites, de moral?
WSGF – Na verdade, o que proponho é que encontremos nosso lugar,
como humanos, “entre o animal e o ideal”, quer dizer, que evitemos
tanto o rebaixamento à animalização, como também desconectarmo-nos
da “base física do espírito”, como consta do título de um livro de meu
conterrâneo cearense e grande filósofo, Farias Brito, ou seja, alienarmonos em uma idealização, que tanto pode ser uma religião ou mesmo a
ciência, e isso nos impeça de viver da melhor forma essa dificuldade,
esse desafio, de horror e maravilha, que é sermos humanos.
Paola Cantarini – A causa de tanto desconforto, que seria a vida
desenraizada que levamos, e a busca pelo eterno gozar, para completar
o vazio, o que nos falta e nos escapa, não poderia ser justamente o que
se nega com o apelo ao dionisíaco (já que completamente dominado pelo
deus, ficas-se alheio, indiferente aos outros, cedendo lugar aos impulsos
do irracional)? O individualismo, que é negado tão fortemente pelo
dionisíaco, pelo projeto de teatraula, não carrega em si mesmo um forte
conteúdo individualista? Não é o que se pode concluir do trecho abaixo:
“(..) A epifania de Dioniso não escapa apenas da limitação das formas,
dos contornos visíveis. Ela se traduz por uma magia, uma maya que
perturba as aparências. (...) ultrapassagem de todas as formas, jogo de
aparências, confusão entre o ilusório e o real, a alteridade de Dioniso
depende também do fato de através de sua epifania, todas as categorias
ressaltadas, todas as oposições nítidas, que dão coerência à nossa visão
de mundo, em vez de permanecerem distintas e exclusivas, se chamarem,
se fundirem, passarem umas às outras.(..) quando o bando das Mênades
entrega-se em conjunto ao frenesi orgiástico, cada participante agita-se
por sua conta, sem preocupação com uma coreografia geral , indiferente
ao que os outros fazem (...). Assim que o fiel entra na dança ele se
encontra, como eleito, a sós com o deus, completamente submisso á
27
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
potência que o possui e o conduz à vontade” (“Ainda sobre Dioniso”,
in: Mito e Tragédia na Grécia Antiga. Jean Pierre Vernant e Pierre Vidal
Naquest. São Paulo: Perspectiva,1995, p. 343).
WSGF – Bem, na teatraula ainda não rompemos com a separação
entre público-espectador e apresentadores, embora dela faça parte o
momento final, em que a assistência é convidada a se manifestar. Lá,
ao mesmo tempo, nos interessa posicionarmos como retransmissores
de uma tradição que se inicia no culto ao Dioniso, em um ato a um
só tempo político, educacional e também religioso, além de artístico,
claro, como eram as tragédias na Grécia antiga, em Atenas. Mas é muito
difícil falar da teatraula, pois ela é antes de tudo uma experiência para
se vivenciar, sendo o que recomendo a você e demais interessados em
compreender a proposta.
Paola Cantarini – Levando-se em conta Platão, em O banquete, poderse-ia dizer, então, que não seria o teatro, mas sim o banquete, o ato de
comer em comunhão, o lugar ideal para o conhecimento e aprendizado?
E a primeira aula, retomando aquela proposta do Freud, não teria sido o
“banquete totêmico”, conforme o que é referido nos textos abaixo, sendo
o primeiro de sua autoria?
“Após o assassinato do (Deus-)Pai seu corpo teria sido partilhado por
todos, havendo neste ato de “comer juntos”, de comunhão, mais do que
um sentido de incorporação do poder e de recolhimento em si do morto,
a finalidade de instituição da comunidade, de uma “comum-unidade”.
“É na mesa e na festa, bem mais do que em estruturas abstratas de
troca ou circulação, que se opera a passagem da natureza e da cultura.
Dionísio se apresenta como o grande mediador” (“À sombra de Dionísio.
Contribuição a uma sociologia da orgia”. Michel Maffesoli, tradução
Aluizio Ramos. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p.10).
WSGF – Bom, Platão, em seu último Diálogo, “As Leis”, voltado para o
direito, como o título indica, recomenda expressamente que o banquete,
cuja palavra em grego que o denomina é symposion, seja o lugar em
28
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
que se deveria transmitir de maneira ideal, o conhecimento – algo bem
diferente de nossos atuais “simpósios”, portanto (risos). E o que o
Maffesoli está dizendo nos indica que nossa época está propicia a uma
retomada dessa forma d aprendizado, sendo mesmo o que hoje se tem
feito, ainda que não seja com o intuito de obter conhecimento, mas sim,
diversão – é preciso acabarmos, urgentemente, com essa dissociação
entre divertimento, prazer e estudo, aprendizado, de outro, sendo nesse
sentido que propomos as teatraulas.
Paola Cantarini – Bem, professor, nossa entrevista já atingiu o tamanho
previsto e me parece que essa resposta fica bem para ser a última. Quero
agradecer e encerrar prestando uma pequena homenagem. Lendo um
poema do professor chamado “Poeta louco”, no livro que está disponível
no sítio Jornal de Poesia, ele me fez lembrar de algumas passagens de
Nietzsche, às quais coletei e deixo aqui, digamos, de presente, dessa sua
aluna e orientanda, que muito o admira.
WSGF – Puxa, muito obrigado, Paola.
“NUR NARR! NUR DICHTER! Somente Louco! Somente
poeta!
¨(...), portanto, aquilinos, de pantera
São os anseios do poeta,
São teus anseios sob milhares de disfarces,
Ó louco! Ó poeta!
Tu, que olhaste o homem
Como deus e como carneiro –
Dilacerar o deus no homem
Como o carneiro no homem
E rir dilacerando –
Isso, isso é a tua ventura,
Ventura de uma pantera e águia,
Ventura de um poeta e louco!...
29
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
(...) “- lembra-te ainda, lembras-te ardente coração,
Como tinhas sede então –
Que eu seja banido de toda a verdade!
Somente louco!somente poeta!...”
“...não esqueças,
ó homem totalmente curtido pela volúpia: tu és – a pedra, o
deserto , és a morte..”
entre as aves de rapina
...mas tu Zaratustra amas ainda o abismo,
Fazes como o abeto –
Ele finca raízes
Onde o próprio penhasco
Treme ao olhar a profundeza,
Ele hesita à beira de abismos
Onde tudo em volta
Quer precipitar-se...
...É preciso ter asas quando se ama o abismo...
(...) -“quem me aquece, quem me ama ainda
Dai-me mãos quentes!
Dai-me braseiros para o coração!
Estendida, arrepiada,...
Sacudida ai! Por febres desconhecidas,
Tremendo ante setas agudas e gélidas,
...assim me acho deitada,
Torço-me, retorço-me, atormentada
Por todos os martírios eternos,
Golpeada por ti, caçador crudelíssimo,
Tu – deus desconhecido..
Golpeia mais fundo!
Golpeia mais uma vez!
Traspassa, traspassa este coração!
30
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
...Tu me pressionas, me oprimes, ah!já perto e mais!ouves-me
respirar, espreitas meu coração, ó ciumento! Mas ciumento de
que... tua mais orgulhosa prisioneira...
Ladrão por trás das nuvens...
Fala, enfim...
Oculto no relâmpago! Fala! Que queres tu, salteador, de – mim...
... A mim – queres
A mim
A mim – toda...
Não é preciso antes se odiar, para se amar...
Eu sou teu LABIRINTO...”
31
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
1
O diálogo entre um filósofo e um jurista - considerações sobre o livro ix – o direito criminal – na obra
“As Leis” de Platão
Álvaro de Azevedo Gonzaga
Ex-aluno do Professor Willis Santiago Guerra Filho. Pós-Doutorando na
Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Doutor, mestre e
graduado em Direito pela PUC-SP. Graduado em Filosofia pela Universidade
de São Paulo USP. Professor concursado da Faculdade de Direito da PUC-SP.
Professor convidado da Escola Superior da Procuradoria-Geral do Estado de São
Paulo e da USCS. Ex-presidente do Instituto de Pesquisa, Formação e Difusão em
Políticas Públicas e Sociais. Coordenador, autor e coautor de inúmeras
obras publicadas pela RT. Advogado em São Paulo.
Marco Aurélio Florêncio Filho
Ex-aluno do Professor Willis Santiago Guerra Filho. Doutorando em Direito
pela PUC/SP, sob a orientação do Professor Doutor Willis Santiago Guerra Filho.
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Recife – UFPE. Professor
da Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da
Universidade Presbiteriana Mackenzie.
32
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Filho de Aríston e Perictione, Platão pertencia a uma tradicional
família de Atenas e estava ligado, pelo lado materno, a grandes
personalidades do meio político. Sua genitora descendia do grande
legislador Sólon, era irmã de Carmides e prima de Crítias, dois dos trinta
tiranos que dominaram Atenas durante algum tempo. Talvez seja possível
atribuir o desapreço de Platão pelos políticos de seu tempo ao convívio e,
consequentemente, ao conhecimento dos bastidores políticos, adquirido
desde criança.
Fato que marcou a juventude de Platão foi ter conhecido seu
maior mestre, Sócrates, que fora condenado pelo governo democrático da
época. Frente à injustiça que Sócrates havia sofrido, Platão aprofundou
sua descrença na democracia como a melhor forma de governo. Para
Platão, o mais sábio e mais justo de todos os homens não poderia ter
sido tratado daquele modo, o que o fez crer que não poderia haver um
partido político que um homem pudesse integrar sem abrir mão de seus
princípios éticos.
Além de outros motivos, a descrença no sistema democrático
inspira Platão a escrever sua República, ou Da Justiça – obra que apresenta
uma cidade idealizada por Platão como a forma perfeita de se organizar
uma polis, segundo Kaufmann, “Platão desconfiava da lei e apostava no
direito natural fundado nas ideias”1. Ocorre que sua produção filosófica no
campo da justiça não se finda com a estrutura politica-social apresentada
em “A República”. Avança para uma fase mais madura2 em que verifica
que a Justiça, a seu juízo, não pode ser apenas moral, fixando-se em
1
KAUFMANN, A.; HASSEMER, W. Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito
Contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 67.
2
Platão não abandona sua estrutura de cidade justa disposta em A República. Continua se
valendo da justificativa jusnaturalista para fundamentar suas Leis. Em outras palavras, Platão
é um jusnaturalista que positiva suas leis naturais. Tal posição muito se assemelha com a
perspectiva da doutrina imutável e superior ao direito positivo do jusnaturalismo. Além do que,
As Leis Platônicas não nascem para anular o direito natural Platônico exposto em A República,
mas surgem para possibilitar seu exercício através da coação. O direito estatal e o direito natural
não estão numa relação de antítese, mas de integração. (LUCCIONI, Jean. La pensée politique de
Platon. Paris: Presses Universitaires de France, 1958).
33
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
declarações, na expectativa de que as pessoas sigam sem qualquer tipo
de coercibilidade estatal. É nesse contexto que o pensador em comento
produz, sem abandonar totalmente suas ideias de A República, sua última
obra no campo da justiça intitulada “As Leis”.
A obra “As Leis” desenvolve-se em um diálogo entre “o
ateniense” e “Clínias”, um estrangeiro. Composta por XII livros, “As
Leis” se ocupa no livro IX exclusivamente de questões relacionadas ao
“Direito Criminal”3. Todavia, cumpre destacar que em outros livros são
encontrados assuntos pertinentes ao direito criminal, tais como crimes,
penas ou procedimentos penais. Tome-se, por exemplo, no livro VI,
as lições de crime e pena trazidas pelo “ateniense” especificamente
ao tratar das “condições de vida dos guardas do campo (agrônomos) e
regras disciplinares”4.
Nesse sentido, percebe-se que apesar do livro IX abordar
integralmente questões ligadas ao direito criminal, não é o único livro
que trata do assunto.
O livro trata das questões judiciais acarretadas pelas leis
sugeridas até então, e “O ateniense” logo indica, que:
O ateniense: […] nosso próximo passo consistirá em enunciálas [as matérias que envolvem os procedimentos judiciais]
na totalidade, indicando minuciosamente que penalidade
corresponderá a cada ofensa, e perante que tribunal deverá ser
julgada5.
3
Utilizaremos a nomenclatura da obra em estudo.
4
O modo de vida dos magistrados e agrônomos durante os seus dois anos de prestação de serviço
será como se segue: em primeiro lugar, em todas as regiões haverá repastos públicos, dos quais
todos deverão participar para sua alimentação. Se alguém furtar-se a isto durante o dia ou à noite
para dedicar-se ao sono sem ordens expressas dos magistrados ou devido a alguma causa urgente,
e se os cinco o denunciarem e afixarem seu nome na praça pública como culpado de abandonar
seu posto, ele sofrerá degradação por trair seu dever público, e todo aquele que o encontrar em seu
caminho e que o quiser punir poderá açoitá-lo impunemente. (PLATÃO. As leis. Bauru: Edipro,
1999, p. 243).
5
PLATÃO. As leis. Bauru: Edipro, 1999. p. 357.
34
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Para o ateniense, “é, num certo sentido, vergonhoso” que se faça
necessário promulgar leis6 para prevenir o crime num Estado como o que
6
Certamente, as leis gregas em nada se confundem com as leis que compreendem os ordenamentos
jurídicos modernos, tendo em vista que os gregos desconheceram o princípio da legalidade. “O
princípio da legalidade, também conhecido por ‘princípio da reserva legal’ e divulgado pela
fórmula ‘nullum crimen nulla poena sine lege’, surge historicamente com a revolução burguesa e
exprime, em nosso campo, o mais importante estágio do movimento então ocorrido na direção
da positividade jurídica e da publicização da reação penal. Por um lado, resposta pendular aos
abusos do absolutismo e, por outro, afirmação da nova ordem, o princípio da legalidade a um só
tempo garantia o indivíduo perante o poder estatal e demarcava este mesmo poder como o espaço
exclusivo da coerção penal. Sua significação e alcance políticos transcendem o condicionamento
histórico que o produziu, e o princípio da legalidade constitui a chave mestra de qualquer sistema
penal que se pretenda racional e justo” (BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal
brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 65). Segundo José Urquizo Olaechea, “El Derecho penal
se presenta como un instrumento creador de libertad y tiene como soporte de esta función el
principio de legalidad. No se concibe el Derecho penal occidental sin el principio de legalidad,
tanto que simboliza la cultura jurídica de occidente y su marco de influencia” (OLAECHEA, José
Urquizo. Principio de legalidad: nuevos desafios. Modernas tendencias en la ciencia del derecho
penal y en la criminología. In: Congreso internacional Facultad de derecho de la UNED. Madrid:
Universidad Nacional a Distancia, 2000. p. 61). Idealizado por Beccaria em 1764, em sua obra
“Dei delitti e delle pene”, o princípio da legalidade tem papel importante para delimitar o âmbito
de atuação dos magistrados e, assim, evitar arbítrios dos monarcas. Beccaria afirmava que “[...]
só as leis podem determinar as penas fixadas para os crimes, e esta autoridade somente pode
residir no legislador [...]” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Revista dos
Tribunais,1999. p. 30). Destarte, Beccaria tentava afastar as arbitrariedades existentes naquela
época, ao afirmar que competia apenas ao legislador formular as leis e que as penas não poderiam
ultrapassar os limites fixados pelas leis. Há de se ressaltar que não coube à Beccaria a formulação
jurídica do princípio da legalidade, mas sim a Anselm Von Feuerbach que foi responsável pela
construção jurídica do princípio da legalidade, visto que o magnífico trabalho desenvolvido por
Beccaria era de cunho político. Segundo Feuerbach, “toda pena jurídica dentro del Estado es
la consecuencia jurídica, fundada en la necesidad de preservar los derechos externos, de una
lesión jurídica y de una ley que conmine un mal sensible” (1989, p. 63). Dessa assertiva surgem
três princípios derivados, são eles: nulla poena sine lege – para se aplicar uma pena, deve existir
previamente uma lei penal; nulla poena sine crimemine – uma pena só poderá incidir sobre uma
ação criminosa; e nullum crimen sine poena legali – a ação criminosa legalmente cominada está
condicionada pela pena legal (FEUERBACH, Anselm von. Tratado de derecho penal. Buenos Aires:
Hammurabi, 1989. p. 63). Posteriormente a Feuerbach, as referidas fórmulas latinas decorrentes
do princípio da legalidade (nulla poena sine lege, nulla poena sine crimemine, nullum crimen sine
poena legali) foram condensadas no famoso brocardo latino nullun crimen nulla poena sine lege
(BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 37). O princípio
da legalidade é um divisor de águas, visto que a partir da análise deste princípio podemos dividir
o direito penal em dois grandes períodos. O período que antecede o princípio da legalidade pode
ser chamado de período do terror, enquanto que o período posterior ao princípio da legalidade
pode ser chamado de período liberal. O princípio da legalidade colocou como centro do direito
penal a dignidade da pessoa humana. Segundo BRANDÃO, “[...] o conceito contemporâneo do
Princípio da Legalidade estabelece que pela lei não somente se protege o homem das ações lesivas
aos bens jurídicos, pela lei se protege o homem do próprio Direito Penal” (Introdução ao direito
35
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
ele propõe, onde se presumiria que os cidadãos buscam a virtude; porém,
reconhece a fraqueza humana, e também que há certos homens que “não
recebem a influência das leis, por mais enérgicas que sejam”. Admite
também, a possibilidade da advertência antes do crime ser cometido,
apelando para a razão de quem sente ímpeto criminoso.
“O ateniense” acredita no poder de regeneração da punição, ao
mesmo tempo igualando reincidência a incorrigibilidade, que incorrerá
em pena de morte:
O ateniense: Entendemos que toda punição legalmente aplicada
não visa ao mal, mas via de regra produz um destes dois efeitos:
ou torna a pessoa que sofreu a punição melhor ou a torna menos
má. Mas qualquer cidadão é reiteradamente condenado por esse
ato, ou seja, a perpetração de alguma falta gravíssima e infame
contra os deuses, os pais ou o Estado, o juiz o considerará como
já incurável, reconhecendo que, apesar de todo o treinamento
que recebeu desde a infância, não se conteve, a ponto de cometer
a pior das iniquidades. Para ele a pena será a morte [...]7.
E acrescenta que os crimes do pai não se estenderão aos filhos
e à família, que “serão honrados e citados honrosamente”, caso seu
comportamento seja virtuoso; razão pela qual também os bens de tal
pessoa não serão confiscados. E no caso de crimes afiançáveis, a multa
não deve ultrapassar o excedente de produção do criminoso, para
que a falta de recursos não faça com que seu lote de terra se torne
penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 41).
7
PLATÃO. As leis. Bauru: Edipro, 1999. p. 358-359. Interessante destacar que na primeira parte da
citação, Platão menciona que a pena não visa a um mal, mas sim a melhoria da pessoa que sofreu
a pena. Diferentemente, nos dias atuais a pena traduz-se na função de infligir um mal à pessoa.
As teorias absolutas explicam os fins da pena a partir da idéia de retribuição, isto é, a aplicação do
mal pelo mal. Já as teorias relativas, apesar de reconhecerem que a finalidade da pena não repousa
na idéia de retribuição, mas sim na da prevenção, não se pode afastar a noção de mal intrínseca
na pena (BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
p. 279-284).
36
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
improdutivo. Caso não possa pagar, ele prevê outras punições como
prisão, açoitamento e humilhações. “Mas ninguém ficará absolutamente
à margem da lei”, salienta.
Platão entende que toda punição legalmente aplicada não
visa ao mal, mas via de regra produz um destes dois efeitos: ou torna
a pessoa que sofreu a punição, melhor ou menos má.8 Isso se verifica,
por exemplo, na afirmação de Platão: “porque todo aquele que for pego
roubando um templo, se for um estrangeiro ou um escravo, terá o estigma
de sua maldição marcado a fogo na sua testa e nas suas mãos, além de
sofrer o látego no número de golpes decretados pelos juízes; ademais,
será expulso nu para além das fronteiras do país, pois talvez após ser
assim punido, possa disciplinar-se para uma vida melhor”. (grifo nosso)
As penas podem ser, segundo o Livro IX: de morte, de prisão,
de açoites, determinadas posturas humilhantes, sentado, de pé, exposto
à porta de um templo nas fronteiras do território, de multas. Essas penas
são aplicadas de forma sistematizada, individualizando seus limites e os
agentes do crime para a cominação das aludidas penas.
Ele também prevê, no caso da pena de morte9 (aplicada no
caso de roubo ou profanação de templos, ou de desonra aos pais) a
votação entre os guardiões da lei. “Um discurso será feito primeiramente
8
Assim, podemos afirmar que a pena, em Platão, não tem caráter retributivo, é sabido, pois, que
a pena retributiva (também chamada de absoluta) traduz-se em aplicar um mal a quem cometeu
um mal. Os maiores expoentes modernos dessa teoria são Kant e Hegel. Para Kant a pena não se
esgota nela mesma. A pena era um imperativo categórico de justiça. Cada um deve receber o que
cada um de seus atos vale. Segundo Kant o réu é punido porque delinqüiu. A pena é produto da
lei moral, porque se eu não quero um mal para mim, eu não devo fazer um mal para o outro. Na
concepção de Hegel, retribuição jurídica, o crime é uma violação do direito, se ele não viola a letra
da norma, ele viola a norma. O crime é a negação do direito. A pena é a negação do crime. Ora, a
pena então é a negação da negação do direito, portanto a pena é um ato de afirmação do direito.
Já a pena preventiva (também chamada de relativa) traduz-se na prevenção de delitos, cabe a
ela evitar a prática de novos delitos. Ela se divide em geral e especial. A prevenção geral almeja
prevenir o crime pelo exemplo da aplicação do mal; a especial, pelo tratamento do criminoso.
Ainda pode-se falar da teoria mista ou eclética que une o critério da prevenção e da retribuição.
9
A pena de morte para Platão é diferente da pena do assassinato, como veremos mais à frente.
Todavia, nos dias atuais, não há diferença entre pena de morte ou pena de assassinato. Os
ordenamentos ocidentais modernos buscam o fim da pena de morte, tendo em vista à decadência
das teorias retributivas.
37
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
pelo reclamante, seguindo-se pelo discurso do acusado”. Após exame
cuidadoso e interrogatório, os guardiões farão votação e darão fim ao
julgamento.
Outro fato interessante que se pode extrair da obra é a
possibilidade da pena de multa ser substituída pela pena privativa de
liberdade. Veja, como exemplo, o seguinte caso: quem quer que pareça
merecer uma multa superior e não tenha ninguém entre seus amigos
desejoso de lhe prestar caução, (pagar por ele) e liberá-lo, terá que ser
punido por aprisionamento prolongado, de tipo público e por medidas de
degradação.
Procedimento semelhante é imposto aos que cometem crimes
contra a constituição do Estado, prevendo também o crime de omissão.
No caso de roubo de patrimônio do Estado ou de outrem, o
ateniense propõe que o ladrão seja aprisionado até que pague o dobro do
que roubou, ou seja, perdoado por quem foi roubado.
“O ateniense” prossegue numa discussão sobre a natureza do
bem, do belo e do justo, e sobre a divergência de opiniões quando paixões
estão envolvidas, que culmina na seguinte pergunta:
O ateniense: Fareis uma distinção, então, entre más ações
voluntárias e más ações involuntárias, e iremos promulgar penas
mais pesadas para os crimes e más ações que são voluntários, e
penas mais leves para os outros? Ou promulgaremos penas iguais
para todos achando que não há o ato voluntário de injustiça?10
Entende “O ateniense” que há diferença entre crime
voluntário e involuntário, mas que nem sempre se pode dizer a
diferença. Portanto, a resposta seria a compensação no caso de danos,
voluntários ou não, além de instrução caso seja voluntário; e também
a pena de morte aos incorrigíveis, uma vez que se alguém reincide,
10
38
PLATÃO. As leis. Bauru: Edipro, 1999. p. 367.
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
certamente não o faz involuntariamente, portanto é incorrigível e
pode-se aplicar a pena de morte.
Após discutir a respeito dos motivos das injustiças, “O
ateniense” propõe a criação de dois tipos de leis distintas para atos
públicos e privados:
O ateniense: Um concerne aos atos cometidos ocasionalmente
através de meios violentos e abertamente, o outro diz respeito
aos atos cometidos privadamente, encobertos pelas sombras e
pela fraude, ou às vezes aos atos cometidos dessas duas maneiras
– e para atos desse último tipo as leis serão mais severas se
quisermos que se revelem adequadas11.
A insanidade também é prevista, e o dano deverá ser reparado
na medida exata. Caso o insano mate alguém será exilado por um ano12.
A obra ainda faz menção à possibilidade do perdão por parte
do ofendido e a respectiva isenção de pena. Assim, no caso do ladrão
que tenha furtado uma grande coisa ou pequena de um cidadão, deve,
em primeiro lugar, pagar o dobro do valor do artigo furtado. Se não tiver
condições para tanto, será aprisionado até conseguir pagar a soma, ou
tiver sido liberado por quem o processou. Outro exemplo de perdão é
vislumbrado na seguinte hipótese: se alguém for tomado de uma fúria tão
incontrolável em relação a seus pais a ponto de realmente ousar dar cabo
da vida de um deles no seu louco furor e se acontecer que o pai ou a mãe,
antes de morrer, voluntariamente, absolva o culpado do assassinato, este
poderá reaver a sua pureza depois de purificar-se da mesma maneira que
11
PLATÃO. As leis. Bauru: Edipro, 1999. p. 367.
12
Nos dias atuais a insanidade, ou desenvolvimento mental incompleto, é analisada dentro do
juízo de culpabilidade, para excluí-lo (quando o agente era inteiramente incapaz de entender o
caráter ilícito do fato) ou para reduzir a reprovação (quando o agente não era inteiramente incapaz
de entender o caráter ilícito do fato). Nesse sentido, como crime é um fato típico, antijurídico e
culpável, tem-se que os insanos praticam um fato típico e antijurídico, mas não culpável. Logo,
não sofrem pena, pois não praticam crime.
39
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
o fizeram aqueles que cometeram um assassinato involuntário13.
O estrangeiro passa a sugerir leis para o assassinato14. No caso de
alguém matar um amigo durante os jogos, nas guerras ou nos treinos para
ela, não ocorrerá processo, assim como quando o paciente morre contra
a vontade do médico, este será isento. Os assassinatos involuntários têm
punição diferente se cometidos contra um escravo, tendo-se que reparar
o dono do escravo; ou contra um homem livre, caso em que o assassino
deve desterrar-se por um ano para não sofrer processo. Em todos os
casos, deve-se haver purificação. Ainda, “O mesmo se aplica a todos os
médicos: se o paciente vier a falecer contra a vontade de seu médico, este
será considerado de mãos puras e isento de pena”15.
Também fazem parte desse caso os crimes passionais sem
intenção. Os intencionados terão exílio maior como punição. Reincidentes
sofrerão exílio perpétuo16.
“O ateniense”, então, declara as punições para diversos casos
mais específicos, e passa a discorrer sobre assassinatos voluntários,
“movidos pelo prazer, os apetites ou a inveja” e também a covardia,
diferenciando os casos. As penas para tal também incluem a pena de
morte ou o exílio, e o assassino aguarda o julgamento em ostracismo. Os
pormenores de cada tipo de assassinato são propostos como no caso dos
involuntários.
13
No caso de assassinato involuntário, para que um cidadão não seja processado é necessário ter
sido purificado como orienta a regra de Delfos.
14
PLATÃO. As leis. Bauru: Edipro, 1999. p. 372 e ss.
15
Com a estruturação da dogmática jurídica penal, analisam-se, hoje, as intervenções médicas
nos pacientes como exercício regular do direito.
16
Com relação ao crime de assassinato, traz-se a importância da intenção para, em decorrência,
cominar penas mais graves ou menos graves. Assim, estabelece-se uma gradação da pena, para os
casos de assassinato com intenção e sem intenção premeditada. Nesse sentido, afirma o referido
filósofo que a característica da intenção deliberada ou a ausência de tal intenção é importante para
a cominação de penas mais severas àqueles que matam com intenção e movidos pelo ódio, e penas
mais brandas àqueles que o fazem sem premeditação e sob um impulso repentino, isto porque o
que se assemelha a um mal maior tem que ser punido com maior rigor, enquanto aquilo que se
assemelha a um mal menor, deve ser punido menos rigorosamente.
40
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Como as leis e a religião não se separam para o estrangeiro,
muitas das punições propostas vão além da vida e se baseiam em castigos
dos deuses e das reencarnações; e às vezes até se pune o cadáver. É o
caso também dos suicidas. Nota-se em 873d:
O ateniense: […] os túmulos serão, em primeiro lugar, numa
posição isolada, nem sequer um outro túmulo adjacente, e em
segundo lugar, deverão ser enterrados naqueles limites dos doze
distritos que são desérticos e inominados, sem qualquer menção,
sem qualquer lápide nem nome que indiquem seus túmulos.
Os animais assassinos também são mortos. A respeito dos
homicídios de autor desconhecido, o homicida será morto e seu corpo
exilado caso seja descoberto.
O estrangeiro ateniense conclui então as leis sobre o homicídio
e passa a discorrer sobre os casos em que o assassino será absolvido.
Os casos incluem legítima defesa contra ladrões e estupradores, e neste
último, os parentes também podem exercer a vingança.
“O ateniense”, em 874e, 875a, reitera a importância de se
promulgar leis, o que nos diferencia dos animais:
O ateniense: […] é realmente necessário aos seres humanos
fazerem eles mesmos leis e viver de acordo com as leis,
sem o que a humanidade não diferirá em absoluto das bestas
mais selvagens.
E que “a verdadeira arte política necessariamente zela pelo
interesse público”.
Ele torna, então, à punição de ferimentos, afirmando que, pela
infinidade de casos em que ela pode ocorrer, somente alguns serão
41
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
legislados, enquanto os outros terão a punição decidida em tribunal17.
Após o preâmbulo, novamente discorre acerca dos pormenores de cada
caso, que servirão de exemplos para “impedi-los de ultrapassar os limites
da justiça”. As punições incluem reparações, exílio e açoites.
O propósito de tais leis e sua relação com a educação são
explicitados em 880d-e:
O ateniense: As leis [...] são feitas em parte para a segurança
dos homens de bem, para propiciar-lhes instrução quanto ao
relacionamento que será mais seguro na sua amistosa associação
entre si, e em parte também por causa daqueles que se furtaram
à educação e que, sendo donos de um temperamento obstinado,
não contaram com um tratamento atenuador que impedisse que
cedessem a todo tipo de perversidade.
O estrangeiro ateniense dá atenção especial ao crime de lesão
aos pais ou avós, e, além das suas penas, lista as recompensas para as
testemunhas que prestarem socorro, assim como as punições para aquelas
que se omitirem.
Após listar mais algumas punições em caso de agressão, “O
ateniense” conclui o livro, em 876e até 882c.
A guisa de encaminharmos as considerações finais deste ensaio,
pensam estes autores que mesmo com muitas diferenças e distâncias,
tanto na perspectiva histórica como nas perspectivas doutrinária, temporal
e espacial, faz-se mister o estudo do pensamento platônico a fim de
desmistificar a noção errônea que apregoa ser, este filósofo, apenas um
pensador de doutrina idealista sem nenhuma aplicabilidade. Antes, tratase de um estudioso que, com suas limitações históricas e sociais, buscou a
conceituação de um Direito Criminal a fim de alcançar a Justiça.
17
Hodiernamente, isso pode ser visto como a discricionariedade do juiz, ou como a possibilidade
da construção de uma jurisprudência.
42
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
2
A evolução social e a evolução do direito conforme
o modelo habermasiano
Andréia Fogaça Maricato
Doutoranda, Mestre e Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP.
Professora seminarista do IBET de São Paulo.
Coordenadora do IBET de São José dos Campos. Advogada.
43
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Introdução
Nosso corte metodológico se limita a evolução social e a
evolução do direito segundo a teoria de Jünger Habermas, desenvolvida
a partir da teoria da ação comunicativa e da ética do discurso.
Como veremos, Habermas não ignora o estudo da evolução
do direito feito por Luhmann18, reconhece ser relevante para o processo
evolutivo da sociedade o aumento da complexidade sistêmica, todavia,
dá ênfase à lógica do desenvolvimento de mecanismos de aprendizagem.
Para haver evolução no modelo de Luhmann é preciso que
estejam diferenciados três mecanismos evolutivos: variação, que se
refere a uma comunicação inesperada, que constitui uma negação das
estruturas estabilizadas; seleção, que é a escolha ou não da informação, no
sentido da construção de estruturas que comportem seu uso repetido, que
pode ser positiva ou negativa. Em sendo positiva, o sistema transforma
a comunicação desviante em expectativa, isto é, prevê estruturas aptas a
comportar a reiteração da informação desviante; e a reestabilização, que
é a efetiva inserção das novas estruturas no sistema19.
Habermas, ao estudar o mesmo tema, reconstrói, no âmbito
da teoria da ação comunicativa e da ética do discurso, o modelo de
desenvolvimento ontogenético (do indivíduo), formulado por Jean
Piaget e desenvolvido por Lawrence Kohlberg, aplicando-o ao âmbito da
evolução filogenético (da sociedade).
No entanto, o elemento principal para Habermas, na evolução
da sociedade, é o desenvolvimento da consciência moral20.
Nesta reinterpretação dos modelos de Piaget e Kohlberg, a partir
18
Cria um modelo de evolução social com base na evolução biológica. Para Luhmann, a evolução
social decorre de transformações internas do próprio sistema, que assimila informações advindas
do ambiente (transformando o improvável em provável com ênfase no caso); e no aumento da
complexidade da sistêmica. (NEVES, Marcelo. 2006. p. 25).
19
NEVES, Marcelo. 2006. p. 18-25.
20
NEVES, Marcelo. 2006. p. 26
44
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
da teoria da ação comunicativa, Habermas vincula ao descentramento
progressivo da compreensão do mundo, nos três domínios de referência:
mundo objetivo, social e subjetivo, e relaciona com os tipos de ação e a
diferenciação de um plano discursivo em face das ações.
Nosso objeto de estudo se restringe na análise da evolução
social como desenvolvimento da consciência moral e a evolução do
direito conforme o modelo habermasiano, através dos três níveis de
desenvolvimento da consciência moral: nível pré-convencional, nível
convencional e nível pós-convencional, não só no plano individual, mas
também em relação aos tipos de sociedade e de direito.
1. Do desenvolvimento ontogenético
Habermas reconstrói a teoria de Piaget desenvolvida por
Kohlberg compartilhando na investigação da estrutura e aquisição das
competências humanas. Considera o trabalho de Piaget sobre cognição,
e o de Kohlberg sobre o juízo moral21.
De Piaget utilizam-se e reconstroem-se os elementos básicos da
teoria dos estágios do desenvolvimento cognitivo e do julgamento moral
da criança, conforme demonstrado a seguir.
1.1 Teoria dos estágios do desenvolvimento cognitivo: Jean Piaget
Jean Piaget voltou suas atenções, para a teoria psicológica,
numa tentativa de, refutando o naturalismo empirista, investigar as bases
biológicas do conhecimento22.
Assim, tentou reconstruir os modos pelos quais a inteligência
humana seria constituída, desde uma perspectiva gerativa de intercâmbio
entre suas estruturas esquemáticas e o meio ambiente que a circunda.
21
WHITE, Stephen K.. 1995. p. 64.
22
LOPES, Rafael Ernesto. 1993. p. 15 ss.
45
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Esse intuito levou-lhe à observação empírica do comportamento infantil,
no sentido da identificação de uma transição das formas mais simples
da inteligência até o seu amadurecimento nas estruturas da idade adulta.
Por esta razão, elaborou uma teoria complexa do nascimento da
inteligência baseada na proposta de uma seqüência discreta de estágios
cognitivos hierarquizados.
A passagem de um estágio para o subseqüente pressuporia um
respectivo ganho de complexidade e capacidade de coordenação entre
os esquemas, segundo ele irreversível, em condições normais. Além
disso, não poderia haver “saltos”, ou seja, superação de estágios alheia
à seqüência pré-determinada, devendo-se seguir uma complexidade
crescente até os níveis identificados, teoricamente, com os últimos
alcançados pelas formas humanas de inteligência até o momento23.
Deste modo, na fase inicial da vida, correspondendo à idade de
zero até os 24 meses24, chamado de nível sensório motor ou pré-operativo
do desenvolvimento psicológico, a criança não faz distinção do sujeito
com seu ambiente. Com o aprendizado, a criança começa a distinguir o
eu do ambiente, mas não diferencia claramente25. Nesta fase prepondera
o egocentrismo cognitivo e moral, ou seja, a criança só considera as
situações partindo do seu ponto de vista.
Para que ocorra a passagem deste estágio para o seguinte, é
necessária uma progressiva descentração, pela interiorização do mundo
e exteriorização da consciência, na forma de constantes acomodações.
Ou seja, deveríamos fazer referência ao processo gradual de aquisição
de hábitos; ao surgimento da intencionalidade com as primeiras
diferenciações entre o meio e fim. Posteriormente, à capacidade de
objetualização presentificada, pela qual os objetos atuais passam a ter
existência fora do indivíduo, assim como os modos de distinção do real
23
PIAGET, Jean. 1983, p. 53.
24
PIAGET, Jean; Inhelder, Bärber. 2001. p. 14-79.
25
NEVES, Marcelo. 2006. p. 26.
46
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
permanente do real “evocado” 26.
No nível das operações concretas (aproximadamente entre os 2
e 7 anos)27, a criança começa a construir o sistema de delimitação do eu,
e passa a não mais confundir os signos lingüísticos de seus significados;
passa a diferenciar subjetividade em face da natureza e da sociedade.
Aqui ela já tem uma postura objetivista e sociocêntrica. Nesta fase, o
indivíduo simplesmente aceita o que lhe é imposto ou ensinado, isto
porque, “não há reflexividade cognitiva em relação à realidade objetiva
que se percebe, nem uma postura crítico-reflexiva em relação às normas
institucionalizadas” 28.
Já na adolescência, chamado de nível de desenvolvimento das
operações formais (entre os 11-12 anos de idade aproximadamente) 29, o
indivíduo não aceita mais passivamente as pretensões de validade contida
nas assertivas e normas, pois, já distingue o eu do ambiente e supera o
objetivismo com relação à natureza e sociedade.
O jovem, aqui, começa a criticar as ordens normativas, a lei
transmitida e passa a compreender e a criticar as normas socialmente
vigentes, as convenções, baseado nos princípios. Supera o dogmatismo
do dado e do existente, e se torna um eu capaz de pensar e discutir.
Contudo, o sistema de delimitação do eu se torna reflexivo e
universalista, e passa a discutir a verdade e validade normativa fora do
seu próprio contexto social, se tornando um sujeito observador.
1.2 Teoria moral evolutiva: Lawrence Kohlberg
Kohlberg, baseando-se na psicologia cognitiva de Piaget, propôs
um modelo de desenvolvimento do julgamento moral nos três níveis,
26
PIAGET, Jean; Inhelder, Bärber. 2001. p. 14-79.
27
LOPES, Rafael Ernesto. 1993. p. 76 ss.
28
NEVES, Marcelo. 2006. p. 27.
29
LOPES, Rafael Ernesto. 1993. p. 76 ss.
47
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
pré-convencional; convencional; pós-convencional, abrangendo seis
estágios, ou seja, dois para cada nível. Tais estágios de pensamento não
são simples respostas no modelo de estímulo-resposta de aprendizado,
mas são tanto adaptações como construções ativas do sujeito. Esses
estágios, afirmam-se culturalmente universais quanto sequencialmente
invariantes, embora o progresso através dos estágios varie através tanto
quanto nas sociedades30.
Assim, no desenvolvimento desses três níveis, a passagem
de um estágio para outro é compreendida como um processo de
aprendizagem31, a criança se move de um estágio para o seguinte e
vê o estágio mais elevado como mais adequado, porque a coloca em
maior equilíbrio com o seu ambiente. Para isto, obedece às seguintes
condições: i) os estágios constituem uma sequência invariável,
irreversível e consecutiva, ou seja, todos os estágios devem ver
vivenciados; ii) no processo de desenvolvimento, o sujeito não pode
compreender o raciocínio moral de um nível posterior àquele em que
se encontra, e; iii) a passagem de um estágio para outro ocorre porque
o nível superior se revela capaz de solucionar problemas de interação
que o precedente não conseguiria até então32.
Esses níveis são definidos a partir de três tipos de relação do
eu com as expectativas e normas sociais: no nível pré-convencional as
normas e expectativas sociais constituem algo externo para o eu; no nível
convencional, o eu identifica-se com as normas e expectativas sociais ou
internaliza-as; e no nível pós-convencional, as pessoas diferenciam as
suas próprias normas e expectativas das adotadas pelos outros, definindo
os seus valores em termos de princípios autoescolhidos33.
Nível pré-convencional: As normas e expectativas sociais
30
WHITE, Stephen K.. 1995. p. 64.
31
HABERMAS, Jürgen. 2003. p. 154.
32
HABERMAS, Jürgen. 2003. p. 157.
33
NEVES, Marcelo. 2006. p. 28.
48
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
constituem algo externo para o eu - Este nível que é dividido em dois
estágios vemos uma completa dependência do indivíduo em relação ao
grupo social. A criança obedece às regras e rótulos culturais do bom e
mau, certo e errado, mas as interpreta em termos de conseqüências físicas,
seja das conseqüências hedonísticas da ação (punição, recompensa, troca
de favores), ou em termos do poder físico daqueles que enunciam tais
regras e rótulos34.
1º estágio: moralidade heterônoma ou punição e obediência35.
Neste primeiro estágio, a criança obedecer às regras para não ser
punido, ou seja, obedece ilimitadamente ao mandamento da autoridade
não por respeito a uma ordem moral, mas por medo da punição.
Sob o ângulo da perspectiva social, a criança adota um ponto
de vista egocêntrico. Suas razões para agir corretamente é evitar o
castigo, isto porque, neste estágio a criança não faz distinção entre o
eu e o mundo e não há um julgamento moral, ela aceita o que vem de
fora e não contesta.
2º estágio: individualismo, o objetivo instrumental e a troca.
As relações humanas são vistas em termos semelhantes às
relações mercantis, de modo que o direito é aquilo que é bom para ambas
as partes e a ação deve ser pautada sempre por troca.
Desta forma, a criança entende como sendo moralmente correto,
agir de acordo com seus próprios interesses e necessidades, deixando os
outros fazerem o mesmo.
Seu julgamento moral é baseado em critérios voltados para
conseqüências físicas e hedonísticas, pois, a pessoa se relaciona com
outra e integra os conflitos interindividuais de interesses através da troca
instrumental de serviços e da satisfação de necessidades instrumentais36.
Nível Convencional: O eu identifica-se com as normas
34
WHITE, Stephen K.. 1995. 71.
35
NEVES, Marcelo. 2006. p. 29.
36
NEVES, Marcelo. 2006. p. 30.
49
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
e expectativas sociais - Neste segundo nível, a pessoa mantém as
expectativas da família, grupo ou nação, buscando-se, de acordo com
as regras do jogo, agir de modo a conseguir sempre o maior benefício
possível, no entanto, vale a idéia de que as normas garantem, em última
análise, o bem estar de todos37.
Por esta razão, o nível convencional, é marcado pela
perspectivação de segunda pessoa38, ou seja, a uma assunção recíproca de
papéis que faz surgir o âmbito de um agir estratégico que procura levar
em conta as perspectivas dos outros como concorrentes na realização de
suas próprias intenções.
3º estágio: expectativas interpessoais mútuas, os relacionamentos
e a conformidade interpessoal ou a orientação do “bom moço”.
Um bom comportamento é aquele que agrada aos outros e é por
eles aprovado por estar vinculado a uma pauta estabelecida. O indivíduo
procura fixar-se como membro da sociedade, obedecendo às regras para
ser aceito pela sociedade.
Aqui, entende-se como sendo moralmente correto, corresponder
às expectativas das pessoas próximas, o “ser bom”, significa ter bons
motivos e intenções, mostrando consideração pelos outros. Faz-se
necessário, ser bom aos seus próprios olhos e aos olhos dos outros,
chamada de “regra de ouro”, ou seja, se alguém se puser no lugar do
outro, iria querer um bom comportamento de si próprio 39.
Ainda, não desaparece o egoísmo, mas o prazer perde sua
ligação a bens mais concretos e vai em busca do sentimento de aprovação
e valorização social ligado ao reconhecimento do bom exercício do papel.
4º estágio: sistema social e consciência40 (orientação lei e
ordem).
37
HABERMAS, Jünger. 2003. p. 176.
38
Idem, p. 176.
39
NEVES, Marcelo. 2006. p. 30.
40
NEVES, Marcelo. 2006. p. 31.
50
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
O moralmente correto aqui é cumprir dos deveres com os quais
se concordou. Deve-se obediência à autoridade das normas estabelecidas
e a intenção firme de manutenção inquestionável da ordem normativa.
A pessoa preserva as instituições sociais, para evitar o colapso
do sistema e cumprir as próprias obrigações da consciência.
Aqui, já se encontra a distinção entre ação e norma, mas não tem
como discutir princípios. O indivíduo coloca-se como observador, e tem
uma visão privilegiada da sociedade, pois, ele já se enquadrou no sistema
para observar, mas as críticas dele com relação às normas são baseadas
em considerações generalizada e abstrata.
4½ estágio: Crise da adolescência41 - Kohlberg abre um parêntese,
para se referir ao problema da regressão relativista, classificando esta
fase como o estágio de transição entre o nível convencional e o pósconvencional, chamado de 4 ½.
Este estágio é caracterizado por ceticismo, egoísmo e relativismo.
É representado como crise da adolescência, pois, a escolha dos padrões de
comportamento é compreendida como pessoal e subjetiva. Neste estágio,
o indivíduo vê a sociedade de fora, tomando decisões sem compromisso
ou contrato generalizado com a sociedade sem se basear em princípios.
Habermas critica este estágio, vendo-o como insuficiente, e
argumenta que, o ceticismo axiológico inerente a esse estágio não pode
ser reduzido a um momento de transição do desenvolvimento moral, uma
vez que pode ser estabilizado através de posições filosóficas sérias42.
Nível pós-convencional: A pessoa diferencia suas próprias
normas e expectativas das adotadas pelos outros, definindo os seus
valores em termos de princípios autoescolhidos - É neste nível, que a
pessoa supera a ingenuidade cotidiana, e passa a ter uma visão descentrada
do mundo, questionando as pretensões de validade à luz de princípios43.
41
NEVES, Marcelo. 2006. p. 37.
42
NEVES, Marcelo. 2006. p. 37.
43
NEVES, Marcelo. 2006. p. 35-36.
51
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
5º estágio: do contrato social, da utilidade e dos direitos
individuais.
Entende por moralmente correto, a observância dos direitos,
valores e contratos legais básicos da sociedade, mesmo quando estiverem
em conflitos com as regras e leis concretas do grupo44.
Sua razão para agir corretamente, é cumprir as obrigações
perante o direito, para o bem estar geral e a proteção dos direitos
de todas as pessoas. Tem aqui, um sentimento e compromisso
contratual, assumido livremente, em relação à família, à amizade, à
confiança e ao trabalho.
Faz uma clara visão do relativismo dos valores e opiniões das
pessoas, dando ênfase as regras de procedimento para alcançar o consenso.
Exceto pelo que é constitucional e democraticamente acordado, tem-se
que o direito é uma questão de valores e opinião pessoal45.
Presente a distinção entre ação e normas, e princípios e normas,
o indivíduo vê o conflito do princípio com as normas, mas não sabe
solucionar, pois seu discurso é voltado para o grupo.
6º estágio: princípios ético-universais.
Aqui, o justo é definido pela decisão, de acordo com princípios
autonomamente escolhidos, aos quais apelam à compreensão lógica, à
universalidade e à consciência, como os únicos critérios que não são
particulares e são, portanto, dotados daquela reversibilidade típica da
descentração dos últimos estágios do desenvolvimento cognitivo.
Assim, é o moralmente correto seguir princípios éticos
autoescolhidos, quais sejam, os princípios gerais de justiça – a igualdade
dos direitos humanos e o respeito à dignidade dos homens como pessoas
individuais.
Suas razões para agir corretamente são a crença na validade
universal de princípios morais e o senso no compromisso pessoal para
44
NEVES, Marcelo. 2006. p. 32.
45
WHITE, Stephen K. 1995. p. 72.
52
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
com eles. A um ponto de vista moral do qual derivam e em que se baseiam
os acordos, normas e valores sociais46.
1.3 Teoria da ação comunicativa aplicada ao desenvolvimento
cognitivo – ainda no desenvolvimento ontogenético
Habermas reinterpreta os modelos de Piaget e Kohlberg a partir
da teoria da ação comunicativa, aplicando ao descentramento progressivo
da compreensão do mundo, nos três domínios de referências47: o mundo
objetivo, o social e o subjetivo e relacionando com os tipos de ação
(estratégica e comunicativa) 48.
Nível pré-convencional - Neste nível não há descentramento
dos mundos (objetivo, social e subjetivo), também não há distinção dos
tipos de ações (estratégica e comunicativa), e não há uma diferenciação
do plano discurso em face às ações.
46
NEVES, Marcelo. 2006. p. 33.
47
Não se pode confundir mundo da vida com o mundo como referência dos agentes comunicativos.
O primeiro se refere ao pano de fundo do agir comunicativo, coordenado pelo entendimento e
estruturado pela cultura, sociedade e personalidade. Já o “mundo” apresenta-se como referência
aos agentes comunicativos, diferenciando-se em mundo objetivo, social e subjetivo. Os três
mundos se relacionam com os critérios de validade: i) a verdade (enunciado verdadeiro) é o
mundo objetivo, o mundo como referência do agente; ii) a retidão ou justiça (mundo social), que
esteja em harmonia com o sistema de normas vigentes; e iii) a veracidade ou sinceridade (mundo
subjetivo), que a intenção expressada coincida com a intenção do falante.
O mundo da vida racionaliza-se tanto pela diferenciação interna de seus componentes estruturais
(cultura, sociedade e personalidade) quanto pela diferenciação das referências do mundo (objetivo,
social e subjetivo) e das respectivas pretensões de validade (verdade, retidão e veracidade). A
racionalização é indissociável da distinção dos tipos de ação assim como entre plano de ação e do
discurso. Mas a racionalidade do mundo da vida está vinculada a sua diferenciação externa em
relação ao sistema sendo que o sistema ao se tornar mais complexo aumenta a racionalização do
mundo da vida contribuindo para a racionalidade do saber, a solidariedade dos membros e para
a autonomia da pessoa, mas a hipertrofia do sistema invade o mundo da vida provocando perda
do sentido, psicopatologias e anomias. (fichamento. NEVES, Marcelo. Entre têmis e leviatã, 2006.
pp. 59-78).
48
Ação estratégica se opera, quando o sujeito “A” utiliza-se do sujeito “B”, para realizar seus
interesses. E a ação comunicativa se dá, quando um sujeito toma o outro como sujeito, e não como
meio para utilizar seus interesses. (caderno de anotações da aula expositiva do prof. Marcelo
Neves, Teoria Geral do Direito, no curso de mestrado na PUC/SP, em 14/08/07).
53
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
1º estágio: perspectiva egocêntrica ou individualista concreta.
Aqui, o indivíduo não faz uma distinção clara entre subjetividade,
objetividade (natural) e intersubjetividade (social), nem entre ação e
norma, ou seja, as condutas são baseadas na regra de causalidade e não de
imputação, isto porque, não se pode distinguir entre o agir orientado para
o êxito e o agir que se busca o conhecimento. Todas as regras impostas
são cumpridas e obedecidas para não ser punido.
2º estágio: troca de equivalências como critério de avaliação
de condutas49.
O indivíduo age com relação às coisas que tem interesse, com
base na troca. Ele começa fazer uma distinção do eu e o ambiente, mas
utiliza a outra pessoa como um meio para se chegar ao fim que deseja,
de modo a tirar uma vantagem. A pessoa é utilizada pelo outro como um
instrumento, (agir instrumental, tem consciência da outra pessoa, mas a
utiliza com um instrumento para realizar seus próprios interesses).
Nível convencional - Já há um descentramento dos mundos
(objetivo, social e subjetivo), mas ainda de forma intuitiva, pois, não
tem como questionar as pretensões de validade (sinceridade, verdade e
retidão ou validade normativa). Todavia, há distinção ente ação e norma,
e já se distinguem os planos de ações (estratégica e comunicativa).
Em ambos os estágios deste nível as crenças intuitivamente
partilhadas no mundo da vida não são passíveis de ser questionadas, pois,
a identidade ainda está subordinada aos imperativos institucionais50.
3º estágio: o indivíduo internaliza as expectativas das pessoas
próximas, considerando as ações em termos de papéis concretos.
Neste estágio, o indivíduo segue as regra para se inserir na
sociedade e para se sentir aceito por ela. Ele deixa de ser egocêntrico e
acata as regras do grupo, com o objetivo de fazer parte deste grupo e de
49
NEVES, Marcelo. 2006. p. 34.
50
NEVES, Marcelo. 2006. p. 35.
54
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
dar identidade ao mesmo, é a chamada “regra do bom moço”. Porém,
ainda não tem uma visão privilegiada da sociedade.
4º estágio: a perspectiva do observador diferencia em face de
um sistema de regras e valores.
O indivíduo ainda não faz distinção entre ação e discurso
e nem se discute as pretensões de validade (verdade, retidão e
sinceridade), sustentadas implicitamente no plano da ação. Mas, por
outro lado, tem uma visão privilegiada da sociedade, é tido como
observador, pois, tem uma visão intuitiva das referências dos mundos
(objetivo, social e subjetivo).
Nível pós-convencional51 - Somente neste nível há o
descentramento bem nítido e definido dos mundos. Isto porque, já está
superada a ingenuidade da prática cotidiana, e não se aceita as coisas
de forma passiva (desdogmatização). Há a introdução do discurso
como forma reflexiva da ação, e as pretensões de validade em relação
aos mundos subjetivo, social e objetivo, sustentadas na linguagem
cotidiana, passaram a ser passíveis de contestação com base nos
princípios éticos universais. Tendo assim, capacidade para questionar
(desinstitucionalização da moral).
A autonomia se opõe a heteronomia (normas impostas), ou seja,
o sujeito não aceita as normas impostas de forma passiva, porque ele já
tem uma visão crítica (de autonomia), que vai criticar as normas com
base nos princípios.
5º estágio: a estrutura da expectativa de comportamento
apresenta-se como regras para exame de normas, ou seja, princípios
(normas de normas).
Surge a noção de princípios, e a possibilidade de se questionar
as coisas com base nos princípios, mas o indivíduo não sabe como. Aqui,
se diferencia ação, norma e princípios, mas não tem o procedimento para
trabalhar norma e princípios.
51
NEVES, Marcelo. 2006. pp. 35-36.
55
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
6º estágio: a estrutura da expectativa de comportamento
apresenta-se regra para exame de princípios: procedimento de
fundamentação de normas.
Por fim, neste estágio, a pessoa tem a noção de princípios e os
próprios princípios são discutidos, conhecida como auto reflexividade,
pois, já tem procedimento para fazer a análise das normas vigentes e
conjugá-las com os princípios universais.
A autonomia é bem visível neste estágio, e o indivíduo não
aceita as coisas de forma passível e tem como contestar.
2. Do desenvolvimento filogenético: Jürgen Habermas
Habermas traça um paralelo entre os dois modelos ontogenéticos
de desenvolvimento, ao seu modelo filogenético, entendendo que o
processo evolutivo das sociedades são conseqüências do desenvolvimento
da consciência moral.
Ao transportar o modelo individual para o social, sustenta a
existência de homologias e traça um paralelo dos níveis da consciência
moral do indivíduo com a sociedade, entendendo que o desenvolvimento
filogenético comporta três níveis de consciência moral: pré-convencional
– sociedades arcaicas; convencional – sociedade das culturas avançadas;
e pós-convencional – sociedade moderna.
Nível pré-convencional: sociedade arcaica - Este nível passa
por dois planos, o plano sacro, onde não há descentramento entre os
mundos (objetivo, social e subjetivo). As estruturas normativas são
baseadas nas tradições, crenças, de modo que não há questionamentos.
As ações do agente estão voltadas para o seu resultado e não para suas
intenções.
Não há uma distinção nítida entre cultura e natureza; normativo
e cognitivo; indivíduo e sociedade manifestam-se através de rituais e
mitos. Não tem agir comunicativo e nem estratégico.
56
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Já no plano profano, há uma pequena diferenciação entre ações
orientadas para o êxito e ações orientadas para o entendimento.
Entretanto, como há confusão entre os mundos (objetivo, social
e subjetivo), as imagens místicas, a identidade do indivíduo se confunde
com a do grupo, clã, família ou tribo.
As pretensões de verdade, sinceridade e retidão constituem uma
síndrome. Ou seja, não tem plano comunicativo, e quando tem é precário.
A visão que o indivíduo tem da sociedade é míope, não vislumbra a
sociedade com um todo52.
Nível convencional: sociedade de culturas avançadas - No
plano sacro, já há o descentramento dos mundos (objetivo, social e
subjetivo), mesmo na religião, porém, de modo intuitivo. Tem-se uma
distinção entre ação estratégica e comunicativa, mas a ação não é mais
voltada simplesmente aos seus resultados. Ainda não se discute sobre
religião, sacra e metafísica, pois, estão envolvidos num conceito holístico
de validade. E as pretensões de verdade, sinceridade e retidão mantêm-se
em síndrome.
No que se refere ao plano profano, vê-se uma dissolução do
conceito holístico da validade53, distinguindo o plano da ação e do
discurso, mesmo não tendo discurso, embora se tenha uma consciência
da distinção entre ação e discurso, ele não tem ferramentas para contestar
isto, porque não tem discurso especifico para cada ambiente de validade.
A identidade do individuo não mais se confunde com a do grupo,
mas se mantém vinculada a uma organização territorial cuja unidade é
referida ao soberano, isto porque, neste plano, ainda não se questionada
as instituições.
Nível pós-convencional: sociedade moderna54 - O início da era
moderna, chamado ainda de plano sacro, há uma pretensão de validade
52
NEVES, Marcelo. 2006. p. 41.
53
HABERMAS apud NEVES, 2006. p. 42.
54
NEVES, Marcelo, 2006. p. 43-44.
57
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
específica, no âmbito científico, porém, ainda não há distinção suficiente
dos discursos e das pretensões de validade.
Somente no plano profano, com as formas modernas de
religiosidade rompe-se com o dogmatismo, que se manifesta na
contraposição dicotômica e hierárquica, tornando possível às distinções
de validade no plano da ação e do discurso.
Nesta etapa, já tem uma visão reflexiva e descentrada do mundo,
e é possível a distinção entre o agir comunicativo e o agir estratégico,
e conseqüentemente entre ação, norma e princípio, tanto no plano da
ação como no discurso. A consequência disto é a dessacralização das
instituições e instituição do discurso. Ocorrendo, assim, o desacoplamento
entre sistema e mundo da vida.
Para Habermas, na modernidade, o desenvolvimento social
não está ligado só à racionalização com respeito a fim, conforme
defende Weber55, ele a aceita, mas só para o sistema, tem que integrar
o agir comunicativo. Também com a modernidade, tem-se o aumento
da consciência, e em conseqüência, aumentar a capacidade discursiva,
ou seja, quanto maior a consciência moral, maior é a evolução do
sistema. Verifica-se a diferenciação entre sistema e mundo da vida, e
por fim, na modernidade há a construção do consenso – universalismo
moral e jurídico.
Vemos que a análise do desenvolvimento ontogenético
transportado para o desenvolvimento filogenético, realizou-se uma
analogia simbiótica entre ambos, agregando-se a isso os tipos de ação
ínsitos aos modelos habermasiano, a fim de demonstrar que a evolução
social não se caracteriza tão somente pela prevalência de ação racionalcom-respeito-a-fins (estratégica ou instrumental), tal como acontece
numa visão marxista (acúmulo de riquezas) ou mesmo weberiana,
mas, especialmente, pela ação comunicativa, ou seja, pela lógica do
desenvolvimento estabelecida por meio de relações intersubjetivas,
55
58
WEBER, Marx apud NEVES, Marcelo. 2006. p. 45-46.
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
normativamente orientadas.
Neste sentido, dispõe Marcelo Neves56, que Habermas afastase dos diagnósticos de modernidade contrário tanto aos modelos
fragmentários e aos paradigmas de crítica à ideologia. Segundo sua visão
a ênfase deve ser no agir comunicativo condicionado pela racionalidade
discursiva, não subordinada a determinações sistêmicas, ou seja, o
aumento da complexidade de um implica na maior racionalidade do
outro, e a patologia é verificada quando o sistema desenvolve-se ao
extremo e tende a colonizar o mundo da vida57.
3. Da evolução do direito58
Habermas associa a cada um dos três níveis de consciência
moral, formulado pela psicologia cognitiva a um tipo de direito. Nível
pré-convencional – direito revelado; convencional – direito tradicional; e
pós-convencional – direito estatuído, formal ou positivo. Acrescenta ainda
um nível, que precede a positivação, denominado “direito deduzido”,
reconstruído da concepção weberiana (dos níveis do desenvolvimento
do direito em termos de sua progressiva racionalização), porém, por ter
56
NEVES, Marcelo. 2006, p. 44.
57
O direito é visto como transformador entre o sistema e o mundo da vida, Habermas propõe
que o direito seja compreendido como um meio de conversão do poder comunicativo em poder
administrativo. No Estado Democrático de Direito, sustenta que há um entrelaçamento entre
moral, política e direito, impondo por um lado a fundamentação na moral, ou seja, o dever ser
jurídico não pode ofender o princípio da justiça; e por outro lado o pluralismo da esfera pública
exige a consideração da diversidade de valores no âmbito dos procedimentos políticos. A tensão
entre factividade e validade, Habermas, no Estado Democrático de Direito estende ao âmbito
do poder. Para ele, o processo de formação racional da vontade política implica na relação entre
discurso pragmático, ético-político, moral, jurídico e as negociações reguladas por procedimentos,
porém, segundo Marcelo Neves, Habermas não afasta sua posição inicial de fundamentos na
moral, éticos-políticos e pragmáticos. Insiste em um universalismo consensual que dificulta uma
consideração adequada da problemática do pluralismo em uma sociedade altamente complexa. E
a idéia de aceitabilidade dos resultados não responde ao problema do dissenso estrutural na esfera
pública nas condições supercomplexas da sociedade mundial do presente. (NEVES, Marcelo.
2006. pp. 118-58)
58
NEVES, Marcelo. 2006. pp. 53-58.
59
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
fundamento em princípios, pode ser incluído como um primeiro estágio
do nível pós-convencional.
Nível pré-convencional: direito revelado - Aqui, não se
distinguem as pretensões de validade: mundo social (retidão), objetivo
(verdade), e subjetivo (sinceridade).
Baseia-se em uma ética mágica fundamentalmente em
expectativas de comportamento particulares59. Não existe distinção entre
ação e norma, cultura e natureza, indivíduo e coletividade. E não há
procedimento de aplicação de normas. Ignoram-se as intenções do agente,
dando ênfase aos resultados da ação. Inexiste um terceiro heterônomo
capaz de solucionar conflitos, pois, a solução concreta de conflitos é feita
mediante autocomposição, autodefesa e retaliação. A coercitividade neste
ponto é difusa, através dos próprios indivíduos ou dos rituais. E as penas
são rituais, não se apresentando como imposição de uma autoridade, por
ter como objetivo restabelecer o status quo ante.
Nível convencional: direito tradicional - Distinguem-se as
pretensões de validade: mundo social (retidão), objetivo (verdade), e
subjetivo (sinceridade), mas ainda de forma intuitiva.
A ética é baseada na lei, isto porque, já existe norma como
expectativa generalidade de comportamento e há uma distinção entre ação
e norma. Aqui, são introduzidos procedimentos de aplicação e execução
em virtude da centralização do poder e as violações já são avaliadas de
acordo com a intenção do agente. As sanções são vistas como reparação
do ilícito, e não mais para restabelecer o status quo ante. E o fato de não
existir distinção entre direito, moral e ética, impede uma reflexão crítica
das normas a partir de princípios.
Nível intermediário entre o convencional e o pós-convencional:
direito deduzido - Neste nível, há a existência de princípios à luz dos quais
as instituições já podem ser questionadas, porém, ainda não se diferenciam a
ética, moral e o jurídico. De modo que, é possível criticar as normas jurídicas
59
60
NEVES, Marcelo. 2006. p. 54.
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
frente a princípios metajurídicos, mas estes não podem ser questionados.
Nível pós-convencional: direito positivo - Somente a partir da
positivação é que se diferem moral, ética e o jurídico onde as normas já
não se confundem mais em princípios metajurídicos, mas especialmente
jurídicos, reflexivamente criticáveis60, necessitando de fundamentação
racional nos termos de procedimento.
O direito positivo, apesar de distinto da moral e da ética, não
se caracteriza pela de fundamentação, mas se baseia em princípios. O
direito é utilizado como instrumento de poder e do mercado, todavia,
exige uma fundamentação ética e moral.
Há a distinção clara das pretensões de validade no plano
subjetivo, social e objetivo.
Habermas concorda com Weber, no sentido de que o direito
moderno, é um instrumento do poder e do mercado, mas de forma
parcial, pois, acrescenta que é preciso que seus princípios sejam
discutidos nos planos ético e moral, dentro de uma moral universalista.
Para Habermas são características do direito moderno a positividade,
o legalismo e a formalidade, mas também a universalidade, que exige
uma justificação moral.
O direito, além de ser instrumento do poder e do mercado,
deve ser tanto ético quanto moral, deste modo, o direito posto de forma
legítima, segundo Habermas, é aquele criticável dentro de uma moral
universalista, implicando uma criticabilidade dos princípios jurídicos
frente a questões jurídicas, pragmáticas, ético-jurídicas e morais.
Por fim, entendemos, que a recepção do modelo psicológico de
desenvolvimento cognitivo para teoria da ação comunicativa e pela ética
do discurso, transportando-o os níveis da consciência moral do indivíduo
para a sociedade e posteriormente para o direito, feita por Habermas,
não tem como se enquadrar, empiricamente, na evolução social histórica,
exceto em contextos restritos. Isto porque, primeiro não tem como
60
NEVES, Marcelo. 2006. p. 57.
61
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
confundir o modelo ontogenético com o filogenético, e segundo, que
nem todos os indivíduos agem da mesma maneira, respeitando o nível de
desenvolvimento de sua sociedade.
Conclusões
Vimos que Habermas entende que o processo evolutivo é
conseqüência do desenvolvimento da consciência moral. Associa o
amadurecimento cognitivo e moral ao descentramento progressivo
da compreensão do mundo nos três domínios de referência: mundos
objetivo, social e subjetivo; a distinção entre tipos de ação (estratégica e
comunicativa); e à diferenciação de um plano de discurso frente às ações.
Assim, com base na ação comunicativa e da ética do discurso,
reconstruiu o modelo de desenvolvimento ontogenético, formulado por
Piaget, e desenvolvido por Kohlberg, transportando para o âmbito da
evolução filogenético.
Feito isto, Habermas fez um paralelo dos níveis da consciência
moral do indivíduo com a sociedade, concluindo que o desenvolvimento
filogenético comporta três níveis de consciência moral: pré-convencional
– sociedades arcaicas; convencional – sociedade das culturas avançadas;
e pós-convencional – sociedade moderna.
Após, associou a cada um dos três níveis de consciência moral,
um tipo de direito: nível pré-convencional – direito revelado; nível
convencional – direito tradicional; e nível pós-convencional – direito
estatuído, formal ou positivo. Acrescentou ainda um nível, que precede a
positivação, denominado “direito deduzido”, porém, por ter fundamento
em princípios, pode ser incluído como um primeiro estágio do nível pósconvencional.
Associar a evolução do direito à sua fundamentação em uma
moral universalista, à legitimação procedimental do direito vincula-se a
uma criticabilidade dos princípios jurídicos frente a questões jurídicas,
62
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
pragmáticas, ético-políticas e morais. Neste ponto, Habermas distancia
de Luhmann, pois, afirma que o direito deve ser fundamentado nos
princípios, enquanto Luhmann sustenta que o direito se fundamenta no
próprio direito.
Para ele, o direito deve ser discutido nos planos éticos e moral,
dentro de uma moral universalista.
Por fim, concluímos que, exceto em contextos restritos, não é
possível enquadrar, empiricamente, o modelo proposto por Habermas, à
evolução social na história.
63
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Referências
HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. 2. ed.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
LOPES, Rafael Ernesto. Introdução à psicologia evolutiva de Jean
Piaget. São Paulo: Cultrix, 1993.
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: Uma relação difícil. O Estado
Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. 1. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PIAGET, Jean. Epistemologia Genética. In: Coleção “Os pensadores”.
São Paulo: Abril, 1983.
__________­­­___. A formação do símbolo da criança. Rio de Janeiro:
Zahar, 1978.
PIAGET, Jean; INHELDER, Bärber. Psicologia da criança. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
WHITE, Stephen K. Razão, justiça e modernidade: a obra recente de
Jürgen Habermas. São Paulo: Ícone, 1995.
64
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
3
Constitucionalismo tradicional e constitucionalismo
moderno: uma abordagem conforme o pensamento de
José Pedro Galvão de Sousa
Anthony Tannus Wright
Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR.
Especialização em Direito Constitucional Contemporâneo
no Instituto de Direito Constitucional - IDDC.
Mestrando em Direito pela PUC - SP
65
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Introdução
Tema central do direito constitucional e, ao mesmo tempo,
questão esquecida entre as diversas esferas do âmbito político e jurídico
dos últimos séculos, particularmente no Brasil, o conceito do que deve
ser uma constituição sob o pensamento de José Pedro Galvão de Sousa
oferece, no mínimo, uma séria reflexão acerca do que exatamente deve
ser uma lei fundamental do Estado.
O presente trabalho tem por objetivo considerar o
constitucionalismo tradicional a partir da ótica de José Pedro Galvão
de Sousa. Não se trata, contudo, de tecer considerações acerca da
Constituição Federal existente ou as havidas no Brasil, mas ainda de
abordar no plano dos princípios, de forma ampla, o que se faz necessário
para a compreensão universal da verdadeira natureza de uma constituição,
quais seriam suas diversas formas possíveis e seus avatares.
Com este propósito, será necessário retomar o conceito básico
do que corresponde ser a constituição da sociedade, o que é uma
constituição do Estado e qual a importância dos grupos intermediários
que, na atualidade, são praticamente inexistentes em nossa Terra.
Percebeu-se, também, a conveniência de salientar brevemente
os erros presentes e explicar, com base na história política, as razões do
insucesso do constitucionalismo brasileiro e suas consequências.
Com a intenção de justificar a pertinência do tema e os perigos
deveras sérios de um pensamento constitucional equivocado, permitiu-se
trazer ao artigo um compêndio de fatos que respaldam a ponderação das
profecias de Galvão de Sousa, que alerta, em suas obras O Totalitarismo
nas origens modernas do Estado (1972) e O Estado Tecnocrático (1973),
a privação das liberdades em detrimento do poder estatal.
Tendo em vista a atual constituição política do Brasil, cuja única forma
de representação política conhecida, majoritariamente, é o sufrágio universal,
notou-se como relevante recordar as outras formas do sistema representativo.
66
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Para tanto, foram utilizados os mais variados escritos de José
Pedro Galvão de Sousa, dos seus livros aos artigos, em particular, aqueles
publicados nos anos 80, em “O Estado de São Paulo”.
Ainda com o intuito de melhor elucidar o pensamento do autor
em questão, proporcionando-lhe o justo e devido reconhecimento,
concedeu-se, no presente artigo, uma breve história deste magnífico
pensador. Essa menção não se deve apenas ao fato do mesmo nos ter
deixado uma herança intelectual invejável, tampouco tecer somente
referências aos seus inúmeros títulos acadêmicos, mas, particularmente,
pela forma íntegra que viveu seus oitenta anos como pai de família,
amante da pátria e fiel defensor da Fé Católica.
1. José Pedro Galvão de Sousa - breves notas biográficas
“[...]
ocultava
uma
energia
vital
impressionante e uma
força interior incomum.
Era de uma laboriosidade
intelectual incansável”.
Clovis Leme García
José Pedro Galvão de Sousa foi um dos mais expoentes
pensadores tradicionalistas do Brasil, palavras estas afirmadas por
D. Francisco de Elías de Tejada, e, posteriormente, confirmadas pelo
Catedrático da Universidade Católica de Buenos Aires, Félix Adolfo
Lamas, em seu artigo Tradicíon, Tradiciones y Tradicionalismo61.
No cenário filosófico jurídico brasileiro, como bem descreve
61
DIP, Ricardo Henry (Org). Tradição, Revolução e Pós-Modernidade. Campinas: Millennium,
2006. p.17.
67
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
José J. Albert Márquez, José Pedro foi conhecido como um dos maiores
jusnaturalistas:
“no solo por su extension y profundidad, sino también, y
fundalmentente por oferecer um marcado caráter pluridisciplinar,
puesto que en ella se abordan problemas diversos que van de la
teoría del Estado a la filosófia del derecho, del derecho político
al derecho constitucional, sin olvidar la sociologia, la história
del derecho, y su labor apologética católica”.62
Nascido em 06 de janeiro de 1912, na capital de São Paulo, e
vindo a falecer na mesma cidade em 31 de maio de 1992, José Pedro
Galvão de Sousa teve a chance, como bem observa o historiador Flávio
Lemos Alencar, de viver “plenamente o século XX, seus problemas e
dilemas, guerras e crises, revoluções e contrarevoluções”63. No Brasil,
presenciou a sucessão de três regimes republicanos, o Estado Novo
de Getúlio Vargas, o período militar e a volta da democracia de 1985.
Atrelado a estes eventos, teve a oportunidade de acompanhar de perto a
promulgação de seis constituições64.
Durante os anos 1924 a 1929, José Pedro, junto com seu irmão
mais velho, João Batista de Sousa Filho, estudou no Ginásio de São
Bento. Lá, dedicou-se em aprender a língua francesa, idioma ensinado
conforme o costume da época, a língua inglesa e a literatura de sua
“[...] não só por sua extensão e profundidade, senão também, e fundamentalmente por oferecer
62
um marcado caráter multidisciplinar, posto que nela se abordam problemas diversos que vão
da teoria do Estado à filosofia de direitos, do direito político ao direito constitucional, sem
esquecer a sociologia, a história do direito e seu trabalho apologético católico”. MÁRQUEZ,
José J. Albert. Hacia um Estado Corporativo de Justicia: Fundamentos del Derecho y el Estado
em José Pedro Galvão de Sousa. Barcelona: Atelier Libros Jurídicos, 2010. p.23.
ALENCAR, Flávio Lemos. José Pedro Galvão de Sousa (1912-1992): a influência de Santo Tomás
63
em seu pensamento. Disponível em: http://www.aquinate.net/revista/caleidoscopio/atualidades/
atualidades-9-edicao/Personalidades/atualidades-personalidades-Galvao.html. Acessado em:
04.05.2006.
MÁRQUEZ, Op.Cit., p23.
64
68
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
língua materna, a portuguesa. Daí, provavelmente, surgiu seu grande
afinco pela leitura, fato que foi registrado após seu falecimento por sua
biblioteca pessoal reunir mais de oito mil volumes dos mais diversos
assuntos entre história, política, filosofia, passando também pelas obras
literárias de José de Alencar e Machado de Assis65.
Seus estudos jurídicos começaram em 1930, ano em que
ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
notoriamente conhecida como Academia de Direito São Francisco, “por
referência ao convento franciscano em que se instalou”66.
Em 1935, licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia
e Letras de São Bento, que foi fundada pelo abade beneditino Miguel
Kruse. Naquela época, a faculdade mantinha estreitos vínculos com a
prestigiosa Universidade De Lovain67. Assim, José Pedro teve a chance
de ser aluno de grandes mestres, como do belga tomista Leonardo Van
Acker. Ele relataria essa experiência anos depois, em um de seus artigos
publicados no “Estado de São Paulo”.
No âmbito acadêmico, as atividades de José Pedro Galvão de
Sousa não se restringiram ao estudo. Ainda como aluno, fundou e foi
presidente da Ação Universitária Católica e do Centro D. Miguel Kruze.
Antes mesmo de exercer a carreira de docente, engendrou a
escrita de matérias para diversas revistas e jornais. Entre estas, destacase “O Legionário”, jornal publicado pela Congregação Mariana de Santa
Cecília, cujo presidente era Plínio Corrêia de Oliveira. Mais tarde,
continuou a escrever artigos de caráter sociológico e político no diário
paulista “A Gazeta”, e, posteriormente, nos renomados jornais “O Estado
de São Paulo” e “O Globo”.
Foi presidente da Revista “Hora Presente” e diretor e fundador
da revista “Reconquista”; contudo, não sendo suficiente, os escritos de
65
Ibid.,p.25.
66
ALENCAR, Op.Cit.
67
MÁRQUEZ, Op.Cit., p26.
69
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
José Pedro Galvão de Sousa atravessariam o Atlântico: Na Alemanha,
no “Jahrbuch des Oeffentilichen Rechts der Gegenwart”, na Espanha,
“Estudios Americanos”, em Portugal, “Scientia Iurídica”, e na Itália,
“Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto”68.
Como historiador e pensador político, em 1935, Galvão de
Sousa começou sua carreira docente lecionando sociologia na Escola
de Serviço Social69. No ano seguinte, introduziu ao curso de direito as
matérias de direito constitucional e direito civil. Ao continuar seus
estudos referentes à política brasileira, Galvão de Sousa demonstrou
grande interesse em valorar o conflito que ele mesmo denominava de
“Brasil institucional” e o “Brasil real”70.
Sua vida entre as cadeiras universitárias ainda seria marcada por
episódios históricos. Após ser contratado, em 1938, como Assistente de
Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento,
Galvão de Sousa fez parte da comissão organizadora da Faculdade Paulista
de Direito, a qual veio se tornar, em 1948, a Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, PUCSP. José Pedro foi professor fundador da
mesma universidade, assumindo também a Cátedra de Teoria Geral
do Estado. Foi professor da Universidade de São Paulo, da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas e da Faculdade de São Bento.
Mas sua história não foi somente submersa por êxitos e alegria.
Em 1940, ao disputar o cargo da Cátedra de Filosofia do Direito da
Universidade de São Paulo (USP), José Pedro recebeu a notícia, na noite
anterior, por parte de um dos membros do Tribunal examinador, de que
o posto já estava comprometido71 possivelmente por motivos políticos
68
MÁRQUEZ, Op.Cit., p29.
69
Ibid.,p.27.
70
Ibid.,p.30.
71
“Como a história se repete, também na vida de cada um de nós! Quando, ainda bem jovem, e
seis anos após a formatura, me apresentei ao concurso para catedrático de Filosofia do Direito,
fiquei sabendo por um dos examinadores, o Prof. Alexandre Correia, que a Congregação não
homologaria o parecer da banca. Isto me foi dito exatamente na véspera da última prova, a
prova didática, e bem podes imaginar com que esforço e em que estado de espírito fui dar a
70
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
relacionados a outro candidato, Miguel Reale.
Os fins dos anos 40 e início dos 50 foram anos importantes para
Galvão de Sousa. Sua primeira viagem à Europa, em 1948, e depois, em
1949, rendeu-lhe a oportunidade de conhecer Francisco Elias de Tejada,
que seria, para ele, um irmão. Desta amizade, brotará a José Pedro
Galvão de Sousa, grande admirador do integralista lusitano Antônio
Sardinha, a possibilidade de se familiarizar com os grandes escritos
dos pensadores ibéricos tradicionais, como Juan Vázques de Mella,
Guijarro, Juan Donoso Cortés, entre outros. De igual maneira, por conta
da sólida amizade firmada, Francisco Elías de Tejada visitou o Brasil,
onde conheceu distintos pensadores, como Plínio Correia de Oliveira
e Alexandre Correia. No Velho Continente, Galvão de Sousa visitaria,
ainda, distintos núcleos culturais, tendo como companheiros, e depois
amigos, os esculápios Michel Villey e Gonzague Reynold.
Se, para Galvão de Sousa, a Europa trazia boas recordações e fora
marcada pelas novas amizades empreitadas e pela profunda admiração
ao ambiente cultural existente, no Brasil a situação era bilateralmente
oposta. Eram duas as causas de suas desilusões: a primeira, relacionada
ao movimento militar de 1964, durante o qual Galvão de Sousa esperava
influenciar os adeptos desse movimento para que fosse um instrumento
do tradicionalismo político. Porém, com o passar dos anos, verificouse que era necessário um fundamento doutrinal e intelectual mais
apurado para os militares, caso contrário não seria possível assegurar o
desenvolvimento econômico e a segurança pública.
Outro ponto que culminou no fracasso do pensamento
tradicionalista entre os militares foi o grande desentendimento com
a Associação Integralista Brasileira (AIB), os conhecidos “camisas
aula. Sendo os outros concorrentes bem mais fracos, a disputa estava entre eu e o Miguel Reale.
Recusada a homologação, este último, por um recurso administrativo, acabou sendo nomeado
pelo Presidente Getúlio Vargas, a quem passou a servir, abandonando os seus companheiros do
integralismo, então perseguidos pelo mesmo Vargas”. Correspondência privada de José Pedro
Galvão de Sousa, Fundácion Franscisco Elías de Tejada y Erasmo Pèrcopo, Madrid. C/74/3/5. In:
MÁRQUEZ, Op.Cit., p31.
71
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
verdes”, que exerciam, na época, certa influência entre os militares mais
conservadores72.
O segundo motivo é, provavelmente, o que lhe mais causaria
angústia e tristeza: a perseguição sofrida, em 1963, dentro da própria
PUCSP. Na época, difundia-se, na Igreja Católica brasileira, uma
divisão de ideologias heterodoxas, sendo mais conhecida a denominada
“Teologia da Libertação”, a qual chegou a ter militantes nos mais altos
postos desta mesma universidade73.
Após anos de intrigas e lutas dentro e fora do âmbito universitário,
em 1968, Galvão de Sousa, em reunião com um grupo de amigos de São
Paulo, decidiu fundar a revista “Hora Presente”. Essa revista tinha por
objetivo defender a honra de Deus e da Igreja no momento em que a
Teologia da Libertação estendia seu campo de ação nos seminários, nas
escolas católicas, nas universidades e, até mesmo, entre a alta hierarquia
da Igreja Católica no Brasil74. A direção da revista ficou a cargo de José
Orsini, posto que foi assumido, em 1971, por Clovis Lema García.
O apogeu da intriga entre os militantes da Teologia da Libertação
e Galvão de Sousa perdurou por dez anos, em 1973-74, momento em que
todos os professores ligados a ele — Clovis Leme García, Adib Casseb
e José Fraga Teixeira de Carvalho — foram expulsos da universidade
por desentendimento de cunho religioso com o bispado de São Paulo.
Acusados de terem insultado o Arcebispo de São Paulo e o GrãoChanceler da universidade, os reacionários respondiam às criticas,
afirmando que todo católico deve antes obediência ao Papa, e depois ao
seu bispo. Tal evento repercutiu, também, no Rio de Janeiro, onde os
editorais católicos, como a revista “Permanência” dirigida pelo literato
Gustavo Corção, denunciou que a hierarquia eclesiástica brasileira criava
uma “Nova Igreja75”. A própria revista “Hora Presente” publicou um
72
MÁRQUEZ, Op.Cit., p34.
73
Ibid.,p.35.
74
Ibid., p.37.
CORÇÃO, Gustavo. A descoberta do outro. Disponível em: http://pensadoresbrasileiros.home.
75
72
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
manifesto assinado por Galvão de Sousa, Italo Galli e Lauro de Barros
Siciliano, descrevendo a decisão da Cúria Paulista como um “terrorismo
cultural” 76.
Mesmo diante das adversidades, Galvão de Sousa resolveu remar
em outros mares. Após ter passado um período na Europa, onde lecionou
como professor convidado, José promoveu as Jornadas Brasileiras de
Direito Natural, em São Paulo, no ano de 1977. Participaram daquele
evento renomados personagens, como Miguel Ayuso, Monsenhor Dersi77,
Clovis Lema, Ibáñez, Juan Vallet Goytisolo, Italo Galli, Gerardo Dantas
Barreto, Tomás Barreiro, Ricardo Dip, Margarida Corbusier, Cláudio de
Cicco e Francisco de Tejada.
Em 1959, José Pedro casou-se com Dona Alexandra Chequer,
“persona de cultura y educación esquisitas” com a qual compartilhou
todos os êxitos e dissabores de uma vida unida por um inquebrável
sentido cristão78. Reflexo desta união são as palavras “diletíssima e
delicadíssima esposa”79, com as quais José Pedro descreve sua esposa em
uma de suas dedicatórias.
Clovis Leme Garcia, grande amigo de Galvão de Sousa e
da sua família, atesta que Alexandra “lhe proporciono ininterruptas
condições de paz e de tranquilidade para expandir seus dotes intelectuais,
acompanhado em constante apoio e estímulo para que pudesse elaborar
o valido legado que deixou”.80 Como pai de família, Galvão de Sousa
comcast.net/pensadoresbrasileiros/GustavoCorcao/a_ descoberta_da_outra.htm. Acessado em:
04.05.2011.
MÁRQUEZ, Op.Cit., p. 35.
76
77
Nasceu em 1907, faleceu em 2002. Foi arcebispo católico, filósofo argentino, um dos principais
promotores do neotomismo, além de ser fundador da Universidade Católica da Argentina.
Disponível em: http://www.filosofia.org/ave/001/a080.htm. Acessado em: 04.05.2011.
78
“pessoa de cultura e educação rara (...) com quem compartilhou os êxitos e dissabores de toda
uma vida unida por um inquebrável sentido cristão de existência”. MÁRQUEZ, Op.Cit., p38.
79
Ibid., p.38.
80
GARCIA, Clovis Leme. Elogio do Patrono José Pedro Galvão de Sousa. Disponível em: http://
www.fundacioneliasdetejada.org/Documentacion/Anales/PDF%20ANALES%2001/ANA01063- 074.pdf. Acessado em: 04.05.2011.
73
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
deixou três filhos, José Pedro, Miguel Fernando e João Batista, que não
seguiram sua trajetória jurídica.
Como todo grande intelectual, Galvão de Sousa nos deixou
alguns discípulos: Ricardo Henry Dip, Clovis Leme Garcia, José Fraga de
Teixeira de Carvalho, Manuel Octaviano Junqueira Filho, José Guarany
Orsini e Luiz Marcelo de Azevedo. Ainda no relato de Ricardo Dip,
muitos que conheceram José Pedro e frequentaram o Centro de Estudos
de Direito Natural, permaneceram influenciados por seu pensamento.
Como exemplo, são citados Jaques De Camargo Penteado, Vicente de
Abreu Amadei, José Antonio Paula Santos, Luciano Camargo Penteado,
dentre outros.
Nota-se, ainda, que José Pedro testou seu pensamento em
variados artigos e livros relacionados à história, política, filosofia e
ao direito. Diante da imensa vastidão, como explica Flávio Alencar,
fica impraticável citar todas as suas obras. Contudo, pelos títulos de
alguns de seus livros, pode-se ter uma noção dos temas tratados: O
Positivismo Jurídico e o Direito Natural (1940), Conceito e Natureza da Sociedade
Política (1949), Formação Brasileira e Comunidade Lusíada (1954), História do
Direito Público Brasileiro (1962), Da Representação Política (1971), O Totalitarismo
nas Origens da Moderna Teoria do Estado, Um Estudo sobre o “Defensor Pacis” de
Marsílio de Pádua (1972), O Pensamento Político de São Tomás de Aquino (1980)
e Dicionário de Política (1998, póstumo)81.
Não obstante ter sido o homem que foi o nome de José Pedro
Galvão de Sousa é um anonimato no orbe jurídico e acadêmico, inclusive
na PUCSP. Hoje, seu nome é mais conhecido e difundido nos países de
língua espanhola do que no solo onde nasceu. Na Espanha, particularmente
o já falecido Rafael Gambra e Miguel Ayuso, amigos pessoais de Galvão
de Sousa, publicaram dois livros em sua homenagem, intitulados “José
Pedro Galvão de Sousa, filósofo del Derecho y iuspublicista” e “La
81
74
ALENCAR, Op.Cit.
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
representación política en la obra de José Pedro Galvão de Sousa82.
Com a morte de José Pedro Galvão de Sousa, o Centro de
Estudos de Direito Natural, cuja atividade permanece até hoje, em São
Paulo, integra seu nome, sob a presidência de Clovis Leme.
Ciente da história e do patrimônio cultural legado por José Pedro
Galvão de Sousa, tendo sido ilustre jurista brasileiro, tradicionalista
político e promitente difusor do jusnaturalismo, os leitores do presente
artigo terão, agora, a chance de compreender seu pensamento, de forma
mais aguçada, no que se refere ao Direito Constitucional.
2. A ideia de constituição
“Uma constituição não
é tudo, não pode dispor
a respeito de tudo, não é
um projeto de construção
nacional, muito menos
uma
regulamentação
minuciosa
da
vida
social, e tampouco deve
ser um conglomerado
de preceitos abrangendo
todos os ramos de direito
público e do direito
privado”.
José Pedro Galvão de Sousa
A constituição enquanto lei fundamental do Estado, conforme
conhecemos, surge, por assim dizer, depois da Revolução de 1789 e da
82
MÁRQUEZ, Op.Cit., p. 41.
75
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
formação dos Estados Unidos da América. Antes, o termo empregado era
“leis fundamentais”, por não possuir, exatamente, a mesma estruturação.
Entende-se, dessa maneira, que a constituição pode ser
uma lei escrita, como no caso do Brasil, ou um conjunto de regras
estabelecidas dominantemente pelos costumes, como ocorre no Reino
Unido. A primeira constituição similar à que vigora, atualmente,
refere-se à constituição norte-americana, de 1787, que foi escrita e
sistematizada decorrente do fato da Carta Magna Britânica, datada
do século XIII, abordar a garantia dos direitos e a limitação do
poder, características essas próprias do regime constitucional. Outros
historiadores apontam essa legislação como o primeiro esboço de
uma constituição política moderna.
Ressalva-se, aqui, a pertinência de retroagir e estudar os avatares
do constitucionalismo. No período medieval, o constitucionalismo
emanava de duas fontes: o direito natural e o direito histórico. Por direito
natural, explica José Pedro:
O direito é essencialmente o justo, quer dizer, o objeto da justiça.
Desde logo, pois, a idéia de direito implica o reconhecimento do
direito natural. Isto porque o justo não é criação do homem, mas
decorre de uma ordem objetiva de justiça, a ser respeitada por
todos e inalterável aos caprichos de cada um83.
O direito natural afasta um critério subjetivo de justiça, dando à
ordem jurídica fundamentação ética e metafísica. Cícero, em sua obra De
Legibus (Das Leis), já expunha que o direito natural não resulta das opiniões
dos homens, mas uma força inata o insere em nós. Desta forma, a palavra
natural, quando em referência ao direito natural, significa algo intrínseco
e essencial, e não acidental e contingente. Seriam os chamados princípios
83
SOUSA, José Pedro Galvão; GARCIA, Clovis Leme; CARVALHO, José Fraga Teixeira.
Dicionário de Política. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1998. p.179.
76
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
sinderéticos, presentes em Aristóteles e, posteriormente, desenvolvidos
por Tomás de Aquino. Decorrentes destes, os primeiros princípios do
direito natural são: 1º a sindérese que fornece os princípios universais; 2º
a razão estendendo-se e tirando conclusões; 3º a consciência, com a lei
natural, conhecida pela razão, sendo aplicada à situação particular. Como
exemplo, tem-se: 1º princípio sinderético: evitar o mal; 2º afirmativa da
razão: o adultério é um mal, por ser ação desonesta e injusta; 3º juízo da
consciência: este adultério deve ser evitado84.
Contudo, o direito natural, por si só, não basta enquanto regra
de vida, devendo ser complementado com o direito positivo, seja
este consuetudinário ou legal.85 Incumbe-se à autoridade competente
concretizar os princípios do direito natural “para aplicar as máximas
gerais às particularidades da vida social”. 86 Daí tem-se em conta o
chamado direito histórico, considerando as circunstâncias de tempo e
lugar. Estes elementos foram apontados pelo jurista francês François
Gény, ao estudar a elaboração científica do direito privado e direito
público, com os termos: dado (le donné) e o construído (le construit)87.
Nas palavras de Galvão de Sousa:
Ante os dados reais, históricos, racionais e ideais de sociedades
em que vive, o legislador elabora a norma (no caso, o legislador
constituinte e a norma constitucional). A constituição escrita
é uma construção do legislador, que deve ser devidamente
adequada aos dados do meio ambiente, da época e da formação
histórica e cultural do povo88.
84
Ibid.loc.cit.
85
Ibid.,loc.cit
86
Ibid.loc.cit.
87
FILHO, Rogério Machado Mello. A Aplicação do Direito sob a Ótica das Escolas de Interpretação
das Normas jurídicas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/ rev_50/
artigos/art_rogerio.htm#IV.III. Acessado em: 04.05.2006.
88
SOUSA, José Pedro Galvão. O que deve ser uma constituição. São Paulo: Edições Pátria. Estado
de São Paulo, 1987. p.08.
77
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Portanto, é equivocada a crítica feita ao jusnaturalismo clássico,
na medida em que se alega que o direito natural é um “direito utópico”,
pois a universalidade do direito natural não significa uniformidade nas
leis e nos regimes políticos de sociedades diversas.
Faz-se necessário perceber que a constituição jurídico-formal
do Estado deve estar em conformidade com a constituição social e
histórica da nação, sendo essa composta por famílias e demais grupos,
cuja legítima liberdade deve ser respeitada pelo Estado. A constituição
natural da família, sendo sempre anterior ao próprio Estado, não cede
fundamentos para que a burocracia ou os órgãos estatais sufoquem os
deveres e direitos familiares ou das agremiações autônomas devidamente
constituídas.
3. A constituição da sociedade e a constituição do estado
“O que há precisamente
de mais fundamental
e de mais essencial
constitucional nas leis de
uma Nação não pode ser
escrito”. Joseph de Maistre
A sociedade é a “união moral e estável de homens que buscam
um fim comum debaixo de uma autoridade”89, conforme afirma Galvão
de Sousa. Nesse sentido, somente os seres humanos, seres inteligentes,
podem viver em sociedade, por ser, somente eles, dotados de consciência
e liberdade, podendo discernir, assim, a forma de cooperação, a união
GALVÃO DE SOUSA, José Pedro Galvão. Iniciação à teoria do Estado. São Paulo: Revista dos
89
Tribunais, 1976. p.01.
78
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
moral. É necessária, também, a presença de estabilidade, porque, para a
constituição de sociedade, não basta a reunião de homens em um estádio
de futebol ou outro evento temporário. Ao mesmo tempo, deriva dessa
união o objetivo de um fim comum a todos, já que sozinho o homem não
pode alcançar tudo que precisa. Por mais difícil que se possa parecer,
é necessário, contudo, que exista uma autoridade, já que a reunião de
pessoas gera divergências para a tomada de decisões, e, sem uma
autoridade que faça convergir a atuação de todos para o bem geral, não
se realiza o desígnio de todos90.
A constituição da sociedade é algo intrínseco à mesma, como
já recordara Joseph de Maistre; ao explicar que “nenhuma constituição
resulta de uma deliberação, tinha em vista a constituição da sociedade”91.
Deriva, com isso, o sentido mais literal da palavra constituição, ação de
constituir, isto é, “de formar alguma coisa, sendo empregada também
para expressar o conjunto dos elementos que formam um ser, a natureza
de todo daí resultante”92. Enquanto tal, no sentido mais sociológico que
jurídico, o termo “constituição” é empregado de forma mais abrangente.
Logo, não é um termo unívoco, ou equívoco, mas análogo, podendo ter
vários sentidos relacionados entre si93.
Faz-se indispensável, antes de se pensar em uma constituição
jurídico-formal, engendrar o estudo da constituição da sociedade,
levando em conta as particularidades deste organismo vivo que forma um
povo, com suas práticas sociais, costume, religião, situação geográfica,
afinidades políticas, pobrezas, riquezas, vícios e virtudes.
Este conhecimento prévio da constituição da sociedade é
imprescindível para compreender quais seriam os elementos a estar
devidamente contidos na constituição escrita, sendo que esta deve ser
90
GALVÃO DE SOUSA. Op.Cit., 1976. p.02.
91
Ibid Op.Cit., p.127.
92
Ibid Op.Cit., p.127.
93
GALVÃO DE SOUSA.,1987. p.08
79
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
correspondente à constituição real da sociedade, não se apresentando
como mera abstração. Deriva, assim, a constituição jurídica do Estado,
que deve conformar-se à constituição histórica da sociedade sem esquecerse da base metafísica do direito natural. O esquecimento ou a simples
não consideração dos elementos fundamentais como a família, mater da
sociedade leva a constituição escrita a um fracasso sem precedentes.
4. Paraconstituição e contraconstituição
“A essas deformações
– e a tais conseqüências
no plano político – se
prestam as constituições
como cartas ideológicas
abstratas
e
não
como
instrumentos
pragmáticos
eficazes
de uma técnica do
poder uma técnica de
liberdade”.
José Pedro Galvão de Sousa
Georges Daskalakis classifica como “paraconstituição” e
“contraconstituição” dois possíveis fenômenos que acontecem no caso
da constituição formal não corresponder à constituição escrita, ou seja,
quando há uma desarmonia entre o país legal e o país real94. No primeiro
caso (paraconstituição), ele explica que a constituição formal continua
em vigor, mas é modificada, nas suas aplicações, por regras do direito
escrito, por costumes, pela interpretação e por usos constitucionais.
94
80
Ibid. p.11.
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Podemos citar, como exemplo, a recente decisão do Supremo Tribunal
Federal reconhecendo a união estável homossexual como entidade
familiar, sendo que a própria Constituição Federal (art.226)95 é clara
ao mencionar somente a união entre homem e mulher como legítima.
O segundo caso (contra-constituição), diz respeito à situação na qual
a constituição, segundo Karl Loewenstei96, se transforma em chiffon
de papier e as práticas públicas se desenrolam na contramão das
intenções, enquanto as instituições fundamentais contradizem o regime
constitucional formalmente estabelecido. Verifica-se, com facilidade,
esse tipo de situação nas constituições europeias formuladas após
a Segunda Guerra Mundial. Estas constituições foram criadas na
tese do poder constituinte, a qual, segundo a formulação dada por
Emmanuel Joseph Sieyès, tem como concepção a base erroneamente
colocada no poder originário, independente de qualquer outro poder
não limitado por lei, caracterizando como plenitude a vontade geral
do povo, conforme desejava Rousseau.
Resulta-se, assim, que as novas constituições formuladas com
base neste pensamento são sempre um fracasso, pois sua elaboração tem
como fundamento o caráter ideológico presente na mente do legislador97.
Não são casuais as elaborações de constituições liberais vindouras da
Revolução Francesa, cedendo à vontade do príncipe como força de lei,
mas que agora transporta o poder do príncipe para o povo, tornando a
constituição uma criação e- nihilio da ordem jurídica.
A história do Direito Constitucional Brasileiro sofre até os dias atuais
as terríveis consequências deste pensamento, como descreve José Pedro:
95
Art. 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 3º - Para efeito
da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. . (BRASIL. Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constitui%C3%A7ao.htm. Acessado em: 05.05.2011).
96
GALVÃO DE SOUSA, Op.Cit., 1976. p.132.
97
GALVÃO DE SOUSA, Op.Cit., 1987. p.10
81
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
é um suceder de constituições, paraconstituições e
contraconstituições, reduzindo a nada o mito de estabilidade
constitucional. Deve-se isso em grande parte ao -idealismo
utópico- das elites marginais, alheias às realidades sociais e à
nossa formação histórica98.
Observação idêntica à mencionada por Oliveira Vianna, em
seu estudo “Idealismo na evolução política do Império e da República”,
ao descrever que essa situação de constitucionais abstratas era perfeita
para políticos de carreira, demagogos e aventureiros se servirem da
democracia para conseguirem posições distintas. Por estas deformações
constitucionais, o Brasil, desde 1824, teve promulgadas oito constituições
(1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967/69 e 1988), sem mencionar os
diversos atos legislativos que visaram alterar as constituições, como, no
caso atual, as emendas.
Ainda pela forte abstração ideológica presente nas constituições
e pelos perigos do paraconstitucionalismo e contraconstitucionalismo,
conforme anteriormente indicados, pode-se averiguar uma crescente
totalitarização do Estado pela via democrática, de acordo com o que
planejou Antonio Gramsci, confirmando as previsões feitas por Donoso
Cortes e Alexis Tocqueville99.
5. Os grupos intermediários
“Os
grupos
intermediários respaldam
a liberdade dos homens,
exposta a sucumbir no
98
Ibid. p.11.
99
Ibid. p.7.
82
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
regime
individualista
e na livre concorrência
desordenada, em que os
mais fortes esmagam
os mais fracos, ou
ainda na concorrência
regulamentada
exclusivamente
pelo
Estado”.
José Pedro Galvão de Sousa
Com a vinda das constituições modernas carentes de
pressupostos históricos e sendo elaboradas como cartas de ideias
políticas impraticáveis, faz-se existente o risco iminente de que os
regimes democráticos sejam, cada vez mais, levados à centralização
de poder. È possível averiguar essa tendência, de uma maneira mais
clara, na Venezuela de Hugo Chaves, país em que o próprio presidente,
em nome de salvaguardar a democracia, altera a Constituição. Vemos,
também, nos governos militares centralizadores que foram trocados pelos
governos do séc. XX e XXI, a invocação do constitucionalismo moderno
democrático, mantendo, contudo, e até aumentando a centralização, em
detrimento das liberdades.
Diante dessa realidade política, é notório lembrar que o Estado
deve ter sua devida parcela de poder, mas, ao mesmo tempo, não pode
restringir a liberdade exercida por seus indivíduos, tampouco estrangular
as autonomias dos grupos sociais. Neste sentido, como defendeu, nos
anos 20 e 30, Hipolito Irigoyen, presidente da Argentina:
A constituição da família é matéria de suma gravidade e
de importância tal que, a respeito dela, os deputados não
83
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
podem deliberar invocando a eventual delegação popular que
receberam100.
Evidenciava-se, assim, a obrigação do Estado em salvaguardar
e não sufocar a família, célula social por excelência e constituição natural
de qualquer sociedade.
O Estado deve respeitar os grupos intermediários, pois “entre
as famílias e o Estado, há numerosos grupos que compõem a sociedade
global”, fato esse muitas vezes esquecido após a doutrinação iluminista
que corroborou para o individualismo, produtora do Estado moderno.
Essa vê a criação deste com base no “contrato social”, sendo ele nada
mais do que a soma de todo cidadão. Tal colocação deixa de considerar
o homem em família ou pertencente a um grupo, além da sociedade civil
como conjunto orgânico de grupos.
A preocupação de José Pedro Galvão de Sousa reside no fato de
que o homem, ao ser considerado indivíduo isolado, e sendo o Estado o
único a exercer a regulamentação da vida social, teria como implicação,
necessariamente, um Estado totalitário. Para tanto, seria necessária a
existência dos grupos intermediários, como as associações profissionais,
grêmios de esportes e centros culturais, cujo poder normativo não fosse
de incumbência, necessariamente, do Estado, mas de autoridades sociais
dos respectivos grupos ou de um município, as quais garantissem, em
face da união, sua autonomia.
Além disso, já explicava Galvão de Sousa, acerca do perigo que
acarretava o enfraquecimento dos grupos intermediários:
A debilitação, quando não o desaparecimento, dos grupos
intermediários deixa campo livre para as exorbitantes
interferências estatais na ordem privada. Perde-se a noção de
um princípio importantíssimo e de grande alcance; o princípio
100
84
Ibid. p.14.
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
de subsidiariedade, segundo o qual o Estado não deve chamar
a si as tarefas de que se podem desempenhar as sociedades
menores, limitando-se a supri-las, nesse desempenho, com
subsídio prestado em caso de deficiência ou falta de meios para
atingir finalidades mais amplas101.
Injustificável é a atuação de um Estado que outorga a si todas
as prerrogativas econômicas, tornando-se um Estado empresarial,
suprimindo a livre economia de mercado e, ainda, desempenhando o
papel de um Estado educador, que não permitisse a educação privada. O
Estado deve se preocupar menos com as funções produtoras de diminuição
da liberdade das pessoas e deve passar a atuar, de forma mais eficaz, no
âmbito que seja verdadeiramente de sua competência, como, por exemplo,
a área de segurança nacional e saúde pública. Ao invés disso, vê-se uma
crescente burocracia e uma má administração em âmbitos que deveriam
ser considerados e trabalhados como prioridade nacional.
A constituição que desconsidera a necessidade dos grupos
intermediários exime-se do que seria o mais importante, ou seja, da identidade
nacional e cultural daquele povo para a qual ela está a serviço e foi elaborada.
Quando isso não ocorre, as disposições constitucionais que regulamentam a
separação de poderes são vãs, pois o único elemento que garante “uma barreira
à invasão, pelo Estado, da ordem privada, com grave dano para as liberdades
pessoais e associativas” 102 é a existência dos grupos intermediários.
6. Da representação política
“A
representação
em direito político é
completamente distinta
101
Ibid. p.16.
102
Ibid.loc.Cit.
85
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
da representação em
direito privado”.
Carl Schmitt
Escrevia José Pedro Galvão de Sousa: “o problema mais
relevante, na elaboração constitucional, é a representação política”103.
Não por acaso publicou, em 1971, um livro dedicado, exclusivamente, a
este tema104.
A história acerca dos sistemas de representação política pode ser
divida em duas partes. A primeira, referente à representação tradicional
decorrente da Idade Média, e o segundo sistema enquanto representativo
dos Estados Modernos, nascido da revolução de 1789. 105 Para facilitar
a compreensão e a diferença entre a mentalidade tradicional e moderna,
recorre-se a Heraldo Barbury, autor que, em um de seus artigos, engloba
toda a questão.
O problema de se saber como a sociedade deve ser se reduz
ao de saber como a sociedade é. Ora, para esta pergunta só há
três respostas possíveis: 1º ou a sociedade é uma hierarquia de
grupos; 2º ou a sociedade é uma soma de indivíduos; 3º ou a
sociedade é massa informe106.
A citação de Barbury é esclarecedora, pois, na representação
tradicional, a sociedade era ordenada conforme uma hierarquia
estabelecida e grupos. Isso pode ser visto ao analisarmos a organização
da sociedade na qual a família desempenhava papel fundamental, em
que o feudalismo (França) transformava os grupos de famílias em
103
Ibid. p.18.
104
SOUSA, José Pedro Galvão. Da representação Política. São Paulo: Saraiva, 1971.
105
SOUSA, Op.Cit., 1976. p.82.
106
Ibid. p.86.
86
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
miniestados e o barão exercia os poderes inerentes à soberania, como
militar, tributação e justiça. Ainda, tinha-se, conforme recordaram
historiadores, a divisão entre clero, nobreza e povo, nomeados de formas
distintas, em diferentes países, mas organizados de forma semelhante,
tais como “Estados gerais”, na França, “parlamento”, na Inglaterra e
“cortes”, em Portugal. 107
Recorda-se que, naquela época, não havia autoridades sociais
de fato que representassem a classe popular, tendo apenas o clero e a
nobreza esse tipo de privilégio. Somente muito tempo depois, em
Portugal, houve a ocorrência do sistema representativo por meio dos
procuradores, os quais, por um mandato imperativo, apresentavam
as reivindicações da classe popular. O soberano, ainda, exercia o
poder legislativo, mas dispunha dos legistas que o auxiliavam na
elaboração das leis. Ao mesmo tempo, os corpos representativos
(“cortes, parlamento”) preenchiam a lacuna entre sociedade e poder108.
Após a Revolução Francesa, este sistema representativo foi
colocado em xeque, vindo a ser substituído pela concepção errônea da
obra de Rousseau, Contrato Social, a qual nega a sociabilidade natural
do homem, defendendo o seu “estado de natureza”. 109Esse seria o estado
no qual o homem vivia feliz por ter sido dotado de uma liberdade total,
até que resolveu, por um ato livre desta mesma liberdade, estabelecer um
contrato social com os outros indivíduos, abdicando de sua liberdade
em prol do conjunto. Para o pensador francês, a autoridade não existiria
caso não houvesse o consentimento e a soma de todas as liberdades
individuais, sendo que somente a soma de cada liberdade individual seria
o que compõe o Estado. Já que todos os homens, por natureza, seriam
iguais e livres, não caberia a ninguém exercer, propriamente, a soberania,
pois este é nada mais do que o resultado de uma união em que todos os
107
Ibid. p.85.
108
SOUSA, José Pedro Galvão. Da representação Política. São Paulo: Saraiva, 1971.
109
Ibid. p.87.
87
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
indivíduos livremente cedem sua liberdade110.
Decorrente do pensamento acima proposto, a concepção de que
o povo é soberano e de que a autoridade emana do povo resultaria na
ausência da razão da existência das sociedades intermediárias – grupos
intermediários – uma vez que existiria, agora, o elo direto entre indivíduo
e o Estado. Daí decorre a base da democracia, ou seja, do regime político
em que o povo se autogoverna. Ciente de que o regime democrático
direto de Rousseau é inexequível, a não ser em pequenas cidades, surgem
as democracias indiretas, nas quais o povo elege seu representante,
atribuindo-lhe o poder de mandato. Nomeou-se esse tipo governamental
de representativo. 111
Auxiliado por toda essa ideia de representação política de
sufrágio universal, com base no voto individual e igualitário, sendo a
liberdade considerada como a raiz de soberania e culminada com as
inovações no campo da tecnologia e urbanização, José Pedro Galvão de
Sousa sintetiza a atual crise política que defrontamos:
Com os métodos modernos de propaganda, acompanhado à
urbanização da vida, a soma dos indivíduos se transforma na
massa amorfa, tangida pelas oligarquias partidárias ou pelos
demagogos, e organizada compulsoriamente pelo Estado,
mediante a burocracia dos ministérios, departamentos e institutos,
a uns e outros servindo os modernos meios de comunicação de
massa como veículos de propaganda [...]. Este peso da máquina
estatal tira cada vez mais o sentido da representação política,
que já deixara de ser uma autêntica representação, pois só por
uma ficção se poderia dizer que os deputados representam a
vontade do povo112.
110
Ibid.loc.Cit.
111
Ibid. p.92.
112
Ibid. p.89.
88
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
A partir dessas colocações e observados os dois moldes de
representação política, a tradicional e a moderna, deve-se ter claro que,
na representação tradicional, as reivindicações políticas ocorriam através
dos diversos grupos de categoria social que expressavam suas aspirações
à autoridade. O povo, assim, tinha como controlar o abuso de poder
por meio das bases corporativas, pois se tinha um verdadeiro contato
representado, que, pelo “mandato imperativo”, sabia, exatamente, quais
eram suas incumbências113.
Outro fator que se deve salientar acerca do sistema tradicional
está voltado para a elaboração das leis. Diferentemente das assembleias
legislativas constituídas, hoje, por leigos na matéria, para não dizer
iletrados, tinha-se, naquela época, uma verdadeira preocupação com a
competência e formação detida pelos governantes. O soberano, além de
ser educado para as tarefas específicas do governo, tinha a seu dispor um
corpo de juristas para seu auxílio114.
No entanto, não importa, nos governos representativos
modernos, o nível de qualificação dos que compõem a assembleia,
nem “a sua competência ou incompetência. Não importa, tampouco,
que haja evidente distanciamento entre a vontade dos eleitores e a dos
deputados que os representam, os quais costumam fazer prevalecer
a sua própria vontade”115, quase sem qualquer possibilidade de um
controle popular eficiente.
A relação entre o sistema de representação e a constituição se dá
no fato de que somente em um sistema no qual exista uma representação
política autêntica terá a constituição uma vinculação com o sucesso. Pode
se citar, como exemplo, a Inglaterra, país que não tem uma constituição
escrita, como a Brasileira, mas que, ao preservar os grupos intermediários,
113
Ibid. p.92.
114
Ibid. p.92.
115
Ibid.loc.cit.
89
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
consegue uma representação política satisfatória. 116 Isso se deve ao fato
de que o sistema constitucional britânico preservou sua continuidade
histórica e não absorveu as concepções individualistas francesas.
Conclusões
A constituição não deve ter como objetivo regular todas as
esferas da vida social, tampouco pode englobar os mais diversos ramos
do direito público e privado. Como lei fundamental do Estado, deve a
constituição levar em consideração o direito natural, que não advém do
desejo de um homem particular (rei), nem da mera vontade da maioria
(sufrágio universal), mas decorre de uma ordem objetiva de justiça. Em
vista dos argumentos apresentados, a constituição que não nutre de tais
fontes jamais cumprirá sua finalidade.
No entanto, para existir a efetividade da constituição não
basta, por si só, o direito natural; é necessário o direito positivo, seja
legal ou com base nos costumes (consuetudinário). Cabe, então, ao
governo competente, dotado de autoridade, aplicar o direito natural às
particularidades da vida social. Decorrente dessa ação, surge a necessidade
do direito histórico que considera as circunstâncias de tempo e lugar para
elaboração das normas.
Viu-se, que o direito histórico considera a constituição da
sociedade fazendo referência à união moral e estável de homens que
buscam um fim comum debaixo de uma autoridade. Leva-se em conta,
portanto, que antes de efetivar a elaboração do texto constitucional faz-se
o reconhecimento da família como célula mater de qualquer sociedade
e a ciência das características desta célula viva, da sociedade: seus
costumes, deformidades, qualidades, etc.
Restou explicar a “paraconstituição” e “contraconstituição” com
o objetivo de abordar as possíveis conseqüências de uma constituição
116
90
Ibid. p.93.
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
que não tem em seu regimento e como fundamento o direito natural e o
direito histórico. Desta forma, foi visto que as constituições modernas,
particularmente as promulgadas após a Segunda Guerra Mundial ignoram
o direito natural, tendo o poder originário como ilimitado.
Ainda, a respeito das constituições modernas, observou-se que
muitas não passam de cartas políticas, ou seja, são elaboradas a partir de
um viés claramente ideológico e utópico, deixando de corresponder à sua
verdadeira finalidade.
Pela observação dos aspectos analisados, os grupos
intermediários são peças fundamentais dentro do Estado. Sem tais
grupos fundamentais, o Estado corre o risco de sufocar as liberdades
individuais. Estes grupos, como o próprio nome diz, são indispensáveis,
pois cabe a eles preencher a lacuna política entre as famílias e o Estado.
Neste sentido, sem os grupos intermediários o homem é visto
pelo Estado como um ser isolado e solitário, sendo necessário o próprio
Estado regulamentar toda a vida social, tornando-se, assim, um Estado
totalitário. Para tanto, é de vital importância a existência destes grupos,
pois, ao se unirem, preservariam de forma real os interesses próprios e as
liberdades pessoais.
O tema da representação política teve relevância maior no campo
histórico e teórico em detrimento da apresentada no campo prático. Não
era objetivo do presente trabalho dizer como seria uma representação
política ideal para o Brasil do séc. XXI, tampouco a ideia traduziu-se em
transportar o sistema do tradicionalismo político aos dias de hoje.
Nesse sentido, fez-se necessário tratar da representação política
para elucidar que, mesmo após as “comemoradas” mudanças derivadas
da Revolução Francesa, o moderno sistema de representatividade contém
graves falhas, ao ponto de muitas vezes não ser um sistema que represente
politicamente o povo.
Visto isso, pode-se dizer que uma constituição, seja escrita
ou consuetudinária, deve respeitar sempre direito natural e aplicá91
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
lo conforme o direito histórico, observando as peculiaridades de cada
sociedade. Para tanto, é necessária a existência dos grupos intermediários,
os quais darão aos representantes políticos uma resposta realista das
características da própria sociedade que está sob o seu comando e da
qual exerce representatividade. 92
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
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93
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94
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
4
Ensaio sobre direito e cidadania na cultura popular
Belmiro Jorge Patto
Mestre em Direito Processual e Cidadania pela Universidade Paranaense –
UNIPAR. Doutorando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUCSP. Professor de Processo Penal na Universidade
Estadual de Maringá – UEM. Advogado em Maringá (PR).
95
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Cidadão (Composição: Moraes Moreira/Capinam)
Na mão do poeta
O sol se levanta
E a lua se deita
Na côncava praça
Aponta o poente
O apronte o levante
Crescente da massa
Aos pés do poeta
A raça descansa
De olho na festa
E o céu abençoa
Essa fé tão profana
Oh! Minha gente baiana
Goza mesmo que doa
REFRÃO
Abolição
No coração do poeta
Cabe a multidão
Quem sabe essa praça repleta
Navio negreiro já era
Agora quem manda é a galera
Nessa cidade nação
Cidadão
Advertência
Como em uma Overture, é preciso uma advertência paradoxal
sobre a metodologia que pretendemos aplicar ao presente trabalho. É que
seria incongruente adotar as regras usuais da pesquisa científica em texto
96
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
como o nosso, uma vez que o que questionaremos será justamente a falta
de criatividade que perpassa a dogmática jurídica em seus mais variados
contextos. Não seria diferente ao tratar do problema da metodologia,
pois de outro modo estaríamos admitindo na prática aquilo que em teoria
desejaríamos questionar. Ou seja, aqui não se fará uso de citações ou
mesmo de referências bibliográficas nos termos das regras usuais, mas
submeteremos a um outro regime essas questões, esperando demonstrar
ser possível, na esteira do que refere, por exemplo, Stengers, novas
possibilidades metodológicas na própria pesquisa científica.
Assim, o texto requer que seja expresso numa forma que, à primeira
vista, não se conforma com as regras usuais estabelecidas para a pesquisa,
mas que, no entanto, não inviabiliza a localização das referências apontadas.
Desse modo, os autores referidos deverão ser pensados no contexto geral de
suas obras, uma vez que entendemos a técnica da citação em nota de roda-pé,
por exemplo, um recorte indevido do todo da obra dos autores que se quer
referir. Ora, não se pode mais descurar na pesquisa dessas “incongruências”
que podem deturpar, não raro, o sentido que deu ao texto o próprio autor.
O caráter paradoxal é apontado no sentido de que o rigor,
aqui também buscado, não se confunde com certeza, como muito bem
já advertiu Deleuze em vários de seus belíssimos textos. Fica então
apontado o caminho sem que isso signifique privar as possíveis conexões
que serão feitas pelo próprio leitor.
A estruturação do texto também se utiliza da linguagem musical,
bem como poética, para separar as várias secções, denotando ser possível
a multidisciplinaridade da qual tanto se refere e pouco se insere nos
trabalhos científicos sem que isso signifique completude de sentidos; no
limite, apenas estranhamentos.
Usamos, ademais, trechos do próprio poema da canção que
ensaiamos como forma de dar consistência ao texto através da poesia,
suas potências liberadoras, uma vez que não raro seu(s) sentido(s)
ultrapassa(m) as próprias palavras.
97
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Introdução
Na mão do poeta
O sol se levanta
E a lua se deita
A idéia de falar sobre a música popular e sua interação com a
vida pública no Brasil já é de per si bastante instigante. Para mim, que
pessoalmente tenho uma relação muito próxima com a música (toquei
profissionalmente por 15 anos), a alegria é dupla. O caminho histórico
do direito e da cultura popular são efetivamente muito imbricados, pois
se hoje se pode gozar com certa tranqüilidade as conquistas, isso não
significa que o passado não foi de lutas e muitas vezes com ingredientes
de frustração e tristeza. Mas já disse Caetano Veloso:
A tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim...
E são dessas lutas que nos contam os poetas que somos chamados
a dizer algumas coisas sobre esta improvável conexão entre o direito e
aquilo que passa pela cidade como um afoxé, a festa, a sagração.
Vamos iniciar já pelo título, que em linguagem poética ultrapassa
a palavra com seu duplo significado, quais sejam, o cidadão da cidadania
e a grande cidade como espaço público das manifestações dos desejos de
liberdade e justiça.
E é de uma felicidade e beleza que só mesmo a poesia é capaz,
que se afirma ser a mão do poeta o fio condutor da produção e criação
de um mundo onde o direito se insere. Aqui cabe referir, nesta mescla
de texto arte/ciência, as propostas de Guerra Filho, no sentido da função
ficcional do direito que vem abrindo muitas possibilidades de novos
rumos para se pensar o multiverso jurídico.
Assim, enunciando o porvir o poeta se aproxima do jurista que
busca incessantemente a justa composição do social, dentro de quadros
muitas vezes ficcionais, mas que não significam irreais. A realidade
98
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
que se quer construir não está pronta, faz-se em processo como numa
composição.
Por isso a aproximação que num primeiro momento parecia
improvável se mostra plausível e frutífera.
É através das palavras, este misto de arma e pensamento, de
poder e desejo, que somos nutridos nessa busca pela mudança, o devir
louco da poesia vertiginosa, o devir outro da diferença da dignidade
humana. Como pode o sol e a lua estar sob a égide da mão do poeta?
Como pode uma multidão caber em seu coração?
Tudo não passaria de mera métrica, não fosse o ritmo a demarcar
o tempo que nos insere no mundo como diferença pura, potência do
cidadão. De fato, Paz assevera que o ritmo é condição do poema, porque
é ali que a liberdade do pensamento se expressa com toda sua força. E
a distinção de ritmo e métrica é importante justamente no sentido de
que o ritmo possibilita a imagem, ainda que esteja ausente a palavra.
Este paradoxo da criação (poiesis) que faz surgir o tempo e a presença
é inerente à poesia e também à música, por isto o ritmo é tão intenso e
potente como forma de expressão artística.
É disso, pois, que se trata.
Primeiro Movimento
Na côncava praça
Aponta o poente
O apronte o levante
Crescente da massa
Romper os grilhões da opressão e buscar uma vida digna, essa
foi a luta secular dos escravos no Brasil, o último país a abolir esta
forma vil e sórdida de relação com o outro, com a diferença. Mas como
mostra a História, nunca se pode afirmar o absoluto negativo de qualquer
99
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Acontecimento. As potências do desejo são capazes de novas conexões,
onde quer que elas tenham um mínimo espaço de eclosão.
E foi da tristeza e da melancolia que surgiu uma das mais
potentes formas de transformação social no Brasil. A música popular tem
uma história comovente e instigante. Fruto da atualização do encontro
de virtualidades culturais tão díspares (africana e européia), inclusive
denunciando o paradoxo hegeliano escravo/senhor, pode-se ver aí um
dispositivo de luta por inclusão e cidadania.
Como se sabe, a junção de vários padrões rítmicos e melódicos
(lundu, maxixe, modinha, polca, etc.), bem como o intercâmbio e
adaptação na forma de execução dos instrumentos (por exemplo, o
violão que é tipicamente europeu vai ganhar na, mão dos negros,
novas possibilidades uma vez que o dedilhar dos instrumentos de
corda africanos era totalmente diferente), vai construindo uma
musicalidade nova, brasileira.
De outro lado, não se pode esquecer que na cultura africana
a dança e a música são inseparáveis, pois representam o êxtase das
expressões religiosas, como, por exemplo, o candomblé. Demais disso,
aqui no Brasil estas expressões todas vão ser submetidas a uma forte
repressão pelos detentores do poder senhorial, uma vez que representavam
uma espécie de autarquia na relação de poder, o que era obviamente
inadmissível do ponto de vista das instituições daquela época. Tanto a
monarquia quanto a igreja se sentiam fortemente ameaçadas por estes
tipos de expressão.
Assim, se observa que foram proibidas, a título de ofensa aos
bons costumes, a dança da umbigada bem como a capoeira e as religiões
afro-descendentes. Tudo isso, no entanto, não impediu a eclosão de tais
intensidades. Juntamente com as mudanças sócio-políticas da sociedade
brasileira, quando da passagem da monarquia para a república, e da
consolidação da urbanização, estas expressões musicais vão surgir a partir
de certa crítica cultural da influência européia (assim a participação de
100
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
figuras como Chiquinha Gonzaga), abrindo espaços sociais à participação
de atores que até então não tinham voz na vida da nação.
A canção vai ganhando cada vez mais influência na cultura
popular e sorrateiramente toma conta da cena social brasileira. No
início do século XX, com as tecnologias de comunicação de massas se
afirmando, também em território nacional, já não havia barreiras para
sua entrada definitiva em todos os lares do Brasil, tornando-se assim,
estas expressões, o principal influxo de crítica e inclusão da diferença na
potência da micro-política.
Segundo Movimento
Aos pés do poeta
A raça descansa
De olho na festa
E o céu abençoa
Essa fé tão profana
Também a cidadania no Brasil sofreu percalços instigantes.
Talvez ainda não tenhamos até hoje o exercício pleno dessa condição sine
qua non da democracia. Isto porque a luta é constante e passa por altos e
baixos. Assim como na escravatura, nossas instituições sempre falharam
em proteger os cidadãos brasileiros. Os modelos de mundo adotados
pela corte portuguesa, a monarquia quase idiossincrática, a república
militarizada, a república velha cooptada pelo getulismo, a revolução de
1964, até a chegada da democratização, tudo isso coloca em xeque o real
sentido da cidadania plena que deve ser fruto de conquistas, mais do que
de concessões paternalistas.
Quando dizemos proteger, não queremos significar o mesmo
paternalismo que criticamos, mas sim apontar para a preservação das
liberdades advindas da diferença da dignidade humana pelo fortalecimento
101
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
institucional que ultrapasse os interesses pessoais dos governantes, bem
como pela obediência constitucional dos deveres do Estado. Só assim
será possível o exercício pleno da cidadania.
Assim como o afoxé, por exemplo, penetrou na cultura popular
brasileira, o mesmo deve ocorrer com os valores da democracia e do
Estado de Direito. Parece-nos que este ponto é fundamental para se
transformar significativamente a vida pública no Brasil.
E talvez seja justamente através de propostas como a desta
aproximação entre mundos aparentemente tão díspares que seja possível
uma maior participação e exercício da cidadania. A Política não pode ser
assunto de especialistas com seu jargão técnico que beira ao tédio, nem
o Direito pode se resumir a fórmulas retóricas de brocardos latinos. As
leis devem ser razoáveis e compreensíveis, e por mais que esta mesma
fórmula possa padecer dos vícios que aqui se apontam, não podemos
nos escusar de lutar ferrenhamente por este ideal que traduz a própria
sociedade em que se vive.
Ao mesmo tempo, não se podem esquecer as especificidades
que diferenciam a sociedade brasileira das demais, bem como das
diferenças internas que tornam ainda mais complexa a relação direito/
cidadania. É preciso deixar claro que o Brasil dificilmente se conforma
com aquilo que hoje se chama de Ocidente. Parece-nos cada vez mais
inconteste não ser esta a nossa posição no mapa geopolítico mundial.
Precisaríamos admitir nossas diferenças culturais para que também o
direito brasileiro estivesse mais no compasso dos nossos ritmos. Afinal
se estas expressões culturais surgiram somente aqui, não significaria isto
uma qualidade bastante importante da nossa formação e constituição
enquanto nação? Como bem lembrou Oswald de Andrade, somos
antropofágicos. E se isto ainda nos choca e ao resto do mundo, é porque
definitivamente somos outros.
Assim, copiar modelos europeus, norte-americanos, não resolve
nosso problema; até porque não ajudam nem a colocar os problemas de
102
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
maneira a que reflitam nossas reais possibilidades de soluções. Por isso
num país de cultura essencialmente oral – como ainda somos e temos que
admitir que somos – o direito escrito ficará mesmo relegado a instâncias
elitizadas de manutenção do poder. Eis aí o impasse.
Manifesto
Oh! Minha gente baiana
Goza mesmo que doa
Neste afoxé/poema, que deveria ser ouvido enquanto da leitura
deste texto, somos instado a exercer a cidadania como se participa de um
bloco de rua em dia de festa. E seria bem mais proveitoso ao Direito pátrio
que nos despíssemos das nossas galimatias e fôssemos mais pop. Seria
necessário deixar o cidadão falar com sua voz própria, sem a mediação
da linguagem técnica excessiva, que, no limite, serve apenas a ideologias
espúrias de manutenção de poder.
Onde estão as praças? Se a nossa vida começa depois do carnaval,
seria importante não esquecer as dores e os calos dos pés no restante da
caminhada. O apronte e o levante deveriam ser carregados para o dia-adia da vida pública no restante do ano, até que o ciclo do eterno retorno
surgisse diante do novo carnaval. Mas sem ser cooptado pelos interesses
financistas e financeiros, muito mais a potência do encontro, do bloco na
rua, da alegria bem-humorada das fantasias sadias de uma brincadeira
que extenua e impulsiona.
Fazer tremer o chão das nossas certezas. Estar pronto para o
desarme do encontro, ritmo, vida, satisfação. Mas também entender que
somos responsáveis pelos nossos destinos e daqueles que virão. Não se
quer garantia nem segurança, mas que a festa possa continuar também
para eles, no ritmo deles, que também será o nosso.
E na vida pública o mesmo sentimento de cidadania sem poder.
103
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
A mesma lógica de participação, como num bloco, compondo a multidão
sem deixar de existir como único, a multitudo de Spinoza. Você ali
no meio da rua, intensidade pura, com sua voz única, constituinte da
nação. Talvez esta seja a expressão da nossa democracia, da democracia
brasileira que sabe participar das alegrias e das tristezas, das potências
e das poesias. Sem ingenuidade, com muita ingenuidade. Afinal, somos
antropofágicos.
Ritornello
Oh! Minha gente baiana
Goza mesmo que doa
Aqui se poderia pensar dogmaticamente com o direito na cabeça.
Mas preferimos o Corpo-sem-Órgãos que Deleuze e Guattari foram
sabiamente buscar em Artaud. Por isso não se poderia rigorosamente
falar em direito na cabeça e ritmos no pé, senão em fluxos de intensidades
que atravessam esse Corpo-sem-Órgãos compondo diagramaticamente
máquinas desejantes, potências que não se deixam capturar, mas que
insistem na ruptura. Ruptura esta que é sempre melhor expressada no
ritmo que devolve ao tempo a temporalidade. Fazemos música quando
exercitamos cidadania, legislamos quando puxamos o enredo.
Por que confinar estas potências em campos distintos do saber?
Seria exclusivamente jurídico dizer que o que se busca é estabelecer
uma sociedade justa e solidária? Mesmo os códigos binários do sistema
jurídico lícito/ilícito não denotam uma rítmica de fluxos e cortes de
fluxos que, no limite, expressam uma contradança que escapa ao próprio
sistema no momento em que o Direito requer aplicação? Ou seja, o
modelo binário digital requer o mundo analógico dos possíveis subjectos
que atualizam as potências do virtual contidas na norma. E novamente
com Deleuze, de subjectos a superjectos.
104
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
E não seria diferente na música onde sons e silêncios não são
suficientes, mas há que estar presente o tempo: este mesmo tempo que
atualiza o direito na aplicação, faz a música no ritmo. Ora, se se pode
afirmar que o samba, o frevo, o afoxé, o baião, o maracatu são brasileiros,
na verdade o que se afirma é esta temporalidade única. Onde começa
nosso calendário? Quais os eventos que marcam nossa passagem em vida
neste território? Este tempo que é uma marca, uma expressão do nosso
viver, é acima de tudo o que nos constitui de direito.
Além disso, o que se percebe é uma curiosa falência das
instituições que copiamos como modelos que não expressam nossas
virtualidades, bem como uma pujança das expressões culturais que
não param de produzir novidades e acontecimentos. Isto já seria
suficiente para nos alertar de que nossos modelos políticos não estão
aptos a deflagrar o pleno exercício da cidadania, muito ao contrário,
eles acabam por inibir a participação na vida pública, uma vez que
corrompem suas potências.
De outro lado, a cultura popular se mostra cada vez mais
produtiva, crítica e participativa. Ora, então, por que não adotamos um
modelo que leve em consideração estas características? Por que não
transformar a praça em ágora?
Discurso Musical
Na mão do poeta
O sol se levanta
E a lua se deita
O poeta é também cancioneiro, aquele que faz dos sons e
das palavras uma produção que ultrapassa seus elementos, um uno de
diversidades, um multiverso. A música trabalha as dobras dos significados
e estende os signos para além de suas possibilidades, não só na melodia
105
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
bem como na harmonia. E é este conceito musical que o Direito precisa
aprender a brindar em sua chegada, porque o que se coloca como tensão
sonora pode muito bem ser resolvido de várias maneiras, como bem
sabem os músicos.
É preciso entender que a racionalidade jurídica do positivismo
clássico não dá conta da realidade complexa em que vivemos. Buscar novas
formas de solução, que não pressupõem dominância, nem unicidade. E
vejam que a própria música trabalha com estes elementos também. Uma
escala musical, dependendo de seu formato, pode apresentar tônicas,
dominantes, subdominantes, e assim por diante, e se pode utilizar estes
elementos de forma criativa para encontrar respostas aos problemas de
tensão que a melodia evoca, sem deixar de expressar beleza e equilíbrio
nessas passagens. Não como se estivéssemos diante de um mundo
acabado, mas justamente a abertura necessária para a inconclusão da
solução, como no Direito hoje se vê, embora muitos ainda se angustiem
com esta possibilidade.
É notório que já vivenciamos no Direito uma realidade bastante
distante daquela do dogmatismo. Os paradoxos são cada vez mais
freqüentes, as complexidades assim os configuram. Por isso é preciso
pensar novos conceitos, produzi-los mesmo, para dar conta dos problemas,
inclusive para melhor formulá-los. Por isso pensar com musicalidade o
Direito pode ser uma das possíveis soluções.
Como bem lembrou Flusser, a língua portuguesa é mesmo
musical, por isso esta conjunção de culturas única no Brasil produziu
coisas tão belas e potentes. O carnaval que faz serpentear a multidão nas
ruas é uma expressão das nossas crenças mais profundas, dionisíaca,
de que a festa é capaz de transformar a vida, em suma de nos libertar.
E não é por acaso que tudo isto se dá aqui, onde através da pena de
Leminski Descartes se vê desconcertado, enlouquecido pelo cenário
tropical, pela exuberância irracional, num estapafúrdio catatau. Olha
que isso dá samba!
106
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
E no bater dos tambores, esta quase violência capaz de gerar
beleza e pulsação, os corpos se deixam levar em multidão, esquecidos de
suas infâncias egóicas, em movimento harmonioso de um todo complexo,
um bloco de sensações que ultrapassa os indivíduos e avança no coletivo
como uma onda democrática de desejo de integração. Estar no meio,
não saber mais onde começa e onde termina a subjetividade, somente
o ritmo sendo o agente dessa união, não são palavras de ordem que nos
unem, mas o movimento do ritmo que as anima e nos dão um sentido de
totalidade na multitudo. Essa a democracia que queremos.
Poetar
Na côncava praça
Aponta o poente
O apronte o levante
Crescente da massa
Foram inúmeros navios negreiros, entre a vida e a morte,
acorrentados como animais paralisados pelo pavor da insanidade dos
algozes. O deslocamento no ritmo das ondas, as chibatadas fazendo
sangrar até a morte uma musicalidade bestial, e tudo isso se transforma
em alegria e beleza.
Não seria o caso de celebrar esta potência de se reinventar?
Quantas surpresas devem ter causados aos olhos dos senhores estes
escravos da criação. E quanto paradoxo nessa forma de ler a vida. A
racionalidade estúpida que chegou a imaginar que a cor negra estava
relacionada com traços de caráter, antecipando uma espécie de visão
lombrosiana do mundo, não foi capaz de fazer cessar o desejo de
liberdade que, sobretudo através da força criativa das expressões culturais
africanas, ensejaram um novo mundo.
Mas aqui, uma vez mais, tudo se mistura ao sabor do vento
107
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
tropical, das delícias de um território paradisíaco, aonde em se plantando
tudo dá. Nesse antagonismo tão díspar do pessimismo português com
a melancolia banto, a força do mar vai sincretizar os deslocamentos
necessários para a constituição de um território único de apropriações
recíprocas, devolvendo ao mundo a novidade.
A longa travessia, na qual ainda nos encontramos, é o grande
vetor de constituição do Brasil. E tudo por aqui é mesmo sui generis,
desde a origem mítica (em duplo sentido), até a atualidade pulsante.
Somos brasileiros quando deveríamos ter sido brasilianos. Extratores da
terra para que de seu sumo nos constituíssemos como gente, como agentes
daquilo que Schumpeter muitos séculos depois denominaria destruição
criativa. Destruímos as culturas européia e africanas para agenciar um
brasileirismo cultural ímpar.
Porque também as naus conhecem a deriva, este movimento
imprevisível que leva a outros rumos, outras descobertas. E assim, tudo
aqui se passava como num sonho, um delírio de outros povos, um deserto
povoado de sonhos. Muitas vezes sem ter a quem se reportarem, aqueles
que aqui viviam conheciam a verdadeira anarquia. Até que de repente se
instalava um novo ciclo de poder e opressão. Uma missão colonizadora
territorializante em busca de riquezas. Extrair o sangue, as almas, o ouro
alquímico onde quer que ele estivesse.
Aprendemos assim a extrair, mas também a transformar.
Começamos pelo acaso da descoberta ainda obscura de um objeto de
desejo europeu, e nos tornamos multidão. O que isto poderia ensinar ao
Direito?
Lata
Aos pés do poeta
A raça descansa
De olho na festa
108
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
E o céu abençoa
Essa fé tão profana
Palavra sonora, de amplitude incomum, aquilo que não cabe
em si e que, no entanto, pode ser o continente. Se o direito se permitir
ultrapassar suas próprias fronteiras, vai se enriquecer com conhecimentos
de outras dimensões, aproximando a esterilidade do positivismo científico,
de um lado, com as intensidades que constituem o humano de outro.
Em sua travessia pelo mar, o caminho do direito não se
contaminou pela suavidade deste território sem estrias, enfim,
não se desterritorializou. E é bem por isso que somos reféns de
incongruências estruturais que dificultam nossa percepção e nossa
relação com o jurídico. Europeizado, o direito brasileiro não
mergulhou os códigos na terra mátria, não absorveu os conhecimentos
e sentimentos daqueles que efetivamente construíram o país. Direito
de castas, ainda vivemos questões absolutamente distantes de nossa
sociedade plural, diversa, rizomática.
Convivemos com elites político-econômicas que insultam a
Constituição diariamente sem qualquer pejo. Demais, sem contraste
institucional e do Poder Judiciário desses mesmos insultos. Os casos
escabrosos de corrupção são tantos que é até mesmo difícil lembrá-los,
tamanha a frequência e dinâmica dos acontecimentos. As estruturas estão
contaminadas, por isso se pensa necessária uma renovação dos conceitos.
Um rearranjo institucional, talvez até sem instituição estatal centralizada,
que se mostra cada vez mais nociva aos interesses da sociedade em escala
mundial.
Por isso o contágio que é verificado e permitido através da
música talvez seja um modelo. Por isso o poder transformador dos ritmos
talvez seja um modelo. Modelo que se refaz a cada etapa do processo.
Como nas possibilidades musicais, a cada vez que se toca se toca uma
mesma e nova música. Seja porque é impossível a reprodução idêntica,
109
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
seja porque o ouvinte já é um outro a cada momento. Por que então
pensar o direito a partir da certeza? Por que afirmar que este sentimento
é ínsito aos seres humanos, e que a incerteza gera insegurança? Parecemnos falsas as premissas.
Poderíamos dizer cinicamente (os antigos), que a certeza é que
gera insegurança, pela simples razão de ser ela impossível no mundo
em que vivemos. Se, tivemos esta ilusão no passado recente, hoje é
inconteste a falsidade da afirmação. Mas então, por que não pensar o
direito a partir da incerteza? E veja que o paradoxo é justamente que a
função do direito seria a de reduzir a incerteza a partir de uma ilusão de
certeza, criada pelo próprio direito. Se, fabricamos o mundo que agora
queremos ver desaparecer, ao menos deveríamos guardar a necessária
honestidade intelectual de reconhecer a fragilidade da tese e nos permitir
outras possibilidades.
Por isso já afirmou Gilberto Gil, que “quando o poeta diz lata,
pode estar querendo dizer o incontido”. Ultrapassar o direito, assim como
o desejo de Nietzsche com relação ao humano é tarefa que se impõe
ao exercício da cidadania. Cidadania é muito mais que direito posto ou
pressuposto de Grau, é muito mais porque é do âmbito dos agenciamentos
coletivos que são capazes de criatividade a partir do zero absoluto.
Cidadania é uma força que age por contágio, por linhas de
fuga e desterritorializa o direito tornando-o devir, jurisprudência. Neste
movimento, o direito não pode ser aquilo que se cristaliza nas decisões
ou na lei positivada. Neste movimento o direito não pode ser atribuição,
mas predicação. O direito é. Ser no presente absoluto; esta temporalidade
que é a da música e pode também ser a do direito. Ser cidadão é estar na
praça, no meio do acontecimento. Quando se diz no meio, não se refere
aqui à noção de espaço entre dois extremos, mas ao espaço/tempo do
acontecimento, das sensações e das intensidades. É a vivência com todos
os riscos que ela oferece, além do bem e do mal.
Ainda operamos as máquinas jurídicas à custa dos ressentimentos
110
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
e das lamentações de culpas. Não conquistamos ainda a potência da
ultrapassagem, dos devires que constituem a vida. Fixados nesses pontos
do passado, são eles que conduzem nosso presente e as possibilidades
futuras, sem qualquer abertura para novas soluções compositivas.
É sintomático que os chamados meios alternativos de solução de
conflitos tenham tão pouca penetração em nossa cultura jurídica. Ali
até se vislumbra uma temporalidade outra, ao menos mais próxima da
atualidade do acontecimento.
Seria preciso entender que é possível o surgimento de figuras
como um Cartola no direito, através do exercício da cidadania plena.
Não se requer conhecimento musical formal para fazer obra prima,
assim como não se requer o conhecimento formal do direito para
ser cidadão. A vida é fruto da sensibilidade, o que conviria pensar
que a função da política é antes, a de permitir que tal sensibilidade
aflore do que a instituição de estruturas formais rígidas que vêm se
mostrando a cada passo, geradora de inúmeros problemas e distorções
dos agenciamentos coletivos.
Teremos que ficar presos ao modelo que se mostra incapaz, até
quando? Quando do surgimento do samba no Brasil, o choque foi imenso,
até porque os padrões culturais daquela época eram muito mais rígidos
do que o são hoje em dia. Por isso nos parece plenamente possível pensar
novos caminhos que reformulariam, ao menos, as funções do Estado.
Que ultrapassariam esta ótica institucional como única possibilidade,
para alcançar na experiência das culturas populares outras fontes de
saber e de fazer e enriquecer a vida pública, e assim, a própria cidadania.
Pense-se, por exemplo, nas parcerias entre os compositores.
É comum se fazê-las a quatro mãos, ou mesmo mais, sem que isto dê
ensejo a invejas ou individualismos, muito ao contrário, são exemplos
de micro-políticas que funcionam por ultrapassamento. Já não se sabe
quem é o autor, quem escreveu o que, pois as idéias de um disparam a
criatividade do outro, que devolve ao primeiro novo impulso criador,
111
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
e assim por diante. Exercer a cidadania dessa perspectiva é o que nos
parece necessário e urgente. Fazer política com este sentimento é o que
nos parece fundamental.
Refrão
Abolição
No coração do poeta
Cabe a multidão
Quem sabe essa praça repleta
Navio negreiro já era
Agora quem manda é a galera
Nessa cidade nação
Cidadão!!!
Toda estrutura pode gerar novas estruturas. Este princípio é
hoje reconhecido inclusive na biologia, pois de outra forma não seria
possível a diversidade. Este conceito de autopoiesis, advindo das teses
de Maturana e Varela, aportou no direito pela pena de Luhmann, que
a partir da teoria dos sistemas chegou a conclusão de que a criação é
processo criativo. Disso resulta que estaríamos ainda no Talião não
fossem tais ocorrências. E veja-se que não se trata de teoria, estritamente
falando, mas do próprio fenômeno. De outro lado, não se considera aqui
a externalidade do epifenômeno, mas do próprio Acontecimento.
Podemos pensar que o direito nasce para ser abolido. Assim
como já constou de nossos códigos a previsão do status de escravo,
as dinâmicas sociais estão sempre dispostas no sentido de ultrapassar
aquilo a que chamamos, afirmamos aqui, equivocadamente direito. E é
justamente a busca por um outro conceito de direito que nos move a
fazer estas considerações e aproximações de perspectivas que de inicio
poderiam parecer tão distantes.
112
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Nesse diapasão é que retomamos o tema para afirmar a liberdade
como potência humana máxima, aquela que nos identifica e nos constitui
de forma definitiva. Como já se afirmou, sem descurar do contraponto
da responsabilidade, ou seja, respostas que reflexivamente damos em
nossa relação com o fora do mundo, e para com o outro, esta liberdade
constitutiva está sempre em vias de sofrer as intervenções coercitivas
desse direito que se quer atributivo, uma vez que enxerga o humano da
perspectiva hobbesiana do selvagem indômito.
Que as maldades existem é mais do que patente, mas o problema
está na forma de responder a elas. Ou somos coniventes com as forças
territorializantes das estruturas de dominação e poder, ou fazemos o
carnaval, a festa pagã que não reconhece a autoridade estabelecida e
invade a praça trazendo consigo a hybris. Este ultrapassamento que é
também o da destruição, mas como já se viu, da destruição criadora do
novo, da abolição das ordens de valores para instituir novas conexões,
que, por sua vez, tendem a ser elas mesmas confrontadas no futuro.
Por isso esta proposição da criação de conceitos, que mais do
que tarefa da filosofia, é a tradução do mundo em que vivemos; mundo
da poética e das possibilidades de novos seres que se constituem no
agenciamento de suas próprias relações, a micro-política da roda de
samba, do bloco de rua, da literatura menor de um poema fecundo de rimas
e diatribes contra o instituído na sedução de um humano desencorajado
pela ilusão da certeza e da segurança. É preciso fazer soar os tambores e
seus estrondos, sua temporalidade cheia de presságios e intuições. Fazer
o direito descer até o batuque e encontrar o chão, território sem domínio
onde cada passo constrói o caminho e onde a cabeça pode então estar
vazia no êxtase das sensações musicais, pura incompreensão criadora que
abole a racionalidade e instaura um pensar absoluto, encontrar o silêncio
em cada nota musical, fazer parar o tempo em cada figura musical, deixar
dissonante a harmonia em cada acorde musical.
Em suma, estar cidadão.
113
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Conclusão
Diante do proposto, parece ser possível pensar o Direito como
um dispositivo que permite a liberação das potências da cidadania, no
sentido de se fazer ecoar, pela festa, pela música, o sentido da liberdade
que é ínsito dos agenciamentos coletivos e das desterritorializações da
micropolítica, sem descurar das especificidades da nossa História, que é
justamente onde devem ser buscados os elementos de possibilidade das
soluções dos nossos problemas, para que se alcance aquilo que expressa
o Direito em seus mais variados modos e meios, inclusive ultrapassando
o próprio texto.
Só o ato
Só a vida
É mais ativa que a morte...
114
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Referências
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corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.
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Deleuze e Félix Guattari. Trad. Geoges Lamazière. Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1976.
___________. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. ed. 34., vol. 2,
Gilles Deleuze e Félix Guattari. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia
Cláudia Leão. Rio de Janeiro, 1995.
FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. 3. ed., São Paulo: Annablume,
2009.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo:
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MATURANA, H.R.; VARELA, F.J – A Árvore do Conhecimento: as
115
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
bases biológicas da compreensão humana. Trad. Humberto Mariotti e
Lia Diskin. São Paulo: Pala Athenas, 2001.
PAZ, Otávio. Signos em rotação. 3. ed., São Paulo: Perspectiva, 2009.
SCHUMPETER, Joseph Alois. Teoria do desenvolvimento econômico.
Uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico.
Trad. Maria Sílvia Possas. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
SPINOZA, Benedictus de. Ética/Spinoza. Trad. e notas Tomaz Tadeu, 2.
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STENGERS, Isabelle. Power and invention. Situating Science. In:
Theory out of bounds. vol. 10. London: Minneapolis, 1997.
116
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
5
O dilema entre a poética e o mercado jurídico
Gustavo S. Paulino
Mestrado em Direito (Filosofia do Direito e do Estado) pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP 2006).
Graduação em Direito pela Faculdade de
Direito de Bauru (FDB-ITE 1997). Professor da Faculdade
de Direito da Universidade São Judas Tadeu (USJT)
e Diretor Pedagógico do Centro de Estudos Avançados
em Direito e Justiça (CEADJUS). Colabora ainda como
pesquisador na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (Gedais - PUC/SP).
117
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Introdução
O presente texto, publicado alhures (Cf. Paulino, 2008: 153-161),
foi concebido para desempenhar uma função claramente “provocativa”,
isto é, foi pensado para evitar a zona epistemológica de conforto na qual
somos acomodados pela teoria jurídica tradicional, servindo também,
no corpo da obra mencionada, como arremate da argumentação acerca
da crítica do direito enquanto tecnologia de controle social. Demarcou,
assim, a ambiguidade das posições numa relação de controle: afinal quem
controla e quem é controlado?
Com efeito, reaparece aqui, praticamente em sua forma original,
como reflexão autônoma (mais próxima de um ensaio), mas não isolada,
pois em conexão com os outros textos componentes desta obra, e se
não exatamente em termos semânticos, esta conexão se dá pelos laços
estreitos ao redor do homenageado por esta publicação.
Permanece, ainda assim, conservando seu intento provocativo,
como forma de retribuir as oportunidades e os estímulos recebidos nos
cursos de Filosofia do Direito ministrados por Willis Santiago Guerra
Filho, na PUC-SP. Especificamente sobre essa abordagem “poética”
que este texto trata, foi fundamental a participação no curso intitulado
“Direito e Poética”.
Assim como o texto é provocativo, são também provocativas
as aulas do Professor Willis: diria mais ainda, são evocativas, pois
estão sempre a nos chamar à reflexão jusfilosófica mais profunda ao
problematizarem não apenas os temas jurídicos em sentido estrito, mas
igualmente a nossa própria condição humana num mundo tecnificado,
reificado, endurecido por leis e regras que o tornam – bem como as
relações que nele ocorrem – algo a ser disputado nas esferas da posse
e da propriedade, sensibilizando-nos a nos esforçar para atingir alguma
distância da vacuidade ética que tem tornado o convívio humano cada
vez mais inóspito.
118
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Se este ensaio puder auxiliar o direito, por intermédio dos
seres humanos que nele laboram, a deixar de ser parte considerável do
“problema” para ser parte da “solução”, creio que teremos cumprido
um pouco da nossa missão – eu e o homenageado – pois mesmo não
frequentando por enquanto as suas aulas, não deixei de compartilhar com
ele – e agora com os novos leitores – o núcleo de significado que fez com
que nosso contato acadêmico tenha se tornado para mim um dos pontos
altos da minha formação como intelectual e como pessoa.
1. O dilema entre a poética e o mercado jurídico
Na análise de Walter Benjamin, Charles Baudelaire assume
um papel central como vivenciador do tipo de resistência que estamos
esboçando, por isso é considerado como protótipo do artista moderno.
Qualificar Baudelaire como “um lírico no auge do capitalismo” é retratar
a figura de um homem (subjetividade) e sua relação ambígua com a
cidade moderna ou em processo de modernização (Paris do século XIX).
Propomos, assim, retornar ao início da modernidade117, a
artística pelo menos, para poder acompanhar Baudelaire face ao mercado
literário. Seu conflito: como vender sem perder a dignidade?
A ambiguidade de Baudelaire com relação ao mercado é, em
última instância, o reflexo de sua angústia diante da cidade que se
moderniza. É o flâneur, pois sai da “torre de marfim” e percorre as ruas
para se misturar à multidão, mas não para se dissolver nela: o “burburinho”
que fascina o poeta simultaneamente o mantém a um dada distância, com
um certo ar de entojo, porque o que ele vê exerce um antagonismo de
posições – fascinação e repulsa.
117
Para efeitos de marcação temporal, estamos delimitando a modernidade artística nos seguintes
termos: início em meados do século XIX (com o impressionismo ou período pós-romantismo) e
o seu fim por volta da década de 70 do século passado (momento em que os artistas começam a
questionar a “necessidade” da arte; um declínio, portanto, com relação aos movimentos anteriores
que viam a arte como portadora da emancipação).
119
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
A solidão do flâneur, ao percorrer as ruas, ao se situar entre
o público e o privado, ao estar na multidão (proximidade) e observar
(distanciamento), é o que lhe confere agudeza de espírito.
Essa agudeza de espírito assegurou a Baudelaire uma
contemplação do mercado literário alijada de eufemismos:
Por mais bela que seja uma casa, ela tem antes de tudo – e antes
que nos detenhamos em sua beleza – tantos metros de altura
e tantos de cumprimento. Assim também é a literatura, que
reproduz a substância mais difícil de avaliar, antes de tudo um
enchimento de linhas, e o arquiteto literário cujo simples nome
não promete lucros tem de vender a qualquer preço (Baudelaire
apud Benjamin, 2010: 29).
A angústia de Baudelaire é o sentimento de estreiteza, de
“espaço reduzido”, de carência e de inquietação diante da nova cidade.
Com o seu olhar refinado, ele observa o processo de transformação de
sua cidade, de sua casa118 e se pergunta: haverá ainda espaço para mim
(enquanto sujeito)?
Com o poema dirigido a uma mulher de rua, ironiza sua
própria situação119 e se impõe o seguinte dilema: se ser autor significa
preservar a sua subjetividade e autonomia (distância do observador), e,
paradoxalmente, ser lido é se expor (ao observar, em meio à multidão,
também se é observado) aos olhares alheios para vender, como vender o
118
“A rua se torna moradia para o flâneur que, entre prédios, sente-se em casa tanto quanto o
burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são
um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são
a escrivaninha onde apóia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e
os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente” (BENJAMIN,
2010: 35).
119
“Para ter sapatos, ela vendeu sua alma; / Mas o bom Deus riria se, perto dessa infame, /
Eu bancasse o Tartufo e fingisse altivez, / Eu, que vendo meu pensamento e quero ser autor”
(BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 2010: 30).
120
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
seu pensamento e querer ser, ao mesmo tempo, autor? 120
Pensemos um pouco nessa questão da angústia que Baudelaire
vivencia, sob a análise de Heidegger, onde a existência humana pode ser
entendida pelos seguintes aspectos: (a) facticidade – refere-se ao fato de o
homem estar jogado no mundo121; (b) existencialidade – ou transcendência
porque o homem é um ser que faz projeções, é um ser que se projeta para
fora de si mesmo, encontrando os limites no mundo. É uma forma de
projeção “no mundo, do mundo, e com o mundo, de tal forma que o eu e
o mundo são totalmente inseparáveis”; (c) a ruína – seria o deslocamento
da tarefa primordial de cada indivíduo – o autoconhecimento – diante das
forças dissuasivas do cotidiano: “o ser humano, em sua vida cotidiana,
seria promiscuamente público e reduziria sua vida à vida com os outros
e para os outros, alienando-se totalmente da principal tarefa que seria o
tornar-se si-mesmo” (In: Heidegger, 1991: IX).
Acontece que, para Heidegger, o homem enquanto um ser para
a morte tem de lidar com a angústia como o estado subjetivo anterior e,
até certo ponto, responsável pela tomada de duas posturas diametralmente
opostas, isto porque ela é,
[...] dentre todos os sentimentos e modos da existência humana,
aquele que pode reconduzir o homem ao encontro de sua
totalidade como ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela
imersão na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana.
[...] A própria dissolução do eu nas coisas do mundo e nas
trivialidades impede-o de localizar a causa de sua angústia,
[...] ela é onipresente. Por isso, envolve o homem com um
sentimento de estranheza radical. Todos os socorros e todas
as proteções são ineficazes para debelá-la; o homem sente-se
120
“Até o fim da vida, Baudelaire, permaneceu mal colocado no mercado literário. Calcula-se que,
pelo conjunto de sua obra, não tenha ganho mais do que 15 mil francos” (BENJAMIN, 2010: 29).
121
Mundo: para Heidegger significa o conjunto de circunstâncias espaciais, temporais, sociais,
econômicas, culturais etc., no qual um indivíduo está imerso.
121
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
completamente perdido e desvalido (In: HEIDEGGER, 1991:
X, grifos nossos).
Da angústia, duas alternativas surgem para o homem: (a) ou ele,
diante de tamanha perplexidade, cede e procura refugiar-se novamente
no lugar comum representado pelo cotidiano; (b) ou ele se lança numa
tentativa de superação dessa angústia, o que, em última instância, significa
superar o mundo e a si mesmo. A esse acontecimento, Heidegger chama
de transcendência.
A angústia pode ser, assim, tanto a “mola propulsora” da criação
quanto sua “pá de cal”. Enfrentá-la requer coragem para convidá-la à sala
de estar e oferecer-lhe um lugar de destaque: observar a angústia (a nossa
angústia) é uma abertura, um primeiro passo, para o diálogo com nós
mesmos.
A angústia, assim como a doença, é nossa interlocutora. Com
uma vantagem: ambas são honestas. Dizem-nos francamente o que não
gostaríamos de ouvir e o que exigem em troca da franqueza com que nos
expõem a nós mesmos é apenas o esforço da interpretação.
O ser humano, ao perceber-se como um “eu”, inexoravelmente
delimita o “não-eu”. Para cada elemento que conhece e utiliza para se
identificar exclui o seu par oposto (luz/sombra). Isso acontece devido ao
fato de que
[...] toda identificação que se apoia numa decisão deixa um
dos polos de fora, do lado de lá da porta. Porém, tudo aquilo
que nós não queremos ser, tudo o que não desejamos encontrar
dentro de nós, tudo o que não queremos viver, e tudo o que não
queremos deixar participar de nossa identificação, forma a nossa
sombra. A rejeição da metade de todas as possibilidades não as
faz de forma alguma desaparecer, mas sim apenas as exclui da
identificação pessoal ou da identificação efetuada pela mente
122
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
consciente. O “não”, na verdade, fez desaparecer de nossa vista
um dos polos, mas nem por isso nos livramos dele (Dethlefsen,
T.; Dahlke, R., 1997: 41 – 42).
Se ao nos depararmos com a angústia procurarmos debelá-la,
estaremos caindo no lugar comum, na vida ordinária, e deixando de
conhecer a nós mesmos. O “não-eu” não virá a integrar o “eu” (o polo
consciente), não haverá, portanto, acréscimo de (auto) conhecimento
rumo ao “si-mesmo” (“eu” + “não eu”); a opção pelo lugar comum é
justamente o recurso daquele que desiste de si mesmo e parte para a
ilusão do cidadão médio bem ajustado que se acha, a priori, justificado
porque trabalha (ou, em outras palavras, porque é um funcionário), paga
suas contas e tem um animal de estimação.
O outro caminho possível nos leva à transcendência. Se o
homem “pode transcender”, isto significa dizer, em outras palavras, que
o homem:
[...] está capacitado a atribuir um sentido ao ser. O homem está
naturalmente fora de si mesmo, sobre o mundo, em relação
direita com um mundo que ele produz e para o qual ele se projeta
incessantemente: “Produzir diante de si mesmo o mundo é para
o homem projetar originariamente suas próprias possibilidades”
(In: Heidegger, 1991: X).
Em princípio, a chance da transcendência está sempre disponível.
O pensamento heideggeriano, ao considerar o ser humano com um ser
em movimento, como um “vir a ser”, mostra que este:
[...] jamais seria um ser acabado e nunca seria tudo aquilo
que pode ser; estaria sempre diante de uma série infinita de
possibilidades sobre as quais se projeta. [...] Assumindo o seu
123
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
passado e, ao mesmo tempo, seu projeto de ser, o homem afirma
sua presença no mundo. Ultrapassa então o estágio da angústia
e toma o destino nas próprias mãos (In: Heidegger, 1991: XI;
grifos nossos).
Mas, no que efetivamente essas colocações podem repercutir
para superarmos a situação do funcionário, do operador do Direito?
O primeiro grande desvelamento já advém da aproximação
– ousada, diga-se de passagem – entre “Direito” e “Poética”, onde a
primeira pergunta que devemos fazer é: qual a “substância” do Direito?
Qual é a sua “materialidade”?
De imediato, o que se nos afigura como “material” é o seu
discurso positivo, oral ou escrito.
Na verdade, o Direito como “materialidade” é “sólido” enquanto
obtiver adesão. Sua materialidade é condicional. Se for “quadrado” assim
o será até que a crença geral o veja “materialmente” como um “círculo”.
Direito positivo é o que se põe, portanto, é o direito posto. Se é posto,
o é por alguém e seria esse alguém a figura mitificada e justificadora do
legislador racional?
A diferença do operador do Direito para o poeta do Direito, se
nos permitirmos pensar assim, é menos uma questão de atividade que de
consciência.
O primeiro “produz” um discurso que crê ser dedutivo, um
discurso de extração de partículas substanciais de um Direito Material
(que difere, portanto, do processual) capaz de convencer, ou como prefere,
capaz de provar. Convence antes de tudo, porque já está convencido o
seu autor: o seu discurso obtém sucesso porque reproduz (não produz)
a “materialidade”, reproduz o padrão – ele acha que criou algo novo no
exercício da sua “liberdade”, que descobriu a verdade da lei, quando, por
um outro prisma, o que fez foi apenas dizer o que queriam ouvir... Ganha
a “causa” porque se apoiou na “melhor” doutrina ou na jurisprudência
124
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
dominante... Ele domina não por sua originalidade; domina por ser
“dotado” de “competência” e só domina porque foi o primeiro a se
convencer da dominação. Seu discurso é o da confirmação. Escreve para
ser confirmado.
Já o poeta do Direito é um visionário que assume de antemão a
natureza “corrente” do seu discurso – do latim discursus: “ação de correr
para diversas partes, de tomar várias direções” (Houaiss).
O poeta trabalha com a dinâmica, com a fluência e com os
arranjos conjunturais e sabe que, em algum momento, eles podem se
desmanchar. Seu discurso é uma performance, é contextual, é situado até
mesmo porque ele – seu autor – é, em certa medida, um “não situado”,
uma vez que se percebe existente, se percebe um ser em movimento.
O poeta sabe que:
O mundo em que vivemos é o que construímos a partir de nossas
percepções, e é nossa estrutura que permite essas percepções.
Por conseguinte, nosso mundo é a nossa visão de mundo.
Se a realidade que percebemos depende de nossa estrutura –
que é individual –, existem tantas realidades quantas pessoas
percebedoras (Mariotti, 2012).
Isso não quer dizer que não haja um solo comum ou pontos de
contato entre essas inúmeras realidades individuais. O solo comum é
o que comunica, que liga, que aglutina e permite a troca interpessoal
numa comunhão.
Porém, nesse espaço onde se dá o discurso, o operador do
Direito não se percebe “poiético”, ele é “objetivo”. E, para Humberto
Mariotti (2012), relembrando Maturana: “quando alguém diz que está
sendo objetivo, na realidade está afirmando que tem acesso a uma forma
privilegiada de ver o mundo e que esse privilégio lhe confere alguma
autoridade, que pressupõe a submissão de quem não é objetivo”.
125
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
O operador/funcionário não é autor, ele vende. Vende porque
o que “cria” é a reprodução do que está posto. Reproduz o que está
posto porque crê na “materialidade” do Direito. Crê na “materialidade”
do Direito porque é vassalo da pedagogia da dominação... E como todo
“vassalo”, que sonha um dia em ser “senhor”, ele reproduz a pedagogia,
ensina a “materialidade” e domina porque exibe (prova) que é dotado de
uma visão privilegiada que o permite ser objetivo e enxergar a “realidade”
que os outros não veem.
Contrariando essa “tendência”, ou melhor, o Establishment,
temos na configuração “poética” a tentativa de se trabalhar o Direito como
um discurso ficcional (e não meramente lógico-dedutivo). Acontece que,
um empreendimento como esse exige uma abertura cognitiva bastante
ampla, como bem coloca Willis S. Guerra Filho, ampla o suficiente para
assumirmos que:
Um discurso dessa natureza há de ser, necessariamente, bem
mais livre e criativo que os discursos filosóficos e científicos,
em geral – para não falar daqueles religiosos e, mesmo, aqueles
estritamente literários. Aqui não temos compromissos com
nenhuma tradição, com dogmas, teoremas, axiomas, doutrinas,
figuras ou personagens, pois queremos fazer a experiência do
pensamento da origem, da raiz, o pensamento original, radical.
Isso não quer de modo algum significar que iremos apelar para
uma espécie de fabulação, para a invencionice. O discurso, para
ser verossímil e persuasivo, para nos agradar, deve ser construído
tomando elementos da realidade, do que compartilhamos de
mais elementar, completando-os e, por assim dizer, cimentandoos com a argamassa de nossos sonhos, os que temos dormindo
ou acordados, pois são nossos maiores desejos, os desejos de
saber. Daí podermos esperar um discurso que, mesmo quando
imaginativo, é bastante revelador (Guerra Filho, 2005: 2).
126
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
A liberdade criativa, nesse nível, requer a percepção do espaço
comum interacional – o espaço linguístico – não a nossa dissolução nele.
Lembremo-nos de como o flâneur se movia na multidão, de como a rua
era a sua casa e de que, para Heidegger, a língua é a morada do ser.
O ser humano é, essencialmente, um ser em comunicação com os
demais – daí o discurso ser um modo de existência. O existente humano
possui uma linguagem, se utiliza dela e, ao mesmo tempo, também por
ela é possuído (e, quem sabe, utilizado). No modo de ser discursivo,
“a compreensão e a interpretação possuem a possibilidade do ser-emcomum cair sob o domínio da gente, isto é, tornar-se redundante e puro
palavrório. Em outros termos, a linguagem torna-se meio, instrumento de
significações cristalizadas, estabilizadas” (Paviani, 2003: 27).
Com isso, o risco para a autonomia da subjetividade e do seu
projeto final de encontrar o si-mesmo fica terrivelmente ameaçado, uma
vez que nessas significações já massificadas, “o sentido cede lugar aos
modos de sentir e de pensar comuns. Por decorrência, a ditadura do se
impessoal do pensa-se assim, do age-se assim, as relações resultam
ambíguas e, nelas, confundem-se o real e o possível” (Paviani, 2003:27).
A gravidade resulta finalmente na comprovação de que o “ser
humano perde-se no comércio público com os entes, soterra-se em
suas próprias ocupações e torna-se surdo ao silêncio primordial do ser”
(Paviani, 2003: 27).
Para Heidegger, o que distingue o existente humano é a
capacidade de preocupar-se consigo mesmo, o feixe nuclear da
compreensão humana revela-se na noção de cuidado (na sua forma mais
elementar). Vivemos num mundo que é ameaçador e a angústia que
sentimos diante da vida e da nossa própria finitude é o motor que nos
move por meio de antecipações de acordo com certos padrões prévios
normalmente não iluminados que, em última instância, são responsáveis
pelo modo com que nos posicionamos na existência. Contudo, esse
círculo não é intrinsecamente vicioso ou fatal.
127
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
A hermenêutica da facticidade criada por Heidegger surge como
um método de conscientização capaz não de nos tirar deste círculo, mas
de fazer com que nele ingressemos de maneira atenta ou, em outras
palavras, hermeneuticamente situados.
Baudelaire, por exemplo, “sabia como se situava, em verdade,
o literato: como flâneur ele se dirige à feira [para nós mercado]; pensa
que é para olhar, mas na verdade, já é para procurar um comprador”
(Benjamin, 2010: 30).
E quanto a nós, em face do mercado jurídico, em face do
espaço comum de intercâmbio linguístico especificado como “mundo do
Direito”, o que é que de fato queremos: vender ou ser autor?
O nosso texto, a nossa “literatura”, a nossa “poesia”, ainda que
em prosa, é um esforço de nos fazer entender, de nos expor enquanto
subjetividades autônomas numa comunicação que pressupõe interlocutores
também autônomos – num esforço recíproco de interpretação do “eu” e
do “não-eu” que habita em nós conjuntamente com a alteridade (o “eu”
e o “não–eu” que habita também no outro)? Ou estamos nos escondendo
de nós mesmos embaixo das vestes do cidadão médio bem ajustado que,
como bom profissional/funcionário que deve ser, escreve objetivamente
sobre a realidade porque, antes de se fazer entender, ele, que de tudo
entende, escreve para ser confirmado?
128
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Referências
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do
capitalismo. Trad. José Carlos M. Barbosa e Hemerson Alves Baptista.
3. ed. São Paulo: Ática, 2010. (Obras escolhidas, vol. 3).
DETHLEFSEN, Thorwald; DAHLKE, Rüdiger. A doença como
caminho: uma nova visão da cura como ponto de mutação em que um
mal se deixa transformar em bem. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Filosofia ficcional. Negatividade em
ontologia, teologia, ética e direito: dificuldades com o ser, em deixar ser
e para deixar de ser. São Paulo, PUC/SP: 2005. (Texto disponibilizado
pelo autor para utilização no curso Direito e Poética).
HEIDEGGER. Vida e obra. In: Martin Heidegger: conferências e escritos
filosóficos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores).
MARIOTTI, Humberto. Autopoiese, cultura e sociedade. 1999.
Disponível em: http://www.geocities.com/pluriversu/autopoies.html.
Acessado em: 08.05..2012.
PAULINO, Gustavo Smizmaul. O ensino do direito em crise: reflexões
sobre o seu desajuste epistemológico e a possibilidade de um saber
emancipatório. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.
PAVIANI, Jayme. Sentido e significado na perspectiva fenomenológica.
In: FELTES, Heloísa Pedroso de Moraes (Org.). Produção de sentido:
estudos transdisciplinares. São Paulo: Annablume; Porto Alegre: Nova
Prova; Caxias do Sul: Educs, 2003.
129
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
6
Direito, dominação e violência
Para um diálogo sobre as possibilidades de uma
teoria política do direito
Henrique Garbellini Carnio
Doutorando e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Bolsista do Centro de
Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior - CAPES.
130
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
1. Sobre a relação entre política e direito
A questão fundamental que aqui se coloca é uma pergunta
muito bem proposta por Max Weber em sua célebre conferência tratando
sobre a política como vocação profissional (Politik als Beruf)122, a saber:
“Quando e por que os homens obedecem?”123
Neste texto, Weber apresenta a política como a participação no
poder ou a luta para influir na distribuição de poder124.
Tal colocação remete a reflexão diretamente para o conteúdo do
direito, pois indubitavelmente, desde sua gênese, o direito encontra-se
em relação estreita com o poder, tão estreita que muitas vezes pode se
encontrar quem o reduza às relações de poder, “tendo como consequência
a politização absoluta – tendencialmente absolutista, autoritária, quando
não, totalitária – do direito, que assim é degradado à condição de uma
espécie de disfarce da política, mero instrumento do poder”125.
Interessante notar que, dependendo do prisma que se olha a
questão das relações entre direito e poder – plenamente coordenadas
sobre as matrizes da política e da violência – enfoques diferentes podem
ser colocados.
Se a análise pautar-se em termos pré-civilizatórios, como nas
comunidades primitivas, encontrar-se-ia uma genealogia do próprio
direito, do poder e da civilização, pois como demonstrado anteriormente,
as relações de débito e crédito (troca, escambo) e sua consequente projeção
violenta em termos de castigo e medo dos ancestrais determinaram as
relações humanas e propiciaram o terreno de todo o processo civilizatório.
Poder-se-ia ainda se restringir essa relação no mencionado
reducionismo, que reduz o direito às relações de poder, causando a
122
Weber, Max. Ensaios de sociologia. 3. ed. Trad. Waltensir Dutra, rev. técnica de Fernando
Henrique Cardoso, Rio de Janeiro: LTC , 1974.
123
Weber, Max. Ensaios de sociologia, cit., p 99.
124
Weber, Max. Ensaios de sociologia, cit., p. 98.
125
Guerra Filho, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei. ano 1, n. 4. Panóptica. p. 65.
131
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
politização absoluta com ramificações possíveis para o absolutismo,
autoritarismo e mesmo totalitarismo.
Por fim, projetando-se de forma histórica a análise, chegar-se-ia
à figura do Estado Moderno e toda sua configuração político-jurídico, o
que ocasiona outro tipo de reducionismo, metodologicamente dizendo,
pois reduz a política e o próprio direito a uma forma jurídica de exercício
do poder126.
Willis Santiago Guerra Filho, ao se referir à conferência aqui
tratada e a proposta de sua perspectiva sociológica compreensiva, verifica
que Weber se vale de León Trotski para dar cabo de sua investigação,
demonstrando como a ideia de “força” era o fundamento do Estado,
ou seja, ocorria consagração da força física como o meio empregado
tipicamente pelas associações políticas127.
Tal noção de força é que passa a ser referida por uma denominação
mais precisa, a de violência.
Essa noção de violência é que serviu a certas instituições
sociais àquilo que será a própria configuração do Estado, haja vistas as
predecessoras formas de organizações sociais, aqui já mencionadas, a
exemplo das comunidades primitivas, mais precisamente dos clãs, tribos
e organizações gentílicas.
Em termos jurídicos, mais precisamente em termos de Teoria
do Direito, a discussão – que perpassa as teorias contratualistas e suas
críticas com as teorias da dominação e poder como configuradoras do
Estado e o próprio positivismo jurídico normativista kelseneano – revela
a questão de se caracterizar a legitimidade do emprego da violência pelo
direito para regular as relações sociais, daí a importância da pergunta que
encabeça este tópico: “Quando e por que os homens obedecem?”.
O desenvolvimento dessa colocação parece sugerir que a
presente discussão instaura praticamente uma zona de indeterminação
126
Guerra Filho, Willis Santiago. (Anti-) Direito e força de lei. Op.cit., p. 65.
127
Guerra Filho, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei. Op. cit., p. 67.
132
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
entre a filosofia política e a filosofia jurídica, arriscando-se a dizer aqui
que, ao se referir propriamente nestes termos, é que se está no campo de
uma Teoria Político-Jurídica, em sua forma mais precisa.
As pistas deixadas por Weber revelam que sua tentativa foi a de
uma resposta em termos científicos, pois ao privilegiar a questão do como
se obedece, em termos funcionais, se atingiria a sua clássica tipologia –
tripológica – das três formas “puras” de legitimação, a saber: dominação
legal, dominação tradicional e a dominação carismática128.
A grande sacada de Weber seria, então, a de que as formas puras
de dominação apoiam-se internamente em base jurídicas legitimadoras,
ou seja, é o direito que fornece a legitimidade da autoridade e quando
esta é desacreditada as consequências são de grande alcanço129.
Nas linhas traçadas por Weber, encontra-se um fundamento
antropológico de todas as “puras” formas de dominação. A obediência e
a sujeição se dizem determinadas pelos motivos bastante fortes do medo
e da esperança. O medo da vingança do detentor do poder, que possuía
poderes mágicos; e a esperança de recompensa neste mundo ou noutro.
E, além da vingança e da recompensa, medo e vingança era igualmente
causados pelos mais variados interesses.
Seria esta, então, a justificativa para o respeito ao direito e ao
Estado, que foi dada por alguns autores que fundamentam o pensamento
político moderno, utilitarista e positivista, como Maquiavel e Hobbes130.
128
Weber, Max. Os três tipos puros de dominação legal. Gabriel Cohn (Org). 7. ed., n. 4, São Paulo:
Ática, 2003. pp. 128-141.
129
Mais precisamente, nas palavras de Weber: “A dominação, ou seja, a probabilidade de encontrar
obediências a um determinado mandato pode fundar-se em diversos motivos de submissão. Pode
depender diretamente de uma constelação de interesses, ou seja, de considerações utilitárias de
vantagens e inconvenientes por parte daquele que obedece. Pode depender também do mero
‘costume’, do hábito cego de um comportamento inveterado. Ou pode fundar-se, finalmente, no
puro afeto, mera inclinação pessoal do súdito. Não obstante, a dominação que repousasse apenas
nesses fundamentos seria relativamente instável. Nas relações entre dominantes e dominados, por
outro lado, a dominação costuma apoiar-se internamente em bases jurídicas, nas quais se funda
a sua ‘legitimidade’, e o abalo dessa crença na legitimidade costuma acarretar consequências da
grande alcanço.” [...]. Weber, Max. Os três tipos puros de dominação legal. Op. cit., p. 128.
130
Guerra Filho, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei. ano 1, n. 4., Panóptica. p. 70.
133
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
As questões que surgem, e que serão discutidas, aprofundam
um pouco mais o tema: tais argumentos são suficientes para, em termos
meramente fáticos e basicamente acríticos, compreender o por quê da
submissão à violência organizada juridicamente? E, mais, pelo fato da
violência ser na realidade proveniente do Estado e este ser o configurador
ficcional em termos administrativos de nossas vidas?
2. A governamentabilidade da vida e o direito
Como bem evidencia Willis Santiago Guerra Filho, vivemos
atualmente num estado de onipresença e ubiquidade da violência, pois
esta se encontra em todos os planos e espaços de convivência, desde a
família, passando pela comunidade em que se vive, até as grandes cidades
e, ainda, em escala planetária, onde atuam os Estados e organizações
para-estatais que não se limitam a exercer a violência em determinado
território131.
Seria, aparentemente, esta a análise proposta pelo contemporâneo
filósofo italiano Giorgio Agamben nos rastros da genealogia da
governamentabilidade de Michel Foucault, em especial na obra O reino
e glória. Sua premissa parte exatamente da investigação dos modos e
dos motivos pelos quais o poder foi assumindo, no ocidente, a forma de
uma oikonomia (de oikos “casa”, e nomia, “regramento”), ou seja, de um
governo dos homens132.
Nesta medida, o direito vem sendo construído pela tensão entre
um ideal de justiça, jamais realizado, e na realidade da violência na qual
se ampara o poder. Poder este de assenhoramento de um sujeito sobre
outro. Em sentido jurídico, pelo exercício da autoridade (legítima), e,
em sentido psicológico, para assujeitar o outro a uma simples vontade de
poder, isto é, um desejo de sujeição para suprir a carência de ser, própria
131
132
Guerra Filho, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei., ano 1, n. 4, Panóptica. p. 70.
Giorgio Agamben. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo,
tradução de Selvino J. Assmann, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 9.
134
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
do ser ficcional, artificioso, desejante e anormal, que é o ser humano133.
O poder aqui mencionado, conhecido em todas as sociedades que
se tem notícia, salvo aquelas surgidas na modernidade, é um poder que
tem como fundamento uma força superior, divina, como bem demonstra
Walter Benjamin ao final de seu texto Para uma crítica da violência (Zur
Kritik der Gewalt134), e que é bem aproveitado por Jacques Derrida em
seu Força de lei135.
Segundo Walter Benjamin, em seu espetacular ensaio
supramencionado, há uma oscilação semântica constante a partir do
termo Gewalt entre os sentidos de violência e poder. Todo o seu esforço
é para demonstrar coma a origem do direito e do próprio poder judiciário
surge a partir da violência.
De modo cuidadoso, Derrida evidencia que a tradução
da palavra Gewalt proposta da forma como o fez Benjamin exige
precauções, pois Gewalt além de violência pode significar também o
domínio ou a soberania do poder legal, a autoridade autorizante ou
autorizada: a força de lei.
Em sua análise, Derrida demonstra como Benjamin pretende
colocar em questão o direito, mais propriamente, com todo rigor, uma
“filosofia do direito”. Para tanto, cria uma primeira distinção entre as
duas violências do direito: a violência fundadora, aquela que institui e
instaura o direito (die rechtsetzende Gewalt), e a violência conservadora,
aquela que mantém, confirma, assegura a permanência e a aplicabilidade
do direito (die rechtserhaltende Gewalt)136.
Logo em seguida, surgem duas outras distinções, a saber: a
distinção entre a violência fundadora do direito, que é dita “mística”; e
133
Willis Santiago Guerra Filho. (Anti-)Direito e força de lei. Op.Cit., p. 71.
134
Benjamin, Walter. Para una critica de la violencia, Trad. Héctor A. Murena, Buenos Aires:
Editorial Leviatán, 1995. p. 46.
135
Derrida, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla PerroneMoisés, São Paulo: Martins fontes, 2007. p. 72.
136
Derrida, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Op. cit., p. 73.
135
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
a violência destruidora do direito (Rechtsvernichtend), que é dita divina.
E, por fim, a distinção entre a justiça (Gerechtigkeit), como
princípio de toda colocação divina de finalidade (das Prinzip aller
göttlichen Zweckstzung) e o poder (Macht), como princípio de toda
instauração mística do direito (aller mythischen Rechtsetzung).
Segundo Derrida, o termo “crítica” (Kritik), utilizado por
Benjamin, não significa simplesmente uma avaliação negativa, rejeição
ou condenação legítimas de violência, mas um juízo, uma avaliação dos
meios de se julgar a violência.
Na realidade, o conceito de violência pertence à ordem simbólica
do direito, da política e da moral, de todas as formas de autoridade ou de
autorização ou pelo menos de pretensão de autoridade137.
3. A violência, o sacrifício e a sacralização
A par de tudo o exposto, é interessante ainda notar como René
Girard em sua obra A violência o sagrado138 (La violence et le sacré)
aborda o tema fundamental da violência na exteriorização da noção de
sacrifício praticada pelos homens.
Em seu texto, o referido autor trata sobre o mistério do sacrifício,
evidenciando nucleicamente, que só o sacrifício de alguém, “o bode
expiatório”, pode catalisar a violência de todos contra todos. Tudo pelo
sentimento mimético do ser humano de desejar o que o outro deseja, sem
se saber o por quê se deseja.139
Essa figura do “bode expiatório” é a que encontramos hoje
em nossa sociedade moderna, pois enquanto modernas e racionais, não
são mais crentes em magias e ritos, na forma de incluídos/excluídos da
sociedade, “ou seja, os que se acham internos e internados, em domicílios,
137
Derrida, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla PerroneMoisés, São Paulo: Martins fontes, 2007. pp. 74-75.
138
Girard, René. La violence et le sacré, Paris: Bernard Gasset, 1972.
139
Girard, René. La violence et le sacré, Paris: Bernard Gasset, 1972. pp. 13-14.
136
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
reformatórios, asilos, delegacias, prisões, hospitais e também naquela
instituição paradigmática dessas todas, segundo Giorgio Agamben (em
Homo Sacer, 1995), que é o campo de concentração, para refugiados ou
prisioneiros em geral, de status indefinido”140.
Giorgio Agamben, em sua obra-projeto, ao se referir ao Estado
de Exceção, evidência na obra Homo Sacer o estatuto paradoxal do
campo de concentração enquanto espaço de exceção, pois este consiste
em nada menos do que um pedaço de território que é colocado fora do
ordenamento jurídico normal, mas não é por causa disso que é torna-se
meramente um espaço externo141.
Esse movimento interno/externo evidencia que, na medida
em que seus habitantes foram despojados de todo o estatuto político e
reduzidos integralmente à vida nua, o campo é também – em termos
paradigmáticos – o mais absoluto espaço bio-político que jamais tenha
sido realizado, pois nele o poder não tem diante de si senão a pura vida
sem qualquer mediação. Daí a afirmação do autor de que o campo é o
próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política torna-se
bio-política e o homo sacer confunde-se virtualmente com o cidadão142.
Cabe ressaltar aqui que a noção bio-político143 utilizada por
Agamben possui uma matriz foucaultiana, e sua significação fica clara
no momento em que se instaura um novo modelo – de relacionamento
humano – que ressalta a tomada do poder sobre o homem enquanto ser
vivo e que tem no Estado do século XIX sua força catalisadora.
140
Guerra Filho, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei. Op. cit., p. 74.
141
Agamben, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 167.
142
Agamben, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Op. cit., p. 167.
143
Segundo Foucault: [...] uma das mais maciças transformações do direito político do século XIX
consistiu, não digo exatamente em substituir, mas em completar esse velho direito de soberania
– fazer morrer ou deixar viver – com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai
penetrá-lo, perpassá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente
inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer [...]. Michel Foucault. Aula de 17 de março de
1976. In. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 287.
137
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
4. As práticas governamentais e a fatalidade da força
politizadora
Na dimensão de tudo isso é que resta, por fim, o interessante
apontamento sobre o conceito de política em Carl Schmitt e o modo pelo
qual evidencia a potência de uma violência instauradora e mantenedora
do direito em nossa sociedade atual.
Em termos de legalidade, Schmitt defende que a forma especial
de manifestação do direito é a lei e a justificação específica da coerção
estatal é a legalidade, cabendo ao soberano decidir sobre o estado de
exceção, ou seja, na figura do soberano reúnem-se os seguintes elementos
que acontecem simultaneamente: supremo legislador, supremo juiz
e supremo mandatário, última fonte de legalidade e última base de
legitimidade144.
Para Schmitt, a razão última da política é a possibilidade extrema
da guerra, que se expressa na dualidade dos conceitos opostos de amigo/
inimigo.
Como bem nota Lorenzo Córdova Vianello, em Schmitt pode-se
encontrar quatro características fundamentais da contraposição amigo/
inimigo145.
A primeira seria que a distinção amigo/inimigo constitui
um elemento originário, ou seja, a confrontação proposta não é um
resultado de uma série de situações que se pode definir como políticas,
mas, pelo contrário, constitui a premissa para poder qualificar tais
situações como políticas. Essa dimensão define o fenômeno político
como toda situação conflitiva que pode ser reconduzida, em última
instância, a confrontação entre amigo/inimigo deve ser considerada
como pertencente à esfera da política.
144
Schmitt, Carl. Legalidade e legitimidade. Trad. Tito Lívio Cruz Romão. Belo Horizonte: Del
Rey, 2007. pp. 3-4.
145
Vianello, Lorenzo Córdova. Derecho y poder: Kelsen y Schmitt frente a frente, México: FCE,
UNAM, IIJ, 2009. pp. 213-217.
138
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Em segundo lugar, o dualismo amigo/inimigo é uma parelha
de categorias autônomas, que não pode ser comparada a dicotomias de
outras espécies, como da moral, da estética ou da economia. Em outras
palavras, ser amigo não significa ser bom, belo ou útil, da mesma maneira
que ser inimigo não significa ser mal, feio ou inútil.
Os conceitos amigo e inimigo são antitéticos, é dizer, que se
excluem reciprocamente e são exaustivos. Enquanto antitéticos, os
conceitos definem um ao outro através da negação e da contraposição
em relação ao outro. Isto é importante, pois, enquanto antitéticos não é
possível se criar um meio termo para amigo e inimigo.
Por fim, a quarta característica seria a de que na dicotomia há
um conceito mais forte do que o outro, no caso, o de inimigo, pois a partir
dele é que se consegue atingir a contraposição ao conceito de amigo.
Nesta dimensão, o conceito de inimigo tem uma prioridade lógica sobre
o conceito de amigo.
A par destas considerações iniciais, tem-se a divisão da política
concebida como a expressão do conflito e esta pode se desenvolver de
forma especial em dois campos diversos, a saber: no campo internacional
(“alta política”) e no campo nacional, palco de uma política concebida
pelo contrário, como algo degradado a extremos “parasitários” e
“caracturais”146.
E mais, isso revela que somente a partir do Estado um povo
pode expressar a decisão política fundamental: a decisão sobre o amigo/
inimigo.
A dicotomia entre amigo e inimigo é que dá, então, a tônica da
existência de um povo, pois a identidade de um coletivo é determinada
pela confrontação e pela luta contra um inimigo comum, ou seja, um povo
pode se considerar unido politicamente quando todos os seus membros
possuem os mesmos inimigos e os combatem e, por outro lado, que a
146
Vianello, Lorenzo Córdova. Derecho y poder: Kelsen y Schmitt frente a frente. Op. cit., p. 220221.
139
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
derrota e o aniquilamento do inimigo pode confirmar a existência de um
grupo de homens constituídos em um povo, surgindo, assim, a essência
da política como mors tua vita mea147.
O grande problema deste articulado pensamento de Schmitt,
que remete a relação de seu conceito político, é a de que tragicamente
para se identificar o elemento forte, inimigo, qualquer diferença pode ser
utilizada para determiná-lo. Isto é, qualquer diversidade de tipo étnico,
religioso, cultural ou econômico pode ser utilizada e enfatizada para
estabelecer quem é o outro que se deve combater e aniquilar148.
Essa dimensão politizada entra num esquema fatal reconhecido
hodiernamente em práticas governamentais que podem ser exemplificadas
nas três seguintes situações – a primeira delas já trabalhada de acordo
com a proposta de Agamben: a) a identidade racial construída pelo
nazismo para justificar a aniquilação dos judeus, dos ciganos e dos
homossexuais durante o Terceiro Reich, b) as identidades étnicas sobre
as quais se baseiam as reivindicações de autonomia do Estado da ExIugoslávia, precursoras de guerras e de limpezas étnicas e c) a guerra
global declarada pelos Estados Unidos a partir dos atentados terroristas
do 11 de Setembro, criando a chamada guerra contra o terror.149.
O direito, nessa perspectiva intrinsecamente relacionada à
violência, é atingido pela capacidade manipuladora das mencionadas
instituições, criadas modernamente e que dissimulam a complexa
prisão simbólica de nossas pulsões, exasperada pelos meios de
comunicação em massa e pela capacidade dissimuladora de uma das
principais instituições ficcionais responsáveis pela regulação dos
seres humanos, o próprio direito.
147
Vianello, Lorenzo Córdova. Derecho y poder: Kelsen y Schmitt frente a frente. Op. cit., p. 225.
148
Vianello, Lorenzo Córdova. Derecho y poder: Kelsen y Schmitt frente a frente. Op. cit., p. 226.
149
Vianello, Lorenzo Córdova. Derecho y poder: Kelsen y Schmitt frente a frente. Op. cit., p. 227.
140
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Referências
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Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
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WEBER, Max. Ensaios de sociologia, 3. ed., Trad. Waltensir Dutra, rev.
técnica de Fernando Henrique Cardoso, Rio de Janeiro: LTC , 1974.
141
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
______________. Os três tipos puros de dominação legal. Gabriel Cohn
(Org), 7. ed., n. 4., São Paulo: Ática, 2003.
142
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
7
A hermenêutica jurídica na perspectiva pós-positivista:
a judicialização das relações sociais
Haradja Torrens
Douranda em Direito (PUC-SP). Mestrado em Direito (Direito e
Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (2001). Diretora Executiva
do Instituto Latino-Americano de Estudos Constitucionais. Coordenadora de
Pesquisa do Curso de Direito da Faculdade Farias Brito.
143
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
1. Hermenêutica e norma jurídica: da regra de conduta
ao ordenamento jurídico pós-positivista
O filósofo Raimundo de Farias Brito150 conceitua o ato de pensar,
a própria filosofia, como uma atividade permanente do espírito humano,
tomando esta afirmativa como fio condutor, não provoca estranhamento
à dificuldade em apontar a origem histórica da Hermenêutica, pois sendo
a interpretação uma atividade ligada ao próprio pensar e à produção
de significado, se afigura impreciso determinar a partir de quando a
interpretação passa a ser reconhecida como técnica específica, a par do
próprio pensar. A etimologia do vocábulo não é precisa, mas é possível
alcançar conceitos similares em sociedades anteriores até termo o grego
ermenéia e a forma latina correspondente Interpretatio151. Cogita-se ainda
atribuir a origem do termo ao mito grego de Hermes, filho de Zeus e
intérprete das palavras dos Deuses para os mortais, o primeiro intérprete,
hábil no manejo do conhecimento e da argumentação.
Conceituada por Scheleiermacher152 como “arte da compreensão,
arte que não visa o saber teórico, mas sim seu uso prático, a praxes ou a
técnica da boa compreensão de um texto falado ou escrito”, a Hermenêutica
desenvolveu-se combinando a investigação linguística, histórica e
filosófica. O emprego da Hermenêutica Jurídica contempla a racional
aplicação do Direito através de um procedimento metodológico que
busca analisar as interpretações possíveis para escolha da mais adequada
ao objeto, livrando o intérprete de falácias, vícios e prejulgamentos, para
alcançar o significado acima da linguagem. Diante de vários métodos
interpretativos (literal, gramatical, histórico, sistemático, teológico,
sociológico) a hermenêutica estuda e valora significados com a finalidade
de ressaltar a melhor interpretação.
150
Filósofo cearense, autor de “A Filosofia como Atividade Permanente do Espírito Humano”.
Trabalho publicado em l895.
151
Cf. Sílvio de Macedo. In Enciclopédia Saraiva do Direito. vol. 41, p. 145.
152
SCHELEIERMACHER. 2010, p. 67.
144
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Recentemente, o reconhecimento de normas principiológicas
nos ordenamentos jurídicos aportou novo patamar hermenêutico. A
concepção de ordenamento jurídico enquanto conjunto de normas de
conduta e normas de estrutura foi ampliado com a percepção de normas
que traçam diretrizes políticas, assim como, normas que consagram
princípios e valores. Assim, o Direito passou a ser compreendido tanto
(a) textualmente, na formulação de lei reguladora da conduta, como, (b)
axiologicamente, a partir do conteúdo valorativo da norma que consagra
as dimensões da dignidade humana, impulsionando o desenvolvimento
hermenêutico desta nova categoria de norma principiológica.
O próprio conceito de direito positivado ou direito posto foi
modificado, podendo assumir a forma tradicional de norma sancionadora
da conduta (regra jurídica), ou trazer uma norma consagradora de alguma
dimensão da moralidade pública ou da equidade política presente na norma
constitucional: igualdade, solidariedade, democracia e a dignidade. Toda
a formulação pós-positivista sobre a interpretação e aplicação do Direito
decorre da releitura da terminologia “direito posto”, que deixa de ser
considerada sob a lente positivista para atingir as categorias normativas
de substrato axiológico. Tal processo foi percebido mundialmente
a partir da incorporação do conteúdo moral dos direitos humanos nas
constituições ocidentais. No Brasil, o termo “pós-postivismo” foi tratado
originalmente por Willis Santiago Guerra Filho em artigo denominado
“Pós-modernidade, pós-positivismo e a Filosofia do Direito”, publicado
em Nomos - Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC entre
1995 e 1996, no mesmo ano, abordado por Paulo Bonavides, na edição
atualizada do Curso de Direito Constitucional.
O desenvolvimento hermenêutico na interpretação e aplicação
do Direito, não apenas aprimorou a noção de justiciabilidade, mas
também a noção de direito enquanto norma, renovando o próprio
significado de direito posto. A utilização do prefixo pós junto ao termo
positivismo busca identificar esse novo parâmetro que desponta diante
145
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
da realidade multifacetada da sociedade contemporânea e impõe às
doutrinas jurídicas contemporâneas, a necessidade da distinção entre a
formulação tradicional de norma e a norma de natureza principiológica.
A Constituição Federal brasileira de 1.988 é um claro exemplo
de norma de conteúdo principiológico. Já no artigo primeiro consagra
a República um Estado democrático de direito sob o fundamento da
dignidade da pessoa humana, aponta como objetivo o princípio da
igualdade: 3º. IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Representativa do processo histórico de constitucionalização dos
Direitos Humanos, a Constituição da República Federativa do Brasil
impõe o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial na categoria
principiológica.
Na teoria do Direito, o percurso traçado é bem observado a partir
da sequencia positivista estabelecida diante do trajeto Kelsen – Hart
– Dworkin, que pode ser relacionado respectivamente ao positivismo,
neopositivismo e pós-positivismo jurídico. Kelsen é notadamente o autor
mais próximo do rigor normativo, afastando o conteúdo jurídico da Moral.
Ao analisar a Teoria Pura do Direito, Kelsen ressalta a inexistência de um
critério objetivo para distinção entre o justo e o injusto e afasta da Teoria
Pura qualquer tentativa de valorar o Direito positivo, afirmando que essa
tarefa pertenceria à religião ou metafísica social e tornando impróprio
cogitar a presença de princípios jurídicos no Direito positivado:
[...] a questão quanto ao que é o Direito positivo, o Direito de
certo país ou o Direito em um caso concreto é uma questão de um
ato criador de Direito que teve lugar em certo tempo e espaço. A
resposta a essa questão não depende dos sentimentos dos sujeitos
que respondem; ela pode ser verificada por fatos objetivamente
verificáveis, ao passo que a questão quanto a ser justo o Direito
de certo país ou a decisão de certo tribunal depende da idéia
146
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
de justiça pressuposto pelo sujeito que responde, e essa idéia
baseia-se em função de sua mente153.
H. Hart desenvolveu uma teoria positivista que constata a
existência de uma segunda espécie normativa a par das regras de
condutas que ficou conhecida como neopositivismo. Para ele, as
duas espécies normativas seriam então as regras primárias e as regras
secundárias. As primárias impõem um dever jurídico aos indivíduos,
enquanto as secundárias são potestades para a criação, modificação ou
determinação dos efeitos das regras primárias. As espécies normativas
estariam organizadas em uma estrutura hierárquica na qual seria possível
delinear uma “regra de reconhecimento”, tal regra seria o fundamento de
validade da Constituição e poderia designar algum conteúdo moral ou
principiológico154.
Posteriormente, a partir da crítica à doutrina neopositivista do
inglês Herbert Hart, tornou-se paradigmática a contribuição formulada
por Ronald Dworkin diferenciando as espécies normativas em relação
ao conteúdo, distinguindo regras jurídicas, princípios e diretrizes (rufles,
principles e policies) como espécies do gênero “norma ou proposições
jurídicas”, os standards155.
Reportando-se à teoria de Dworkin, Willis S. Guerra Filho (1999)
relata que a “superação dialética entre o positivismo e jusnaturalismo”
trouxe para a Teoria do Direito a distinção das normas jurídicas que são
153
(KELSEN, 1997. p. 294). Kelsen foi um dos principais expoentes da doutrina formalista do
Direito, Positivismo Jurídico, no título “A doutrina do Direito Natural e o Positivismo Jurídico”
publicado originalmente em 1945 em Teoria Geral do Direito e do Estado (General Theory of Law
and State, Harvard University Press), Kelsen traz argumentos fundamentais da Teoria Pura do
Direito em congruência ao formalismo e rigor cientificista daquele momento.
154
Na obra “Conceito de Direito”, Hart aborda a possibilidade de incorporar a principiologia de
valores ao Direito, denotando o teor suavizado de sua tese positivista.
155
Dworkin explicita a terminologia detalhadamente no texto “Is Law a System of Rules?” (1997),
aduzindo que é mais comum utilizar o termo ‘princípio’ genericamente, para referir a todo o
conjunto de proposições diferentes das regras, ocasionalmente, chama de ‘diretriz’ aquele tipo
de proposição que determina objetivos a serem alcançados, geralmente um desenvolvimento em
algum setor econômico, político ou social da comunidade.
147
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
regras daquelas que são princípios. As primeiras possuem uma “estrutura
lógica-deôntica” onde há uma descrição de uma hipótese fática e previsão
da consequência jurídica. Os princípios não descrevem situações fáticas
ou jurídicas, mas valores que adquirem validade objetiva ou positividade.
O princípio se reveste de toda a normatividade de uma regra,
portanto, é uma proposição que deve ser observada, não porque irá
desenvolver ou assegurar uma situação econômica, política, ou social
desejável, mas principalmente porque é um requisito de justiça, de
equidade ou de outra dimensão de moralidade, neste ponto determinante
à atuação judicial. Os princípios são normas vigentes e eficazes, aptas a
produzirem efeitos no mundo fático, cuja concretização fica pendente
apenas da interpretação e da aplicação. A ampla repercussão da doutrina
de Ronald Dworkin fez denotar a superação do conceito tradicional de
sistema jurídico, que veio ser denominado pós-positivismo jurídico.
2. A suavização do positivismo: neopositivismo e póspositivismo
Ao desenvolver uma teoria sobre Direito que pudesse ser aplicada
em qualquer regime, Hart (1997, 77-99) reconhece a concepção até então
dominante, que em muitos exemplos a norma detém o enunciado de uma
coação ou de uma obrigação não opcional. No entanto, enfatiza que o
Direito não se resume a normas coativas, pois identifica a existência de
normas de natureza diversa, enquanto distingue regras primárias e regras
secundárias. As regras primárias exigem do indivíduo uma ação ou
abstenção que independe da vontade humana. As regras secundárias não
atuam diretamente em relação ao indivíduo, mas em função da introdução,
modificação, extinção, incidência e controle das regras primárias. Assim,
enquanto as primeiras impõem deveres e atuam no âmbito das ações
humanas, as outras conferem poderes que criam e modificam aqueles
deveres, notadamente, os poderes públicos de legislação e de jurisdição
148
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
e os poderes privados exercidos nas relações intersubjetivas.
O conjunto das regras primárias e secundárias forma o núcleo
de cada sistema jurídico. Quando reciprocamente consideradas essas
regras de natureza diversa formam uma importante ferramenta para a
identificação da teoria jurisdicional e política predominante no sistema.
Vislumbradas em conjunto, as regras secundárias criam e modificam as
regras primárias, determinam a tutela dessas e até obrigam o indivíduo à
satisfação das regras primárias. Ademais, as regras secundárias oferecem
critérios que convalidam fática e racionalmente as regras primárias. Não
obstante, Hart (1997, p. 102-105) adverte para o fato de que o sistema
não é apenas a união de regras primárias e secundárias, pois acomoda
ainda elementos de outras ordens, ou de natureza diversa.
Conforme a teoria desenvolvida por H. Hart, as regras secundárias
podem ser regras de modificação, de jurisdição ou de reconhecimento.
As regras secundárias de modificação estão relacionadas à atuação
legislativa, ou seja, à criação, alteração e extinção das regras primárias.
As regras secundárias de jurisdição se referem à organização judiciária,
bem como à imposição do cumprimento das regras primárias através da
tutela jurisdicional. Já a regra secundária de reconhecimento identifica
as regras como tais através de critérios determinados como o processo
legislativo adequado, a observância prática costumeira, a ressonância
das regras nas decisões precedentes e, na forma prioritária dos sistemas
constitucionais, a conformação com a Constituição. O traço específico
que faz de Hart um neopositivista está no que ele denominou “regra
de conhecimento”, pois através dela o autor se expressa para admitir
o conteúdo axiológico na norma jurídica ainda no arcabouço de uma
doutrina positivista.
Apesar de não refutar o positivismo, Hart ultrapassa a
separação entre o Direito e a Moral imposta ao longo da teoria positivista
e inaugura a comunhão desses elementos no instrumento que vislumbrou
para a convalidação do sistema jurídico, tudo sem se afastar do Direito,
149
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
uma versão suavizada do positivismo, contudo não refuta as teorias
positivistas precedentes. A relação entre a regra jurídica e a regra de
reconhecimento determinará a validade da regra primária. Portanto,
no conceito de Direito desenvolvido, a validade da regra depende da
satisfação dos critérios contemplados na “regra de reconhecimento”.
Já a eficácia só será dimensão de validade das regras de um sistema
se estiver inclusa nos critérios oriundos da regra de reconhecimento.
A própria regra de reconhecimento depende da anuência prática dos
tribunais, dos administradores públicos e dos indivíduos em identificar
as regras como tais através dos critérios determinados pela regra de
reconhecimento. Assim, enquanto a observância oficial das regras
secundárias deve consistir em uma prática consistente e reiterada, a
observância das regras primárias pelos indivíduos pode contemplar
divergências, sendo importante apenas o cumprimento pela maioria
e somente no que tange às regras válidas; isto porque a dissonância
estatal sobre os critérios da regra de reconhecimento produziria uma
inconsistência que abalaria todo o sistema jurídico em virtude do caos
oriundo das decisões oficiais contraditórias.
No intuito de desenvolver um conceito ou concepção de Direito
aplicável a qualquer sistema jurídico, Hart enfatiza a possibilidade de
validade do Direito ainda que desvencilhado da Moral, na hipótese da
regra de reconhecimento não contemplar a moralidade como critério
de validade daquele sistema, portanto, uma teoria jurídica que não
discorda da possibilidade de regras ou decisões injustas. A regra de
reconhecimento seria passível de conteúdos diversos, conforme o
sistema jurídico ao qual ela se reporte ou reconheça, o conteúdo moral
não seria imperioso, apenas as exigências do devido processo legislativo,
equiparável ao pedigree da norma seriam necessárias. É justamente a
relação do Direto com a Moral o ponto que diferencia essencialmente a
concepção de Direito em Hart para Dworkin. A teoria interpretativa de
Ronald Dworkin determina que a validade de uma proposição jurídica
150
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
dependerá diretamente das premissas situadas nos princípios dos quais
decorre, além disso, deve concorrer para a observância da melhor prática
institucional e da melhor justificação moral. Assim, toda norma depende
de uma justificativa moral.
Dworkin estabelece a interpretação do Direito em três fases: na
primeira, a fase pré-interpretativa, quando o intérprete procura identificar
os elementos da proposição jurídica; a segunda fase, quando o intérprete
busca a justificação da proposição; e a terceira, de adequação dos
elementos à justificação da proposição. A possibilidade de uma norma
desvinculada da Moral só existiria na fase pré-interpretativa, a norma
injusta não resistiria à segunda fase e tampouco alcançaria a terceira,
determinando uma teoria interpretativa que refuta qualquer perspectiva
de validade de uma norma injusta, a qual sucumbe logo na primeira etapa
do processo interpretativo, jamais se afirmando como Direito.
A teoria criada por Dworkin (1997, p. 145) pode ser traduzida
com “Teoria Integrativa do Direito”, denominada também de “Teoria da
Integração”, tem como traço distintivo aplicar a moralidade como critério
determinante para a melhor resposta perante cada sistema jurídico. São
duas as dimensões de justificação de uma resposta: uma dimensão de
enquadramento legal e outra de moralidade. A primeira proporciona uma
resposta que consista na melhor justificação legal dentre as existentes,
mas como comumente os sistemas jurídicos oferecem duas ou mais
respostas igualmente válidas na aplicação do Direito ao caso concreto,
será a segunda dimensão, ao analisar as respostas diante dos princípios
morais, que solucionará o problema da multiplicidade de respostas.
Diante de justificações igualmente satisfatórias haverá uma superior
como teoria política ou moral, e será aquela que melhor determina os
direitos que os indivíduos realmente detêm. Através dessas dimensões
e do sopesamento de respostas, é possível determinar qual a melhor
resposta para casos difíceis e afastar a discricionariedade do exercício
da jurisdição. Neste ponto se encontra a principal divergência entre as
151
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
doutrinas desenvolvidas por Hart e Dworkin, a utilização da dimensão da
moralidade como critério propõe impedir que as lacunas do ordenamento
jurídico sirvam de subterfúgio para prática de atos moralmente
condenáveis. Ao inserir na interpretação jurídica atributos morais e
políticos se possibilita à comunidade a construção do Direito embasada
na consciência política e jurídica e se determina ao indivíduo que aja
de conformidade com a moralidade política, tornando desnecessária a
constante criação e reformulação das leis.
3. Implicações hermenêuticas de um sistema hierárquico
de regras e princípios: a norma de matriz principiológica
e a judicialização do direito
O constitucionalismo contemporâneo tornou as constituições
republicanas o ambiente natural de princípios que delineiam o Estado
Democrático de Direito, assim, todo o ordenamento jurídico recebe o
influxo principiológico. As restrições lógico-formais impostas pela
natureza das leis impulsionaram a importância e a valorização dos
princípios jurídicos para o Direito, sejam eles originados de normatividade
expressa ou decorrentes de uma regra ou de outro princípio. Eros Grau
(1988, p. 71) assinala a existência de princípios no ordenamento jurídico
ainda que não expressamente enunciados. Assim, tanto pertencem
à ordem jurídica, os princípios referidos pela Constituição, prévios,
como aquele descoberto, um verdadeiro direito “pressuposto” ao direito
posto. Integram a ordem constitucional, indistintamente, os princípios
jurídicos positivados, identificáveis no texto constitucional; bem como
os princípios extrapositivos, não designados expressamente, porém
plenamente aplicáveis.
Bonavides (2006, p. 259-266) ressalta a necessidade de se
reconhecer a hegemonia e a supremacia dos princípios na pirâmide
jurídica por representarem a “mais alta normatividade que fundamenta a
152
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
organização do poder”. Remetendo ao processo histórico, consigna que
a juridicidade dos princípios passou por três distintas fases: a primeira,
a jusnaturalista, quando os princípios estavam circunscritos a uma
formulação completamente abstrata e uma dimensão ético-valorativa; a
segunda, a juspositivista, quando os princípios ingressaram nos Códigos,
porém apenas como fonte normativa complementar ou subsidiária; e,
finalmente, a pós-positivista, nas últimas décadas do século XX, em
acentuada hegemonia axiológica, reconhecidamente com conteúdo de
direito, com força vinculante e superlativo a todo o ordenamento jurídico
das democracias, principalmente, a partir da Constituição.
A essencialidade dos princípios, assim como a possibilidade
de suscitar princípios não expressos também é ilustrada também por
Perelman (1999, p. 103) tomando como exemplo os excessos do nacionalsocialismo, os crimes abomináveis cometidos por oficiais de Hitler, os
quais, apesar da ausência de disposições legais expressas não poderiam
escapar à justiça. Os oficiais foram julgados e condenados quando os
juízes de Nuremberg afirmaram a preexistência de um princípio geral
a proteger a dignidade humana, inerente à natureza de todas as nações
instituídas a partir do Direito.
Seguindo a lógica axiológica dos princípios, decorre que
eles também influenciam a interpretação do Direito em uma nova
hermenêutica. Canotilho (1993, p. 119) consiga aos princípios uma
função interpretativa, a “idoneidade normativa irradiante”, e oferece uma
substancial distinção entre princípio e norma, a completar que “a distinção
entre norma e princípio baseia-se na objetividade e presencialidade
normativa do último, independentemente da consagração específica em
qualquer preceito particular”. O autor faz observações que restringem
características amplamente atreladas às diferenciações tradicionalmente
traçadas entre princípio e norma, (i) o fato dos princípios necessitarem
de uma concretização normativa posterior, pois muitas normas também
carecem de alguma regulação; (ii) a aplicação das normas no sistema de
153
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
tudo-ou-nada, principalmente no que tange às normas constitucionais;
(iii) as gradações valorativas dos princípios por discordar da ponderação
de valor sobre bens constitucionais igualmente valiosos. Para Canotilho,
a existência diferenciada dos princípios decorre do maior grau de
abstração, da aplicação mediata (através de outros princípios e regras),
do conteúdo valorativo, da possibilidade existência implícita e do nãoafastamento de princípios em choque.
A supremacia das normas constitucionais e dos valores que
consagram, implica em substancial alteração do papel do Estado, do
conceito de Constituição e da hermenêutica jurídica156. No Brasil,
A Constituição Federal de 1988 sedimentou a abertura democrática
do Estado através da consagração dos valores do constitucionalismo
contemporâneo, das declarações universais de direitos humanos e das
lições de equidade vertidas nos textos filosóficos visualizada com a
positivação do direito à “vida”, “dignidade”, “liberdade” e “igualdade”.
Essa nova normatividade implicou em outra sintaxe a ser verificada a
partir do teor humanista contido nos direitos de liberdade, igualdade
e solidariedade consagrados através de normas principiológicas e
constituições democráticas.
A crítica que procura refrear essa nova perspectiva hermenêutica
está justamente na oposição à ampliação da jurisdição, sendo comum
que a doutrina, a mídia e a sociedade discutam a atividade jurisdicional
questionando se o judiciário está tomando para si a determinação de
políticas públicas, passando a legislar e a impor a ação executiva onde
anteriormente residia a discricionariedade administrativa e legislativa
dos representantes eleitos. Poderia o juiz deferir diretamente a fruição
156
Bonavides (2006, p.398-399) Ressalta que “na Velha Hermenêutica interpretava-se a lei, e
a lei era tudo, e dela tudo podia ser retirado que coubesse na função elucidativa do intérprete,
por uma operação lógica, a qual, todavia, nada acrescentava ao conteúdo da norma; em a Nova
Hermenêutica, ao contrário, concretiza-se o preceito constitucional, de tal sorte que concretizar
é algo mais do que interpretar, é em verdade interpretar com acréscimo, com criatividade. Aqui
ocorre e prevalece uma operação cognitiva de valores que se ponderam. Coloca-se o intérprete
diante da consideração de princípios, que são as categorias por excelência do sistema constitucional.
154
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
de um direito não previsto expressamente? Estariam os juízes brasileiros
legislando? Estamos diante de julgamentos políticos?
Assim, os principais argumentos opostos ao pós-positivismo
hermenêutico podem ser resumidos em três aspectos: (i) se as decisões
políticas forem retiradas dos legisladores e transpostas para os tribunais,
o poder político dos eleitores estará diminuído e as soluções judiciais
sobre escolhas políticas abalariam o exercício da soberania porquanto
careceriam de representatividade; (ii) o julgamento fundamentado em
princípios alargaria a atuação jurisdicional permitindo o subjetivismo
e a discricionariedade judicial na aplicação do direito, gerando incerta
jurídica; e, (iii) o conteúdo axiológico das normas principiológicas
demandariam que os magistrados fossem, na realidade, filósofos.
3.1 A politização do direito
O primeiro óbice consiste em argumentos engendrados a partir
dos resquícios lógico-formais da interpretação jurídica dogmatista, na
concepção estanque do direito e na percepção restritiva do ordenamento
jurídico como conjunto de normas que não comporta dimensões
axiológicas. Esta objeção pode ser combatida por três parâmetros
presentes no próprio sistema judicial: primeiramente, a proibição de non
liquet a determinar que os juízes resolvam os casos que lhe são propostos;
em segundo lugar, a obrigatória a motivação de toda decisão judicial
como atributo do Estado de Direito; e por fim, a situação fática, pois
muitas questões genuinamente políticas atingem os tribunais antes que o
parlamento tenha possibilidade de cogitar uma lei.
A judicialização dos conflitos sociais não pode ser confundida
com ativismo jurisdicional, pois é a natureza do sistema que conduziu a
ampliação da jurisdição. Do fenômeno de transposição do valor para a
norma advêm implicações hermenêuticas que resultam na ampliação da
função jurisdicional, pois como magistrado detém a tarefa de apreciar
155
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
toda lesão ou ameaça de lesão a direito157, por decorrência da ampliação
do conteúdo normativo, estará obrigado a julgar direitos decorrentes
de categorias axiológicas assim como os direitos inerentes às regras de
conduta. Tal circunstância conduziu ao Poder Judiciário questões que
tradicionalmente eram definidas pela atuação dos órgãos legislativos e
executivos; conflitos que versavam, direta ou indiretamente, sobre o direito
à saúde, biossegurança, ações afirmativas, racismo, privacidade, aborto
de anencéfalos suscitaram a tutela jurisdicional. A situação é maximizada
pelo sistema de controle de constitucionalidade brasileiro que, além do
controle por ação direta, que conduz determinadas matérias diretamente
ao Supremo Tribunal Federal para exame de constitucionalidade em tese,
acolheu ainda formulação abrangendo o controle difuso e incidental de
constitucionalidade, dotando todo magistrado de jurisdição constitucional
através da prerrogativa-dever que compete afastar a lei que se mostre
inconstitucional diante do caso concreto.
Em contrapartida, a atuação do magistrado, já nasce
limitada pela regra geral da inércia, que determina ao juiz agir apenas
mediante provocação158. É defeso ao Poder Judiciário se manifestar
espontaneamente, promover o exame de constitucionalidade, pois toda
a atuação da magistratura decorre de provocação, portanto, não se pode
considerar o Judiciário o responsável pela ampliação da função de julgar.
O sistema se auto-regula e impõe limitações ao exercício da função
também pelo princípio da congruência processual, obrigando o juiz a
decidir a lide dentro dos limites em que foi proposta159.
A obrigatoriedade que toda decisão seja fundamentada é outra
característica do Estado de Direito que limita e legitima a decisão judicial.
157
CF, ART. 5º XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a
direito.
158
CPC, art. 2º: Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado
a requerer, nos casos e forma legais. E ainda, art. 262: O processo civil começa por iniciativa da
parte, mas se desenvolve por impulso oficial.
159
CPC, art. 128: O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer
de questões, não suscitadas, a cujo respeito à lei exige a iniciativa da parte.
156
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
A decisão judicial deve encontrar perfeita ressonância no ordenamento
jurídico. Os princípios constitucionais, comuns às sociedades democráticas
contemporâneas, funcionam como alicerces dos direitos fundamentais,
enquanto a formulação em Estado Democrático de Direito representa o
compromisso com a efetividade dos direitos fundamentais através dos
dois princípios interdependentes que orientam a dialética desse Estado:
legalidade e democracia. Ao motivar a decisão, o magistrado busca o direito
aplicável em concreto no ordenamento jurídico, e remete a uma ordem
superior de regras e princípios constitucionais e valores democráticos,
por isso, a atuação do magistrado deve ultrapassar a mera técnica para
possibilitar a aproximação do Direito à Sociedade, realizando os valores
das declarações de direitos incorporadas ao ordenamento jurídico.
Perelman (1999, p. 191) ressalta que o papel da lógica na
argumentação judicial, não seria a decisão judicial o espaço para uma
lógica subjetiva de livre convencimento, mas para a lógica contemplada
pelo raciocínio direcionado à justiça e à paz social. O julgador deve
buscar tornar aceitável sua decisão através da motivação, considerando
as pretensões em juízo, as discussões sociais, os precedentes judiciais.
A motivação deve ser razoável, buscar estabelecer a paz social, e, em
razão da força da coisa julgada, procurar se estabelecer no tempo e evitar
arbitrariedades e injustiças.
Por fim, é impossível negar que a cada dia torna-se mais comum
que os juízes sejam chamados a decidir situações novas derivadas de casos
ainda não regulados pela legislação, são situações concernentes às políticas
sociais, que pendem pela prestação da tutela jurisdicional. Os juízes
serão sempre chamados a decidir questões que implicam a determinação
de uma política pública quando lides que propugnam interesses coletivos
como saúde, educação, transporte, moradia alcançam o Poder Judiciário;
e, ainda, nas lides que versam sobre direitos individuais que repercutem
160
160
Além da legislação processual, (CPC, art. 165), a Constituição Federal, consagra como garantia
à Justiça no artigo 93, IX: todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e
fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade(...).
157
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
para toda uma classe, como o direito do indivíduo como consumidor ou a
preservação ambiental. No sentido ora expresso, um julgamento pode ser
considerado político e ainda assim válido e necessário; porém não seria
político no sentido de ser um julgamento eivado de interesses obscuros
ou, político porque segue orientações político-partidárias. O juiz, embora
indivíduo inserto na conjectura política, não decidirá a lide em virtude da
interpretação de seu partidarismo político, mas sobre princípios políticos
que apelam para direitos políticos e argumentos de política social.
Na última década, vários casos de ampla repercussão social
demandaram respostas do Poder Judiciário e foram solucionados através
da hermenêutica dos princípios. Exemplificativamente, foi o que ocorreu
quando o princípio da dignidade da pessoa humana orientou o debate
sobre o direito à interrupção da gravidez de fetos anencéfalos em face
da proibição geral de aborto no julgamento da Ação de Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental No. 54. Em manifestação
por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade No.
3.510, enquanto se discutia a constitucionalidade da Lei de Biossegurança
perante o Supremo Tribunal Federal, os ministros entenderam que as
pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida,
tampouco a dignidade da pessoa humana. Ainda versando sobre dignidade,
ao julgar o Habeas Corpus 8.2424, o Supremo Tribunal Federal restringiu
a liberdade de expressão e proibiu a circulação de livros antissemitas
considerando racismo divulgar e comerciar livros “fazendo apologia de
ideias preconceituosas e discriminatórias” contra a comunidade judaica
161
. O Supremo Tribunal se manifestou sobre políticas públicas ao julgar
o pedido de declaração da constitucionalidade da Resolução nº 7/ 2006,
161
Ementa: habeas-corpus. Publicação de livros: antissemitismo. Racismo. Crime imprescritível.
Conceituação. Abrangência constitucional. Liberdade de expressão. Limites. Ordem denegada. “O
preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”,
dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como
sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana
e da igualdade jurídica.”. HC 82424/RS. Habeas corpus. Relator: Min. Moreira Alves. Julgamento: 17/09/2003. Orgão Julgador: Tribunal Pleno. STF.
158
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
do Conselho Nacional de Justiça, que vedou o nepotismo no âmbito do
Poder Judiciário na Ação Declaratória de Constitucionalidade No. 12.
Igualmente, ao julgar a homologação da demarcação de terras indígenas
na faixa de fronteira conhecida como região de Raposa/Serra do Sol, na
Petição No. 3.388.
As teorias pós-positivistas enfatizam a concretização do
sistema de valores advindos dos princípios constitucionais, propiciando
que se efetive a democracia através de decisões políticas que são
legítimas enquanto decorrentes da decisão política fundamental, das
normas principiológicas e da Constituição Federal. O fundamental é que
os magistrados, ao decidir questões que invoquem um posicionamento
político, o façam desprovidos do interesse de agradar a um grupo
partidário, mas sempre através da atuação racional e metodologicamente
orientada a partir da hermenêutica jurídica.
3.2 Subjetivismo e discricionariedade judicial
Outra objeção ao pós-positivismo consiste considerar que
a hermenêutica principiológica propugne por um sistema aberto
e subjetivo de interpretação do Direito como se os julgamentos
fundamentados em princípios autorizassem a criação judicial
do Direito, a atuação discricionária, facultando ao juiz traçar
subjetivamente seu juízo de equidade.
Ao contrário, uma análise detalhada sobre o dogma da
completude indica que é na formulação estritamente positivista que se
permite casos julgados sem fundamentação em norma precedente. As
teorias positivistas asseveram a construção do ordenamento jurídico a
partir de dois tipos normativos, as normas de conduta e as normas de
estrutura ou competência. Bobbio (1997, p. 51-56) faz referência a
juízos morais como “juízos de equidade” nos quais o juiz está autorizado
a resolver a controvérsia sem fundamentar a decisão em uma norma legal
159
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
preestabelecida. Segundo Bobbio, a equidade seria uma esfera alheia ao
Direito que residiria em uma autorização para que o juiz produzisse o
próprio direito, e, mais gravemente, ultrapassando a limitação material
das normas existentes. O juízo de equidade seria utilizado em casos de
lacunas ideológicas ou de direito a ser estabelecido (quando o intérprete
depara-se com a falta de uma solução) e lacunas reais, de direito já
estabelecido, caso em que a norma apresenta uma solução, porém
refutada pelo intérprete que considera injusta a solução atrelada à norma
existente. A saída para contornar a existências de lacunas no ordenamento
composto exclusivamente de regras contraria o fundamento positivista,
a segurança jurídica, pois os juízos de equidade autorizam a criação
judicial do direito ex post facto, aferindo o direito discricionariamente,
após a ocorrência do fato.
As teorias pós-positivistas determinam que a argumentação
judicial seja racional, reduzindo a incerteza e a insegurança de um
regime plural. Ao invés de atribuir aos juízes e tribunais liberdade para
inventar o Direito, impõem uma prática que exige coerência e mantém
a subordinação do juiz a um sistema jurídico que não é apenas um
conjunto de regras, mas de normas que são regras e princípios. Diante do
redimensionamento da expressão direito posto deixam de existir lacunas
axiológicas no ordenamento jurídico, a hermenêutica pós-positivista
corrobora para o Judiciário exercer o papel de órgão que se legitima pela
atuação não discricionária e pelo respeito ao devido processo substantivo.
O sistema judiciário, em especial nos tribunais superiores, se estabelece
a partir do exercício de uma função política de renovação e validação do
ordenamento jurídico através de valores decorrentes da Lei Fundamental
e do Estado Democrático de Direito.
A crise do positivismo jurídico decorre, principalmente, da
inabilidade do jurista, que atua sob esta ideologia, em lidar com termos
de conteúdo metajurídicos, para além da tecnologia jurídica formal. As
lacunas oriundas da concepção formalista da lei continuam a solapar o
160
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
sistema jurisdicional com conflitos nos quais falta ao julgador uma norma
específica regulando a conduta (lacuna ideológica) ou a norma existente
conduz a uma decisão injusta (lacuna real). Quando se realiza hermenêutica
na formulação principiológica, mesmo diante da inexistência de uma
regra, sempre existirá um valor consagrado pelo ordenamento jurídico,
seja através de normas principiológicas ou da fórmula política, Estado
Democrático de Direito. Esta constatação permite ao juiz realizar um
julgamento pautado por valores consagrados pela ordem jurídica, ao
invés de, usar a solução positivista e eleger um julgamento subjetivo por
critérios pessoais e discricionários. A inexistência de lacunas axiológicas
baliza as decisões judiciais por valores eleitos pela ordem jurídica,
que decorrem da concepção contemporânea de direitos inerentes à
humanidade e da busca cotidiana pela democracia e pela justiça.
3.3 Juízes filósofos?
O terceiro argumento negativo seria a necessidade de transformar
os juízes em filósofos, tornando obrigatório o aprendizado da filosofia
para a aplicação do Direito quando a norma consagrar conceitos como
liberdade, igualdade, fraternidade.
Não se pode negar a influência da Filosofia na sociedade,
em particular, no caminho percorrido pela motivação jurisdicional.
Não há como ignorar, também, a contribuição de filósofos – clássicos e
contemporâneos – que se dedicaram ao debate e explanação da Ética, da
Moral, do Direito e da Política. Por outro lado, o conhecimento filosófico
não é linear nem preestabelecido, ele comporta argumentações diferentes,
e, em sua maioria, divergentes. Esses conceitos não são conteúdo
exclusivo da Filosofia, eles foram delineados pela história política e estão
longe de atingir uma formulação ideal, mesmo quando considerados
em tempo e espaço específicos. Por isso, não se pode seguir no Direito
desvencilhado da Filosofia enquanto atividade libertadora do ser humano,
161
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
mas quando o argumento filosófico é trazido à motivação judicial ele
está contextualizado no conteúdo axiológico constitucional. Assim, em
uma ordem jurídica orientada por princípios, a familiaridade daqueles
que interpretam o ordenamento jurídico com conceitos filosóficos é tão
necessária como são os conhecimentos sobre Economia, Antropologia e
História sem que se cogite que o magistrado seja economista, antropólogo
ou historiador para exercitar a jurisdição.
Conclusão
Em suma, a interpretação de regras e princípios jamais será
apenas uma questão de Teoria do Direito. O modo como os tribunais
interpretam o ordenamento jurídico definirá a atuação da Constituição
Federal e a realização de princípios explícitos e implícitos na fórmula do
Estado Democrático de Direito consagrada na Constituição.
O surgimento de teorias pós-positivistas, alicerçadas no
reconhecimento e na afirmação de normas principiológicas não procurou
afastar os séculos de desenvolvimento positivista no Direito. Cabe afirmar
que o pós-positivismo superou a tese positivista através do raciocínio
lógico-filosófico, mas não negou aquela tese, pois não se trata de uma
teoria de antagonismo ao positivismo, ou de uma teoria jusnaturalista,
ou ainda, mais uma teoria crítica. A tese positivista contém elementos
que continuam realçados no pós-positivismo, tais como a importância do
direito posto como fonte do Direito, a valorização da segurança jurídica
e a observância prática da ordem jurídica estatal refletida no processo
legislativo, na institucionalização da Justiça e da sanção. No entanto,
através da superação dialética, o pós-positivismo utiliza elementos da
antítese, como a metafísica, a axiologia e o humanismo.
Longe de ser uma concepção doutrinária isolada, o póspositivismo emerge do consenso necessário ao surgimento de um novo
paradigma. As teorias pós-positivistas realçam a necessidade do jurista
162
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
em lidar com valores e instâncias que remetem à axiologia da Justiça,
da dignidade da pessoa humana, da liberdade, dos valores sociais, da
fraternidade, da Paz e da democracia. O pós-positivismo jurídico, decorre
de uma convergência doutrinária que vai se concretizando no senso de
um paradigma, um conceito que se erige a partir de amplo processo
histórico, das exigências sociais de uma geração e da nova interpretação
de antigos conceitos, assim como peças de um quebra-cabeça teórico que
passa a agregar tantas outras, preenchendo vazios epistemológicos.
Para propiciar a superação de alguns dos paradigmas
positivistas que ao início do século XXI ainda estão presentes na
produção doutrinária e jurisprudencial do Direito brasileiro parte-se da
necessidade de superar, primeiramente, aqueles paradigmas oriundos da
interpretação do Princípio da Separação de Poderes: a concepção de que
a atuação política do Magistrado vulneraria a ordem jurídica porque esta
pressupõe a organização do poder em três esferas distintas e específicas e
a inexistência de legitimidade no exercício da jurisdição, já que esta não
decorre da atuação de representantes eleitos.
Em seguida, se torna necessário exceder os dogmas relacionados
à organização do ordenamento jurídico sob a óptica positivista, para
suscitar a ambiência de espécies distintas de normas – as regras e os
princípios, bem como, a existência de princípios decorrentes da fórmula
política, dos direitos humanos e da universalidade, estejam eles prescritos
no texto constitucional ou em estado de latência. A partir de então, o
jurista terá uma tarefa ainda mais árdua: o manejo de valores.
A hermenêutica pós-positivista ultrapassa aspectos teóricos,
descritivos e analíticos para alcançar aspectos práticos de adequação
e reajustamento do Direito às mudanças sociais. Além disso, supera a
tradicional dicotomia entre o Direito e a Moral, impondo a observância
de uma instância interpretativa apta a mensurar a moralidade das
respostas jurídicas. O paradigma pós-positivismo impõe à hermenêutica
a realização da justiça material como objetivo da interpretação do Direito
163
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
e propõe ao intérprete um caminho já trilhado pela Filosofia: a procura
incessante por uma melhor apreensão do sentido, especificamente, a
busca por uma resposta que seja, a um só tempo, justa, jurídica, racional
e metodologicamente orientada.
164
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
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167
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
8
Um modo de olhar e situar o princípio da
proporcionalidade
Joaquim Eduardo Pereira
Mestrando em Direitos Humanos na PUC-SP.
168
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Introdução
Nas sociedades pré-modernas o fundamento último que servia para
justificar o conhecimento em geral e consequentemente o direito e a política
era teológico. Estas duas formas de exercício do poder, que normalmente
se concentravam em uma mesma figura, legitimavam-se reciprocamente.
O governante era reconhecido legítimo por ser o instrumento através do
qual Deus se manifestava na Terra. Assim sendo, este era legitimado a
dizer o direito sagrado, por meio do qual se organizava a sociedade e o
próprio exercício do poder. Desta maneira, o poder social que instalava o
direito, através deste se transformava em poder político.
Nas palavras de Habermas:
Ambos os processos, que decorrem simultaneamente, são
interligados: a autorização do poder através do direito sagrado e
a sanção do direito através do poder social realizam-se uno acto.
Deste modo, o poder político e o direito sancionado pelo Estado
surgem como dois componentes dos quais se origina o poder do
Estado organizado de acordo com o direito162.
Importante salientar que apesar de Habermas utilizar a expressão
‘Estado’, trata-se exatamente a situação descrita do modo como se
organizava a sociedade antes de se instalar a figura do Estado moderno.
Neste verifica-se o fim do poder hegemônico da Igreja, o que proporciona
o rompimento com o modo de fundamentar teológico. Nesta seara, o
homem passa a ser a condição de possibilidade do conhecimento163, o
que requer um modo diferente de fundamentar este e, consequentemente,
de legitimar o poder e o direito.
162
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. vol.1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 180.
163
O problema do conhecimento deixa de ser transcendente e passa a ser transcendental. In
STEIN, Ernildo. Uma breve introdução à filosofia. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2005. p.73.
169
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Antes o direito já se pressupunha legítimo, devido ao fato
de sua gênese estar intrinsecamente ligada ao poder social, o qual
era imposto e aceito acriticamente mantendo-se o status de sagrado
de ambos. Agora, com o advento da modernidade, o direito, assim
como o poder, perde este fundamento sólido, necessitando buscar
outros fundamentos, os quais devem passar pelo próprio homem, para
legitimar o exercício de dominação de alguns homens sobre os outros,
como também a imposição do direito e o respeito de suas decisões.
Evidencia-se assim o grande problema da modernidade no que tange
às relações sociais: necessidade de legitimar sua regulamentação por
um ente, o Estado, que exsurge da necessidade de frear as guerras
religiosas e instaurar um lócus privilegiado para o desenvolvimento
do capitalismo que se estrutura a partir do individualismo ínsito à
modernidade, decorrente do cristianismo.
O Positivismo caracteriza-se principalmente por romper
com o Jusnaturalismo moderno, partindo do pressuposto de que o
Estado é resultado das relações de dominação e poder, rompendo
com as teses contratualistas. Consegue-se então romper com a idéia
de que o fundamento apriorístico que empresta legitimidade ao
direito são valores provenientes da Razão, os quais seriam inerentes
ao homem e, portanto, universais. Os direitos fundamentais agora
assumem a feição de direitos que garantem a participação de todos
no processo de escolha de quem os representará, (n)o Estado. Nesta
nova configuração, este se legitima por ser a expressão da vontade
popular, tendo a legitimidade, consequentemente, de instituir o direito
através do qual irá regular a sociedade. O direito legítimo será aquele
produzido pela autoridade competente, desde que não contradiga
as regras formais de sua produção, instituídas pelo Estado numa
Constituição. A lei assume relevância que jamais tivera, propiciando
a passagem do Estado moderno para o Estado Liberal, como assevera
José Reinaldo de Lima Lopes:
170
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
No direito, no entanto, os juristas elegeram um objeto e o
privilegiaram: a lei, o ordenamento positivo. Esta eleição foi
possível justamente porque o Estado moderno, em processo
de transformação para Estado Liberal, havia conseguido
estabelecer-se com a centralização das suas fontes normativas,
com a centralização da jurisdição e com o ideário do
constitucionalismo, pelo qual toda a normatividade dependia de
regras constitucionais164.
As razões históricas, morais e éticas levadas em consideração
pelo legislador no momento de produção do direito vigente, não devem
ser levadas em consideração em sua aplicação: diferencia-se o direito e
a Ciência do Direito. Há um corte epistemológico que tem a pretensão
de caracterizar o direito como uma ciência, retirando dele toda a carga
moral, para que o mesmo possa atingir seu objetivo de possibilitar uma
segurança jurídica para a sociedade, na medida em que faz jus à função
da estabilização de expectativas. Acredita-se, deste modo, tornar o
direito independente da política, posto que o problema da racionalidade
é purificado de todos os fundamentos de validade suprapositivos.
2. Positivismo e sua (não) superação
O positivismo jurídico, num primeiro momento, se caracteriza
principalmente por equiparar o Direito à lei e, devido à impossibilidade
desta conter todas as hipóteses do mundo real e ser considerada uma
construção fictícia, mas construção esta que garante a harmonia do sistema
jurídico, permitir, em suas vertentes mais novas, a discricionariedade no
ato decisional, posto que ao intérprete é possibilitado escolher qual a
lei que melhor se adapta ao caso, uma vez que todas são previamente
164
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. 3. ed. São Paulo:
Atlas, 2009. p. 204.
171
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
fundamentadas em uma lei fundamental dada aprioristicamente,
relegando o ato interpretativo a segundo plano. Deste formalismo advém
a disposição em deduzir o Direito a partir de um sistema de conceitos
e princípios, com a crença de que a decisão correta decorre do acerto
formal de uma operação de subsunção da norma ao fato concreto165.
Isto ocorre devido ao fato de o positivismo jurídico estar
assentado sob o paradigma das Filosofias da Consciência, sendo que
estas possuem como principal característica a concepção da linguagem
como um instrumento que se coloca entre o homem e os objetos, sendo
que entre eles existe(ria) uma ponte. Ora a compreensão está nos próprios
objetos, ora está na consciência do homem, ou seja, este tem acesso
àqueles através da representação. Isto quer dizer que o homem conhece
os objetos como eles realmente são, em sua essência, que pode estar neles
mesmo ou na consciência daquele166. Há uma relação de separação entre
sujeito e objeto, entre o ente cognoscente e o ente a ser compreendido.
Entretanto, todo esse formalismo do positivismo jurídico,
com seu método interpretativo baseado no sujeito solipcista e na
matematicidade próprios da modernidade, se mostrou disfuncional para
resolver os problemas jurídicos através da legislação, com suas normas
gerais e abstratas, feitas a partir de espécies de fatos ocorridos no passado
e para regular toda uma série indeterminada de fatos semelhantes a
ocorrerem no futuro167.
A virada linguística consiste numa possibilidade de superação
da Filosofia da Consciência. Há uma falência da idéia de que o sujeito
possa alcançar a verdade em relação aos objetos que se colocavam diante
dele, como se estivessem radicalmente separados o sujeito cognoscente
165
GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini. Teoria da Ciência Jurídica.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. pp. 21 e 55.
166
Cf. OLIVEIRA, Rafael Tomas de. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio. São Paulo: Livraria
do Advogado, 2008.
167
GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini. Teoria da Ciência Jurídica,
2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 24.
172
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
e os objetos consociados, e fossem estes últimos independentes das
determinações das faculdades cognitivas do primeiro. Vale dizer, o
sujeito não conhece os objetos através de representações, mas a partir da
interação entre eles. Há uma inter-relação, em que ambos estão juntos no
mundo, não podem, portanto, serem separados radicalmente.
A linguagem passa a ser, então, encarada de modo diferente, não
mais tendo uma função, como mero instrumento a serviço do homem.
Ela passa a ser verdadeira condição de possibilidade para que o sujeito
compreenda os objetos, pois só tem acesso a eles através da linguagem.
O homem não pode compreender o objeto enquanto ente, mas apenas no
seu ser e, o processo de compreensão do ser é limitado por uma história,
a história do ser que limita a compreensão168. A linguagem assume uma
dupla função, a de meio de comunicação intersubjetiva e, ao mesmo
tempo, da interpretação do mundo169, isto é, a linguagem é meio pelo
qual temos acesso ao ser do ente e também é através da linguagem que
podemos explicitar a compreensão que temos desse ser.
Somente após essa concepção de linguagem é possível
romper com o esquema sujeito-objeto e, também com todos os
demais dualismos. Pode-se compreender também a incongruência
dos métodos matemáticos na afirmação da verdade, pois esta é
feita metodicamente através da análise das proposições, que serão
confrontadas com um dado a priori, estabelecido pelo homem. Será,
então, a correlação, no Direito, entre o fato ocorrido e a norma préestabelecida, como se esta, por tal característica, fosse plena, pudesse
conter todas as possibilidades de sentido.
Essa transformação no modo de encarar a linguagem vai refletir
no Direito. Muda-se radicalmente a relação sujeito-objeto e também a
concepção de verdade, que, podemos perceber com o que diz Gadamer:
168
STEIN, Ernildo. Aproximações Sobre Hermenêutica, 2. ed. Porto Alegre: Edpucrs, 2004. p. 75.
169
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 717.
173
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
A desespacialização da ‘distância temporal’ e a desidealização
da ‘coisa mesma’ nos leva, então, a compreender como é
possível reconhecer no ‘objeto histórico’ o verdadeiramente
‘outro’ em face das convicções e opiniões que são ‘minhas’,
quer dizer, como é possível conhecer a ambos. É bem verdade
que o objeto histórico, no sentido autêntico do termo, não é um
‘objeto’ mas a ‘unidade’ de um e de outro. Ele é a relação, isto
é, o ‘pertencimento’ pelo qual ambos se manifestam: a realidade
histórica, de um lado, e a realidade da compreensão histórica, de
outro. É essa ‘unidade’ que constitui a historicidade originária
em que se manifestam, obedecendo ao seu mútuo pertencimento,
o conhecimento e o objeto históricos. Um objeto que nos chega
através da história não é simplesmente um objeto que se possa
discernir de longe, mas sim o ‘centro’ no qual o ser efetivo da
história e o ser efetivo da consciência histórica aparecem170.
Disto decorre que o texto (a lei) não é um objeto do qual o
sujeito vai retirar um sentido. Muito pelo contrário, o sujeito, em uma
inter-relação com o texto, vai atribuir-lhe um sentido, sendo fruto deste
processo a norma. Ou seja, o intérprete deve promover um choque
entre as possibilidades de sentido que lhe concebe sua historicidade
e o ser do texto. Há entre o texto e a norma apenas uma diferença
(ontológica), uma diferença entre ente e ser, mas estes não podem
existir separados, apenas relacionados. Isto quer dizer que o texto não
traz em si seu significado, ele diz respeito a algo, que foi explicitado
através da linguagem, mas esta, assim como o homem, é finita. Para
se chegar ao que foi encoberto pela linguagem que se estruturou, é
necessário ir além do texto, mas não quer dizer que podemos atribuir
ao texto qualquer norma, qualquer significado.
170
GADAMER, Hans-Georg. O Problema da Consciência Histórica. 3. ed. Trad. Pulo César Duque
Estrada. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 71.
174
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
A verdade como fruto da compreensão e não de métodos
rígidos, próprios da modernidade transfere o momento de determinação
da mesma do momento a priori, justificador, para um momento posterior,
de explicitação. No Direito, portanto, deve haver um deslocamento do
momento de sua determinação, que parte do momento de elaboração
das regras, para o momento de sua concretização, isto quer dizer, para
o momento da decisão judicial. O Direito como justo, objeto de estudo
da Filosofia do Direito171, deve ser determinado no momento em que se
promove a resposta ao conflito existente no caso concreto. A verdade,
vale dizer, a decisão correta é fruto da interpretação (compreensão), e
não do amoldamento do fato a uma regra pré-estabelecida.
A razão pela qual este ideal de completude sucumbe reside
principalmente no caráter finito da linguagem, posto que através dela
não conseguimos ter uma acesso completo ao ser, devido à nossa própria
finitude. A partir daí, verifica-se que as proposições em geral, inclusive as
regras, dizem respeito a algo, o qual explicitamos através da linguagem,
mas nunca conseguimos dizer tudo, sempre fica algo escondido, que se
enrijece. A verdade está na explicitação deste algo que ficou estruturado
no sentido, não sendo mais apropriado, nas ciências do espírito, a
concepção de verdade das ciências naturais.
Daí decorre que a introdução do mundo prático no Direito, fazse no momento de determinação deste, ou seja, no momento da decisão
judicial, e não em um momento anterior à decisão, como se antes dela fosse
possível antecipar todas as hipóteses de conduta, as quais ensejariam uma
subsunção. Pelo contrário, esta impossibilidade deve ser compreendida e
explicitada em cada caso concreto. Em cada decisão deve-se fundamentar
a decisão, que não pode ser uma “construção” apriorística, mas deve ser
construída no decorrer do processo, por meio do qual se deve efetivar
a Constituição, sendo esta o lócus privilegiado para a determinação do
Direito. Isto quer dizer que uma resposta correta, no âmbito do Estado
171
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. 3. ed. São Paulo: Calouste Gulbenkian, 2009. p. 11.
175
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Democrático de Direito não deve partir de premissas que contenham as
possibilidades de prever uma solução antes do caso. A resposta correta
deve ser resultado do confronto, que sempre deve ocorrer, em cada caso,
entre a relação jurídica que se estabelece, ou seja, os interesses em voga,
e a sua solução que deve ir ao sentido de satisfazê-los na maior proporção
possível, tendo como parâmetro a Constituição, que vai garantir a cada
um deles um mínimo de efetividade.
Apesar da apropriação que fez do Positivismo, o Estado
Social mostrou-se incongruente com todas as conquistas provenientes
da modernidade, especialmente o direito de liberdade, desenvolvido
sob o individualismo que acomete o sujeito moderno e sacralizado
em direito fundamental, condição de possibilidade para a perpetuação
do capitalismo. Deve-se perquirir um Estado que garanta os direitos
fundamentais sem que para isso se desvincule da obrigação de garantir,
ao mesmo tempo, os direitos subjetivos. Surge nesta perspectiva o
Estado Democrático de Direito.
A fim de se compatibilizar com o novo modelo de Estado
que surge o ordenamento jurídico também passa por mudanças. É
composto agora não só de leis, mas também de princípios, os quais são
os responsáveis, como a base do sistema jurídico, por estabelecer as
condições que se impõem ao Legislativo e ao Executivo, como também
por limitar e legitimar as decisões do Judiciário. Já sob influência da
virada linguística172 que acontece na filosofia, parte-se de um direito posto,
o qual deve ser compatível com a Constituição para que seja reconhecido
como legítimo, porém esta legitimidade deve ser aferida no momento
de efetivação do direito, no momento da decisão judicial. Uma vez que
as leis não conseguem abarcar no plano abstrato todas as possibilidades
de casos concretos deve-se conceber um modo novo de interpretar, o
qual não se restringe às leis, mas interpreta-se o caso concreto, sob a
172
STEIN, Ernildo. Racionalidade e existência: o ambiente hermenêutico e as ciências humanas.
Ijuí: Unijuí, 2008. p.21.
176
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
luz de todo o ordenamento jurídico173, devendo ser este o fundamento e
limite para as decisões, de modo que estas não sejam consequência de
um processo arbitrário no qual o juiz é o autor.
Tomando a hermenêutica filosófica como base teórica de
sustentação, deve-se ter em conta que no ato de interpretar já se dá a
aplicação, precedida pela compreensão, que tem como condição de
possibilidade a pré-compreensão. O ato de interpretar, que é uno, é
realizado sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, devendo,
portanto, ter como locus hermenêutico a constituição.
A pré-compreensão já nos é dada pelo fato de sermos no mundo,
o que faz com que antecipadamente já nos antecipamos a condição de
possibilidade para podermos compreender, pois nossa faticidade já, antes
de compreender o caso concreto que demanda interpretação, nos antecipa
uma idéia de constituição e de direito por exemplo, condições básicas
para que possamos compreender o caso, e que simplesmente acontece,
não nos perguntamos por que já compreendemos tais coisas, pelo simples
fato de que já as compreendemos174.
Sabemos da diferença entre texto e norma, uma diferença
ontológica. É a partir desta diferença, que podemos atribuir um sentido
ao texto sob análise no caso concreto, mas não qualquer sentido, posto
que o texto já carrega ‘em si’ um limite para esta atribuição. Este limite
nos é dado quando confrontamos o texto com a faticidade, pois aí temos
a chance de descobrir o que ficou encoberto pela linguagem, fazendo a
‘correção’ de nossa pré-compreensão.
A compreensão se evidencia no momento em que analisamos
a pré-compreensão verdadeira dentro da situação hermenêutica, o que
caracteriza a integração do direito, propiciada pelo círculo hermenêutico,
173
Nas palavras de Rafael Tomaz de Oliveira: Do direito identificado com a lei, passa-se ao direito
enquanto direito. Isto quer dizer: ultrapassa-se a simples interpretação textual da lei em direção à
interpretação do direito. In OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão Judicial e o conceito de princípio:
a hermenêutica e a (in)determinação do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.121.
174
Cf. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão Judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a
(in)determinação do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
177
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
que nos transfere do todo, que nós antecipamos, para as partes, que nos
é dada pela tradição. É nesse momento em que se observa o caráter
temporal do sentido, pois a compreensão leva em consideração a tradição,
analisada à luz do presente. Em qualquer momento que se aborde a
tradição o presente sempre será diferente, portanto, sempre será único o
sentido, e que cada caso terá somente uma resposta.
O resultado desta compreensão, pois, o resultado dessa análise
histórica feita sobre o objeto compreendido pelo modo de ser no
mundo, à luz da situação hermenêutica que a tradição nos coloca, é já a
interpretação, ou seja, esta é a aplicação, explicitação do compreendido.
A fundamentação da resposta encontrada, quer dizer, da
aplicação do compreendido deve se dar tanto no nível apofântico como
no nível hermenêutico. A fundamentação no nível apofântico se limita a
utilização de métodos argumentativos, que justifiquem o modo como se
deu essa explicitação. Já no nível hermenêutico, deve-se fundamentar
a condição de possibilidade para se chegar à compreensão, ou seja,
deve-se explicitar a imersão histórica, o mergulho na tradição, onde se
deu o desvelamento do sentido do ser, isto é, mostrar quais os fatos,
as conquistas, as lutas que propiciaram o compreender da regra sob
análise, o que sua linguagem encobriu no momento que passou do plano
da compreensão para a explicitação dessa regra. Isto que se subjaz ‘por
trás’ de toda regra, é um principio constitucional, o qual possibilita por
um lado o choque, ou melhor, o relacionar entre as duas ficções que são
o direito e a realidade regulada por ele; e por outro lado, proporciona,
na singularidade do caso a se decidir, uma solução correta que decorre
de uma compreensão autêntica do direito e do próprio intérprete. Este, a
partir da consciência histórica, reconhece-se como ser no mundo e pode
construir uma resposta a partir de seu lugar no mundo, e não a partir de
si, de sua subjetividade.
178
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Conclusão
É a partir de tudo o que foi explicitado que se deve olhar para
o princípio da proporcionalidade, do modo como foi desenvolvido pelo
professor Willis Santiago Guerra Filho, de modo que este princípio não
seja encarado como uma técnica interpretativa, mas que, a partir de uma
hermenêutica que se insere no paradigma da Filosofia da Linguagem, tal
princípio possa ser encarado de um modo próprio, em que se traga à luz
sua condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito.
Isto porque, como aduz o citado professor, o Estado Democrático
de Direito já carrega em si uma contradição, que consiste em uma busca
constante de harmonia entre direitos individuais, subjetivos e direitos
sociais, sendo necessário superar dialeticamente os modelos de Estado
Liberal e Estado Social, em que os direitos fundamentais, providos tanto
das características privadas como públicas, possam ser efetivados:
Para que o Estado, em sua atividade, atenda aos interesses
da maioria, consignados em direitos coletivos e difusos,
igualmente respeitando, os direitos individuais fundamentais,
faz-se necessária não só a existência de normas para pautar
essa atividade que, em certos casos, nem mesmo a vontade de
uma maioria pode derrogar (Estado de direito), como também
há de se reconhecer e lançar mão de um princípio regulativo
para ponderar até que ponto vai-se dar preferência ao todo ou às
partes (princípio da proporcionalidade), o que também não pode
ir além de certo limite, para não retirar o mínimo necessário a
uma existência humana digna de ser chamada assim175.
O princípio da proporcionalidade, considerado por Willis
175
GUERRA FILHO, Willis Santiago. A Filosofia do Direito: aplicada ao direito processual e à
teoria da constituição. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 87.
179
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Santiago Guerra Filho como o princípio dos princípios, assim o é devido
a essa característica que possui de possibilitar, no âmbito do Estado
Democrático de Direito, emergir, no momento de concretização do
Direito, seu tempo, no sentido de sua temporaneidade, o que possibilita,
de modo correlato, que o indivíduo possa se posicionar de modo próprio
frente a este fenômeno.
Isto quer dizer que este princípio é, num paradigma da Filosofia
da Linguagem, uma norma essencial ao nosso modelo de Estado, que só
poderá ser efetivado caso seja levado em conta, de maneira autêntica. O
princípio da proporcionalidade não está a serviço do intérprete para que,
através dele, possa escolher qual a melhor solução dentre as vislumbradas
para o caso. É muito mais complexo que isto, nem mesmo podendo
ser esta uma função a ele atribuída, pois assim não seria superado o
subjetivismo.
E deve ser justamente esse o modo de olhar para o princípio,
para que este possa desvelar todos os pré-conceitos do intérprete, fazendo
‘visível’ a ele o seu tempo e assim, possibilitando-o posicionar-se de
um modo correto, e não em um lugar correto, ou seja, superando um
modo de ser estático encobridor de mundo e abrindo-se para o mundo,
já no mundo. Um modo em que o intérprete consegue se desvencilhar de
concepções em que o(s) direito(s) são coisas, estáticas, à sua disposição,
como se possuíssem ‘vida própria’, atreladas aos modelos científicosubjetivistas, como aduz o Autor:
Pode-se, então, afirmar que o mesmo significado que a techné
possui para a ciência tem a poiesis para a filosofia, o que ajuda
a entender o valor gnosiológico tanto da filosofia como da
arte. Ambas podem ser associadas ao esforço humano para
compreender a si e ao mundo, enquanto a ciência se ocupa com
a explicação da realidade fenomênica, o que ajuda a alcançar
aquela compreensão, mas não é suficiente. O caráter racional
180
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
e objetivo de uma explicação científica para determinado
fenômeno (digamos, a Morte) no contexto global de nossa
existência, do estar no mundo. A compreensão permanece
sempre pessoal, e não faz sequer sentido pretender que ela seja
verdadeira, definitiva. À medida que se procura comunicála, porém, ingressa-se naquela dimensão intermediária entre
subjetividade e objetividade, a dimensão da intersubjetividade,
na qual se estabelece uma ligação entre o que se vivencia
individualmente e a experiência compartilhada com os demais,
o que é possível pela existência de “formas de vida”, no sentido
wittgensteiniano de Lebensformen, do que é comum a toda uma
série e pessoas, como a linguagem176.
Somente desta maneira podemos ver o problema ao qual devese dar uma solução desde uma perspectiva autêntica, e assim ter-se-á uma
solução correta, que não será a aplicação de uma resposta que já se tem,
mas a construção de uma resposta para o caso concreto, mas uma resposta
que coloque o caso e, portanto, as pessoas e interesses envolvidos, no
tempo do direito, que tem pretensão de legitimidade e universalidade,
o que somente pode ser alcançado desde este comprometimento
propiciado pelo princípio da proporcionalidade, que ‘liberta’ o intérprete
de suas visões de mundo impróprias, correspondentes a um modo de ser
impróprio, no qual pensa poder decidir a partir de si, unicamente.
Podemos concluir, portanto, que o princípio da proporcionalidade
não é uma técnica interpretativa, mas é inerente ao Estado Democrático de
Direito e que, somente poderá servir à sua finalidade desde que encarado
sob a ótica de uma hermenêutica ligada à Filosofia da Linguagem, para
que não se configure como um instrumento à disposição do intérprete,
que o usa como um álibi teórico. É a norma que ‘traz’ os indivíduos para
176
GUERRA FILHO, Willis Santiago. A filosofia do direito: aplicada ao direito processual e à
teoria da constituição. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 19.
181
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
dentro do mundo (do Direito), para que não se vejam ou se coloquem
como separados deste, construindo-o desde fora.
Este modo de se colocar no mundo, e não diante dele, é condição
de possibilidade de decisões corretas, no sentido de serem decisões em
que um intérprete não se valha de suas visões ou interesses, e até mesmo
que os interesses em causa não sejam passíveis de universalidade num
ordenamento jurídico. Assim é que as pretensões e as decisões são
conformadas dentro de um espaço comum e devem, portanto, manter
esta característica, que é a ‘essência’ do Direito. Pois, se não assim fosse,
se pudéssemos admitir pretensões e decisões que não se pautem por um
raciocínio comum, não há como falar em segurança jurídica e paz. Não
existe uma decisão antes do caso, mas também não existe uma decisão
fora do caso, ou seja, fora do mundo em que se desenvolve o caso, e a
abertura, a explicitação deste mundo é o que nos proporciona o princípio
da proporcionalidade.
Suas características precípuas177, como sua dupla
dimensionalidade, de proibição de excesso e proibição de proteção
insuficiente, assim como seu desdobramento em adequação, exigibilidade
e proporcionalidade em sentido estrito, somente podem ser compreendidas
de modo autêntico a partir da Filosofia da Linguagem, posto que tais
conceitos ou definições já trazem em si uma carga significativa que deve
ser explicitada, que só fazem sentido se entendidas desde um modo
177
“O princípio da proporcionalidade (...) tem um conteúdo que se reparte em três “princípios
parciais” (Teilgrundsätze): “princípio da proporcionalidade em sentido estrito” ou “máxima do
sopesamento” (Abwägunsgebot), “princípio da adequação” e “princípio da exigibilidade” ou
“máxima do meio mais suave” (Gebot des mildesten Mittles). O “princípio da proporcionalidade
em sentido estrito” determina que se estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado
por uma disposição normativa e o meio empregado, que seja juridicamente a melhor possível.
(...) Os subprincípios da adequação e da exigibilidade, por seu turno, determinam que, dentro do
faticamente possível, o meio escolhido se preste para atingir o fim estabelecido, mostrando-se,
assim, “adequado”. Além disso, esse meio deve se mostrar “exigível”, o que significa não haver outro,
igualmente eficaz, e menos danoso a direitos fundamentais.” GUERRA FILHO, Willis Santiago.
Noções Fundamentais sobre o Princípio Constitucional da Proporcionalidade. In: Leituras
Complementares de Direito Constitucional: controle de constitucionalidade e hermenêutica
constitucional. Marcelo Novelino Camargo (Org.). Salvador: JusPodivm, 2008. pp. 52-53.
182
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
de ser no mundo que mostre, e não vele, a tensão, o relacionar em que
estamos expostos. Não é possível superar o positivismo apropriando-se
de conceitos e aplicando-os, quer dizer, os conceitos, tal como o princípio
da proporcionalidade, não contêm em si a verdade ou a condição de
superar um paradigma. E também não são vazios, como se devessem
seu conteúdo ao intérprete, desde um grau zero de sentido. É necessário
assumir um novo modo de ser, o qual vai propiciar dar efetividade ao
princípio em questão, de modo que o princípio da proporcionalidade
seja ‘ele mesmo’, e não que esteja à disposição do indivíduo que pode
determinar-lhe um sentido.
Importante ressaltar que o princípio da proporcionalidade, tanto
não está à disposição do sujeito-intérprete, que ao mesmo é inerente à ideia
de se satisfazer, efetivar, garantir direitos fundamentais. Sendo que estes
são a condição de possibilidade de garantir um espaço de convivência
entre interesses subjetivos e sociais, e que, portanto, já trazem encobertos
os problemas desta relação a que o Estado Democrático de Direito
pretende dar uma resposta.178 Deve ser este o lócus em que o indivíduo
tem o direito a um mínimo existencial, que vai muito além da garantia
de sua vida física, mas que compreende também uma blindagem tanto
aos interesses e visões de mundo particulares, subjetivistas, como as
concepções sociais, em que se pretende desvalorizar sua individualidade.
O princípio da proporcionalidade não é uma técnica interpretativa, como
um instrumento de que se vale o sujeito, mas é um topos argumentativos,
através do qual se explicita o sujeito em seu modo-de-ser-no-mundo, o
que é condição de possibilidade de se efetivar direitos fundamentais.
178
“A exata compreensão desse objeto de estudo, os direitos fundamentais, implica na abordagem
de temas compartilhados com a filosofia jurídica e política, como são aquelas dos direitos humanos,
numa perspectiva pragmática, que busca menos a ênfase na sua importância – já evidenciada por
dois séculos de discursos a respeito –, do que os meios de sua realização, valendo-se também dos
resultados de estudos recentes que revigoraram a discussão, no campo da filosofia prática, sobre
teoria da justiça, argumentação e ética do discurso, a partir de obras como as de Viehweg, Gadamer,
Rawls, Habermas, Alexy, Höffe, Perelman e Ricoeur”. (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo
Constitucional e Direitos Fundamentais. 6. ed. São Paulo: SRS, 2009. p. 29.)
183
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
GADAMER, Hans-Georg. O Problema da Consciência Histórica. 3. ed.
Trad. Pulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. A filosofia do direito: aplicada ao
direito processual e à teoria da constituição. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
_________________. Por uma poética do direito: introdução a uma
teoria imaginária do direito (e da totalidade). ano 3, n. 19. Revista
Panóptica, Julho-Outubro 2010.
_________________. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais.
6. ed. São Paulo: SRS, 2009.
GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini.
Teoria da Ciência Jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 188.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade.
Trad. Flávio Beno Siebeneichler. vol.1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2003.
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. 3. ed. São Paulo: Calouste
Gulbenkian, 2009.
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições
introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
184
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão Judicial e o conceito de princípio:
a hermenêutica e a (in)determinação do direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008.
STEIN, Ernildo. Aproximações Sobre Hermenêutica. Porto Alegre:
Edpucrs, 2004.
_________________. Uma breve introdução à filosofia. 2. ed. Ijuí:
Unijuí, 2005.
_________________. Racionalidade e existência:
hermenêutico e as ciências humanas. Ijuí: Unijuí, 2008.
o
ambiente
185
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
9
Princípios fundamentais dos direitos humanos
Keilla Ellen Borges
Graduação em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo
(2008). Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Escola
Paulista de Direito - EPD (2010). Mestranda em Direitos Humanos pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogada da Fundação Criança de
São Bernardo do Campo.
186
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Introdução
A consolidação do direito internacional dos direitos humanos,
pautado no período do pós 2º Guerra Mundial e Pós Revolução, sobretudo
na Revolução Francesa constitui uma trilogia pautada na proteção dos
direitos humanos, respeito da dignidade da pessoa humana e exercício da
cidadania. Esses três direitos estão intrinsecamente relacionados, sendo
que a existência de um pressupõe a existência do outro.
Os direitos humanos, em meio ao caos do pós-guerra, momento
em que o mundo se achou devastado pelo sentimento da guerra surgem
com o intuito de estabelecer a paz entre os povos e a proteção dos direitos
referentes à dignidade da pessoa humana.
O que determina a titularidade desses direitos é a condição
humana e não a nacionalidade, tal preceito está consolidado no preâmbulo
da Convenção Americana e em diversos tratados de direitos humanos. No
nosso ordenamento jurídico vem consolidado na Constituição Federal
e é com base nessa fundamentação de internacionalização do direito
internacional dos direitos humanos que a dignidade da pessoa humana,
dentre outros princípios, é o princípio fundamental dos direitos humanos.
Nesse sentido vale destacar o Preâmbulo da Convenção
Americana de Direitos Humanos, segundo o qual:
os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato
de ser ela nacional de determinado Estado, mas sim do fato
de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão
porque justificam uma proteção internacional, de natureza
convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o
direito interno dos estados americanos.
Após a 2º Guerra Mundial os países europeus precisavam
reconstruir seus sistemas jurídicos diante das vivências de total
187
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
banalização dos Direitos Humanos dada como decorrência do período
da guerra. Após esse período, as constituições de perfil democrático
passaram a acentuar a preocupação com a proteção dos direitos humanos.
As Constituições passaram a ter o papel de construir regimes
democráticos de direitos, garantindo a proteção dos direitos humanos
no âmbito nacional e internacional. Importante salientar que somente
os regimes democráticos podem viabilizar a efetivação dos direitos
humanos, visto que os regimes totalitários não promovem, em absoluto,
essa efetivação.
Essa é a ideia que fundamenta o direito internacional dos direitos
humanos.
A busca pela ampla proteção jurídica desses direitos tem como
resultado a criação de uma Teoria Geral dos Direitos Humanos, com
ferramentas jurídicas para a proteção, interpretação e aplicação desses
direitos, nos sistemas jurídicos que os consagram.
Os Estados que se consolidaram com regimes democráticos,
assim, se pautaram na proteção, interpretação e aplicação dos direitos
humanos, por meio de constituições que preveem um catálogo de direitos
humanos, com direitos destinados a todos.
Importante salientar que ao mesmo tempo em que os direitos
humanos são destinados a todos, por meio dos textos constitucionais,
o ser humano está inserido em uma sociedade e, por vezes, a aquisição
dos direitos humanos a todos se coaduna com a restrição de alguns
direitos fundamentais. O direito buscará equalizar essa dualidade, de
fato, verificada em Estados Democráticos, os quais se preocupam com a
internalização dos direitos humanos.
Segundo a percepção de cidadania mencionada pela autora
Hanna Arendt, esta (cidadania) significa o direito a ter direitos, se destina
a noção do indivíduo como sujeito de direitos no âmbito nacional e
internacional e esses direitos a que os indivíduos fazem jus se referem ao
direito internacional dos direitos humanos.
188
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Os direitos humanos são universais, indivisíveis e possui como
princípio basilar a dignidade da pessoa humana que mais do que um
princípio é, no ordenamento jurídico pátrio, o próprio fundamento da
República Federativa Brasileira. Seu nascedouro é a Europa e está em
grande parte ligado à filosofia cristã, porém, apesar disso, a história da
humanidade vem revelando constante desrespeito à dignidade humana,
nas mais variadas formas de ofensa aos direitos humanos.
Em decorrência dessas constantes e abusivas violações
à dignidade, muitos Estados Democráticos vêm consolidando
expressamente em seus ordenamentos jurídicos o respeito à dignidade da
pessoa humana. Isto porque, apesar da ideia de dignidade ser imanente
à natureza humana, ela somente tem possibilidade de se concretizar na
vida em sociedade quando há a determinação legal pela sua tutela, tanto
no âmbito nacional quanto internacional.
Essa é uma vertente da tentativa positivista de fundamentar a
existência do direito internacional dos direitos humanos como válido e
exigível dentro de determinada categoria de norma positivada em direito,
portanto, somente após um regular processo de validação das normas,
conforme será explicado neste trabalho.
O conceito de princípios encontra diversas significações que
começam com a exploração da palavra pelo pensamento filosófico até a
exploração de seu significado pelos estudiosos e doutrinadores de direito
da contemporaneidade.
O objetivo deste trabalho é o de demonstrar em que consiste
a expressão Princípios Fundamentais dos Direitos Humanos, qual a
real significação da palavra princípio e da palavra fundamento e de que
formas elas presumem os direitos humanos.
Nesse sentido, as contribuições de Aristóteles e de Immanuel
Kant se mostram de grande valia, sendo que o corte metodológico adotado
se restringe à compreensão de princípio sob a ótica de fundamento, ou seja,
daquilo que se caracteriza como razão justificativa dos direitos humanos.
189
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
O trabalho em si aborda em supremacia o posicionamento, bem
como as considerações do Professor Fábio Konder Comparato, acerca
dos princípios de direitos humanos, sendo, dessa forma, demonstrados
quais são os fundamentos dos direitos humanos.
Enfim, como os princípios fundamentais de direitos humanos
estruturam tanto o sistema nacional quanto o sistema internacional de
proteção dos direitos humanos, com vistas a possibilitar maior proteção
desses direitos e realização da justiça, seu estudo se mostra extremamente
viável e importante à compreensão dos direitos humanos como um todo
e à sua incorporação nos ordenamentos jurídicos da maior totalidade
possível de nações como premissa básica, também do maior número
possível, das Cartas Constitucionais dos Estados Democráticos de
Direitos.
1. Conceito de direitos humanos
Por direitos humanos entende-se o complexo de direitos inerentes
ao ser humano e decorrente, como tal, de sua própria existência, ou seja,
são direitos atribuídos ao homem em razão da própria condição humana.
Esses direitos atribuídos ao homem se resumem àqueles
capazes de proporcionar uma vida digna ao ser humano e foram
elencados inicialmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948, documento que segundo o Professor Alceu Amoroso Lima
(1974, p. 01) é uma:
[...] obra coletiva, sucessiva e experimental, não apenas
individual, dedutiva e ideológica [...] fruto de uma longa e
dolorosa experiência de várias tentativas como a Carta das
Nações Unidas e as conclusões de Dumberton Oaks (1945,
1944).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento que
190
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
compila de forma genérica os ideais de direitos capazes de garantir uma
vida digna à humanidade e que possui o anseio, ou mesmo o desejo em
seu corpo de ser incorporada ao maior número de legislações possível
nos países, surgiu em um cenário marcado por guerras e também por um
fim de século que, segundo o Professor Alceu Amoroso Lima (1974, p.
02) também representou um fim de civilização. Vejamos:
Tudo indica que está em vias de perecer um tipo de
civilização que nos eximimos de qualificar para não nos
deixarmos envolver, pela ambiguidade da terminologia, das
paixões partidárias tão típicas de uma era, como a nossa, de
instabilidade e de imprevisibilidade, tipo esse de civilização
iniciado com a Revolução política francesa, do século XVIII,
e com a Revolução industrial inglesa do século XVII, e que
dominou o século XIX e nosso século XX. Essa era está
em vias de perecer, como perecem as civilizações, isto é,
transformando-se substancialmente e dando lugar a um novo
tipo de civilização.
Assim é que o papel maior da Declaração Universal dos Direitos
Humanos é ressaltar os direitos inerentes à pessoa humana, sem os quais
é praticamente impossível garantir a dignidade do homem, enquanto
pessoa. Nesse sentido, vale lembrar as palavras do Professor Wagner
Balera (2011, p. 05) sobre o assunto:
a dignidade inerente à pessoa humana, que perpassa o
documento qual valor dos valores, não é outorgada por nenhum
título, nem muito menos pela Declaração, que só faz reconhecêla e respeitá-la como preexistente a toda e qualquer ordenação
normativa.
191
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Dessa forma, conclui-se que a dignidade da pessoa humana
não é conferida por nenhum documento jurídico, porque inerente ao ser
humano, de tal sorte que a Declaração apenas respeita essa dignidade
e a reconhecesse, desejando também que todas as nações procedam da
mesma forma em suas cartas constitucionais.
Nesse sentido, vale destacar a citação de Aristóteles – feita por
MARITAIN, em sua obra “Humanismo Integral”, quando se indaga
sobre o fato de Aristóteles ser um humanista ou um anti-humanista segundo a qual “propor somente o humano ao homem é trair o homem e
desejar sua infelicidade, porquanto pela sua principal, que é o espírito, o
homem é solicitado para melhor do que uma vida puramente humana”.
(1962, p.03).
1.1 Requisitos para concessão de direitos humanos
A expressão direitos humanos ou direitos do homem comporta
a exigência de comportamento fundada essencialmente na participação
de todos os indivíduos sem distinção na ordem individual ou social,
inerentes a cada homem.
Nesse sentido é que o art. 2º da Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948) assim preleciona:
Art. II
1. Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e
liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de
qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social,
riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
2. Não será feita também nenhuma distinção fundada na
condição política, jurídica ou internacional do país ou território
a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território a que
192
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente,
sob tutela, sem Governo próprio, quer sujeito a qualquer outra
limitação de soberania.
Dessa forma, conclui-se que a única exigência jurídica para a
concessão de direitos humanos à pessoa é a de que ela possua a condição
humana e tão somente essa. E é essa a razão de ser comum a concepção
de que os direitos humanos são direitos conferidos a todos os homens,
por isso são universais e não diferenciais.
1.2 Conceito de princípios ou fundamentos: a contribuição de
Aristóteles
Atualmente os conceitos de princípio e fundamentos vêm sendo
empregados com a mesma conotação. No entanto, a linguagem filosófica
clássica opta pelo emprego da palavra “princípios” e não fundamentos de
direitos humanos.
Assim, mister se faz a destacar no presente trabalho o significado
da palavra em tela por aquele que é considerado para muitos “o grande
filósofo”: Aristóteles.
Na proposta analítica de Aristóteles a palavra “princípio” ou
“arquê” possuía mais de um significado. Poderia ser entendido como o
começo de uma linha de uma estrada, um ponto de partida de um movimento
físico ou intelectual, como exemplo, menciona o autor o ponto de partida
de uma ciência, portanto, o início de algo, ou sua fonte originária.
Entende o filósofo também o significado da palavra princípio
como o elemento primeiro e imanente do futuro ou de algo que evolui
ou se desenvolve, como exemplo cita a cabeça e o coração dos animais,
já que são eles os responsáveis pela sua evolução ou a fundação de uma
casa, pois é ela o elemento primeiro que proporcionará a existência de
um lar no futuro, quando concluído.
193
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Ainda menciona Aristóteles um terceiro significado para a
palavra em epígrafe, constituindo-se por princípio a causa primitiva e não
imanente da geração ou de uma ação e como exemplo traz as figuras dos
pais com relação aos filhos e, ainda do insulto com relação ao combate.
Por fim, estabelece o filósofo a ideia de princípio como apta
a designar a pessoa cuja vontade racional é causa de movimento ou de
transformação, citando como exemplos os governantes no Estado, ou o
regime político de uma forma geral.
Percebe-se de todos os conceitos acima descritos para a palavra
princípio a ideia de premissas básicas direcionadas a determinadas
conclusões.
Assim, para Aristóteles princípio é a “fonte de onde deriva o ser,
a geração ou o conhecimento” (apud Comparato, 2000, p. 52).
1.3 Princípio e ética: a contribuição de Kant
Como se vê em Aristóteles a noção de arque (ou princípio) não
mantém relação alguma com a ideia de ética. Referida concepção surge
com no pensamento kantiano, ou seja, com a contribuição de Immanuel
Kant para o assunto.
Segundo a filosofia kantiana a ideia de princípio está ligada à
de ética, uma vez que há uma razão justificativa para as nossas ações e
essas razões devem pautar-se no conceito de ética e moral. Utiliza Kant
como exemplo a situação dos juristas diante de um caso concreto em
que há autorização ou pretensão de agir, segundo o autor, esses juristas
distinguem cada um desses casos concretos em duas partes: questão
jurídica (quid iuris) e questão de fato (quid facti).
Explica Kant que nas questões jurídicas o operador do
direito busca encontrar e demonstrar, em matéria de direito, as razões
justificativas que formam a legitimidade de determinada conclusão,
enquanto nas questões de fato busca ele pelas provas.
194
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Para Kant a dedução ética é a base da razão justificativa e visa
encontrar o que o autor chama de “supremo princípio da moralidade”, ou
seja, uma lei prática incondicional ou absoluta que serve de fundamento
para todas as ações humanas.
Dessa forma, o que Kant busca é uma razão justificativa para a lei
moral e entende que o fundamento último dessa moralidade só pode ser a
liberdade179. Entende o autor que princípio ou fundamento é a razão justificativa
de algo, a qual, em primeiro momento era traduzida pela ideia de ética.
Enfim, apenas na conclusão da reconstrução que fez acerva da
sua filosofia ética é que Kant substituiu a ideia de princípio ético pela
ideia de fundamento, desenvolvendo essa passagem do princípio para o
fundamento dos direitos.
Segundo Kant, em resposta a sua constante indagação acerca da
bondade ou maldade da natureza humana, explica que há um “primeiro
fundamento” da aceitação do homem pelo bem ou pelo mal e esse
primeiro fundamento é inato e antecedente a todo o uso da liberdade.
Entende-se, assim, que o fundamento é essencial para a
compreensão do homem, bem como de sua natureza, dos direitos que a
ele são conferidos e das escolhas que ele faz com o uso direto ou indireto
da liberdade que possui. Isso porque constituem-se os fundamentos
ou princípios em razões justificativas de todos os esses elemento
supracitados, que repercutem na vida do homem.
1.4. Distinção entre princípio e fundamento
Em primeiro lugar importante destacar que as palavras princípio
e fundamento trazem em si a mesma ideia, não havendo distinção entre
elas, portanto, possuem o mesmo significado.
Contudo, da análise das contribuições aristotélica e kantiana
179
Em que pese à relevância em mencionar a conclusão kantiana sobre o fundamento último
da lei moral em epígrafe, referido aspecto não será abordado por este trabalho, uma vez que não
mantém relação direta com o objeto de estudo proposto pelo tema.
195
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
percebe-se que a compreensão dessas palavras, ambas tratadas como
sinônimos, é que apresentam significados distintos de acordo com uma
ou outra concepção.
Assim é que a palavra princípio ou fundamento em Aristóteles
significa a fonte ou a origem de algo, enquanto em Kant significa uma
razão justificativa para algo.
Em que pese a época remota a que se referem esses dois
significados da palavra princípio (ou fundamento), nota-se que o
direito positivo moderno adota ambas as concepções filosóficas em sua
abordagem e aplicabilidade, conforme será visto em capítulo oportuno
deste trabalho.
Por ora, mister observar que a noção de princípio ou fundamento
de direitos humanos nos remeterá às explicações, ou fundamentações que
justificam a aceitação dos direitos humanos enquanto ciência jurídica
ou até mesmo norma de direito positivo, a qual deve ser incorporada
às legislações nacionais e, portanto, cumpridas, sob pena de severas
implicações legais, assim como no que se refere aos demais direitos do
ordenamento positivo ocidental.
Este trabalho terá como foco demonstrar se a legislação
internacional de direitos humanos é pacificamente empregada aos
ordenamentos jurídicos pátrios e de que forma se dá essa abstração às
normas de direito positivo das nações, bem como as questões relativas
à sua fundamentação, demonstrando, por fim, quais são os princípios
fundamentais de direitos humanos.
2. A necessidade de fundamentação dos direitos humanos
Segundo o Professor Fábio Konder Comparato (2000,
p.57): “Somos o único ser que sabe que vai morrer e que, almejando
incansavelmente a imortalidade, não cessa de se dar explicações sobre
esse seu destino inexorável”.
196
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
De uma forma geral denota-se por meio da frase acima que o
homem busca incessantemente, justificativas, fundamentos ou até mesmo
explicações para todos os fatos da vida, mesmo tendo como incontestável
certeza a de que não somos seres eternos e que a morte será inevitável.
Segundo o Professor Comparato, essas tentativas exacerbadas e
inesgotáveis de se explicar todos os fenômenos humanos ou da natureza
pelo homem é na verdade um subterfugio para explicar ou, quem sabe,
contornar a sua inevitável mortalidade.
De todo modo, a ilustre frase acima explicita também a
preocupação dos estudiosos no tema de direitos humanos em encontrar
um fundamento que justifique a efetividade ou mesmo a existência de
tais direitos.
Nesse sentido, a Professora Fernanda Duarte Lopes Lucas da
Silva (2002, p. 100) destaca a importância dos direitos humanos:
A importância dos direitos humanos evidencia-se na sua própria
vocação para proteção e continuidade da vida humana que
funcionam como um escudo de proteção da vulnerabilidade
humana às intempéries ínsitas da existência humana ou
produzidas pelos próprios seres humanos.
É fato que a quase totalidade dos sistemas políticos existentes
na atualidade consideram como válida a doutrina dos direitos humanos,
prova disso é a incorporação nas constituições e documentos oficiais dos
países, direta ou indiretamente, de preceitos (direitos e garantias) que
encontram como fundamento, única e exclusivamente, a pessoa humana.
No entanto, não podemos desconsiderar o pano de fundo de
incertezas, dúvidas, contradições e ambiguidades no qual está inserida a
tentativa de fundamentação dos direitos humanos.
Há quem afirme, como Norberto Bobbio (1992, p.24 e 25) que
os direitos humanos já se encontram devidamente fundamentados em
197
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
razão de seu amplo reconhecimento. Vejamos:
O problema fundamental em relação aos direitos do homem,
hoje, não é tanto o de justifica-los, mas o de protegê-los. Tratase de um problema não filosófico, mas político [...] Com efeito,
o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas
jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de
saber quais e quantos são esses direitos, qual sua natureza e seu
fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou
relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los,
para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam
continuamente violados.
E há quem se indigne com a insistência de alguns estudiosos do
direito na incessante busca pela fundamentação dos direitos humanos,
como a autora Victória Camps (apud Fernanda Duarte Lopes Lucas da
Silva, 2002, p.107), que, em desabafo, assim expôs: “[...] insisto em que
a fundamentação não faz nenhuma falta. Os valores éticos básicos são
tão óbvios que pertencem à semântica da própria ética”.
Contudo, há outra corrente que ainda sustenta a necessidade
de se estabelecer essa fundamentação, já que ela (fundamentação) e,
geralmente aquela fundada na concepção ético-filosófica, pode lhe
conferir uma abordagem mais adequada.
Segundo Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva (2002, p. 109):
É certo que se chegou a considerar a Declaração Universal
dos Direitos Humanos da ONU como manifestação da ‘única
prova de que um sistema de valores pode ser humanamente
fundamentado, e, portanto, reconhecido: esta prova é o
consenso geral acerca de sua validade’. Mas esse argumento
que pode explicar como se chegou a um acordo sobre os direitos
198
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
e liberdades básicas deixa na penumbra outro dos problemas
centrais da fundamentação de tais direitos: seu porquê, isto é,
sua razão de ser.
Dessa forma é que a busca pelos princípios e fundamentos de
direitos humanos é, em outras palavras a busca pela sua razão de ser,
pelas razões que o legitimam e que motivam o seu reconhecimento.
Nesse sentido, vale lembrar a contribuição kantiana, já que a busca
pela fundamentação dos direitos humanos consiste no alcance das
justificativas racionais que ensejam a sua positivação, ou seja, nas
razões que levariam a ordem jurídica a acolher e positivar esses direitos,
conforme já mencionado em capítulo anterior deste trabalho.
2.1 Noção de princípios ou fundamentos no direito positivo
brasileiro
Se analisarmos o direito positivo brasileiro verificaremos que
há nele a junção das concepções de princípios, tanto em Kant quanto
em Aristóteles. Isso porque por princípio ou fundamento tem-se ora a
concepção das razões de decidir algo, ora da origem dos institutos de
direito positivo, respectivamente.
Nesse sentido, importante destacar a contribuição de Fábio
Konder Comparato (2000, p.53):
Pois bem, se analisarmos, ainda que superficialmente, o Direito
Positivo brasileiro, verificaremos que a noção de fundamento é
usada com essas duas acepções principais, desenvolvidas pelo
pensamento filosófico. No sentido de razão justificativa, fala-se,
por exemplo, em fundamentos da sentença (Código de Processo
Civil, art. 458, II), para designar as razões de decidir. No sentido
de fonte, título ou base, a noção de fundamento indica a origem
199
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
da posse (Código Civil, arts. 490, parágrafo único, e 507,
parágrafo único: “justo título”), da propriedade (Código Civil,
art. 530: aquisição da propriedade imóvel pela transcrição do
título no Registro Público), ou do processo de execução (Código
de Processo Civil, art. 538: ‘toda execução tem por base título
executivo judicial e extrajudicial).
No campo da teoria geral do direito, fundamento está
relacionado à noção de validade das normas, ou seja, a razão justificativa
última, o porquê de a norma ser válida e o porquê de devermos observála e cumpri-la.
É fato que, na atualidade, ninguém discute a hierarquia criada
pelo ordenamento jurídico segundo a qual as normas se apresentam
no direito, hierarquia esta que emerge todas as normas à Constituição
Federal e esta, por sua vez, ao poder constituinte.
Entretanto, conforme leciona o autor supracitado (Fábio Konder
Comparato), se indagarmos a origem de tudo até o fim, será difícil de
chegar ao fundamento último do poder constituinte originário sem sair
do plano do direito. Vejamos:
Não parece haver dúvida que o poder constituinte encontra seu
fundamento último, ou num fato – isto é, a força dominadora
de um indivíduo, de uma família, de um testamento, de um
partido político, ou de uma classe social – ou, então num
princípio ético, isto é, numa razão justificativa de conduta,
que transcende a autoridade dos constituintes. Ora, como
bem observaram os pensadores políticos, a organização
social baseada exclusivamente na força não tem condições de
subsistir, pois carece de uma justificativa ética, que tranquilize a
consciência social. Na frase lapidar de Rousseau, ‘o forte não é
nunca bastante forte para ser sempre o senhor, se não faz da sua
200
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
força um direito e da obediência um dever’. Resta, portanto, o
princípio ético.
O que o Professor Comparato assinala é que o princípio
como razão justificadora de determinada conduta, pautado na ética, é
fundamental à essência do próprio direito, razão pela qual não há que
se falar em direito fundado, tão somente, em normas, uma vez que o
princípio ético está para além e é anterior à norma em si.
Importante, nesse contexto, salientar o enquadramento dos
direitos humanos, segundo a concepção positivista brasileira: são direitos
humanos os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.
Entretanto referida classificação não possui solidez, uma vez que os
direitos humanos não se resumem aos direitos fundamentais, estando
eles dentro e fora do texto constitucional. Dentro, no que diz respeito aos
direitos e garantias fundamentais, esparsos pela Constituição Federal e
fora enquanto a mola propulsora na qual ela está fundada.
Dessa forma, vale destacar o preâmbulo da Carta Constitucional,
uma vez que ele invoca os direitos humanos, ressaltando-os mesmo antes
das disposições legais contidas no bojo do egrégio documento legal, de
tal sorte que os direitos humanos se apresentam como a essência da
própria carta constitucional. Vejamos:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais,
a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social
e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte Constituição Da República Federativa Do Brasil.
201
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Conclui-se, portanto, que a Constituição Federal foi fundada
para, além da efetivação dos direitos fundamentais, tais como a segurança,
a igualdade, os direitos sociais e individuais, também garantir “valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”,
valores esses pautados nos direitos humanos.
Ainda no tocante aos direitos humanos, vale mencionar a
contribuição de Amartya Sen quanto à abordagem feita sobre o tema em
obra na qual analisa o desenvolvimento como uma forma de liberdade.
Segundo o autor (Sen, 2012, pag. 292) “os direitos
humanos também se tornaram uma parte importante da literatura do
desenvolvimento [...], entretanto, essa aparente vitória da ideia e do uso
dos direitos humanos coexiste com um certo ceticismo real”.
O autor elenca as principais formas de ceticismo à ideia e uso
dos direitos humanos, correlacionando-os em três críticas, as quais
denominam como crítica da legitimidade, crítica da coerência e crítica
cultural. Vejamos:
[...] O receio de que os direitos humanos confundam
consequências de sistemas legais, que conferem às pessoas
direitos bem definidos, com princípios pré-legais que não podem
realmente dar a uma pessoa um direito juridicamente exigível
[...]. Nessa concepção os seres humanos nascem sem direitos
humanos tanto quanto nascem sem roupa, os direitos teriam
de ser adquiridos por meio da legislação, como as roupas são
adquiridas de alguém que as faz. As roupas não existem antes
de serem feitas, do mesmo modo como não existem direitos prélegislação.
A essa primeira crítica ao uso dos direitos humanos o
autor denomina de crítica da legitimidade e a rebate com a seguinte
argumentação (Sen, pag. 295):
202
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
De fato os direitos humanos podem ultrapassar a esfera dos
direitos legais potenciais, em oposição aos direitos reais. [...]
O direito moral de uma esposa participar plenamente, como
igual, das decisões familiares importantes independentemente
do quanto seu marido seja machista pode ser reconhecido por
muitos que, não obstante, não desejam que essa exigência
seja legalizada e imposta pela polícia. O direito ao respeito é
outro exemplo no qual a legalização e a tentativa de imposição
seriam problemáticas, e até mesmo desconcertantes. [...] Mas
essa interpretação a normativa não precisa anular a utilidade da
ideia de direitos humanos no tipo de contexto no qual eles são
comumente invocados.
Sobre a crítica que o autor denomina como crítica da coerência,
depara-se com a seguinte argumentação (Sen, 2012, pag. 293):
A segunda linha crítica relaciona-se à forma assumida pela
ética e pela política dos direitos humanos. [...] Nessa concepção
direitos são pretensões que requerem deveres correlatos. [...]
Pode ser muito bonito, diz esse argumento, afirmar que todo ser
humano tem direito a alimento ou a serviços médicos, mas, se
não houver sido caracterizado nenhum dever específico de um
agente, esses direitos não podem realmente “significar” grande
coisa.
O autor rebate essa argumentação da seguinte forma (Sen, 2012,
pag. 296):
Na verdade há quem não veja sentido nenhum em um direito
se este não for associado ao que Immanuel Kant denominou
uma “obrigação perfeita” - um dever específico de um agente
203
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
específico de realizar esse direito. [...] Os direitos humanos são
vistos como direitos que são comuns a todos, independentemente
de cidadania, ou seja, os benefícios que todos deveriam ter.
Embora não seja dever específico de nenhum indivíduo assegurar
que a pessoa usufrua seus direitos, as pretensões podem ser
dirigidas de modo geral a todos os que estiverem em condições
de ajudar. Immanuel Kant já caracterizara essas reivindicações
gerais como “obrigações imperfeitas”, discutindo a seguir sua
relevância para a vida social.
Por fim, demonstra o autor um terceiro argumento contrário à
ideia e uso dos direitos humanos, o qual apresenta-se da seguinte forma
(Sen, 2012, pag. 294):
A terceira linha de ceticismo não assume exatamente uma
forma legal e institucional, mas vê os direitos humanos como
pertencentes ao domínio da ética social. A autoridade moral dos
direitos humanos, por essa perspectiva, depende da natureza
de éticas aceitáveis. Contudo, essas éticas são realmente
universais? E se algumas culturas não consideram os direitos
particularmente valiosos em comparação com outras virtudes
ou qualidades preponderantes?
Dessa forma defende o autor que (Sen, 2012, pag. 297):
a ideia dos direitos humanos é realmente tão universal? Não
existem éticas, como as do mundo das culturas confucianas, que
tendem a ressaltar a disciplina em vez dos direitos, a lealdade
em vez das pretensões? Na medida em que os direitos humanos
incluem pretensões à liberdade política e aos direitos civis,
alguns teóricos asiáticos em particular identificaram supostas
204
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
tensões. De todo modo, reconhecer diversas culturas em todo
o mundo é muito importante no mundo contemporâneo e uma
forma de assegurar os direitos humanos a determinados grupos.
Percebe-se que há uma tentativa constante do positivismo em
desconsiderar a ideia de direitos humanos e, consequentemente, o seu
uso, entretanto, os direitos humanos independem de formalidades legais
e são intrínsecos ao homem, dada a sua própria condição humana. Noutra
senda, todas as argumentações contrárias à ideia dos direitos humanos
são facilmente rebatidas, conforme se demonstrou, inclusive, fazendo
uso do posicionamento de Amartya Sen.
2.1.1 Breve contexto histórico do positivismo jurídico
No século XII em razão das guerras de religião (catolicismo versus
protestantismo) a Europa Ocidental passou a pesquisar o fundamento
exclusivamente terreno para a validade do direito. Essa pesquisa tinha
como “pano de fundo” duas situações vividas pela sociedade naquela
época: a ressurreição da moral naturalista estoica (também denominada
jusnaturalismo) e o antinaturalismo.
A ressurreição da moral naturalista estoica ou jusnaturalismo
defendia a ideia de que as leis positivas em todos os países têm suas
raízes e a sua validade fundada no direito natural.
Já para o movimento antinaturalista que teve como principais
adeptos Hobbes, Locke e Rousseau, a crença no “estado da natureza”
gerava uma insegurança máxima para a sociedade política e por essa
razão o homem deveria ser protegido contra essa concepção de validade
do direito.
O positivismo jurídico foi fundado no antinaturalismo defendido
por Hobbes, Locke e Rousseau.
Vale Lembrar o entendimento do Professor Fábio Comparato
205
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
(2000, p. 54) sobre a teoria positivista:
Segundo a teoria positivista, o fundamento do direito não é
transcendental ao homem e à sociedade, mas se encontra no
pressuposto lógico (o ‘contrato social’ ou a norma fundamental)
de que as leis são válidas e devem ser obedecidas, quando forem
editadas segundo um processo regular (isto é, organizado por
regras aceitas pela comunidade) e pela autoridade competente,
legitimada de acordo com princípios também anteriormente
estabelecidos e aceitos.
Assim, concluímos que de acordo com a teoria positivista o
direito se funda em um pressuposto lógico, não podendo ser aceita a tese
de que o direito surge antes mesmo do homem e da sociedade humana,
isso porque as leis só são consideradas válidas após a sua edição, por
meio de um procedimento regular que implica na aceitação das regras
pela comunidade, por meio da autoridade competente, portanto, há um
extremo formalismo: o de que só é aceita a norma decorrente deste
procedimento regular.
Entretanto, exacerbado formalismo pode ser extremamente
perigoso, conforme se demonstrará a seguir, razão pela qual, nesse
sentido, entende-se que há uma grande falha na doutrina positivista.
2.1.2 A falha do positivismo jurídico
A falha no positivismo jurídico consiste no fato de o fundamento
ou princípio da norma ser considerada em si mesma, ou seja, o fundamento
do direito positivo é a norma que está no próprio direito positivo e que
obriga todos a observá-la.
No entanto sabemos que o princípio ou o fundamento de algo
esta sempre fora dele.
206
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
É exatamente aí que se coloca a questão dos direitos humanos,
pois a sua validade deve assentar-se em algo mais profundo que a
organização estatal, ainda que essa organização se baseie na Constituição
Federal.
Importante destacar que a concepção positivista do direito é
incompatível com a afirmação de autênticos direitos humanos, pois os
direitos humanos não se contentam com uma validade formal de normas,
como no positivismo jurídico, mas sim no valor ético do direito.
Vale ressaltar o art. 5º da Constituição da República Federativa
do Brasil como exemplo, segundo a qual são admitidos os tratados
internacionais. Vejamos:
Art. 5º. ... omissis ...
§2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte.
Percebe-se que o Brasil aceita os tratados de direitos humanos
porque no ordenamento jurídico brasileiro está previsto o princípio da
prevalência desses direitos como um dos alicerces da Carta Constitucional,
nesse caso, naquilo que se refere às relações internacionais.
Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas
relações internacionais pelos seguintes princípios:
II – prevalência dos direitos humanos.
Prevalência significa a validade anterior, ou seja, aquilo que
tem valor e qualidade antes de algo, nesse caso, antes mesmo da própria
norma, traduzida pela Constituição Federal.
Da leitura do dispositivo legal supracitado pode-se concluir que
207
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
os direitos humanos valem antes e “sobre tudo” (acima de tudo), têm
prevalência prévia, antecedente, primitiva, ou seja, os direitos humanos
valem antes da própria norma constitucional.
Dessa forma, em um conflito de normas no qual esteja presente
aquela que protege os direitos humanos, de acordo com a normativa legal
pautada na Constituição Federal, será obedecida a norma de direitos
humanos.
Importante esclarecer no contexto aqui empregado que o
conceito de normas abrange também os princípios180.
Contudo, segundo o direito positivo só terá validade a norma ou
a regra que tenha se fundado num regular procedimento de normatividade
jurídica, passando por todo o processo legislativo, de tal sorte que seja lançada
no ordenamento jurídico sob a forma de direito posto, razão pela qual, segundo
essa lógica os direitos humanos não estão incluídos no conceito de norma.
Esse formalismo, no entanto, é extremamente perigoso porque,
ao aceitar somente aquilo que está “posto” no ordenamento jurídico sob a
forma de norma regular, cria uma espécie de arma contra a efetividade dos
direitos humanos, direitos humanos esses que, conforme supracitados,
sequer necessitam de leis para ter validade, dada a sua prevalência.
Nesse sentido, é que correto afirmar que a fonte primária de todos
os direitos, e não apenas dos direitos fundamentais181, é o ser humano, ou
a pessoa humana, sendo o fundamento ou princípio dos direitos humanos
o próprio homem.
2.2 Noção de princípios ou fundamentos nos direitos humanos
Segundo Noberto Bobbio (1992, p.15): “O problema do
fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate
180
Sendo assim, o conceito de norma empregado no parágrafo anterior se refere aos princípios,
portanto, aos direitos humanos.
181
O direito positivo costuma admitir a existência dos direitos humanos com maior pacifismo
somente naquilo que se refere aos direitos fundamentais.
208
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que
se gostaria de ter”.
Os direitos humanos são direitos desejáveis aos homens, se
tratam de direitos dos quais os seres humanos vivem em busca constante
e incessante de ter e efetivar, mas que, apesar da sua desejabilidade,
ainda não foram totalmente reconhecidos. Daí o esforço para alguns em
estabelecer de forma sólida os seus fundamentos.
Dessa forma é que duas possíveis fundamentações para os direitos
humanos seriam a fundamentação jusnaturalista e a fundamentação ética,
conforme será exposto a seguir.
2.2.1 Fundamentação jusnaturalista
Segundo a fundamentação jusnaturalista os direitos humanos
são admitidos como direitos naturais e como derivação direta da crença
no Direito Natural convém destacar três características relevantes
defendidas por autores renomados. Vejamos:
Segundo Maritan (apud Duarte, 2002, p. 126) os direitos naturais
são inerentes ao ser humano, isso porque são:
[...] anteriores e superiores às legislações críticas e aos
acordos entre governos, direitos aos quais não incumbe à
comunidade civil outorgar, mas sim reconhecer e sancionar
como universalmente válidos, e que nenhuma consideração de
utilidade social poderia, nem sequer momentaneamente, abolir
ou autorizar sua infração.
Para Galiano (apud Duarte, 2002, p.127):
se entende por direitos naturais aqueles direitos que tem
por titular o homem, não por graciosa concessão das normas
209
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
positivas, mas independentemente delas e pelo mero fato de ser
o homem, de participar da natureza humana.
Para o mesmo autor (apud Duarte, p.127) “os direitos
humanos existem e o sujeito os possui independentemente de que sejam
reconhecidos ou não pelo Direito positivo”.
Dessa forma, conclui-se que os direitos humanos segundo a
concepção jusnaturalista são derivados do Direito Natural e superiores a
qualquer ordem jurídica, posto que inerentes à própria condição humana.
2.2.2 Fundamentação ética
Segundo a fundamentação ética, os direitos humanos são
admitidos como direitos morais. Sendo assim, empregariam os direitos
humanos o conceito dos direitos morais fundados na tradição anglo-saxã,
ou seja, o direito se definiria de acordo com os bens e necessidades do ser
humano e por isso seriam dignos de serem protegidos e exigidos do resto
da sociedade. Esses direitos são opostos aos direitos jurídico-positivos.
Segundo Añón (apud Duarte, 2002, p.130):
[...] os direitos humanos como direitos morais seriam aquelas
exigências éticas, bens, valores, razões ou princípios morais de
especial importância gozados por todos os seres humanos, pelo
simples fato de serem seres humanos.
Para o autor supracitado, os direitos humanos na acepção de
direitos morais permitem uma exigência ou demanda frente à sociedade e
possuem a pretensão de ser incorporados ao ordenamento jurídico como
direito positivo.
Já para Fernández (apud Duarte, 2002, p.131):
210
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
[...] a fundamentação ética ou axiológica dos direitos humanos
fundamentais parte da tese de que a origem e fundamento destes
direitos nunca pode ser jurídica, mas sim prévia ao jurídico. O
direito [...] não cria os direitos humanos.
Por fim, ainda segundo o autor supracitado quando partimos
da ideia de que toda norma pressupõe valores aceitamos ainda mais a
justificativa racional dos direitos humanos fundamentais.
Da afirmação acima, conclui-se que se toda norma admite um
juízo valorativo, visto que quando da sua criação houve o emprego de
valores daquele que a editou, e mesmo assim são elas consideradas
normas e, portanto, direito positivo, então os direitos humanos encontram
aí o seu fundamento enquanto direito positivo, pois é da sua essência o
valor do homem em si.
3. Princípios e fundamentos dos direitos humanos
Os princípios e fundamentos dos direitos humanos delineados
neste item consideram como corte metodológico aquele realizado pelo
Professor Fábio Comparato, ou seja, dentre as características que são
consideradas fundamentos dos direitos humanos, foram consideradas
aquelas traçadas pelo ilustre professor.
Dessa forma, os princípios e fundamentos dos direitos humanos
são as características inerentes ao homem e que conferem a ele, desde
que observados, a sua dignidade enquanto pessoa humana, consistindo
eles na liberdade, na autoconsciência, na socialidade, na historicidade e
na unicidade existencial.
Entretanto, não há como falar em princípio ou fundamento dos
direitos humanos sem ressaltar a ideia de dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, percebe-se que há uma tendência moderna de se vincular
a ideia de que o fundamento do direito é algo que já não deve mais ser
211
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
procurado na esfera sobrenatural da revelação religiosa. Isso porque se o
direito e, nesse caso, os direitos humanos, é uma criação do homem, ele
(direito) só pode ter seu fundamento no próprio homem, considerado em
sua dignidade de pessoa.
Nesse sentido, analisemos alguns dos textos normativos
constitucionais ou egrégios de ordenamentos jurídicos pelo mundo
posteriores à Segunda Guerra Mundial, a começar pela citação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (apud Comparato, 2000, p.
55), segundo a qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais, em
dignidade e direitos” (art. I).
No mesmo sentido é a Constituição da República Italiana (apud
Comparato, 2000, p. 55) “todos os cidadãos têm a mesma dignidade
social” (art. 3º).
Para a Constituição da República Federal Alemã (apud
Comparato, 2000, p. 55) “A dignidade do homem é inviolável. Respeitála e protegê-la é dever de todos os Poderes do Estado” (art. 1º).
Em Portugal a Constituição menciona a dignidade humana em
seu preâmbulo, conforme destaca o Professor Comparato (2000, p. 55):
“Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade humana e
na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre,
justa e solidária”.
Na Constituição Espanhola a dignidade humana aparece da
seguinte forma (apud Comparato, 2000, p.55) “a dignidade da pessoa,
os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da
personalidade, o respeito à lei e aos direitos alheios são o fundamento da
ordem política e da paz social” (art. 10).
No Brasil, a Constituição Federal menciona em seu artigo 1º
como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana
(Brasil, 1988).
Conclui-se, assim, que muitos são os preceitos nas legislações
esparsas pelo mundo que atentam para a defesa e efetivação do princípio
212
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
da dignidade humana. Dessa forma necessário se faz compreender o
significado da expressão dignidade humana, conforme se propõe explicar
no próximo item do presente trabalho.
3.1 A dignidade humana
O pensamento ocidental é herdeiro de duas tradições antagônicas
parcialmente entre si: a tradição judaica e a grega.
Na tradição judaica há a ideia de uma certa participação do
homem na essência divina, de tal sorte que o próprio Gênesis na Bíblia
(Capítulo 1, versículo 26) ressalta a proposição de que “Deus disse –
façamos o homem à nossa imagem e semelhança”.
Na tradição grega, por sua vez, o homem possui uma dignidade
própria e independente, não advém de um deus e tampouco de qualquer
outra criatura, prova dessa afirmação a proposição de Sófocles em
Antígona (apud Comparato, 2000, p. 56): “há muitas maravilhas no
mundo, mas a maior é o homem”.
Segundo Fábio Comparato (2000, p.58), um dos elementos
componentes da dignidade humana é o fato de o homem ser “um ser
essencialmente moral, ou seja, que todo o seu comportamento consciente
e racional é sempre sujeito a um juízo sobre o bem e o mal”.
No entanto, é com o estabelecimento de alguns conceitos sobre
as características próprias do homem, que nesse momento denominamos
de princípios ou fundamentos dos direitos humanos, que o conceito
de dignidade da pessoa humana adquire forma, encontrando seu real
significado.
Importante, reiterar que os direitos humanos são decorrentes da
própria condição humana, entretanto, quando se adquire essa condição
humana?
Geralmente a condição humana é adquirida com a vida e em
alguns ordenamentos jurídicos como o brasileiro essa condição humana
213
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
é conferida antes mesmo do nascimento.
O delinear deste momento que se entende como de origem da
condição humana é importante justamente para compreender quando são
conferidos ao homem os direitos decorrentes dessa condição.
No direito civil brasileiro há previsão de aquisição da
personalidade mesmo antes do nascimento com vida, visto que a lei
resguarda os direitos do nascituro.
Nesse sentido, dispõe o Código Civil Brasileiro:
Art. 1º. Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.
Art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento
com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos
do nascituro.
Dessa forma, resta cristalino que a pessoa adquire direitos desde
o seu nascimento com vida ou, segundo alguns ordenamentos jurídicos
como o brasileiro, antes mesmo desse nascimento, ou seja, desde a sua
concepção.
Em interpretação estrita à Declaração Universal dos Direitos
Humanos, encontramos entendimento semelhante no sentido de que a
dignidade é anterior ao homem. Vejamos:
Art. I. Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em
relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Sendo a dignidade um atributo de extrema importância à pessoa
humana e até mesmo anterior a ela, conclui-se que, além de os direitos
humanos encontrarem o seu principal fundamento e até mesmo o seu
princípio, enquanto origem, nela é importante também analisar de que
forma e por quais meios se dá a sua efetivação.
214
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
3.2 A liberdade
A liberdade é o primeiro dos fundamentos de direitos humanos.
Segundo o Professor Fábio Konder Comparato (2000, p. 58): “É a
liberdade que faz do homem um ser dotado de autonomia, vale dizer, de
capacidade para ditar suas próprias normas de conduta”.
Uma vez violado o direito à liberdade da pessoa restará lesada
a sua condição de sujeito de direitos e restarão, também, violados os
seus direitos humanos. Nesse sentido é que a Declaração Universal dos
Direitos Humanos logo no seu art. I resguardou a liberdade, assegurando
que ela, ao lado da dignidade, é anterior ao próprio homem, ou seja, o
homem já nasce livre. Vejamos:
Art. I. Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em
relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
A liberdade é que confere ao homem a autonomia para ditar
as suas regras de conduta, segundo o bem ou o mal. O homem faz suas
escolhas e é “sobre o fundamento último da liberdade que se assenta todo
o universo axiológico”, quer dizer, é sobre a liberdade que se assentam as
preferências valorativas das quais o homem pode e deve utilizar quanto
à sua conduta (Comparato, p. 58).
Nesse sentido, vale destacar o entendimento do Professor Fábio
Konder Comparato (p. 58):
A liberdade é a fonte da consciência moral, da faculdade de julgar
as ações humanas segundo a polaridade entre bem e mal. Vem
a propósito assinalar que no mito bíblico do paraíso terrestre
(Gênesis 3,5) a verdadeira vida humana – na alegria e na dor,
no amor e no ódio – só principiou a partir do momento em que
215
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
o primeiro casal provou do fruto proibido da árvore da ciência
do bem e do mal. A partir de então, como disse o tentador, os
homens passaram a ser “como deuses”, isto é, a viver em plano
superior ao de todas as demais criaturas.
Dessa forma, pode-se concluir que a liberdade, além de
fundamental ao exercício de direitos inerentes à própria natureza humana,
é a fonte da consciência moral e da faculdade de julgar as ações humanas
segundo o bem e o mal.
3.3 A autoconsciência
O homem possui a consciência de sua própria subjetividade, o
que significa dizer que diferentemente dos demais animais (irracionais)
que se regem por seus instintos, o homem é um conhecedor da sua
condição de ser vivente e mortal, de tal sorte que a sua acumulação
histórica não apaga nunca.
Segundo o Professor Fábio Comparato (2000, p.59): “O homem
é, portanto, essencialmente, um animal reflexivo, capaz de enxergar
como sujeito no mundo ‘o eu e sua circunstância’ segundo fórmula célere
de Ortega y Gasset”.
Ainda de acordo com o Professor Fábio Konder Comparato
(p. 59):
A autoconsciência opõe-se ao estado de alienação, que é negativa
da especificidade humana, como enfatizou Feuerbach. Alienado
diz-se o homem que é incapaz de exercer sua liberdade e que
vive, portanto, em situação de permanente heteronomia. Marx
explicou tal conceito, como sabido, à sociedade de classes e à
classe operária em particular. Entendeu que, a partir do momento
em que a classe operária lograsse adquirir autoconsciência e
216
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
superar dialeticamente seu estado de objetiva alienação, toda a
sociedade seria enfim humanizada.
Dessa forma é que a autoconsciência é um dos fundamentos dos
direitos humanos, pois ela é uma característica peculiar ao ser humano,
na medida em que somente o homem é capaz de ter a dimensão da sua
subjetividade, não se deixando mover, apenas, por instintos, ou seja, o
ser humano é dotado de um poder de abstração que o torna consciente
daquilo que ele é e das circunstâncias sob as quais vive no tempo e no
espaço.
3.4 A sociabilidade
Foi na política de Aristóteles que o caráter essencialmente
sociável do ser humano ganhou ênfase, segundo o grande filósofo (apud
Comparato, 2000, p.59) “o homem era parte de um todo social, sendo
esse todo precedente sempre às partes que o compõem. Assim, a pólis é
por natureza anterior ao indivíduo”. Vale esclarecer que polis significa
sociedade.
Modernamente, referida concepção de que o homem é parte de
um todo social não é bem aceita. Isso porque essa teoria pressupõe uma
supremacia ética da sociedade em relação ao indivíduo, razão essa que
justifica o autoritarismo, portanto, descabida.
Segundo o Professor Fábio Comparato (2000, p. 59): “o que
se deve entender é que o indivíduo humano somente desenvolve as
suas virtualidades de pessoa, isto é, de homem capaz de cultura e autoaperfeiçoamento, quando vive em sociedade.”
Dessa forma, a sociabilidade é um fundamento dos direitos
humanos na medida em que o homem não vive só, está ele cercado
de demais seres humanos com interesses idênticos ou diversos e todos
dotados de direitos decorrentes dessa condição humana.
217
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Os direitos humanos devem compreender o indivíduo na sua
concepção de pessoa, respeitando a sua individualidade, mas também
considerando esse fato importante de estar o indivíduo inserido numa
coletividade, onde os seus interesses individuais não podem se sobrepor
aos interesses dos demais indivíduos.
3.5 A historicidade
O ser humano, conforme já mencionado, é um ser autoconsciente
e essa autoconsciência significa também dizer que é ele (homem)
resultado de uma acumulação histórica inacabada.
Dessa forma, conforme o permanente inacabamento de que
falou Heidegger em sua literatura do existencialismo (apud Comparato,
2000, p. 59), o homem é um ser inacabado o que significa que é ele um
ente cujo ser não se completa nem se consuma jamais, mas ao longo da
história vai ele se modificando pela experiência acumulada e pelo projeto
de novos ensaios de vida.
Importante destacar também a breve passagem que Carlos
Santiago Nino (2011, p.153) faz sobre o tema ao discutir sobre a
concepção liberal da pessoa em sua obra “Ética e Direitos Humanos”,
segundo o qual:
Se, no final das contas, pessoas são coletâneas de memórias,
desejos e etc., que têm relações de continuidade e conectividade
entre elas, por que seria algo tão importante situar um desejo
nesse ou naquele sistema (decidir, por exemplo, satisfazê-lo ou
não, de acordo com o quanto os demais desejos dos sistemas
estão satisfeitos)? As coletividades também são universalmente
vistas como detentoras de interesses e fins independentemente e
às vezes anteriores aos interesses e fins das pessoas que fazem
parte delas.
218
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Importante destacar que, em que pese o fato de autor estar
diante de uma crítica à concepção de pessoa somente no tocante à sua
individualidade e na defesa da identificação de pessoa como membro
de uma coletividade que também possui desejos, os quais merecem ser
satisfeitos; o que se pode absorver da passagem supramencionada é que
as pessoas são “coletâneas de memórias”, ou seja, também para Nino a
pessoa possui esse aspecto da historicidade.
Sendo assim, a historicidade é também um dos fundamentos dos
direitos humanos que deve compreender o homem na sua essência, a
qual, conforme demonstrado, é, sobretudo, uma essência histórica.
2.6 A unicidade existencial
Outra característica própria da condição humana é o fato
de sermos todos insubstituíveis e, por isso, seres únicos. A ciência
demonstrou isso com a descoberta do código genético, pois a partir dele
houve o reconhecimento de que cada indivíduo possui um genótipo
único, invariável e irreprodutível, fato este que nos torna únicos.
Nesse sentido vale lembrar as palavras do Professor Fábio
Comparato (2000, p. 60):
O homem como espécie, e cada homem em sua individualidade,
é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode
ser trocado por coisa alguma. Mais ainda: o homem é não só o
único ser capaz de orientar suas ações em função de finalidades
racionalmente percebidas e livremente desejadas, como é,
sobretudo, o único ser cuja existência, em si mesma, constitui
um valor absoluto, isto é, um fim em si e nunca um meio para a
consecução de outros fins. É nisto que reside, em última análise,
a dignidade humana.
219
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Nesse sentido, cabe destacar o art. II da Declaração Universal
dos Direitos Humanos:
Art. II. 1. Todo homem tem capacidade para gozar os direitos
e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção
de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social,
riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na
condição política, jurídica ou internacional do país ou território
a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território
independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a
qualquer outra limitação de soberania.
Interessante observar que nas relações humanas, constantemente,
verificamos situações de intolerância de pessoas umas para com as outras,
em virtude da não aceitação dos desejos e escolhas dou outro.
O ser humano está condicionado a aceitar somente aquilo que é
compatível com os seus desejos e que, dentro dos parâmetros intrínsecos
à sua subjetividade, são tidos como corretos, aceitáveis e compreensíveis.
No entanto, as pessoas não são iguais e a própria ciência já
demonstrou que cada ser humano possui um código genético que o torna
insubstituível, conforme demonstrado acima. Não sendo os seres humanos
iguais em desejos e escolhas, não é possível conceber a essa exigência de
que os seres humanos sejam todos compatíveis em desejos e escolhas.
A Declaração Universal de Direitos Humanos, identificando
a distinção existente entre as pessoas, visa promover a igualdade, pelo
emprego da não-discriminação de qualquer gênero. Esse preceito foi
acolhido por diversos textos constitucionais espalhados pelo mundo,
incluindo o Brasil, de tal sorte que se apresenta como uma disposição de
direitos humanos.
220
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Conclusão
Conforme amplamente demonstrado neste trabalho todas as
características, ora denominadas fundamentos, próprias do homem
denotam a dignidade da pessoa humana, dignidade essa que se caracteriza
como o principal fundamento dos direitos humanos.
A dignidade transcendente é um atributo essencial do homem
enquanto pessoa, isto é, do homem em sua essência, independentemente
das qualificações específicas de sexo, raça, religião, nacionalidade,
posição social, ou qualquer outra, conforme bem salientou o Professor
Fábio Konder Comparato (2000, p.60).
Dessa forma é que os princípios ou fundamentos dos direitos
humanos são atributos inerentes ao homem, dada a sua condição
humana, que servem de pressuposto para a real medida de uma vida
digna em um Estado Democrático de Direitos. Isso porque somente os
Estados Democráticos de Direitos fazem comportam a validação dos
direitos humanos, visto que em Estados Totalitários não há lugar para
sua aceitação.
O direito internacional dos direitos humanos como uma
provocação internacional decorrente dos horrores da guerra possui a
ambição de ser incorporado a todos os ordenamentos jurídicos, uma vez
que, em que pese toda a discussão positivista acerca de sua validade, é
o direito positivo um importante instrumento de eficácia desses direitos.
Apesar da exaustão de alguns estudiosos em tentar fundamentar
os direitos humanos como uma tentativa de validá-lo, o problema central
da matéria não está relacionado à suposta dúvida que paira quanto à sua
existência, visto que eles existem, de fato, uma vez que o único requisito
que se impõe é a condição humana, condição esta que se dá com o
nascimento com vida e, em algumas legislações existentes pelo mundo
até mesmo antes do nascimento, resguardando-se esses direitos desde a
concepção, como é o caso do Brasil.
221
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
A questão que se verifica é a de que sejam os direitos humanos
efetivados e garantidos pelo maior número de legislações positivas
das nações possíveis em todo o mundo, de modo que o homem seja
considerado como elemento essencial nos ordenamentos jurídicos de
toda a humanidade, sendo respeitada a sua dignidade enquanto pessoa,
de modo que dele, e dessa condição humana essencial, decorram todos
os demais direitos. É essa a razão da Declaração Universal de Direitos
Humanos mencionar a proibição de torturas, do trabalho escravo, da
discriminação, dentre outras, em respeito à igualdade e dignidade que
todos os homens, sem distinção possuem (art. 1º).
E uma suposta forma de se conquistar a efetivação dos direitos
humanos é a aceitação dessas normas de direito internacional nos
ordenamentos jurídicos de direito positivo, da mesma forma como a
sua incorporação vem avançando nas cartas constitucionais dos Estados
Democráticos de Direitos, sobretudo nos países de cultura ocidental.
222
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Referências
ARENDT, Hanna. A condição humana. 10. ed. São Paulo: Forense
Universitária, 2004.
BALERA, Wagner. et al. Comentários à Declaração Universal dos
Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo: Conceito, 2011.
BRASIL. Código Civil. 2002.
____________. Constituição Federal. 1988.
BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
COMPARATO, Fábio Konder. Fundamento dos Direitos Humanos. A
Noção Jurídica de Fundamento e sua Importância em Matéria de Direitos
Humanos. In: Revista Consulex, 2000.
LIMA, Alceu Amoroso. Os Direitos do Homem e o Homem sem Direitos.
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NINO, Carlos Santiago. Ética e Direitos Humanos. Rio Grande do Sul:
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SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia
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SILVA, Fernanda Duarte L. Lucas da. Fundamentando os Direitos
Humanos: Um breve Inventário. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org).
Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
223
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
10
“Édipo rei” de Sófocles e a verdade segundo Heidegger
Márcia Regina Pitta Lopes Aquino
Doutoranda em Filosofia do Direito na PUC-SP. Mestre em Direito Processual
Civil pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Especialista em Filosofia
(UEL). Advogada. E-mail: [email protected]
“A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser
mora o homem. Os pensadores e poetas são
os guardas desta habitação”.
Heidegger (1973, p. 347)
224
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Introdução
A epígrafe talvez já pudesse iniciar e encerrar o texto que se
apresenta numa publicação em homenagem ao professor Willis Santiago
Guerra Filho. Não porque ele não mereça muitas palavras de carinho
e consideração, mas pela limitação de quem as escreve. Melhor fazer
uso das palavras de Heidegger. Os pensadores e poetas são os vigias
da linguagem, da morada do homem. Ao professor Willis – pensador
e poeta – a minha eterna gratidão. Em meio à extrema dor, diante do
vazio sem fim, dele vieram palavras de resgate. E não foi o resgate
para uma vida sem sentido, o que não seria resgate propriamente, mas
para o sentido da vida. Será sempre necessário agradecer, e a forma de
agradecer será sempre precária. Aqui a opção foi tratar do que também
nos remete a um sempre: uma das três peças de Sófocles que compõem
a Trilogia Tebana: Édipo Rei. Entre outras, essas peças foram objeto de
estudo nas aulas do professor Willis na disciplina “Direito e Poética” que
ele, há algum tempo, vem ministrando na PUC-SP. O presente trabalho
só de maneira diminuta consegue demostrar a riqueza desses encontros.
Para quem já teve a oportunidade ímpar de assistir as “teatraulas” com
o professor Willis este estudo é apenas uma humilde lembrança do que
já foi visto; e quem ainda não assistiu, espera-se que aqui esteja um
estímulo para que as veja.
As tragédias gregas são obras que parecem eternas. Aos que
nasceram, viveram e vivem no Ocidente elas são eternas. Ter esses
versos em mãos, poder lê-los e tentar interpretá-los parece que nos insere
nesse tempo tão longínquo capaz de conferir também a nós um pouco
de eternidade. A Trilogia Tebana de Sófocles, como se sabe, compõese de Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Contrariamente a essa
que seria uma sequência previsível, Sófocles compôs primeiramente
Antígona, depois Édipo Rei e, por último, Édipo em Colono. A hipótese
que apresenta mais defensores afirma que a data de Antígona, a primeira,
225
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
portanto, é 441 a. C. Édipo Rei foi composta por volta de 425 a. C. e
Édipo em Colono em 406 a. C. Esta última foi encenada postumamente.
Com Antígona, Sófocles, em concurso tradicional em Atenas, ganhou
o primeiro prêmio (Pereira, 2010, pp. 9-10). Já com Édipo Rei ele
ficou em segundo lugar. O período entre Antígona e Édipo em Colono
é extremamente importante para Atenas. Em 431 a. C. começa a Guerra
do Peloponeso entre Atenas e Esparta que terminaria em 404 a. C. com a
capitulação de Atenas.
1. O autor
Sófocles nasceu provavelmente no ano de 496 a.C. Era filho de
rico ateniense e sua vida acompanha exatamente a ascensão e grandeza de
Atenas após as vitórias contra os persas. Ocupou cargos administrativos
importantes como Administrador do Tesouro e Comissário do Conselho.
Lutou em diferentes expedições militares ao lado de Péricles e Nícias
e viu – ao final de sua vida – a decadência da democracia. Morreu em
406 a. C. Foi vinte e quatro vezes vencedor nos concursos trágicos. Para
se ter uma noção de sua grandeza basta dizer que Ésquilo foi vencedor
treze vezes e Eurípedes, cinco. “As honrarias acumulam-se ao longo de
sua vida e não o abandonam nem na morte [...]. Conta-se que até os
sitiantes de Atenas (a destruição da cidade era iminente) abriram fileiras
para deixar seu cortejo passar” (Rosendield, 2002, pp. 7-9).
De todas as suas peças, conservaram-se apenas sete e destas
apenas duas possuem data certa: Filoctetes (409 a. C.) e Édipo em
Colono que, como se disse, foi representada postumamente em 405 a.
C. As outras cinco são: Ajax, Traquínias, Antígona, Édipo Rei e Electra.
A discussão sobre a maior antiguidade centra-se em Antígona, Ajax e
Traquínias. “Entre a primeira e a segunda há um pormenor técnico que
tem sido considerado, por muitos, indício de composição mais tardia – o
uso de antilabê, ou seja, divisão de um verso entre dois atores. Por outro
226
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
lado, a estrutura do párodo de Ajax está mais próxima do modelo de
Ésquilo” (Pereira, 2010, pp. 9-10).
Há, de acordo com Eudoro de Sousa, dois traços originais
na dramaturgia de Sófocles: a nova esticomitia e a “ironia trágica”.
Esticomitia ‘é o termo técnico para designar o diálogo verso a verso ou,
por vezes, aquele em que interpelações e réplicas se sucedem de meio em
meio verso, i. é, de hemistíquio em hemistíquio, ou de dois em dois versos”.
É o que se pode ver em Antígona no Prólogo (diálogo entre Antígona
e Ismena), na querela entre Hémon e Creon e no quinto episódio (a fatal
disputa entre Creon e Tirésias). A novidade está em que “o diálogo abrindo
com a perfeita consonância ou concordância dos contendores, acaba
rapidamente em completa dissonância e discordância”. É para isso que
Sófocles usa a esticomitia. Nas peças anteriores - as de Ésquilo e ‘Ajax’
e Traquínias – amigos continuam amigos, inimigos continuam inimigos
a não ser que ocorra a intervenção de um outro personagem. Eudoro
de Sousa refere-se a Aristóteles para afirmar que – quanto à evolução
da tragédia – Sófocles faz verdadeiramente do “diálogo, protagonista”
(Sousa, 1978, p. 6). De fato, em Aristóteles (1973, p. 446), é possível ler
que foi Ésquilo quem primeiro elevou de um a dois o número dos atores,
diminuindo a importância do coro e fazendo “o diálogo protagonista”;
quem teria introduzido três atores e a cenografia foi Sófocles justificando
assim o advérbio ‘verdadeiramente’ utilizado por Eudoro de Sousa.
Diferentemente do que ocorre em Ésquilo, o coro de Sófocles,
como se vê em Antígona, erra na sua interpretação até próximo do final, e
sua deficiência é atenuada através do recurso à “ironia trágica”. A ‘ironia
trágica’ “dá-se de cada vez que o juízo do coro sobre os acontecimentos,
que manifestamente faz incidir desfavoravelmente sobre Antígona, é
parte da ilusão em que se apresenta e que representa: na realidade, tal
juízo recai com muito mais acerto em Creonte 182.
182
SOUSA, Eudoro. Uma leitura da Antígona. p. 7 ; Sobre a “ironia trágica” também se pode
ler: “A ironia trágica poderá consistir em mostrar como, no decurso do drama, o herói cai na
armadilha da própria palavra, uma palavra que volta contra ele trazendo-lhe a experiência amarga
227
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
2. O mito
Aristóteles afirma na Poética que “o mito é o princípio e como
que a alma da tragédia” e que as melhores tragédias versam sobre poucas
famílias e entre as quais está a de Édipo (Aristóteles, 1973, p. 449 e 454).
A trágica história da família dos Labdácidas é uma das mais conhecidas
de toda a mitologia grega, sendo já esboçada nos poemas homéricos. Os
dados essenciais do mito são: “proibição divina de descendência a Laio;
nascimento e exposição do filho deste, Édipo; entrega da criança, por um
pastor, ao rei de Corinto; viagem de Édipo, já adulto, a Delfos; encontro
com um desconhecido, a quem mata; decifração do enigma da esfinge
e consequente subida, por casamento com Jocasta, ao trono de Tebas;
nascimento de quatro filhos (Etéocles, Polinices, Antígona e Ismena);
descoberta do parricídio e incesto involuntários; suicídio de Jocasta e
cegueira de Édipo; maldição deste sobre os filhos varões, que perecerão
às mãos um do outro, no cerco de Tebas, levado a efeito por Polinices
com mais seis aliados; vingança posterior, ganha pelos filhos destes”
(Pereira, 2010, p. 11).
Ao mito, Ésquilo dedicou uma tetralogia da qual só restou a
terceira tragédia: Os sete contra Tebas representada em 467 a. C. Salientese que – diferentemente do que ocorre com os modernos – a originalidade
de um tema, para os antigos, tinha importância secundária. “O grande
mérito residia na forma de tratá-lo.” (Pereira, 2010, pp. 12-13).
A tragédia é imitação. “O imitar é congênito no homem” afirmou
Aristóteles na Poética e na tragédia o que ocorre é a imitação de homens
superiores, mas “melhores do que eles ordinariamente são” (Aristóteles,
1973, pp. 444-445). Aristóteles define a tragédia como a imitação de uma
de um sentido que ele obstinava em não reconhecer. O coro, no mais das vezes, hesita e oscila,
lançado sucessivamente para um sentido e para outro, às vezes pressentindo obscuramente uma
significação que ainda permanece secreta, às vezes formulando sem saber, com um jogo de
palavras, uma expressão de duplo sentido”. VERNANT, Jean-Pierre. Tensões e ambiguidades na
Tragédia Grega. In: Vernant, Jean-Pierre; Vidal-Naquet, Mito e tragédia na Grécia Antiga. Vários
tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2008. pp.07 - 24.
228
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
“ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem
ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas
diversas partes (do drama), (imitação que se efetua) não por narrativa,
mas mediante atores, e que, suscitando o ‘terror e a piedade, tem por
efeito a purificação dessas emoções” (Aristóteles, 1973, p. 447).
O elemento mais importante da tragédia, afirma Aristóteles
é a trama dos fatos. Porque a tragédia não é imitação de homens, mas
de ações e de vida, de felicidade ou infelicidade. E as ações é que
determinam que o homem seja ou não bem-aventurado. “Daqui se segue
que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas
assumem caracteres para efetuar certas ações; por isso as ações e o mito
constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais
importa”. (Aristóteles, 1973, p. 448).
Pois bem, o que se pretende nessa breve análise do Édipo Rei
de Sófocles é apresentar o que, neste momento, julgou-se importante
ressaltar para poder pensar a verdade e a vida que vivemos.
3. Édipo rei. A peça.
Os acontecimentos narrados na peça183 ocorrem durante a peste
que assolava Atenas por conta da qual pereceu inclusive Péricles. Logo
no início, o sacerdote pede a Édipo que reerga a pólis – Tebas - e ele
afirma que um só remédio lhe ocorreu: enviar Creon, seu cunhado, irmão
de Jocasta, a Delfos. Ao retornar, Creon, após algumas palavras que nem
tranquilizam nem atemorizam, indaga pela preferência de Édipo em ouvir
o que tinha a dizer na frente dos demais ou “no interior do paço”. Tal
indagação parece demonstrar que Creon sabia mais do que vai dizer em
seguida. Se não fosse assim, por que perguntaria sobre a possibilidade de
transmitir o que ouviu do deus, não na frente de todos, mas na intimidade
183
Nesse estudo será utilizada basicamente a tradução da peça feita por Trajano Vieira:
SÓFOCLES. Édipo Rei. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2007.
229
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
do paço? Édipo, com sua altivez, opta pela informação diante de todos
os presentes.
Era preciso, segundo Creon, expulsar o miasma, “caçar o réu,
pagar com morte o morto” (v. 100). A referência é ao assassino de Laio.
O deus recomenda punir o assassino não importando quem fosse. Mas
Édipo reconhece que, para um delito antigo, não será fácil encontrar o
autor. Então vem uma fala de Creon que é importante ressaltar nesse
trabalho: “só se acha o que se caça; o que negligenciamos nos escapa”. (v.
110-1). Édipo inicia, então, sua caçada. Interroga Creon sobre o ocorrido.
Laio saiu e não voltou. De seu grupo só um sobreviveu.
Depois das invocações e lamentações do coro, Édipo proclama
seu edito. Determina que, se alguém souber quem matou Laio que se
apresente e diga tudo. Se falar contra si mesmo, será condenado ao
exílio, se o assassino foi outro, receberá a recompensa. Mas, se aquele
que sabe do assassino se calar e for descoberto, será punido. E Édipo a
ele mesmo condena com a fala: “se acaso em meu palácio, consciente,
acontecer de recebê-lo, recaia em mim a imprecação que faço”.
Para solucionar o problema o coro sugere a presença de Tirésias,
o profeta. Édipo já o tinha feito. Tirésias, que está cego, insiste para que
tudo fique como está: “Deixa que eu volte. Cada qual sopese o próprio
fardo. Crê: será melhor”. (320-1). Porém, Édipo está firme no propósito
de descobrir o assassino de Laio e se irrita com o silêncio de Tirésias e
o provoca até que ela diga: “Afirmo que és o matador buscado” (v.362).
Édipo acusa Tirésias de um complô com Creon.
As falas que se seguem de Tirésias a Édipo são fundamentais
para o objetivo da análise aqui proposta: “Reclamo o meu poder! Não
sou teu servo, sirvo a Apolo, e independo de Creon. Falo, pois meu olhar
opaco humilhas: dotado de visão, não vês teu mal, com quem moras, em
que lugar habitas. [...] Ninguém conhecerá um desmoronamento pior que
o teu. [...] Somos quem somos: te pareço tolo, mas a teus pais alguém bem
ponderado”. (v. 410-436). Tirésias expõe o destino de Édipo: Cegueira,
230
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
miséria, morador de terra estrangeira, incestuoso, pai e irmão de seus
filhos, marido da mãe, algoz do próprio pai de quem sucedeu no trono.
Édipo discute com Creon e a discussão só é interrompida com
a chegada de Jocasta que, após ouvir seu marido, tenta tranquilizá-lo.
Todavia, as explicações de Jocasta vão desvelando para Édipo o ocorrido.
Laio recebeu no passado um oráculo segundo o qual seria morto pela
mão de seu filho com Jocasta. Ela conta ainda: “Mas forasteiros – dizem
– o mataram, ladrões na tripla interseção de estradas. Quanto ao menino,
em seu terceiro dia, Laio amarrou-lhe os pés pelos artelhos, mandou
alguém lançá-lo a um monte virgem. Assim frustrou-se Apolo: nem o
filho assassinou o pai, nem padeceu o rei – temor maior! – nas mãos do
filho, tal qual fixara o vozerio profético. Não te ocupes do nada. Quando
um deus tem um desígnio, ele o evidencia” (v. 708- 725).
Nesse momento, a fala de Tirésias começa a fazer sentido.
Édipo interroga Jocasta e, a cada resposta, tudo se vai desvelando. Onde
ocorreu o crime, há quanto tempo, qual o aspecto físico de Laio, com
quem viajava. Viajava com cinco e só um se salvou dos ataques do
grupo que matou Laio. Édipo fica aterrorizado e pede a presença desse
que restou. Antes de sua chegada, Édipo conta sua história a Jocasta. Ele,
filho de Políbio de Corinto e de Mérope, dória, um dia foi chamado por
um homem de filho putativo. Atormentado procurou Delfos em sigilo.
Saiu de lá com a previsão de miséria, dor e desastre, pois faria sexo com
sua própria mãe, gerando prole horrível de se ver e ainda seria o algoz
do próprio pai. Assustado, Édipo fugiu de Corinto e no caminho chegou
ao ponto onde morreu Laio conforme lhe contou Jocasta. Agressões
trocadas e Édipo mata o grupo. Só um restou. Era preciso agora que esse
que se salvou confirmasse o plural dos assassinos de Laio. Entretanto,
quem chega é um mensageiro trazendo a notícia da morte de Políbio de
quem Édipo se julgava filho. Édipo, então, é levado pela fala de Jocasta a
pensar que teria mesmo matado o próprio pai pela falta que lhe fez. Mas
ainda havia a profecia que dizia que dormiria com a mãe e com ela teria
231
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
filhos. O melhor era nunca voltar a Corinto.
O mensageiro tenta tranquilizar Édipo ao dizer que ele não
era filho de Políbio nem de Mérope, pois o mensageiro havia recebido
Édipo de um outro pastor servidor de Laio e o entregara a Políbio que
o aceitou porque não podia ter filhos. Édipo pergunta ao mensageiro se
havia nele alguma dor, marca talvez, no momento em que foi encontrado.
O mensageiro responde: “teus pés dão por si sós, um testemunho”. [...]
Livrei teus pés, furados nos extremos”. (v. 1032 e 1035) Apesar dos apelos
de Jocasta e do servo de Laio, Édipo insiste na investigação. Descobre
quem sempre foi: assassino e incestuoso. A profecia se cumpriu. Jocasta
se mata e Édipo diante do corpo de sua mãe e esposa cega os próprio
olhos com o fecho das vestes dela. Roga a Creon que cuide de suas filhas
– Antígona e Ismena - e que seja ele, Édipo, encaminhado ao exílio para
que volte ao monte onde deveria ter sido abandonado, monte que deveria
ter sido seu sepulcro para que se cumpra agora, com os pais mortos, o
que quiseram em vida. É o coro que termina a peça: “(...) Atento ao dia
final, homem nenhum afirme: eu sou feliz!, até transpor – sem nunca ter
sofrido – o umbral da morte”. (v. 1528-1530).
4. A verdade
Édipo queria saber sobre sua identidade. Inqueriu os que poderiam
revelar-lhe, não obstante os apelos para que parasse com a investigação e
esquecesse o mal que o incomodava. Não havia mais como voltar. Édipo
queria saber sua origem, queria saber quem era. Acaba por descobrir. É
interessante observar que a descoberta vem após um inquérito. Porém, ao
defrontar-se com sua identidade, Édipo vai dizer: “sou triplo equívoco”.
Todavia, Édipo não foi um equivoco, Édipo foi o assassino de Laio e o
incestuoso que se deitou com a mãe e dela teve quatro filhos. Viveu um
equívoco, viveu uma farsa, um engodo. Entretanto, sua história não é a
história de um equívoco, mas de uma fuga, de uma negação. Decifrador
232
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
do enigma da Esfinge, não decifrou seu próprio enigma. Fugiu para
encontrar-se. É que o que tememos já sempre habita em nós. Só fugimos
para encontrar, mais à frente, o que nos assusta. Melhor não fugir e não
despender energias na fuga, mas no enfrentamento. As marcas nos pés de
Édipo, seu próprio nome já lhe diziam quem era. Há sempre em nós algo
que nos diz quem somos mesmo que não queiramos ver. Um dia pode
ficar insuportável manter-se no engodo, na farsa e, então, o que sempre
esteve ali se mostra. Surpresos, percebemos nossa cegueira. Édipo que
se manteve cego para sua identidade, ao encará-la diante do corpo morto
de Jocasta que se suicidara, prefere se manter na cegueira ferindo os
próprios olhos como se a escuridão da cegueira física pudesse mantê-lo
na escuridão que viveu até ali. “Ele arrancou das vestes de Jocasta os
fechos de ouro com que se adornava, e, erguendo as mãos, o circulo dos
olhos golpeou” (v. 1268 – 1271). Queria também trancar os ouvidos, se
soubesse como. Queria, talvez, voltar ao escuro e ao silêncio. Impossível.
O que era se desvelou.
Para o processo de desencobrimento, afirma Heidegger, “os
gregos possuíam a palavra aletheia. Os romanos a traduziram por veritas.
Nós dizemos ‘verdade’ e a entendemos geralmente como o correto de
uma representação”. E Heidegger questiona: “Onde nos perdemos”?
O texto no qual se encontra essa afirmação e questionamento de
Heidegger trata da questão da técnica moderna (Heidegger, 2009, p.
16). Porém, um outro texto que é resultado de conferências, diversas
vezes proferidas por Heidegger desde 1930 e cuja primeira edição data
de 1943, trata justamente da “essência da verdade” e será a base para o
estudo aqui proposto184.
A tentativa agora não é expor a interpretação heideggeriana de
184
Para o estudo desse texto de Heidegger será utilizada a tradução de Ernildo Stein que consta na
Coleção Os Pensadores de 1973: HEIDEGGER. Martin. Sobre a essência da verdade. In: Coleção
Os Pensadores. vl. XLV Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril, 1973. pp. 325 – 343. Algumas vezes
recorreu-se à tradução para o espanhol: MARTIN, Heidegger. De la esencia de la verdad. Versión
de Helena Cortés y Arturo Leyte. En: Hitos. Madrid: Alianza, 2000. p. 151-171. Disponível em:
www.heideggeriana.com.ar. Acessado em: 20.06.2012.
233
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Édipo, mas tentar apresentar as ideias de Heidegger contidas nesse texto
sobre a essência da verdade para buscar compreender a verdade de Édipo
na peça de Sófocles. E Heidegger inicia o texto afirmando que a essência
da verdade não se preocupa com as “várias verdades” como a verdade
da experiência da vida, da ação, de uma reflexão técnica, da pesquisa
científica ou mesmo a verdade da criação artística, da filosofia e da fé.
Heidegger não vai tratar das evidências do senso comum que até nos dão
certa medida e segurança em meio à confusão. “Trata-se da essência da
verdade” (Heidegger, 1973, p. 331), daquilo que unicamente caracteriza
toda verdade.
De acordo com o conceito ordinário de verdade, explica
Heidegger, são verdadeiros tanto a alegria quanto o ouro e – ainda e
antes de tudo – nossas enunciações. A alegria verdadeira é pura, real.
Também o ouro verdadeiro é o ouro real. Distinguimos o ouro falso do
verdadeiro. Entretanto, ambos são algo real, mas o ouro falso só é ouro
na ‘aparência’. O ouro verdadeiro é ouro ‘autêntico’, “é aquele ouro real,
cuja realidade consiste na concordância com aquilo que ‘propriamente’,
prévia e constantemente entendemos como ouro”. A noção prevalente
aqui é a de concordância, da mesma forma ocorre com as enunciações
verdadeiras ou falsas, porém, neste caso, que neste caso o que está de
acordo é a proposição. “Uma enunciação é verdadeira quando aquilo
que ela designa e exprime está conforme com a coisa sobre a qual se
pronuncia” (Heidegger, 1973, p. 331).
Há, portanto, no conceito corrente de verdade um duplo
caráter de concordância: entre uma coisa e o que dela previamente se
presume e entre o que é significado pela enunciação e a coisa. O primeiro
remete à definição: Veritas est adaequatio rei et intellectus (verdade é a
adequação da coisa com o conhecimento). O segundo, à outra: Veritas est
adaequatio intellectus ad rem (verdade é a adequação do conhecimento
à coisa). Ambas são definições tradicionais do conceito de verdade como
conformidade e não resultam apenas da conversão de uma à outra, pois
234
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
em cada uma delas ‘intellectus’ e ‘res’ são pensados de maneira diferente.
(Heidegger, 1973, p. 332).
É preciso, explica Heidegger, conduzir a expressão corrente do
conceito de verdade a sua origem medieval, portanto, um retorno anterior
a Kant cujo pensamento só será possível a partir da essência humana
enquanto subjetividade. A verdade como adaequatio rei ad intellectum –
adequação da coisa ao intelecto - decorre da fé cristã e da teologia. As coisas,
como criaturas singulares (ens creatum), em sua essência e existência
correspondem à ideia previamente concebida pelo intellectus divinus,
ou seja, pelo espírito de Deus. Em outras palavras, a coisa singularmente
considerada em sua essência e existência é previamente concebida por
Deus e, dessa forma, adequa-se a essa ideia divina e por isso é verdadeira.
É verdadeira porque está de acordo com o espírito divino.
Entretanto, o intelecto humano como faculdade concedida por
Deus também é por Ele criado, também é ens creatum e deve adequar-se
à ideia divina. E como isso se dá? O intelecto humano está conforme o
espírito divino “porque realiza a adequação do que pensa com a coisa”
a qual, por ser criada por Deus, está conforme sua ideia. É possível
compreender, agora, porque Heidegger afirma que numa e outra definição
tradicional da verdade res e intellectus são pensados diferentemente.
A veritas enquanto adaequatio rei (creandae) ad intellectum
(divinum) garante a veritas enquanto adaequatio intllectus
(humani) ad rem (creatam) Veritas significa por toda parte e
essencialmente a convenientia e a concordância dos entes
entre si que, por sua vez, se fundam sobre a concordância das
criaturas com o criador, ‘harmonia’ determinada pela ordem da
criação (Heidegger, 1973, p. 332).
A ordem, entretanto, também pode ser representada de modo
geral e indeterminado, explica Heidegger, como ordem do mundo. Trata235
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
se da ordem de todas as coisas pelo espírito, pelo intelecto que, afastada
a noção de criação, é razão universal. O intelecto dá a si mesmo sua lei e
postula a inteligibilidade imediata das articulações de seu processo. Agora
é o homem o portador e realizador do intellectus, já que foi afastada a
noção teológica. “Paralelamente, a verdade da coisa significa sempre o
acordo da coisa dada com seu conceito essencial (sua essência), tal como
o ‘espírito’ (a razão) o concebe”. Essa forma de conceber a essência da
verdade admite que a verdade tenha um contrário, ou seja, que há a não
verdade. Não verdade, portanto, não é verdade e fica excluída da essência
da verdade e “pode ser negligenciada quando se trata de apreender a pura
essência da verdade” (Heidegger, 1973, p. 332).
Pois bem, o conceito ordinário de verdade está ligado à noção de
concordância de uma enunciação com seu objeto. Todavia, concordância
se diz em diversos sentidos. Heidegger exemplifica. Há concordância
entre duas moedas de cinco marcos porque elas são iguais por um aspecto,
entretanto também há concordância quando se diz de uma delas: a moeda
é redonda. No primeiro caso, trata-se de concordância entre uma coisa
e outra, no segundo, entre uma enunciação e uma coisa. Neste último
caso os dois elementos da relação são diferentes pelo aspecto. A moeda é
um metal e a enunciação de maneira alguma é um material. Diz-se ainda
a respeito da moeda que ela permite comprar um objeto e a enunciação
novamente concorda com a coisa (moeda), mas a enunciação não é meio
de pagamento. Tanto a enunciação, ‘a moeda é redonda’, quanto a outra, ‘a
moeda pode comprar um objeto’, adequam-se à moeda de cinco marcos. E o
que significa essa adequação? A essência da adequação, afirma Heidegger,
se determina “pela natureza da relação que reina entre a enunciação e a
coisa” (Heidegger, 1973, p. 333). É preciso determinar a natureza e o grau
dessa adequação. “A enunciação sobre a moeda se relaciona com a moeda
enquanto a apresenta (grifo da articulista) e diz dela o que ela é sob o ponto
de vista principal” (Heidegger, 1973, p. 333), ou seja, exprime a moeda
assim como ela é. “O ‘assim como’ se refere à apresentação e ao que é
236
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
apresentado. Apresentar significa “o fato de deixar surgir a coisa diante de
nós enquanto objeto” (Heidegger, 1973, p. 333).
O objeto se opõe a nós e, assim se opondo, deve cobrir um
âmbito aberto para nosso encontro, mas, ao mesmo tempo, permanecer
a coisa em si mesma e manifestada em sua estabilidade. A aparição
da coisa ocorre nesse âmbito aberto. Essa abertura não foi criada
pela enunciação apresentativa, mas é assumida pelo apresentar como
campo de relação. A relação da enunciação apresentativa com a coisa
apresentada é a consumação dessa referência, dessa conexão que se realiza
originariamente e cada vez, como o desencadear de um comportamento.
“Todo comportamento, porém, se caracteriza pelo fato de, estabelecido
no seio do aberto, manter-se referido àquilo que é manifesto enquanto
tal”185. No pensamento ocidental o que está manifesto foi desde cedo
‘aquilo que está presente’ e há muito tempo chamado “ente” (Heidegger,
1973, p. 334). E continua Heidegger:
Toda a relação de abertura, pela qual se instaura a abertura
para algo, é um comportamento. A abertura que o homem
mantém se diferencia conforme a natureza do ente e o modo
do comportamento. Todo trabalho e toda realização, toda ação
e toda previsão, se mantém na abertura de um âmbito aberto no
seio do qual o ente se põe propriamente e se torna suscetível
de ser expresso naquilo que é e como é. Isso somente acontece
quando o ente mesmo se propõe, na enunciação que o apresenta,
de tal maneira que esta enunciação se submete à ordem de
exprimir o ente assim como é. Na medida em que a enunciação
obedece a tal ordem, ela se conforma ao ente. O dizer que se
submete a tal ordem é conforme (verdadeiro). O que assim é
dito é conforme (verdadeiro). (Heidegger, 1973, p. 334).
185
Na obra em traduzida para o espanhol já citada se pode ler: comportarse es detenerse,
mantenerse en el claro de la presencia de lo que está presente”. MARTIN, Heidegger. De la esencia
de la verdad. p. 6
237
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Então, na enunciação que apresenta algo é este algo que se
propõe e ela, a enunciação, se submete à ordem de exprimir o ente assim
como é. Obedecendo a tal ordem, a enunciação se conforma ao ente.
Submetido a tal ordem o dizer é conforme, é verdadeiro.
É da abertura do comportamento que a enunciação recebe sua
conformidade. Somente através da abertura do comportamento é que “o
que é manifesto pode tornar-se, de maneira geral, a medida diretora de
uma apresentação adequada”. Em outras palavras: o que torna possível a
conformidade é a abertura que o comportamento mantém e por isso deve
ser considerada a essência da verdade. Isso faz cair por terra a tradicional
atribuição da verdade à enunciação. Porém, explica Heidegger, isso ainda
não resolve plenamente a questão da essência da verdade, pois restam
outras indagações sobre o fundamento da abertura do comportamento,
de onde vem a ordem para que a enunciação representativa se oriente
para o objeto e se ponha de acordo com ele, o motivo desse acordo ser
co-determinante da essência da verdade.
O objeto se opõe a nós e, assim, cobre um âmbito aberto no qual
se dá o nosso encontro, mas precisamos nos ter instaurado como livres
dentro desse aberto para aquilo que nele se manifesta e que vincula toda
apresentação.
Liberar-se para uma medida que vincula somente é possível
se se está livre para aquilo que está manifesto no seio do
aberto. Maneira semelhante de ser livre se refere à essência até
agora incompreendida da liberdade. A abertura que mantém o
comportamento, aquilo que torna intrinsecamente possível a
conformidade, se funda na liberdade. A essência da verdade é a
liberdade (Heidegger, 1973, pp. 334-335).
Afirmar que a essência da verdade é a liberdade pode levar a
diversas objeções até mesmo porque poderia entregar a verdade ao
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FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
arbítrio humano. De fato, afirma Heidegger, ao homem estão atribuídas
todas as formas de não verdade como a falsidade, a hipocrisia, o logro e
a simulação, o que poderia levar à aceitação da verdade como algo “fora
e acima” do homem. A hostilidade contra a tese formulada por Heidegger
está, segundo ele, apoiada em diversos preconceitos, entre os quais, a
afirmação de que a liberdade é uma propriedade do homem. Todavia, se
estivermos disposto à transformação do pensamento, esses preconceitos
precisarão ser revistos e revirados. “A reflexão sobre o laço essencial
entre a verdade e a liberdade nos leva a perseguir o problema da essência
do homem [...]” (Heidegger, 1973, p. 335).
Reafirme-se: a liberdade é a essência da verdade. É “liberdade
daquilo que é manifesto no seio do aberto”, liberdad em face do que se revela
no seio do aberto. Liberdade é o que “deixa que cada ente seja o ente que
é”. Dessa forma, a liberdade se revela então como o “deixar ser o ente”.
Esse “deixar-ser” do ente não significa deixar no sentido de omissão (como
abster-se de algo) nem indiferença (não se incomodar com algo). O que
Heidegger quer dizer com “deixar-ser o ente” tem o sentido de entregar-se
ao ente, “entregar-se ao aberto e à sua abertura, na qual todo ente entra e
permanece, e que cada ente traz, por assim dizer, consigo. Este aberto foi
concebido pelo pensamento ocidental, desde o seu começo, como tà aléthea,
o desvelado” (Heidegger, 1973, p. 336). Esse é um momento fundamental
do texto para que se possa penetrar no pensamento de Heidegger e tentar
compreender o que ele expõe como verdade. Heidegger refere-se à tradução
de alethéia como desvelamento não apenas em razão da literalidade, diz ele,
mas porque ela nos leva a repensar a noção de verdade como conformidade
da enunciação que é a forma corrente de verdade. Nos leva a pensar a
verdade no sentido, “ainda incompreendido, do caráter de ser desvelado e do
desvelamento do ente”. E continua Heidegger:
O entregar-se ao caráter de ser desvelado não quer dizer perderse nele, mas se desdobra (grifo da articulista) num recuo diante
239
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
do ente a fim de que este se manifeste naquilo que é e como
é, de tal maneira que a adequação apresentativa dele receba a
medida. Semelhante deixar-se significa que nós nos expomos
ao ente enquanto tal e que transferimos para o aberto todo o
nosso comportamento. O deixar-se, isto é, a liberdade, é em
si mesmo, exposição ao ente, isto é, ek-sistente. A essência da
liberdade, entrevista à luz da essência da verdade, aparece como
ex-posição ao ente enquanto ele tem o caráter de desvelado
(Heidegger, 1973, p. 336).
Dessa forma, as ideias expostas estão em desacordo com alguns
preconceitos relativos à noção de liberdade. A liberdade não é aqui o
que o senso comum constantemente diz. A liberdade não é podermos
oscilar em nossas escolhas optando ora por um extremo, ora por outro.
Não é ausência de constrangimento relativa às nossas ações ou inações,
não é também disponibilidade para uma exigência ou uma necessidade.
Em outras palavras a liberdade, como essência da verdade, não significa
fazer opções sem constrangimentos. Antes da “liberdade negativa” ou
“liberdade positiva”, “a liberdade é o abandono ao desvelamento do ente
como tal”. O liberar-se, o entregar-se à abertura do ente sem se perder é o
estar livre para aquilo que está manifesto no seio do aberto desdobrandose, ao mesmo tempo, num recuo diante do ente para que ele se manifeste
naquilo que é e como é de tal forma que a apresentação possa receber
do ente a adequação, ou seja, o ente torna-se a medida diretora de uma
apresentação adequada (Heidegger, 1973, p. 336).
Parece possível compreender a seguinte afirmação de Heidegger:
“no ser-aí se conserva para o homem o fundamento essencial, tão
longamente não fundado que lhe permite ek-sistir” (Heidegger, 1973, p.
336). No aberto para o ente e no aberto do ente o homem ek-siste. O homem
ek-siste na abertura. Não se trata de existência como subsistência, como
esforço existencial – moral, por exemplo. “A ek-sistência enraizada na
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FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
verdade como liberdade é a ex-posição ao caráter desvelado do ente como
tal” (Heidegger, 1973, pp. 336-337). A ek-sistência do homem historial
começa quando um pensador é tocado pelo desvelamento e pergunta o
que é o ente. “Nessa pergunta o ente é pela primeira vez experimentado
em seu desvelamento”. O começo da história do Ocidente entende
Heidegger, e essa primeira pergunta, em outras palavras, o desvelamento
inicial do ente em sua totalidade, são uma e mesma coisa.
O que Heidegger expõe no texto ora analisado, não é a
verdade como a conformidade de uma proposição enunciada por um
sujeito em relação a determinado objeto e que vale não se sabe bem
em que âmbito (ou por quê). Como se disse no início desse capítulo
com as palavras do próprio Heidegger, o que ele está expondo não
é a verdade disso ou daquilo, mas “a verdade como desvelamento
do ente graças ao qual se realiza uma abertura”. Em seu âmbito (da
abertura) se desenvolve, expondo-se, todo o comportamento, toda
tomada de posição do homem. É por isso que o homem é ao modo da
ek-sistência”. (Heidegger, 1973, p. 337).
Todavia, como a essência da verdade é a liberdade, “o homem
historial pode também, deixando que o ente seja, (grifo da articulista)
não deixá-lo-ser naquilo que ele é e assim como é. O ente, então, é
encoberto e dissimulado”. Nesse caso, então, o que domina é a aparência
e o que surge é a não-essência da verdade. O homem só ek-siste
enquanto possuído pela liberdade ek-sistente como essência da verdade.
A liberdade, então, não é uma propriedade do homem, mas é o homem
que é possuído pela liberdade. A não-essência da verdade não surge,
portanto, da incapacidade ou negligência do homem, pois verdade e
não-verdade se co-pertencem o que torna possível refletir sobre a nãoessência na essência da verdade. Como o texto de Heidegger ora em
análise demonstra, é infundada a concepção tradicional de verdade como
conformidade e, portanto, a “não-verdade também não pode ser igualada
com a não-conformidade do juízo” (Heidegger, 1973, pp. 334-338).
241
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Afirma Heidegger já como uma retomada do que foi dito:
A essência da verdade se desvelou como liberdade”. Esta é o
deixar-se ek-sistente que desvela o ente. Todo comportamento
aberto se movimenta no deixar-se do ente e se relaciona com
este ou aquele ente em particular. A liberdade já colocou
previamente o comportamento em harmonia com o ente em
sua totalidade , na medida em que ela (diga-se: a liberdade)
é o abandono ao desvelamento do ente em sua totalidade e
enquanto tal (Heidegger, 1973, p. 338).
Todavia, a liberdade como “abandono ao desvelamento do
ente em sua totalidade” não é uma disposição de humor ou um estado
de alma, porquanto o homem está sempre abandonado a essa disposição
afetiva. O homem, como já foi dito, só ek-siste enquanto possuído
pela liberdade ek-sistente como essência da verdade. Quanto ao grau
de conhecimento do ente em sua totalidade, explica Heidegger, não
coincide com a soma dos entes já realmente conhecidos e nem mesmo
o que diz a ciência significa a revelação do ente em sua totalidade. O
nivelamento simplista do tudo já conhecido é que torna superficial a
revelação do ente, que faz a revelação do ente desaparecer “na aparente
nulidade daquilo que nem mesmo é mais indiferente, mas está apenas
esquecido” (Heidegger, 1973, p. 338).
A essência da verdade e a não-essência da verdade se copertencem. “A mais própria e mais autêntica não-verdade pertence à
essência da verdade”. E o que isso significa? Pensada a verdade como
desvelamento do ente em sua totalidade, a não-verdade é o velamento do
ente em sua totalidade, mas não como uma consequência secundária do
conhecimento sempre parcelado do ente. A não-verdade é dissimulação.
Repita-se: a essência da verdade é a liberdade, é o deixar-se ek-sistente que
desvela o ente, é o abandono ao desvelamento do ente em sua totalidade
242
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
e enquanto tal. Pois bem, no deixar-se desvelador o que está velado
aparece primeiro. “A não-essência original da verdade é o mistério”. Ela
“visa aqui à essência pré-existente” (Heidegger, 1973, p. 339).
Todo comportamento se funda na liberdade enquanto deixar-ser
do ente, porém desvelando o ente já o dissimula. É assim que se mantém
a relação da liberdade como essência da verdade com a não-verdade,
com a dissimulação, com o mistério. Entretanto, o que ocorre é que “esta
relação com a dissimulação se esconde a si mesma nessa relação enquanto
dá primazia a um esquecimento do mistério” e nele – no esquecimento –
desaparece. O homem, então, em seu relacionamento com o ente, limitase ao seu caráter já revelado, limita-se à realidade corrente. E, mesmo se
o homem decide transformar essa situação, permanece no esquecimento,
já que procura os parâmetros para tal transformação nos “estreitos limites
de seus projetos e necessidades correntes. Instalar-se na vida corrente é,
entretanto, em si mesmo o não deixar imperar a dissimulação do que está
velado” (Heidegger, 1973, p. 340). É o esquecimento do mistério.
O homem perde-se no que Heidegger chama de vida corrente.
Esquece-se do mistério ao se limitar ao relacionamento apenas com o
revelado desse ou daquele ente. Não que, na vida corrente, não haja
obscuridades, enigmas, questões não resolvidas e coisas duvidosas,
afirma Heidegger. “Mas todas essas questões, que não surgem de
nenhuma inquietude e estão seguras de si mesmas, são apenas transições
e situações intermediárias nos movimentos da vida corrente e, portanto,
inessenciais” (Heidegger, 1973, p. 340).
O esquecimento do mistério permite que o homem permaneça
distraído com suas criações. O homem toma a si mesmo como medida
de todos os entes, e assim a humanidade, através daquilo que lhe é
acessível na vida corrente, na ilusão de seu conhecimento, insiste em
estar segura. Entretanto, apesar do esquecimento, o mistério reina como
essência esquecida. O insistente dirigir-se ao que é corrente afasta o
homem do mistério e resulta da agitação inquieta do ser-aí, do vaivém do
243
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
homem entre um objeto da vida cotidiana e outro. Esse vaivém é o errar.
“A errância participa da constituição íntima do ser-aí à qual o homem
historial está abandonado. [...] A errância é a anti-essência fundamental
que se opõe à essência da verdade” (Heidegger, 1973, p. 340).
Novamente: o objeto se opõe a nós e, assim, cobre um âmbito
aberto no qual se dá o nosso encontro, mas precisamos nos ter instaurado
como livres dentro desse aberto para aquilo que nele se manifesta e
que vincula toda apresentação. A errância é o espaço de jogo daquele
vaivém, do vaivém do homem entre um objeto da vida cotidiana e outro.
Na errância o homem permanece no desvelado do ente, no esquecimento
do mistério. É assim que “a errância é o cenário e fundamento do erro.
[...] Todo o comportamento possui sua maneira de errar, correspondente
à abertura que mantém e a sua relação com o ente em sua totalidade”
(Heidegger, 1973, p. 341).
A não conformidade do juízo e a falsidade do conhecimento são
apenas uma das maneiras de errar. O erro é tanto o mais comum engano
como até o desgarramento e o perder-se de nossas atitudes e decisões.
A errância domina o homem enquanto o leva a se desgarrar.
Mas pelo desgarramento a errância contribui também para fazer
nascer esta possibilidade que o homem pode tirar da ek-sistência
e que consiste em não se deixar levar pelo desgarramento. O
homem não sucumbe no desgarramento se for capaz de provar
a errância enquanto tal e não desconhecer o mistério do ser-aí
(Heidegger, 1973, p. 341).
A errância sempre ameaça o homem de alguma maneira.
244
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Conclusão
Perdido na vida corrente, no esquecimento do mistério
limitando-se ao relacionamento apenas com o que é revelado, distraído
com suas criações, no nivelamento do já conhecido, na ilusão do
conhecimento o homem perde-se, mas está seguro de si mesmo. Em
outras palavras o homem vive um simulacro186, vive na indigência. E
não foi isso que fez Édipo? Sua fuga de Corinto não foi à insistência
do esquecimento do mistério? Porém, ao se abrir para o aberto, ao
inquerir sobre sua identidade ela se desvelou. Édipo não foi um joguete
dos deuses e nós, se somos joguetes, somos de nossa própria ilusão
que nos mantém seguros no esquecimento do mistério, no corre-corre
diário que nos leva a lugar nenhum.
Todavia, vez por outra um oráculo, como um relâmpago que faz
claridade por alguns instantes, vem nos dar uma pista do caminho para
a saída do engodo, do simulacro. Se não aproveitarmos, ficaremos mais
tempo na escuridão. Enfim, vivemos uma vida interina como no poema
de Anna Akhmátova. Alguém ocupa o nosso lugar, usa o nosso nome e
nós vivemos apenas com nosso apelido com o qual fazemos tudo.
“Mas, às vezes, o vento brincalhão da primavera,
ou certas combinações de palavras em um livro,
ou o sorriso de alguém suscita em mim,
de repente, essa vida que nunca aconteceu” (Akhmátova, 2009, p. 126).
186
Para a compreensão do simulacro que vivemos remete-se o leitor para outro texto em vias
de publicação: Matrix como a essência da técnica segundo Heidegger. GUERRA FILHO, Willis
Santiago. AQUINO, Márcia Regina Pitta.
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FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Referências
AKHMÁTOVA, Anna. Antologia poética. Trad. Lauro Machado Coelho.
Porto Alegre: L&PM, 2009.
ARISTÓTELES. Poética. In: Trad. de Eudoro de Sousa. Coleção Os
Pensadores. São Paulo: Abril, 1973.
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. Tradução de Emmanuel
Carneiro Leão. In: Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão,
Gilvan Fogel, Maria Sá Cavalcante Schuback. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. In: Coleção Os
pensadores. Trad. Ernildo Stein. 1. ed. São Paulo: Abril, 1973.
_______________. Sobre a essência da verdade. In: Coleção Os
pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril, 1973.
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y Arturo Leyte. En: Hitos. Madrid: Alianza, 2000. Disponível em: www.
heideggeriana.com.ar. Acessado em: 20.06.2012.
PEREIRA, Maria Helena da Rosa. Introdução e Notas. In: Sófocles,
Antígona. Trad. Maria Helena da rosa Pereira. 9. ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian.
ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Sófocles e Antígona. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
SÓFOCLES. Antígona. Introdução, versão do grego e notas de Maria
Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010.
246
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
_______________.
Perspectiva, 2007.
Édipo Rei. Trad. Trajano Vieira. São Paulo;
SOUSA, Eudoro. Uma leitura da Antígona. Brasília: Universidade de
Brasília, 1978.
VERNANT, Jean-Pierre. Tensões e ambiguidades na Tragédia Grega. In:
Vernant, Jean-Pierre; Vidal-Naquet, Mito e tragédia na Grécia Antiga.
Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2008.
247
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
11
Divindade no bbb: mito ou realidade?
Roberta Lopes da Cruz Antonio
Mestranda em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP).
E apesar da cibernética
Ser irreversível
O homem regride ao seu mais baixo nível
(Canção “Máquina de Fazer Doido” - Accioly Neto)
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FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Introdução
Arte imita vida. Vida imita arte187. Ceticismos à parte, o
mundo vive um momento de confusão mental entre o significados de
fantasia e realidade. Diversos dos rituais praticados inconscientemente
na atualidade encontram amparo em ritos mitológicos. Entretanto,
o automatismo empregado em tais atitudes rompe seus laços com o
simbolismo originário, acarretando sua utilização deformada188.
Há de se avaliar a qualidade dos prazeres disponibilizados pelos
meios de comunicação de massa à população. Para tanto, direcionase mencionada análise ao conteúdo disponibilizado na televisão,
especificamente àquele exibido no reality show Big Brother Brasil,
traçando um paralelo entre seus rituais, sobretudo festivos, e o mito
grego relacionado ao deus Dioniso (expresso na Obra “As bacantes”),
dada a incrível semelhança, por vezes proposital, observada entre ambos.
A mensagem trazida pelo programa retrata, de forma explícita,
o retorno aos primórdios da vida em comunidades organizadas, dentro
de um espaço geograficamente delimitado, criando um universo paralelo
imbuído na dificuldade humana de interação e de organização. Para
tanto, apoia-se em um discurso extremamente publicitário que se encaixa
perfeitamente aos padrões do modelo capitalista. Utiliza imagens que
“vendem” (dada a abrangência de sua repercussão social) e abdica da
187
“Após o surgimento da filosofia – pelo menos, com essa denominação - na Grécia antiga,
ela iria se mesclar com o senso prático, político-jurídico mais eficiente, do antigos romanos e,
posteriormente, com uma versão (ou versões) muito particular(es) da religião monoteísta
judaica, como é o cristianismo, resultando na afirmação da capacidade humana de se impor ao
mundo, mais do que apenas contemplá-lo e, por diversas formas, ‘imitá-lo’” (GUERRA FILHO,
2010. p.63). Embora seja da essência da filosofia a imitação da realidade, no caso ora analisado
encontraremos situação equivalente, porém inversamente proporcional, quando a realidade
resolve imitar a filosofia.
188
Nessa linha de raciocínio, Joseph Campbell: “As virtudes do passado são os vícios de hoje. E
muito do que se julgava serem os vícios do passado são as necessidades de hoje. A ordem moral
tem de se harmonizar com as necessidades morais da vida real, no tempo, aqui e agora. Eis aí
o que não estamos fazendo [...] Voltando atrás, você abre mão de sua sincronia com a história”
(2011, p.13).
249
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
observância de preceitos éticos básicos amplamente difundidos no
Estado de Direito, abalando sua organização e, consequentemente, a
própria estruturação da sociedade.
O debate proposto extrapola a discussão do conteúdo educativo
do programa, que, aliás, inexiste (afinal se fosse esta a consideração,
boa parte da programação televisiva ensejaria profunda análise crítica),
e repousa na gradativa afronta a valores éticos e morais que representa,
nos moldes em que é exibido.
1. A presença do mito na “realidade” imagética do “bbb”
Na cidade de Tebas, na Grécia Antiga, parcela da população,
sob o crivo do rei Penteu, repudiava o culto ao deus Dioniso, famoso por
mobilizar diversas mulheres até as florestas em busca do quase sagrado
“sulco da vinha”. Dioniso (ou Baco, na tradição romana) era o deus do
vinho, da vinicultura e do frenesi místico. De seus rituais participavam,
inicialmente, apenas mulheres; posteriormente, homens juntaram-se às
celebrações189.
Neste estudo Dioniso representa o dinheiro e a fama. O “deusridente” que era cultuado pelas Mênades na Grécia Antiga, no mundo
teocêntrico, dá lugar, hoje, ao saboroso poder proporcionado pela fama e
pelo dinheiro, na realidade capitalista.
Tais prazeres, entretanto, podem provocar consequências
extremamente indigestas190. Na ambiciosa perseguição destas conquistas,
muitos se perdem e ficam pelo caminho. Isto porque, quando o assunto
é religião, poder ou dinheiro há tênue linha que separa a dedicação do
fanatismo. Comportamentalmente as distinções são mais evidentes, pois
a conduta dedicada, persistente, requer consciência e esclarecimento; ao
189
190
Como foi o caso de Cadmo e Tirésias.
“Aprenderá assim que o filho de Zeus, Dioniso, sendo para os homens o mais benigno dos
deuses, também é o mais terrível” (EURÍPIDES, 2011. p.48).
250
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
passo que, quando as atitudes atingem o nível da fixação, do fanatismo,
os atos praticados decorrem do acionamento de impulsos inconscientes,
eivados de irracionalidade191.
Evidencia-se, assim, o comportamento alucinado de participantes
em busca de um prêmio, comparando-o à insanidade experimentada
pelas Mênades durante os rituais báquicos. Destaca-se o raciocínio de
Jean Pierre Vernant, aposto à tradução de “As Bacantes”: “Dioniso está
presente quando o mundo estável dos objetos familiares, das figuras
tranquilizadoras, oscila para se tornar um mundo de fantasmagorias onde
o ilusório, o impossível, o absurdo tornam-se realidade” (2010, p.4).
O vinho, elemento-chave, era utilizado para estimular o
“encontro com o divino”, a imersão em uma espécie de transe essencial
à prática do ritual. Nas festas do BBB vale tudo: toda a sorte de bebidas
pode ser encontrada, variando conforme o tema “da festa”. Isto porque
o foco é a deturpação da mente, a perda da capacidade de julgamento, o
comprometimento da racionalidade. Não há espaço para questionamentos,
de modo que, talvez, mal saibam os brothers o motivo pelo qual
consomem altas doses de bebidas alcoólicas: o que importa é a fuga da
realidade e o ganho da confiança necessária para admitir tal exposição da
intimidade. Diante do despreparo emocional para a experiência, utiliza-se
de artifício mecânico192 que auxilia o ser na capacidade de desmascararse e apresentar sua essência, para si e para o mundo, manifestando suas
vontades legítimas193. Joseph Campbell, acerca da presença das drogas
191
Nos comentários tecidos por Eudoro de Sousa, ao final da obra traduzida, este faz menção
a Ruth Benedict e transcreve trechos de sua obra “Patterns of Culture”: “todos nós, vezes sem
conta, procedemos em completa contradição com desejos e impulsos que emergem do organismo
biológico, e que, ‘sendo os valores imagens formulando compromissos de ação, positivos ou
negativos, um conjunto de prescrições ou proscrições ordenadas hierarquicamente’, sem eles,
mas só sem eles, é que a vida humana se poderia tornar numa ‘sequência de reações a estímulos
inconfigurados’ (p.47). Valores culturais ‘restringem ou canalizam impulsos, em termos daquilo
que um grupo definiu como bens mais latos e duradouros’(ibid)” (EURÍPIDES, 2011. p.131).
192
“E sem vinho amor não existe; prazer algum aos homens resta” (EURÍPIDES, 2011. p.45).
193
Ousa-se, neste ponto, ampliar a interpretação a toda a sociedade: cada vez mais cedo jovens iniciam
o consumo de bebidas alcoólicas a fim de adquirir a necessária coragem de relacionarem-se, uns com
os outros, em consequência do individualismo provocado pela globalizada sociedade de consumo.
251
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
(lato sensu) nos processos de imersão, desordenadamente ingeridas,
esclarece que:
A experiência mística mecanicamente induzida é o que temos
aí. Tenho assistido a muitos congressos de psicologia que lidam
com a grande questão da diferença entre a experiência mística
e o colapso psicológico. A diferença é que aquele que entra em
colapso imerge nas águas em que o místico nada. Você precisa
estar preparado para essa experiência (2011, p.14).
As práticas ritualísticas exploradas pelo programa agradam
aos telespectadores e confundem o juízo dos participantes, que veem-se
obrigados a absorver tais rituais. Agem os telespectadores como voyeurs,
sedentos de experiências intensas e selvagens, cada vez mais incomuns na
sociedade de massa. O jornalista André Rittes, a respeito dos espetáculos
televisivos argumenta:
Esses são os prazeres dos homens pós-modernos, embalados
pelas ondas da tevê que mostram a felicidade, o amor, o próprio
prazer e o sexo, além de muitas outras coisas essenciais,
embrulhadas na embalagem brilhante do capitalismo selvagem,
que cumpre o seu destino traduzido nas imagens daquilo que
todos gostaríamos de ser, mas que ainda estamos muito longe
de conseguir. (2000, p.24).
O consumo de drogas em cerimônias ritualísticas é milenar, mas
a busca deste artifício no “simulacro de realidade” experimentado pelos
participantes – desesperados na busca de um signo e um caminho – ao
invés de auxiliar-lhes, torna-se um grande desastre.
A verdade é que não há verdades nem respostas. O realityshow, de real, nada tem. Aproxima-se mais do mito do que da realidade,
252
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
afinal os participantes são denominados “heróis”; líderes são eleitos
semanalmente; um “oráculo-virtual” (consequências da era digital)
questiona-lhes atitudes e dá as regras do jogo, indicando as regras de
sobrevivência e anunciando as mortes (eliminações) no desenrolar da
trama; participantes simbolicamente “devoram-se” uns aos outros,
em uma inescrupulosa carnificina imagética em busca da fama e do
dinheiro194.
Tal é a irracionalidade proposta pelo programa que valores
éticos são destruídos, deturpados, sutilmente transmutados em outros
absolutamente estranhos à nossa comunidade. Enquanto “espiamos”
nos são entubados novos princípios e práticas sociais e, a cada episódio,
digerimos lentamente a assimilação de uma perspectiva de sociedade
do caos, completamente desorganizada e violadora de regras ditas
invioláveis195. A repercussão é imensa, dada a veiculação do programa
no horário nobre de uma das maiores emissoras de rede aberta do país196.
A questão que se coloca não se destina à aferição da moralidade
do Big Brother Brasil, porquanto em uma sociedade democrática primase pela livre manifestação do pensamento e pela liberdade de imprensa.
O que preocupa é o impacto e a influência dos meios de comunicação
de massa nos direitos e garantias constitucionalmente protegidos,
isto é, até que ponto os preceitos instituídos pelo programa afetam e
comprometem nosso Estado. A título de exemplificação, menciona-se
a hipótese de estupro, aventada na última edição do reality show. Por
194
Anuncia Eudoro de Sousa, na tradução de “As bacantes”, que “a moral das Bacantes consiste em
evidenciar o alto preço que pagamos por desdenhar das exigências que a diacosmese dionisíaca
impõe ao espírito humano [...]” (EURÍPIDES, 2011. p.13).
195
Ora, no dia seguinte, o assunto mais comentado em escolas, universidades e empresas não será
a prevalência dos direitos fundamentais no Estado de Direito, mas o “porre” que determinado
participante tomou na festa e os absurdos por ele cometidos em consequência dessa situação (que,
ao menos, deveria ser vista como) vexatória.
196
Cumulado ao fato de que, no Brasil, 97,1% das residências possuem televisão. Os dados são
do Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel), da Eletrobrás, em pesquisa
realizada no ano de 2007 sobre posse de equipamentos e hábitos de consumo de energia, publicada
no sítio G1. (AGÊNCIA, 2007).
253
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
mais livre que seja uma nação e seus indivíduos certas condutas são
simplesmente inadmissíveis, e assistir a cenas de tal natureza vulnera
direitos fundamentais de qualquer cidadão submetido à Constituição
da República Federativa do Brasil. Isso é diagnosticado pela análise
do comportamento-tipo do homem médio que vive sob determinado
sistema. De modo que não interessa se a situação deixou de constranger
determinada parcela da população, ou se até agradou-lhe assistir a referido
conteúdo: importa esclarecer o que é considerado razoável e admissível
pelo grupo, o que se pode verificar pela análise do ordenamento jurídico
vigente, quando se trata de uma democracia, cuja legislação reflete os
valores do povo197.
Retoma-se o passado quando valores básicos são suprimidos por
pessoas completamente inebriadas com o desejo da conquista de fama e
dinheiro. Em “As Bacantes”, o ritual visava ao culto de uma divindade
que se apresentava uma figura bela e carismática. Com a sutileza própria
de um cavalheiro, dominava o juízo suas seguidoras, apossava-se de suas
atitudes e pensamentos, tal qual ocorre com o fascínio provocado pelo
sonho com a fortuna. Participantes são capazes de declinar de parcela
da dignidade na tentativa de obterem destaque diante dos demais e a
simpatia do público, para o que recorrem constantemente ao auxílio do
álcool. Quando se retoma a consciência, há espaço para o arrependimento,
que frequentemente ocorre, embora tardiamente, tal qual a tragédia em
comento (quando Ágave compreende que empunhava a cabeça de seu
próprio filho, morto pelos golpes das bacantes, sob a liderança da própria
genitora198).
197
Matéria publicada no sítio do Jornal Folha de São Paulo, em 25 de abril p.p., anunciava o
ajuizamento, na véspera, pelo Ministério Público Federal em São Paulo, de Ação Civil Pública,
com vistas à submissão do conteúdo exibido em futuras edições do Big Brother Brasil a um “filtro
ético-moral”. De acordo com o Procurador Jefferson Dias Aparecido, a Rede Globo deve vetar
determinadas cenas, inclusive no pay-per-view, ao passo que cabe à União, por meio do Ministério
das Comunicações, a fiscalização do programa (BALLOUSSIER, 2012).
198
“Primeira sacrificadora, a mãe, a defronte dele se achega. Arremessando fora a mitra, para que
a inditosa Ágave enfim o reconheça, Penteu o rosto da mãe acarinha, e lhe fala: “Mãe, de mim
te apieda; teu filho, por erros seus, não queiras imolar”. Mas não o escuta ela, Ágave, de lábios
254
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
2. “Evoé”199! Intencionalidade da equiparação dos
heróis da “nave louca”200 às bacantes
A pista de dança está totalmente tomada pelos brothers, todos
curtindo ao máximo a música tão desejada durante o dia. [Dois
participantes, um homem e uma mulher] não param de dançar um
só segundo. Ele ajoelha para ela e ela rebola ao som da música
eletrônica com bastante gingado. [...] Flores e frutas decoram
todo o jardim. A pista de dança e as mesas estão adornadas com
parreiras. É uma festa regada com pães, queijos, frios, pernil,
vinhos, como uma verdadeira festa do deus Baco. Os pufes são
brancos, mas tudo leva um toque romano. [...] Nas vestes dos
brothers, tecidos esvoaçantes, sandálias, saias (inclusive para
os brothers) e muitos adornos. Para se aprontar para a festa, os
BBBs levaram cerca de uma hora; [...] (A festa, 2008).
Qualquer semelhança do trecho em destaque com a tragédia ora
examinada não é mera coincidência. Na oitava edição do Big Brother
Brasil, que foi ao ar no início do ano de 2008, o tema do primeiro
espetáculo protagonizado pelos participantes foi: “Festa Baco”. A
nomenclatura justificava-se pelo ambiente montado pela produção
do programa, que rememorava, com detalhes, os rituais ocorridos em
homenagem à divindade do vinho.
Para Eudoro de Sousa,
O problema das Bacantes é Dioniso. Mas Dioniso não é só
escumantes e de olhos revoltos, desprovida de senso, de Baco possessa. De ambas as mãos lhe
segura o braço esquerdo, e com seu corpo em arco tendido, pés fincados no flanco do mísero, lho
arranca da espádua, não com a própria força apenas, mas com aquela que em suas mãos um deus
depôs” (EURÍPIDES, 2011. p.59).
199
Exclamando “Evoé” floresta afora, as Mênades invocavam Baco, com alegria e entusiasmo.
200
Termo empregado pelo apresentador, o jornalista Pedro Bial, quando se refere à casa do Big
Brother Brasil.
255
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
uma obscura potência da alma; não é só uma fermentação
periódica de forças abissais que ameaçam a tranquila vigência
de normas instituídas pelo sufrágio da pólis soberana; não é
só a repetida irrupção de refreadas subculturas de marginais
e oprimidos. Em suma, não é caso de médico ou de polícia.
O que as Bacantes nos apresentam na cena trágica é Dioniso,
como problema, como problema de Eurípides, problema de sua
época, problema da Grécia Clássica, que à hora crepuscular,
revolvendo os olhos para dentro de si, estremece de espanto ao
descobrir que o espírito – vontade disciplinadora e inteligência
ordenadora –, não poderia aniquilar toda a irracionalidade
elementar, sem que, no mesmo ato, destruísse a sua própria
razão de ser” (Eurípides, 2011, p.14).
Entretanto, as semelhanças começam e terminam na estrutura
criada e na reação dos participantes ao efeito da bebida. Isto porque a
motivação por trás do “espetáculo” nada teve de divino; talvez mundano,
mas não divino, definitivamente. Especulou-se, na época, que a festa
regada a vinho e champanhe pretendia promover a aproximação entre
os brothers (leia-se aumentar a audiência), tendo em vista que, até então,
não se verificava sintonia na casa.
A citada festa rendeu o efeito esperado: o primeiro beijo entre
participantes, embriaguez, tombos, vexames, uvas oferecidas na boca de
um brother por outras duas, tudo exatamente conforme o planejado.
É inconteste a assertiva de que o conteúdo publicitário inserto
nos meios de comunicação “transmite valores sociais e pessoais impondo,
numa sutil coerção, modelos a serem seguidos” (Gonzalez, 2011. p.21).
Por esta razão, havemos de concordar que na era da comunicação o
cuidado com o material exibido deve ser redobrado, uma vez que bastam
segundos para que os efeitos de determinada notícia fujam completamente
do controle de seus autores.
256
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
O programa cria um protótipo de sociedade, na qual reproduz
as mais diversas experiências extraídas da vida real: amor, competição,
fofocas, alegrias, raiva, medo etc. Cria-se forte identidade entre
personagens e o público, que se projeta naqueles e passa a compactuar
de seus ideais. A fim de manter uma ordem mínima no grupo, um
conjunto de normas é estabelecido, ao qual todos deverão se submeter,
sob pena de sanção. A harmonia é abalada constantemente pela disputa
entre grupos que se formam, conforme a identidade que surge entre uns e
outros. Quando ocorrem as festividades, toda a pressão acumulada, todos
os sentimentos somatizados (ao longo da semana) são extravasados. É
hora de esquecer as regras e relaxar. Contribuem para essa “limpeza”
a dança, o álcool, o ambiente escuro e a céu aberto, trajes especiais.
Monta-se um clima propício ao acesso do inconsciente, pois não é
fácil expor-se conscientemente: gritos, risos, choros e todo o tipo de
excesso é cabível quando chega o momento de descontrolar-se. E
ninguém consegue viver plenamente sob controle, caso contrário não
haveria necessidade de sistema jurídico, uma vez que todos cumpririam
a lei integral e voluntariamente. Tal qual ocorria na Grécia Antiga, em
uma época em que apenas os talentos varonis eram exaltados e eram
submetidas as mulheres, que representavam minorias, àqueles. Penteu
expressa seu inconformismo diante da situação: “E vós outros, ide, correi
à cidade, e achei a pista desse forasteiro efeminado que introduziu nova
moléstia entre nossas mulheres e corrompeu nossos leitos” (Eurípides,
2010, p.29). Era a manifestação do descontrole das mulheres de Tebas,
e, posteriormente de homens que a elas se uniram, em reação às regras, à
razão, à probidade. Buscavam a intensidade proporcionada pelo encontro
inconsciente com a divindade, viabilizado pelo consumo do vinho, em
um ambiente fantástico, irreal.
Cumpre esclarecer que o termo Big Brother remete à obra “1984”,
de Eric Arthur Blair (assinada com o pseudônimo George Orwell), em que
delineava o modus vivendi de uma sociedade futurista (no “futuro” ano
257
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
de 1984). O livro, escrito em 1949, trazia a figura de um Big Brother,
figura que governava o Ocidente servindo-se de câmeras instaladas por
todos os lugares, o que demonstrava forte capacidade de controle, controle
este típico de regimes totalitários. A partir das conclusões que obtinha nos
registros verificados no sistema de monitoramento, o governante orientava
a população, manipulando seu pensamento. Baseado nesta literatura, o
empresário holandês John Hendrikus Hubert de Mol (sócio da produtora
Endemol), ao produzir no ano de 1999 o primeiro reality show da televisão,
batizou-o com o nome de um dos personagens centrais do livro de Blair.
Sob o manto de refletir os momentos vividos pela sociedade
brasileira no perfil do ganhador de cada uma das edições, o Big Brother
Brasil se volta tão somente à seleção de moças e rapazes altamente sarados
e com níveis intelectuais sofríveis, indicando à população a garantia de
sucesso na adoção desta fórmula. Tampouco se preocupa com as lutas
das minorias sociais. O interesse, ao reverso, repousa nas polêmicas que
cada um será capaz de provocar, fato que desperta interesse do público,
aumenta a audiência e valoriza o espaço publicitário no horário.
Logo, se a intenção é a de manter estável o atual padrão social,
reflexões críticas com vistas à reestruturação do material disponibilizado
por programas televisos devem ser feitas. Nunca é demais recordar que
a televisão ainda é o principal meio de comunicação de massa no Brasil.
Louvável é a inserção de questões filosóficas nos debates corriqueiros,
ressaltando a atemporalidade de determinados textos, como é o caso
das tragédias gregas. Entretanto, bom senso e cautela são necessários
nesta compressão, sob pena de subversão de sentidos ante a interpretação
equivocada do sentido da obra. É profana a utilização da Filosofia a
serviço de uma audiência acultural que contribui significativamente para
a formação de um público intelectualmente alienado.
Filosofia, então, estaria bem se não servisse para nada, como
postulava já Aristóteles, no início de sua “Metafísica”, mas ela
258
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
terminou sendo empregada para os mais diversos fins, e agora
parece estar a serviço do nada que nos assola, individual e
coletivamente. A pulsão auto-destruidora que se manifesta na
filosofia também se mostra, por todo lado, nessa Civilização
Ocidental, que se tornou mundial - e, logo, não apenas ocidental
-, e traz já em seu próprio nome o occido, étimo latino da queda,
da ruína, da morte, do assassínio, da chacina. A “Civilização da
Razão” é a “Civilização da Destruição”, destruição que pode
atingir todas as outras civilizações e, até, o próprio mundo,
físico (Guerra Filho, 2010, p.65).
Conclusão
Inobstante a indiferença com que são tratados ideais relativos
ao bem comum da sociedade frente às ilimitadas liberdades individuais,
urge a necessidade de a sociedade resgatar preceitos constitucionais
nucleares, ante a temeridade da inconsciente introjeção de valores
ilegítimos, disseminados por um dos programas mais assistidos da
televisão brasileira.
O modelo representa afronta à “dignidade do telespectador”,
que é “pessoa humana”, sujeito detentor de direitos e obrigações. Ora,
os direitos fundamentais são indisponíveis por excelência, de modo que
se admite a cessão de imagens, jamais de dignidade (que, mais do que
um princípio, representa um dos fundamentos da República Federativa
do Brasil, conforme inc. III do art. 1º da CF). Exige-se empenho na
cautelosa missão pela defesa da não relativização do núcleo essencial
previsto na Carta Maior de 1988.
Daí porque não se hesita em classificar o programa – frisese, em seu atual formato – antiético, eis que contrário à natureza dos
juízos moralmente relevantes, numa análise metaética do assunto.
Hodiernamente, o descomedimento (húbris) das emissoras revela o
259
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
desprezo dispensado aos seus telespectadores, que não passam de números
indispensáveis à valorização das cotas de patrocínio comercializadas.
Fato é que o ritual praticado na Grécia antiga, famoso por
atrair diversos interessados, ainda atrai multidões, ora representadas por
ingênuos telespectadores. Daí concluir-se que, embora passados tantos
anos, a essência do homem permanece a mesma.
É hora de refletirmos acerca do legado cultural que pretendemos
deixar para as gerações futuras.
260
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Referências
A FESTA da Uva está bombando. Globo.com, Rio de Janeiro, 09.01.2008.
Disponível em: http://bbb.globo.com/BBB8/Noticias/0,,MUL2536069
451,00+FESTA+DA+UVA+ESTA+BOMBANDO.html. Acessado em:
02.06..2012.
AGÊNCIA Estado. Brasil tem mais TV do que geladeira, diz estudo.
G1.globo.com, São Paulo, 18 abr. 2007. Disponível em: http://g1.globo.
com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL23738-9356,00.html.
Acessado em: 06 jun. 2012.
BALLOUSSIER, Anna Virginia. Procuradoria pede censura ética nas
próximas edições do “BBB”. Folha.com, São Paulo, 25 abr. 2012.
Caderno Ilustrada. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/
ilustrada/1080979-procuradoria-pede-censura-etica-nas-proximasedicoes-do-bbb.shtml. Acessado em: 10.06.2012.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses
e heróis. Trad. David Jardim. 34. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. 28.
ed. São Paulo: Palas Athena, 2011.
EURÍPIDES. As bacantes. Trad. Eudoro de Sousa. São Paulo: Hedra, 2010.
GONZALEZ, Luciana Schlindwein. A universalidade dos Direitos
Fundamentais e o meio ambiente cultural na sociedade da informação.
Monografia (Pós-Graduação em Direitos Fundamentais) – Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais-IBCCrim em parceria com a Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra. São Paulo: IBCCrim, 2011.
261
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Por uma Poética do Direito:
introdução a uma teoria imaginária do Direito. Panóptica, Vitória, ano
3, n.19, jul/out. 2010. Disponível em:
http://br.vlex.com/vid/poeticateoria-imaginaria-totalidade-222852157. Acessado em: 09.06.2012.
IMPELLUSO, Lucia. Myths: tales of the Greek and Roman gods. Nova
Iorque: Abrams, 2008.
LAW, Stephen. Guia ilustrado Zahar: filosofia. Trad. Maria Luiza X. De
A. Borges. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
RITTES, André. Máquina de fazer doido: Reflexões sobre a Televisão na
Era da Absolutização da Imagem. Santos: Editora Iporanga, 2000.
262
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
12
A sociedade do risco na perspectiva de Niklas Luhmann
Marcelo Luis Roland Zovico
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
sob a orientação de Willis Santiago Guerra Filho. Conclusão do doutorado com a
pesquisa realizada na Itália (2010-2011), Programa CAPES, PDEE - “Doutorado
Sanduich” na “Università del Salento” sob a co-orientação de Raffaele Di Giorgi,
co-autor de “Teoria della Società” com Niklas Luhmann escrito em 1986 em
Lecce. E-mail do autor: [email protected].
263
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
1. Sociedade de risco de Niklas Luhmann
Para Luhmann, as sociedades contemporâneas atingiram um nível
de prosperidade nunca antes conhecida, a duração média da vida humana
é alongada e a mortalidade infantil tem sido reduzida consideravelmente,
porém, ao invés de aumentar a confiança no futuro, ocorre o inverso,
com o aumento da consciência, multiplica-se a incerteza, numa mesma
progressão do constante aumento científico/tecnológico, que também
nos levam a incontestáveis benefícios para a vida.
Especialmente na Europa, Zygmunt Bauman201, observa que o
medo e as obsessões pela insegurança têm evoluído nos últimos anos
de forma surpreendente. Os europeus ainda se sentem privilegiados por
viverem em “países desenvolvidos”, mas, mesmo assim, nunca se viu
tantas expressivas manifestações de descontentamento e inseguranças,
somatizando-se, sobretudo, no reflexo de um sentimento de ameaça
mais propenso a pânico e mais interessado em tudo relacionado com a
segurança.
Não há dúvida de que a sociedade contemporânea atingiu um
nível de segurança mais elevado do que no passado e, ainda assim, é
considerada como sendo uma “Sociedade de Risco” para grande parte de
sociólogos e cientistas de todo mundo. Por quê?
O termo Sociedade de Risco tornou-se comumente usado
mesmo fora do círculo de sociólogos, mas sua origem vem determinada
no pensamento de Ulrich Beck. A Sociedade Moderna se desenvolveu
a um ponto em que a distribuição dos produtos escassos – que era a
principal preocupação do século XIX e da primeira metade do XX
– não é mais o principal problema social. Atualmente, o principal
problema passou a ser a necessidade de limitar os riscos produzidos
pela sociedade, principalmente, o uso da tecnologia, que são ameaças
201
BAUMAN, Zygmunt. Modus vivendi. Inferno e utopia del mondo liquido.. Italia, Bari: Laterza,
2007. p.74.
264
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
globais relacionadas à sua própria existência202.
Além da reconstrução apocalíptica de Ulrich Beck, que descreve
uma sociedade em termos de um “risco planetário”203, uma sociedade
catastrófica de autodestruição, alguns sociólogos indicam que a mudança
na percepção do risco e de sua comunicação (certamente não em sua
existência comum de todos os tempos e em cada lugar) fazem parte de
uma característica da sociedade contemporânea.
O principal ensaio de Niklas Luhmann sobre o tema do risco,
explica que a sociologia crítica não pode simplesmente descrever as
regularidades que são encontradas em uma dada sociedade, mas deve
refletir sobre como a sociedade diante das mesmas características pode
explicar os fatos que se desviam da normalidade, tais como acidentes,
surpresas e infortúnios, ou seja, aqueles eventos que, por outras palavras,
constituem uma “ruptura da forma normal” de sociedade204.
De acordo com Luhmann, o fato da sociedade de hoje falar tanto
de risco, traz uma nova luz para explicar sua “forma normal”, não porque
os riscos pertencem à vida cotidiana, a coisa real de hoje é como a de
ontem, mas, mais profundamente, no sentido de que a sociedade diz que
o risco é um infortúnio, diferentemente, como já fora dito, que seria fruto
de magia, bruxaria ou castigo divino.
A questão do risco é muito importante porque coloca “a questão
do conceito de racionalidade” na medida em que a tomada de decisão
se torna algo técnico ou, simplesmente, o futuro do tempo é assumido
quando se trata de arriscar. Faz parte de uma mudança de paradigma muito
grande. Historicamente, “o risco foi concebido em nossa sociedade como
um evento ligado à sorte, sendo registrado por muitas teorias, quando
relacionado aos marinheiros, aos catadores de cogumelos e, geralmente,
202
BECH, Ulrich. Tradução para o Italiano da obra: La società del rischio. Verso una seconda
modernità. Roma, Itália: 2000.
203
Obra citada, p. 29.
204
LUHMANN, Niklas. Soziologie des Risikos. Berlin, 1991. Traduzido em italiano para Sociologia
del rischio. Milano, Itália. p. 3.
265
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
a quem fora exposto a perigos, visto como um problema que não se podia
evitar ou contornar”205.
O próprio Luhmann destaca a dificuldade de encontrar uma
definição clara do conceito de risco, um termo usado em diferentes
contextos e muitas vezes com diferentes significados.
Especialmente no campo das ciências econômicas é bem-vinda a
definição de risco como produto do dano e a probabilidade de ocorrência
é considerada quase uma distinção de dogmas entre risco e incerteza. Esta
definição certamente no contexto econômico é mais útil, mas não é assim
para a Sociologia. Se o risco era simplesmente uma medida, o resultado
de um cálculo preciso não será explicado dessa forma, é necessária uma
maior amplitude no debate atual206.
É nessa atmosfera mais complexa em que a Teoria do Risco irá
se desenvolver no contexto da Sociedade do Risco, com toda necessária
compreensão para que, com a redução da complexidade das escolhas, o
conceito possa ser em sua totalidade compreendido.
1.1 A sociedade global de risco e suas perspectivas
A “sociedade do risco”, termo recentemente adquirido e
amadurecido, nasce de uma inspiração acadêmica sociológica, como já
fora amplamente debatida, podendo ser trabalhada em vários aspectos.
Qualquer discussão sobre o tema, exige um discurso preliminar
sobre o que já nos anos setenta, Jean François Lyotard chamou de
“condição pós-moderna”207, para indicar a situação da cultura nas
sociedades industriais avançadas, definido, diferentemente, por Alain
Touraine e Daniel Bell de “pós-industrial”208.
205
Obra citada, 1991, p. 4.
206
Conforme obra citada, 1991. p. 14.
207
LYOTARD, J. F.. La condizione postmoderna, 1977. p. 76.
208
D. BELL. L`arrivo della società post industriale, 1976; Alain Touraine. La ricerca di sè, 2003.
266
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
De acordo com Alain Touraine e Daniel Bell, essa sociedade
é caracterizada pelo desenvolvimento da tecnologia da informação e
telecomunicações, o setor de serviços, serviços terceirizados e o próprio
consumo, além do fato da sociedade acomodar-se com mais facilidade,
tendo inúmeros conflitos ao redor, talvez, devido ao fato do bombardeio
de informações que mal conseguimos processar– o que é e o que não é
importante –, numa pluralidade de valores que tornam a análise difícil e
sua unificação estrutural quase impossível.
Por um lado Lyotard209 pergunta o que no conhecimento é legítimo
em uma época caracterizada pela crise das duas grandes narrativas, que
dos dois grandes cenários ideológicos, idealismo e do iluminismo, dentro
dos quais o conhecimento foi inserido.
Com o livro “A condição pós-moderna na Itália”, publicado em
1981, no país a que se destinou a pesquisa do livro, o francês Lyotard
abriu uma categoria real interpretativa da sociedade contemporânea –
a sociedade, de fato, “pós-moderna”–, cuja principal característica é
o desaparecimento das grandes narrativas metafísicas (iluminação,
idealismo, marxismo) que justificava ideologicamente a coesão social e,
inspirado, na modernidade, as utopias revolucionárias.
Por outro lado, reconhece a redução da verdade da eficiência
tecnológica e admite a perda de uma validade universal cognitiva em favor
de “paradigmas”. A condição pós-moderna, então, pode ser atravessada
pela nostalgia da história perdida, da desconfiança do conhecimento
científico e dos sistemas de valores contemporâneos.
A tese “romântica” do filósofo francês Lyotard é contrastada
pelo alemão Jürgen Habermas, com o posicionamento crítico de que para
209
Jean-François Lyotard é filósofo francês (Versalhes, 1924 – Paris, 1998). Seu trabalho é
associado com o pós-estruturalismo e é conhecido por sua teoria da pós-modernidade. Estudou e
foi assistente na Universidade Sorbonne, professor da Universidade de Paris-Vincennes, além de
ter lecionado em algumas universidades americanas. Em 1979 publicou o livro “A condição pósmoderna na Itália”, traduzido por Carlo Formenti e publicado pela Editora Feltrinelli em 1981,
caracterizando o fim da modernidade como uma crítica das grandes narrativas sobre o mundo e
a realidade.
267
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
a modernidade esse “é um projeto inacabado emancipatório” que teve origem
no Iluminismo e cresceu de forma contraditória (em parte autodestrutiva) na
racionalização técnico-burocrática nas várias áreas da vida.
Em outras palavras, o alemão acredita que esse modelo pósmoderno fora “traído” pelo próprio processo de modernização, entendido
como um excesso de racionalidade, eficiência, produção e consumo.
Assim, entende-se ser este um projeto inacabado que é retomado por
fazer a ligação entre modernidade, razão e emancipação, ao invés de
rejeitá-lo com rótulos de definição.
A ideia de um crescimento exponencial do conhecimento cada
vez mais especializado, através de sistemas especializados que substituem
o tradicional, resultando em efeitos cada vez mais globalizados, é
partilhado por Anthony Giddens210, bem como a crença de que tal
conhecimento é constantemente aberto para ser revisto e inseridas novas
correções e melhorias.
Assim, o sociólogo inglês é muito confiante e nada “apocalíptico”
em sua análise, indicando uma resposta para Lyotard sobre a possibilidade
de poder encontrar um cruzamento entre as mudanças e o dinamismo,
numa epistemologia consistente no conhecimento generalizável à vida e
aos modelos sociais.
Ao invés de falar em pós-modernidade, ele prefere pensar, em
termos de “modernidade radical”, de acordo com um desenvolvimento
(não evolutivo), mas de descontínuo social, o que não significa
necessariamente o caos.
Qualquer rótulo que for atribuído à sociedade contemporânea, os
cientistas sociais concordam com a dimensão de incerteza que envolve,
210
GIDDENS, Anthony. Le conseguenze della modernità. Fiducia e rischio, sicurezza e pericolo. 2.
ed., Itália Bologna: Mulino, 1994. Giddens nasceu na Inglaterra, doutorou-se na “London School
of Economics”, especializou-se em Cambridge. É considerado um dos críticos mais importantes
e de destaque da sociologia contemporânea, alcançando reconhecimento internacional em 1976
com a publicação do livro Método Sociológico, com a clara intenção de mencionar a famosa obra
de Durkheim, objetivando dar uma nova interpretação à metodologia sociológica. Do ponto de
vista da ciência política, é o principal criador da “terceira via”.
268
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
em primeiro lugar, o sistema de conhecimento e, também, a esfera da vida
cotidiana é cada vez mais caracterizada pela diversidade de situações,
pela complexidade e, portanto, pelas ações de contingência. A existência,
em toda a pós-modernidade é cada vez menos previsível e programável
e os relacionamentos se tornam perceptíveis. Nas palavras de Zygmunt
Bauman211, é fácil de construir, mas também fácil de cortar o resultado de
um acordo difícil, provisório e constantemente aberto à renegociação.
Sua ideia é a de que vivemos numa sociedade contingente,
provisória e sempre em alguma coisa deve ser mudada, sejam as regras,
as leis, enfim, tudo passa a ter um valor relativo. É a extensão em que
diferentes atores sociais concordam em continuar a considerá-los ou não.
O relativismo ora demonstrado e a complexidade de contingência
da pós-modernidade estão intimamente relacionados no processo de
globalização – entendida como o encurtamento das distâncias, os
mercados interligados, a dependência mútua dos setores produtivos,
economia, restando apenas fatores culturais como únicos fenômenos
díspares e contraditórios.
Em uma perspectiva de visão de mundo, a ciência, que já foi
o principal instrumento para a emancipação do homem da tradição e
da religião, apoiada pela tecnologia, torna-se cada vez mais poderosa
e complexa, mas juntos eles já não podem calcular os efeitos de suas
atividades e o discurso científico não consegue mais provar suas regras
fielmente de validação e verificação, mas podem prever algo muito pior
em comparação com a modernidade, que não é mais capaz de compartilhar
conhecimento e comportamento com a comunidade.
A ciência pós-moderna, com base na eficiência da racionalidade
instrumental, é percebida pelos grupos sociais como um dogma,
211
BAUMAN, Zygmunt. Diritto alla sicurezza o sicurezza dei diritti. In: La bilancia e la misura.
PALMA, Anastasia (Org.). Itália, Milano: Angeli: 2001. p. 26. Zygmunt Bauman é nascido na
Polônia, em 1925, com formação em Sociologia e Filosofia. De 1971 a 1990, foi professor de
Sociologia na Universidade de Leeds e no final dos anos oitenta, ficou conhecido por seus estudos
na ligação entre a cultura da modernidade e o totalitarismo, principalmente, o nazismo e o
Holocausto.
269
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
como a religião tradicional. Parece ser um mecanismo que funciona
perfeitamente, mas é ignorado o seu custo para a humanidade. A Ciência
e a Tecnologia tornam-se positivas e negativas ao mesmo tempo, dado
que se conclui quando, para qualquer benefício que possamos ter, a
sensação é de termos de pagar um “custo” alto que termina com algum
lado da sociedade, que tem de suportar a perspectiva do cumprimento
permanente de novas necessidades e oportunidades.
A globalização parece ser exclusivamente de incertezas e
contradições, removendo e juntando os obstáculos, fortalecendo a
confiança, mas também criando confusão. Sem dúvida, neste ponto, que
a economia pós-moderna, globalizada, é caracterizada intrinsecamente
por incerta. O léxico indica que, mesmo com a fórmula do cotidiano, essa
é a sociedade global de riscos.
Apresentado os principais pontos relativos à questão do risco,
importante ressaltar que para Luhmann, o tempo permeia o aspecto da
teoria ao sugerir claramente que um sistêmico-teórico terminológico,
em determinado ambiente, existe sempre simultaneamente, nunca antes
ou depois. Por isso, nunca ocorrerá que o ambiente permaneça preso ao
passado e do atual sistema para se tornar o futuro do meio ambiente,
ou vice-versa. Consequentemente, assim como operação, o tempo não
desempenha papel algum212.
2. A teoria do risco
Analisando o risco, seja na vertente da Sociologia do Risco de
Luhmann213, mais completa e complexa, ou mesmo nas representações
mais simples, há ideia de um perigo inconveniente, mas em qual sentido?
No senso que, se nós refletimos sobre o risco, então poderemos observar
que no nosso comportamento, se existem alternativas, existe o risco.
212
Conforme LUHMMAN, 1991. p. 81.
213
Ibiden, p. 270.
270
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Conforme Luhmann (1996, pp. 31-32):
“Per venire a capo di entrambi gli ordine di osservazioni,
diamo al concetto di rischio un’altra forma e lo facciamo con
aiuto della distinzioni tra rischio e pericolo. La distinzione
pressupone (distinguendosi così da altre distinzioni) che sussista
incertezza in riferimento a dei danni futuro. Ci sono allora due
possibilità: o l’eventuale danno vieni visto come conseguenza
della decisione, cioè viene attribuito ad essa, e parliamo allora
di rischio, per la precisione di rischio della decisione; oppure si
pensa che l’eventuale danno sia dovuto a fattori esterni e vieni
quindi attribuito all’ambiente: parliamo allora di pericolo.”
Onde não existem alternativas de comportamento, não há risco.
Não podemos fazer nada se num determinado local que há
três mil anos nunca teve um terremoto ocorre esse evento inesperado e
improvável de ocorrer. Por outro lado, se sabemos que é possível ocorrer
um terremoto em determinada área, então eu tenho o evento risco de
morrer pelo terremoto, porque, sabendo que é possível o terremoto, teria
a faculdade de construir a casa neste local, ou mesmo a mil quilômetros
de distância. O Risco, em outros termos, não é a ameaça do terremoto,
mas a consequência pelo fato que eu tenho a informação que é possível
o terremoto.
É claro que a decisão possui Risco quando há uma preferência
para uma alternativa, para uma parte da alternativa, isto é, eu posso ser
proprietário de um terreno num local de terremoto, porém, existe o risco
do terremoto, logo, antes de construir, o que posso fazer? Perco o terreno
e corro o risco para não ter mais dinheiro para construir a casa em outro
local mais seguro, ou mesmo construo a casa nesse terreno e corro o risco
do terremoto.
Então o risco a todos não é uma ameaça inconveniente, mas é o
271
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
resultado de uma decisão que poderia ser escolhida de maneira diversa.
De forma simplificada, uma pessoa que é só corre o Risco de se deprimir,
ou porque à noite ou durante o dia não sabe o que se fazer, ou porque
gostaria de amar uma pessoa, mas não consegue amar a ninguém, correse o risco de estar depressivo.
O que se pode fazer diante dessa situação? Encontro uma pessoa
e vivo com ela. A esse ponto é claro que se corre o risco dessa pessoa
não ser a pessoa que procurava, corro o risco de estar junto e surgir o
interesse estar sozinho, etc., ou seja, era infeliz só e agora corro o risco
de ser infeliz de outra maneira.
Nesse ponto de vista, existe uma alternativa entre um risco e
outro. Naturalmente se deve saber que uma pessoa que vive só poderá ter
depressão porque sabemos o risco de uma depressão, assim, se advir uma
depressão, não faremos a ligação com a pressão atmosférica ou mesmo à
relação de valorização do Euro em relação ao Dólar.
Assim, sabendo que é possível, então corro o risco, significando
que a Ação, quando se encontra diante de uma alternativa, se torna
uma ação excludente. Então o Risco é ligado à possibilidade de agir e,
portanto, à alternativa, que por sua vez, está ligado à escolha.
Consequentemente, quando não há alternativa, não existindo
possibilidade, e onde não há escolha, não há Risco. Eu não corro o risco
de morrer, porque é certo que devo morrer. Corremos o risco de morrer
através de acidente de trânsito, ou mesmo com um terremoto, mas
aquilo depende do fato de estar em casa ou no carro, portanto, posso
decidir a maneira, mas concordamos que morrer não é uma escolha,
mas uma certeza.
Assim como, se eu me jogo do terceiro andar, não corro o risco
de morrer, é certo que morrerei, mas se eu caio caminhando, corro o
risco de morrer, porque posso apenas me ferir, posso me machucar,
nesses dois casos me salvo, ou ainda, corro o risco de me machucar a
ponto de morrer.
272
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Assim, o risco é ligado ao saber, poder, poder escolher e possuir
alternativa, e essas são todas no mesmo sentido, características da
modernidade e da sociedade moderna. Só na Sociedade Moderna a Ação
é livre, no sentido de que pode ser realizado de outra maneira. Neste
sentido a ação que segue uma direção pode ou deve se dar de outro modo,
ou mesmo em outra forma, não sendo determinada.
Temos, portanto, em primeiro lugar a escolha, em segundo a
alternativa e em terceiro o futuro, porque a ação é voltada para o futuro.
Desse ponto de vista, o Risco se transforma em um modo de caminhar no
senso futuro, se transforma em um modo para construir o futuro, se torna
um vínculo com o tempo, congelando-o, bloqueando-o em certa direção.
Sob esse ponto de vista, o risco é uma técnica como o Direito
voltado para o futuro. Assim, risco possui um caráter estrutural de ação
na sociedade moderna.
Exemplo: Fulano corre o risco do divórcio não porque o divórcio
possui um caráter ontológico do matrimônio, ou porque as mulheres se
tornam menos belas com o tempo, mas o risco é porque o Fulano pode
escolher com quem casaria, e já sabia das consequências.
Se o Direito pode ser considerado como técnica de construir o
Futuro, o Risco também é outra técnica com a mesma função. O Direito
bloqueia a ação no senso em que foi escolhida uma das alternativas. O
risco abre as possibilidades e depois de feita a escolha a bloqueia em uma
outra forma.
A alternativa ao risco não é a segurança, mas o perigo. Morar
em uma casa protegida com uma construção antissísmica, num local
onde jamais ocorreram terremotos, e um avião descontrolado me atinge,
não é risco, mas perigo, algo que não se pôde escolher como alternativa
possível.
273
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Referências
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274
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
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GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade. São Paulo: Martins
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LUHMANN, Niklas. Sociologia del Rischio. Título original: Soziologie
des Risikos. Edizioni Scolastiche Bruno Mondadori. Milano, 1996.
275
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
13
(Neo)Constitucionalismo e princípio da
proporcionalidade: algumas reflexões de relevo
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug
Doutora e Mestre pela PUC-SP. Professora do Centro de Pesquisa em Direito
da UNINOVE e do Programa de Mestrado em Direito da mesma Instituição.
Coordenadora da Unidade Vergueiro - UNINOVE. Advogada.
Mônica Bonetti Couto
Doutora e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Professora do Centro
de Pesquisa em Direito da UNINOVE e do Programa de Mestrado em Direito da
mesma Instituição. Pós-Doutoranda pela UFSC. Advogada.
276
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Introdução
A Constituição Federal de 1988 representou a volta da
democracia ao País e em seu bojo assegurou um amplo rol de direitos e
garantias fundamentais, bem como a necessidade de desenvolvimento do
Estado Democrático de Direito.
Em virtude de assegurar um amplo rol de direitos e garantias
fundamentais, e prever uma democracia participativa é denominada
de “Constituição Cidadã”. Os direitos e garantias fundamentais, na
maioria das vezes, se apresentam na forma de princípios. As normas
constitucionais se dividem em normas regras e normas princípios.
As normas regras descrevem um estado de coisas e incidem
diretamente no caso concreto. Já os princípios são aquelas normas
que veiculam valores, são mais abstratos e genéricos do que as regras.
Constituem-se nas vigas mestras do ordenamento jurídico e permeiam
todo o Texto Constitucional.
A natureza principiológica dos direitos e garantias fundamentais,
como afirma Willis Santiago Guerra Filho os coloca numa verdadeira
rota de colisão. Nesse sentido tem-se que no plano fático a aplicação de
um direito fundamental de forma absoluta leva a negação de outro direito
fundamental.
Todavia, por estarem assegurados no Texto da Constituição
não se pode negar aplicação a um direito fundamental em detrimento de
outro. De igual modo em caso de conflito entre princípios não se pode
aplicar um em detrimento de outro.Nesse cenário surge o princípio da
proporcionalidade, denominado de “princípio dos princípios”.
O princípio da proporcionalidade tem sua origem relacionada
ao direito alemão e apesar de não estar expressamente previsto na
Constituição Brasileira, tem sido amplamente aplicado com fundamento
no Estado Democrático de Direito, no princípio da isonomia ou no § 2.º
do art. 5 da Constituição.
277
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Ele impõe a necessidade de se sopesar os valores em conflito
de maneira que a encontrar uma decisão que menos agrida ao outro
princípio. É dividido em três subprincípios: necessidade, adequação e
proporcionalidade em sentido estrito (razoabilidade).
Nesse sentido, também se impõe a necessidade de se criar
um novo modo de se interpretar a Constituição, é nesse contexto que
se desenvolve o neoconstitucionalismo. Será estudado aqui o princípio
da proporcionalidade em face do neoconstitucionalismo com vistas a
compreender toda a amplitude e abrangência desse princípio.
1. Os princípios e sua evolução teórico-dogmática
Tendo por objeto o estudo das mais destacadas nuances e
dimensões do princípio da proporcionalidade, este trabalho não pode
prescindir do estudo introdutório – ainda que de maneira deveras sucinta,
dado o recorte metodológico e os limites propostos para esta pesquisa –
em torno da principiologia jurídica e de seu papel.
O sistema normativo pode ser definido como o conjunto
unitário e ordenado de normas, em função de princípios coordenados
em torno de um fundamento comum. Contudo, não se trata de uma mera
soma de elementos isolados, pois há uma conjugação harmônica entre
eles, é dizer, uma interação. Dentro do sistema normativo também são
reconhecíveis diversos sistemas parciais, ou melhor, subsistemas, a partir
de perspectivas materiais diversas. Assim, o conjunto de todas as normas
jurídicas forma o sistema jurídico do Direito e o conjunto de normas de
Direito Constitucional formam o sistema parcial (ou subsistema).
De acordo com as lições de Joaquim José Gomes Canotilho, a
Constituição é um sistema aberto de regras e princípios.1 Diz-se aberto
porque sofre as ingerências da sociedade e diversos fatores externos
1
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina,
1991. pp.171-186.
278
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
encontrando-se em constante comunicação com o sistema social.2 As
normas constitucionais podem ser dividas em normas/regras e normas/
princípios conforme o seu maior grau de abstratividade e generalidade.
As regras trazem “a descrição de estados-de-coisas formados por um
fato” 3, já os princípios dizem respeito aos valores.
As regras são aquelas normas que mais se aproximam das
normas jurídicas de direito comum, na medida em que possuem todos os
elementos para incidirem diretamente sobre o caso concreto, bem como
para conferir um direito ao seu destinatário. Elas, geralmente, prescrevem
uma obrigação, permitem ou vedam uma determinada conduta. Têm a
sua aplicação a uma situação fática determinada e específica. As regras
são concretas e incidem de maneira direta sobre o caso concreto.
Robert Alexy ressalta que a distinção entre regras e princípios
revela-se mais claramente nos casos de colisões entre princípios e de
conflitos entre regras. Enquanto o conflito de regras resolver-se-ia pelo
reconhecimento de uma cláusula de exceção ou pela declaração da
invalidade de uma delas, a colisão de princípios significaria apenas que
um deles teria precedência sobre o outro. Estar-se-ia diante do fenômeno
que Alexy denomina de ‘relação de precedência condicionada’, na qual
o conflito seria resolvido pelo sopesamento dos interesses em choque,
de molde a definir qual deles deveria ser aplicado no caso em concreto4.
É bom deixar claro que, para o autor, tal escolha (ou precedência)
de um princípio em detrimento de outro não representa a invalidação de
2
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 2. ed. São
Paulo: Celso Bastos Editor: Publicação do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2001. pp.
54-55.
3
Afirma Willis Santiago Guerra Filho que: “Daí se dizer que as regras se fundamentam nos princípios, os quais não fundamentariam diretamente nenhuma ação, dependendo para isso de uma
regra concretizadora.” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Publicação do Instituto Brasileiro de Direito
Constitucional, 2001. p.45).
4
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros Editores, 2008. pp. 91-92.
279
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
um deles, nem tampouco a introdução da cláusula de exceção, como se
passa com as regras, mas apenas e tão somente que um dos princípios
tem um peso maior, naquela situação, dadas as circunstâncias daquele
caso concreto.5 A este ponto, com a devida atenção, retornaremos no
tópico seguinte.
É correto dizer que os princípios constituem, portanto, a base
estrutural de todo o ordenamento jurídico, funcionando como verdadeiro
ponto de referência do sistema. São normas elementares e fundamentos
que funcionam como lastro para a aplicação do direito ou, como prefere
Celso Antônio Bandeira de Mello:
Princípio – já averbamos alhures – é, por definição,
mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,
disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica
e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios
que preside a intelecção das diferentes partes componentes do
todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo6.
Fundamentalmente, os princípios diferenciam-se das regras por
serem mais abstratos e genéricos, pois se aplicam a uma infinidade de
situações. As regras em contrapartida ganham em termos de concretude,
incidindo diretamente sobre as situações fáticas que abarcam.
É importante assinalar, seguindo a lição de Celso Antônio
Bandeira de Mello, que a violação a “um princípio é muito mais grave
do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica
5
Ibidem, mesmas páginas.
6
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010. pp. 958-959.
280
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a
todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque
representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores
fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão
de sua estrutura mestra” 7.
Os princípios constitucionais, na sua maioria, vêm expressos
na Constituição, o que não elide a possibilidade de extraírem-se
também princípios implícitos na própria Constituição. Contudo, o Texto
Constitucional tem dispositivos específicos que fazem menção aos
princípios. Ex.: o art. 4º, que elenca os princípios que regem o Brasil
as relações internacionais. Os princípios são “as vigas mestras do texto
constitucional”8 que se irradiam por todo o sistema jurídico pátrio,
conferindo unidade e coerência ao ordenamento jurídico.
Pode-se dizer, sem receio de errar, que os princípios representam
a estrutura do sistema constitucional, “são, pois, as vigas mestras do texto
constitucional”. A Constituição em razão de veicular um conjunto de
regras e princípios coesos e não antagônicos, não admite a existência de
uma hierarquia entre as normas constitucionais. Admite-se, na verdade, há
existência de uma hierarquia valorativa entre regras e princípios, mas tal
raciocínio não conduz, necessariamente, a existência de uma hierarquia
normativa, uma vez que todas as normas constitucionais encontram-se
no mesmo patamar hierárquico.
Os princípios indicam a ideia de começo, ponto de partida
e fundamento. Eles são polos informadores que permeiam toda a
Constituição, conferindo unidade ao sistema. São abstratos e vagos e em
razão dessa qualidade não incidem diretamente sobre um caso concreto
específico, eis que encampam um sem número de hipóteses. Portanto,
7
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 959.
8
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos, 2002. p. 75.
281
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
eles também são objeto da interpretação na medida em que necessitam
dela para determinar o seu conteúdo.
Tratam-se, pois, das normas fundamentais da Constituição que
permeiam e informam todo o sistema jurídico, cabendo a eles a difícil
tarefa de conferir coerência, sistematicidade e unidade ao sistema. Eles
fornecem as diretrizes essenciais da Constituição, de maneira que se
tornam indispensáveis para a sua inteligência. Os princípios veiculam
os valores fundamentais de uma determinada sociedade, conferindo
dinamismo à Constituição, de molde a que esta possa acompanhar as
mudanças ocorridas na sociedade. Também funcionam como critério
para a edição de futuras regras. Segundo Joaquim José Gomes Canotilho
os princípios ao constituírem exigências de optimização permitem o
balanceamento de valores e interesses de acordo com o seu peso e a
ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes9.
Os princípios vinculam o legislador e o aplicador do direito, uma
vez que não se pode editar uma regra que contrarie um princípio e nem
conferir uma interpretação a regra que a coloque em choque com aquele.
Também desenvolvem importante papel na atividade interpretativa,
servindo como um guia, um instrumento de interpretação. Os princípios
constitucionais, no que concerne à atividade interpretativa, são metas,
diretrizes, que orientam o intérprete acerca da direção a ser seguida.
Isso está a significar que as normas jurídicas devem ser sempre
interpretadas em harmonia com os princípios contidos na Constituição.
Deste modo, os princípios constitucionais também fazem parte da
atividade de interpretação. São limites à interpretação constitucional,
uma vez que não é permitido interpretar uma regra de forma a contrariar
um princípio.
Os princípios constitucionais, no que concerne à atividade
interpretativa, são metas, diretrizes, que orientam o intérprete acerca da
9
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina,
1991. p. 174.
282
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
direção a ser seguida. Isso está a significar que as normas constitucionais
devem ser sempre interpretadas em harmonia com os princípios contidos
na Constituição. Deste modo os princípios constitucionais também
fazem parte da atividade de interpretação. Pode-se afirmar que eles
funcionam como um limite à interpretação constitucional, uma vez que
não é permitido interpretar uma regra de forma a contrariar um princípio.
Celso Bastos entende que as normas/princípios trazem em seu
bojo valores, enquanto as normas/regras veiculam simples regras que
incidem diretamente no caso concreto10. O princípio se ajusta a regra e a
preenche com os valores que o próprio princípio encampa. O princípio
é por assim dizer um indicador interpretativo. Note-se que ao mesmo
tempo que o princípio é objeto da interpretação ele também funciona
como critério interpretação.
2. A intensa valorização dos princípios constitucionais:
o pós-positivismo, o “neoconstitucionalismo” e o
“neoprocessualismo”
O reconhecimento da posição de relevo dos princípios implicou
em significativa mudança no papel dos juízes, na atualidade. Não se pode
mais falar na atuação judicial restrita a veicular a ‘vontade da lei’, pura
e simplesmente.
Esse novo contexto interpretativo – movimento cunhado, por
alguns, de neopositivismo ou neoconstitucionalismo11 - desloca o exame
e a discussão da validade normativa, que passa a considerar outros
aspectos da realidade social, e não apenas centrado na estrutura normativa
lógica-dedutiva. De acordo com Eduardo Cambi, esse movimento é
uma consequência filosófica do neoconstitucionalismo e apresenta-se
10
Op. cit. p. 149.
11
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas
públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. p. 83.
283
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
“como uma nova forma de interpretação e aplicação do direito. Parte das
bases do positivismo jurídico, procurando mostrar uma outra forma de
compreensão do fenômeno jurídico”12.
Neste modelo, os princípios são reconhecidos como pilares
axiológicos do sistema jurídico que passam a assumir força normativa
imediata, e não mais apenas meramente secundária fonte de preenchimento
de lacunas13.
Em face disso se sustenta que o chamado ‘neoconstitucionalismo’
reclama uma “nova teoria da norma, que possibilite a conjugação de regras
e de princípios, bem como uma nova teoria da interpretação jurídica
que não seja nem puramente mecanicista nem, tampouco absolutamente
discricionária, em que os riscos que comportam a exegese da Constituição
sejam suportados por um esquema plausível de argumentação jurídica”14.
Fundamentalmente, o que se aponta, nessa seara, é que a
Constituição brasileira de 1988, alinhando-se a alguns modelos europeus
(v.g., Itália e Alemanha), passa a assumir um papel diverso daquelas
que lhe antecederam, aqui no Brasil e, pode-se dizer, no mundo. Assim,
a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 passa a ser
significação de um diploma de legalidade superior de lastro constitucional
e, além disso, incorpora conteúdos materiais em forma de direitos,
12
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas
públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. p. 83.
13
Eduardo de Enterría aduz, com propriedade, que: “ todo ello está conduciendo al pensamiento
jurídico occidental a una concepción substancialista y no formal del Derecho, cuyo punto de
penetración, más que en una metafísica de la justicia, en una axiomática de la materia legal, se ha
encontrado en los principios generales del Derecho, expresión desde luego de una justicia material, pero especificada técnicamente en función de los problemas jurídicos concretos Ahora bien,
la ciencia jurídica no tiene otra misión que la de desvelar y descubrir, a través de conexiones de
sentido cada vez más profundas y ricas, mediante la construcción de instituciones y la integración
respectiva de todas ellas en un conjunto, los principios generales sobre los que se articula y debe,
por consiguinte, expresarse el orden jurídico”. (ENTERRÍA, Eduardo de. Reflexiones sobre la ley y
los principios generales del derecho. Madrid: Editorial Civital, 1986. p. 34)
14
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas
públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. p. 90.
284
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
princípios e valores, recheados por altíssima carga valorativa.
No chamado neoconstitucionalismo, reconhece-se que a
Constituição é plena de pilares axiológicos de todo o sistema jurídico
que, como se aludiu, deixam de servir apenas para o preenchimento de
lacunas; antes disso, têm força normativa imediata. Há, neste mesmo
passo, a constatação da superação do legalismo, bem como das ideias de
distanciamento e neutralidade, tão difundidos pelas correntes positivistas.
As ideias defendidas pelos movimentos neoconstitucionalistas
têm, evidentemente, um caráter altamente positivo. Conquanto, a
rigor, não se possa falar em um verdadeira ‘novidade’, são altamente
saudáveis formulações dessa ordem, emprestando-se notável prestigio à
força normativa da Constituição e aos princípios, sobretudo os de índole
constitucional.
Da mesma forma, tem merecido grande destaque, a ênfase
e a necessidade de se estabelecer uma leitura constitucional do
processo civil ou, como querem alguns, a adoção do chamado modelo
constitucional do processo civil, fazendo-se expressa referência ao
emprego das garantias e dos princípios constitucionais, na aplicação e
interpretação do processo civil15.
A esse respeito, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero,
pontificam:
Dentro do Estado Constitucional, um Código de Processo Civil
só pode ser compreendido como um esforço do legislador
infraconstitucional para densificar o direito de ação como
15
Cf. Cássio Scarpinella Bueno. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2008. pp. 41 a 85. Do mesmo autor, o vol. 1 de seu Curso sistematizado de
direito processual civil. São Paulo: Saraiva. pp. 40-242. Igualmente, sob essa mesma ótica, Cândido
Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil. vol. I. São Paulo: Malheiros, 2001. pp.
180-183 e Hermes Zaneti Júnior, Processo constitucional: o modelo constitucional do processo
civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 171.
285
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
direito a um processo justo e, muito especialmente, como um
direito à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva dos
direitos. O mesmo vale para o direito de defesa. Um Código de
Processo Civil só pode ser visto, em outras palavras, como uma
concretização dos direitos fundamentais processuais previstos
na Constituição16.
No campo do processo, tal movimento não se pode ser tratado,
igualmente, como genuína novidade. A constitucionalização do processo
operou-se na segunda metade do século XX, conforme bem observou
Calmon de Passos, como decorrência da evolução e maturação da
cidadania e da ampliação da cláusula do devido processo legal17.
Ada Pellegrini Grinover, em obra publicada em 1975 (Os
princípios constitucionais e o Código de Processo Civil), já ressaltava:
Hoje, acentua-se a ligação entre constituição e processo, no
estudo concreto dos institutos processuais, não mais colhidos
na esfera fechada do processo, mas no sistema unitário do
ordenamento jurídico: é esse o caminho, ensina Liebman, que
transformará o processo, de simples instrumento de justiça, em
garantia de liberdade18.
De fato. O primeiro – e quiçá mais sobrepujante – valor
constitucional que deriva da análise da regulamentação que o processo
recebeu a partir da Constituição, é o direito de ação ou o direito à
prestação jurisdicional, visto e bem compreendido a partir do princípio
16
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC. Críticas e propostas. São
Paulo: RT, 2010. p. 15.
17
CALMON DE PASSOS, J.J. A instrumentalidade do processo e o devido processo legal. In:
Revista de Processo 102. São Paulo, abr.-jun 2001. p. 59.
18
GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1975. p. 4.
286
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
da ubiqüidade (art. 5. º, inciso XXXV).
Já na Constituição anterior (EC 1/69) constava do art. 153, §
4.º, seguinte garantia: “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder
Judiciário qualquer lesão de direito individual”19. Desse postulado
derivavam, segundo a melhor doutrina 20, todos demais princípios
processuais constitucionais, para a realização de um justo e devido
processo. E desde esse momento, então, haver-se-ia de reconhecer,
legitimamente, a constitucionalização do direito de ação e, portanto, de
todo o processo.
E na medida em que se assegura, como direito fundamental
do cidadão, o direito ao justo processo, ou à tutela jurisdicional justa,
constitucionaliza-se o direito de ação e, portanto, todos os meios e
instrumentos destinados a tal fim. Por isso é que se fala, com total acerto
e propriedade, em um processo não mais visto sob o aspecto formal, mas
19
In verbis: “§ 4.º º A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de
direito individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente
as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de
cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido.” (redação dada pela Emenda Constitucional
nº 7, de 1977). A Constituição de 1946 já contemplava garantia equivalente, em seu art 151, § 4º
“A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual.” 20
Ada Pellegrini destacara que a regra do citado art. 153, § 4º do texto constitucional então em
vigor se prendia diretamente à cláusula do devido processo legal do sistema anglo-norte-americano. Ainda a mesma autora, refletindo sobre os dizeres aquele mesmo dispositivo, asseverava: “O
art. 153, § 4º, consagra, no plano constitucional, o próprio direito de ação; o direito à prestação
jurisdicional. Mas isso não é suficiente. Não basta afirmar a constitucionalização do direito de
ação, para que se assegurem ao indivíduo os meios para obter o pronunciamento do juiz sobre a
razão do pedido. É necessário, antes de mais nada, que por direito de ação, direito ao processo,
não se entenda a simples ordenação de atos, através de qualquer procedimento, mas sim ‘o devido
processo legal.” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios constitucionais e o Código de Processo
Civil. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1975. p. 180). E prossegue, então: “Parece defluir, portanto,
do texto constitucional, uma tutela jurídica menos genérica e abstrata do que a mera obrigação de
resposta do Estado, perante o pedido do autor; o texto também deve garantir a tutela dos direitos
afirmados, mediante a possibilidade de ambas as partes sustentarem suas razões, apresentarem
suas provas, influírem sobre a formação do convencimento do juiz, através do contraditório. O
princípio da proteção judiciária, assim entendido, substitui, no processo civil, as garantias constitucionais de ampla defesa e do contraditório, explicitadas somente para o processo penal. (Op.
cit., pp. 18-19).
287
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
como garantia mínima de meios e resultados. 21 Assim, na formulação
de técnicas idôneas, é imprescindível compreender-se, “no contexto dos
direitos fundamentais, aqueles de organização e de procedimentos” 22. E
prossegue, Eduardo Cambi: “Tais direitos podem ser entendidos tanto
como direitos ao estabelecimento de determinados institutos processuais
ou a certos procedimentos quanto a uma determinada interpretação ou
aplicação concreta das regras e dos princípios processuais. Com efeito,
vinculam, simultaneamente, os legisladores e os juízes”23.
Aqui também não se pode dizer tratar-se de uma genuína
novidade. É certo, porém, que a hermenêutica proposta é de acentuado
valor: nenhum instituto de direito processual poderá ser legitimamente
aplicado senão que à luz dos postulados constitucionais.
3. Colisão entre princípios e a proporcionalidade
Em razão de sua relatividade e abstratividade, os princípios não
podem pretender serem empregados de forma absoluta em toda e qualquer
hipótese. Isso decorre do fato de que a aplicação absoluta de um princípio
que contem em si um valor acaba por infringir um outro valor, quando se
trata de possível conflito entre dois princípios. A esse respeito elucida Willis
Santiago: “[...] Não há princípio do qual se possa pretender seja acatado
de forma absoluta em toda e qualquer hipótese, pois uma tal obediência
unilateral e irrestrita a uma determinada pauta valorativa – digamos
individual – termina por infringir uma outra – por exemplo, coletiva”24.
21
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas
públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. p. 218, fazendo referência às lições de
Luigi Paolo Comoglio, Corrado Ferri e Michele Taruffo.
22
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualism. Direitos fundamentais, políticas
públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. p. 219.
23
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas
públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. p. 219.
24
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, 2. ed. São Paulo:
Celso Bastos Editor: Publicação do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2001. pp. 45-46.
288
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Portanto, um princípio encontra o seu limite em outro princípio.
Todavia, não há negar-se que, na maioria das vezes, é de difícil
ponderação saber qual o ponto exato a partir do qual aquele princípio
não pode mais ser adotado na sua totalidade. Segundo Canotilho no
“caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação,
de harmonização, pois eles contêm apenas exigências ou standarts que
em primeira linha prima facie devem ser realizados; as regras contêm
fixações normativas definitivas sendo insustentável a validade simultânea
de regras contraditórias. Dito de outro modo: a convivência de princípios
é sempre conflitual”25.
Em sede de princípios a seleção se dará sempre a partir de critérios
de conteúdo guiados, principalmente, pelo critério de racionalidade e da
razoabilidade adotado no caso específico. É por esta razão que alguns
doutrinadores tratam da resolução dos conflitos entre princípios pelo
critério do peso.
Em caso de conflito entre princípios também se deve fazer uso
do princípio da proporcionalidade. Este foi esculpido, inicialmente, na
seara do Direito Administrativo, em decorrência da ideia jusnaturalista,
com a finalidade de coibir os abusos do poder de polícia, protegendo
assim o cidadão de eventuais gravames aos direitos individuais. Nos
Estados Unidos é conhecido como razoabilidade e decorre da cláusula
“due process of law” em sua feição substantiva26.
Nesse sentido, explica Willis Santiago Guerra Filho que: “[...]
se preconiza o recurso a um “princípio dos princípios, o princípio da
25
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. 5. ed., Coimbra: Almedina, 1990.
p.174.
26
Suzana Toledo de Barros assevera que: “O princípio da proporcionalidade tem dignidade constitucional na ordem jurídica brasileira, pois deriva da força normativa dos direitos fundamentais,
garantias materiais objetivas do Estado de Direito. É haurido principalmente da conjunção dos
artigos, 1º, III, 3º, I, 5º caput, II, XXXV, LIV e seus parágrafos 1º e 2º; 60, parágrafo 4º, IV. Neste
sentido, complementa o princípio da reserva da lei, a ele incorporando-se no princípio da reserva
legal proporcional.” (BARROS, Suzana Toledo de. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle
de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, pp.
210-211.)
289
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
proporcionalidade, que determina a busca de uma “solução compromisso”,
na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em
conflito, procurando desrespeitar o mínimo ao(s) outro(s), e jamais lhe(s)
faltando minimamente com o respeito, isto é, ferindo-lhe seu ‘núcleo
essencial’”27. Na mesma linha é a lição de Paulo Bonavides:
Poder-se-á enfim dizer, a esta altura, que o princípio da
proporcionalidade é hoje axioma do Direito Constitucional,
corolário da constitucionalidade e cânone do Estado de direito,
bem como regra que tolhe toda a ação ilimitada do poder do
Estado no quadro de juridicidade de cada sistema legítimo
de autoridade. A ele não poderia ficar estranho o Direito
Constitucional brasileiro. Sendo, como é, princípio que embarga
o próprio alargamento dos limites do Estado ao legislar sobre
matéria que abrange direita ou indiretamente o exercício da
liberdade e dos direitos fundamentais, mister se faz proclamar a
força cogente de sua normatividade28.
O princípio da proporcionalidade está a impor em caso de
aparente conflito entre princípios deve haver uma redução proporcional
do âmbito de alcance de cada um deles.
É dizer, um princípio deve renunciar a pretensão de ser aplicado
de forma absoluta devendo prevalecer apenas até o ponto a partir do
qual, deverá ser aplicado outro princípio que lhe seja aparentemente
divergente29. Segundo Willis Santiago: “Em ambas as hipóteses, para
27
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 2. ed. São
Paulo: Celso Bastos Editor: Publicação do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2001. p. 61.
28
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional.. 6.ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1996,
p. 397.
29
A esse respeito, nos valemos mais uma vez das palavras de Suzana Toledo de Barros: “Em caso
de colisão de direitos fundamentais, a técnica correta para aferição da proporcionalidade em sentido estrito é a ponderação de bens, pela qual se estabelece uma relação de precedência condicionada, que vale como lei para determinado conflito. Esse procedimento é bastante útil para se aferir
290
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
evitar o excesso de obediência a um princípio que destrói o outro, e termina
aniquilando os dois, deve-se lançar mão daquele que, por isso mesmo, há
de ser considerado o ‘princípio dos princípios’: o da proporcionalidade”.
Konrad Hesse entende que a fixação de limites deve responder
em cada caso concreto ao princípio da proporcionalidade; não deve ir
além do que seja exigido para a realização da concordância entre ambos
os bens jurídicos. Deste modo, o autor entende que “proporcionalidade
significa, neste contexto, uma relação entre duas magnitudes variáveis,
concretamente, aquela que melhor responda a dita tarefa de otimização,
não pois uma relação entre um “objetivo” constante e uno ou “meios”
variáveis”30.
Em sua obra clássica, Canotilho assevera:
o campo de eleição do princípio da concordância prática tem
sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos
fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos
constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio
está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma
diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício
de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de
limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir
uma harmonização ou concordância prática entre estes bens31.
De acordo com Humberto Ávila, o postulado constitucional
da proporcionalidade apenas há de ser aplicado em situações em que
houver, efetivamente, uma relação de causalidade entre dois elementos
a compatibilidade de uma norma legal restritiva de direito ao princípio em exame não somente
quando a finalidade da lei foi a de limitar o âmbito de proteção de um direito, mas quando, a
pretexto de regular determinada matéria, por via reflexa se operou a restrição a um outro direito.
(BARROS, Suzana Toledo de. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais, Brasília: Ed. Brasília Jurídica, pp. 213-214).
30
HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional, Op. cit., p.46.
31
CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito constitucional. 5. ed., Coimbra: Almedina, p. 228.
291
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
empiricamente discerníveis, é dizer, um meio e um fim, de tal forma que
o intérprete do Direito possa proceder ao exame de três parâmetros ou
máximas, que integram o próprio conteúdo da regra da proporcionalidade:
a) a adequação; b) a necessidade e, por fim, c) a proporcionalidade em
sentido estrito32.
Nessa linha, Gilmar Mendes, em voto proferido em julgamento
do Recurso Ordinário em Habeas Corpus de n. 93.172/SP, asseverou:
“Tal como já sustentei em estudo sobre a proporcionalidade na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (‘A proporcionalidade na
Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal’, In Direitos Fundamentais
e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional.
2. ed. SP: Celso Bastos Editor: IBDC, 1999. p. 72), há de perquirir-se,
na aplicação do princípio da proporcionalidade, se, em face do conflito
entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se
adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário
(isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz)
e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação
ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização
do princípio contraposto).”
Ainda, parece oportuno invocar a lição, sempre atual, de Recaséns
Siches, sobre a lógica do razoável, ideia que sem dúvida alguma está
pressuposta no princípio da razoabilidade.33 O próprio Supremo Tribunal
Federal chancelou este entendimento, reconhecendo que “O postulado
da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria
constitucionalidade material dos atos estatais”34.
Contudo, há que se reconhecer que nesse conflito de valores
é preciso em cada caso concreto verificar qual o valor proeminente.
Todavia, isto não está, de modo algum, a significar que exista uma escala
32
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos.13.
ed., revista e ampliada, São Paulo: Malheiros, 2012. p. 187.
33
SICHES, Luis Recaséns. Introducción al Estúdio del Derecho. México: Porrúa, pp. 210 e ss.
34
STF, RE 200.844-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16.08.2002.
292
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
de valores objetiva e previamente definida. Um valor só pode sobreporse a outro na medida em que se examine o caso concreto. O princípio da
proporcionalidade, em sentido estrito, está a determinar que se estabeleça
uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição
normativa e o meio a ser empregado, que deve ser juridicamente o melhor
possível, ou ainda, o menos gravoso35.
Conclusões
Diante de todo o exposto verifica-se que nem todas as normas
da Constituição exercem a mesma função. E em razão disso elas podem
ser divididas em normas regras e normas princípios.
Os princípios são mais abrangentes e abstratos que as regras,
por veicularem valores são dotados de grande subjetividade. Permeiam
todo o Texto Constitucional conferindo harmonia e unidade ao sistema.
Os princípios exercem função de relevo no Texto Constitucional na medida em que conferem coerência ao sistema, em virtude de sua natureza
necessitam de um modo especifico de interpretação.
Nesse cenário, como visto, se desenvolveu o neoconstitucionalismo que propugna por uma valorização dos princípios, dos direitos
fundamentais e da força normativa da Constituição.
No caso de conflito entre princípios eles necessitam da aplicação do principio da proporcionalidade. Esse princípio surge com um
meio eficaz para solucionar conflitos entre princípios, pois não se pode
negar aplicação a um princípio em detrimento de outro. O princípio da
proporcionalidade impõe um sopesamento, um balanceamento entre os
valores em conflito, de modo que não se negue aplicação a nenhum deles.
A aplicação do princípio da proporcionalidade confere maior
eficácia às normas constitucionais e preserva a força normativa da Cons35
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 2. ed. São
Paulo: Celso Bastos Editor: Publicação do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2001. p. 70.
293
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
tituição. Todavia, como exposto, sua aplicação não é tarefa das mais
fáceis, pois impõe a necessidade de se aplicar com rigor os seus três
subprincípios com vistas a encontrar a solução necessária, adequada e
razoável.
294
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Referências
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Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos
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CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo –
Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São
Paulo: RT, 2009.
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CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. 5. ed.
Coimbra: Livraria Almedina, 1991.
COUTO, Mônica Bonetti; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro.
Processo Civil e Constituição: Uma (Re) Aproximação Necessária.
Trabalho submetido ao XXI Congresso Nacional do CONPEDI.
ENTERRIA, Eduardo. Reflexiones sobre la ley y los principios generales
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GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios constitucionais e o Código
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GUERRA, Gustavo Rabay. Estrutura lógica dos princípios constitucionais:
Pós-positivismo jurídico e racionalidade argumentativa na reformulação
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GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos
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HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar
Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991.
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo.
27. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
SICHES, Luis Recaséns. Introducción al Estúdio del Derecho. México: Porrúa.
296
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
14
O direito e o ciberespaço
Tiago Janini
Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo .
297
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Introdução
A rápida expansão da internet originou um novo ambiente
social: o ciberespaço. Com uma velocidade espantosa, a cada dia
desenvolvem-se, com a evolução tecnológica, aparelhos eletrônicos e
formas de conexão que possibilitam aos cidadãos conectarem-se à rede
mundial de computadores independente do momento e do lugar em que
se encontram. O mundo fica cada vez mais globalizado. Nesse contexto,
as relações sociais também se tornam virtuais, realizadas no ciberespaço.
Sucede que os comportamentos sociais produzidos em um
ambiente eletrônico não ficam livres de conflitos. Decorre outra novidade:
os conflitos sociais virtuais. O direito é o meio utilizado para a regulação
das condutas sociais, evitando e solucionando os seus embates. O direito,
portanto, deve atuar no ciberespaço, regulando as condutas virtuais.
O ambiente virtual necessita ser regulamentado. Porém, dúvidas
começam a surgir sobre como devem ser geridos os conflitos ocorridos
no ciberespaço. O direito pode regulamentar o ciberespaço? Como é
feita a intervenção do direito no ciberespaço? O ciberespaço também
tem o condão de influenciar o direito? Como os sujeitos do direito devem
aplicar as normas jurídicas no ciberespaço?
Para chegar ao objetivo proposto, utilizar-se-ão algumas lições
da Teoria dos Sistemas de Luhmann e a contribuição de Stockinger
acerca dos cibersistemas. Este estudo partirá do conceito de sistema
proposto por Niklas Luhmann, visando a distinguir os subsistemas
existentes no sistema social, dando principal enfoque ao subsistema
do direito. Em seguida, com base em Gottfried Stockinger, buscase dar corpo ao conceito de cibersistema, como um subsistema social
autônomo desenvolvido no ciberespaço. Assim, sinteticamente, podese dizer que o ciberespaço é um subsistema composto por operações
próprias realizadas em âmbito virtual, que originam novas operações.
Diante dessas premissas, analisam-se, em seguida, as possibilidades de
298
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
inter-relações entre o subsistema do direito e o cibersistema, apoiadas na
Teoria dos Sistemas. A fim de fundamentar essa aproximação, recorrerse-á à legislação brasileira e a julgados dos tribunais superiores do Brasil,
em especial Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de
Justiça (STJ).
1. A teoria dos sistemas de Luhmann: breves considerações
A teoria dos sistemas é uma proposta evolutiva da sociedade
pós-moderna desenhada por Niklas Luhmann, que “substitui a oposição
epistemológica ‘sujeito x objeto’ (abordagem objetivo-teorética) pela
diferenciação funcional ‘sistema x meio’ (abordagem diferencialteorética) e considera como seu objeto não o ser humano, mas o
intercâmbio de comunicação, consequentemente gerando a arquitetônica
conceitual mais adequada para a sociedade informacional da era pósmoderna”36.
Um dos principais alicerces da teoria luhmanniana consiste na
diferenciação entre sistema e ambiente. O sistema só será delimitado, e,
portanto, definido, em razão do ambiente que o circunda. O elemento
escolhido por Luhmann para fazer a distinção da sociedade com o seu
ambiente foi a comunicação37. Com isso, a delimitação do sistema social
perante o seu entorno se dá por meio de operações comunicativas: não
existe comunicação fora da sociedade e não há nada na sociedade que
não possa ser comunicado.
Desse modo, o sistema é definido por uma única operação:
a comunicação. Não basta, todavia, a existência dessa operação; é
necessária a sua recursividade, ou seja, uma operação deve ser capaz de
se conectar em outra operação do mesmo tipo. Caracteriza a diferença
entre o sistema e o ambiente a possibilidade de a operação comunicativa
36
Willis Santiago GUERRA FILHO, Teoria da ciência jurídica. p. 210 – grifo do original.
37
Introdução à teoria dos sistemas. p. 90.
299
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
se conectar a operações de seu próprio tipo, excluindo todas as demais.
Por isso, a teoria dos sistemas proposta por Luhmann deve ser
pensada em um emaranhado de operações fácticas e não em estruturas.
As estruturas são úteis para o desenvolvimento das operações sistêmicas,
mas não servem para produzir a diferenciação do sistema, uma vez que
as operações realizadas no seu interior permitem identificar e segregá-lo
do ambiente.
Conforme realiza suas operações, o sistema se fecha em relação
ao ambiente; essa clausura, porém, não deve ser vista como um isolamento
total, em virtude da constante troca de informações que possui com o
ambiente. É a dicotomia fechamento operacional e abertura cognitiva
disposta na teoria luhmanniana. Um sistema é fechado operacionalmente,
isolando-se, já que processa as informações do ambiente de acordo com
operações e estruturas próprias do sistema. Apenas existe dentro do
sistema a sua própria operação. O sistema é fechado operacionalmente
porquanto só se constitui mediante operações internas.
O encerramento operativo não impede que o sistema realize
contínuas trocas de informações com o ambiente, desde que processadas
internamente, podendo ser considerado aberto, mas de forma cognitiva.
O que não é possível é o sistema operar no ambiente e nem o ambiente
agir no sistema. Assim, as operações realizadas pelo sistema consistem
basicamente na seleção e no processamento interno de informações
colhidas no ambiente.
A partir do axioma do fechamento operativo decorrem a autoorganização e a autopoiesis do sistema. Luhmann alerta que são conceitos
distintos, cada um destaca aspectos específicos do encerramento da
operação38. Por auto-organização entende-se a construção das estruturas
pelo próprio sistema. Já a autopoiesis significa a determinação do estado
posterior da operação a partir da limitação anterior. O sistema autopoiético
produz elementos para seguir produzindo mais elementos, como uma
38
Introdução à teoria dos sistemas, p. 112.
300
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
história sem final. O sistema autopoiético implica auto-organização,
tido como uma rede de produção de componentes e estruturas dentro do
próprio sistema.
Fora do sistema, isto é, no seu meio, outros fatos surgem, porém
só terão significado para o sistema quando conectados à comunicação.
Dito de outro modo, os acontecimentos do mundo irão ingressar no
sistema social quando revestidos na forma de comunicação, momento
em que se tornarão fatos sociais de acordo com as operações do sistema.
Desse modo, o sistema social transforma um elemento extrassistêmico
em elemento sistêmico.
Essa inter-relação denominada de acoplamento estrutural
consiste na forma de o sistema realizar distinções para selecionar no
ambiente as informações relevantes para as suas operações internas. Os
acoplamentos estruturais não produzem operação no sistema, apenas
irritações, perturbações. Aquilo que vem de fora entra no sistema via
acoplamento estrutural e deve ser transformado em elemento compatível
para ser processado no sistema. Verifica-se que o sistema pode reagir às
irritações e aos estímulos advindos do ambiente somente se processadas
por meio de suas próprias operações. Percebe-se que o acoplamento
estrutural é responsável pela troca de informações, gerando uma nova
comunicação no interior do sistema.
2. Subsistemas sociais: o direito como
autopoiético
sistema
A distinção entre sistema e ambiente é repetida dentro da
sociedade, permitindo a formação de sistemas parciais (ou subsistemas),
tais como a economia, a ciência, a política, a religião, o direito, etc.
Forma-se a distinção subsistemas/ambiente, sendo que cada subsistema
será ambiente para os demais39. A comunicação social se especializa, com
39
Willis Santiago GUERRA FILHO esclarece que a distinção entre sistema e ambiente é levada
301
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
o aparecimento de comunicações específicas, que geram os subsistemas.
Assim, apesar de utilizarem a mesma matéria-prima, o que caracteriza
cada subsistema é a sua comunicação diferenciada. Atente-se ao
subsistema econômico, que além de possuir uma comunicação própria,
ser autopoiético e realizar operações internas com suas estruturas, será
considerado ambiente desde que observado pelos subsistemas da política,
da ciência, da religião, do direito. Isso porque tudo o que não pertence a
um sistema deve ser considerado como seu ambiente.
É indubitável que cada subsistema troque informações com
outros, por meio de sua abertura cognitiva, visando a desempenhar uma
função específica. Acontece que cada subsistema observa e processa
as prestações oriundas de subsistema diverso com base em operações
internas. Essas operações se desenvolvem mediante uma programação e
código próprio de cada subsistema, o que garante a sua autopoiesis.
Como se viu, para elaborar novos elementos em seu interior,
um sistema até pode receber influência de outros, já que é aberto
cognitivamente, mas somente os reproduz conforme suas operações
próprias. O ambiente não pode operar dentro do sistema, apenas provoca
irritações, que serão absorvidas de acordo com as suas estruturas
específicas, por meio do acoplamento estrutural. “Em relação ao sistema,
atuam as mais diversas determinações do ambiente, mas elas só são
inseridas no sistema quando este, de acordo com os seus próprios critérios
e código-diferença, atribui-lhes sua forma”40.
Dessa feita, o direito, a economia, a política, a religião, a ciência
são conjuntos distintos, cada um portador de uma comunicação específica.
Entretanto, tais sistemas mantêm uma ampla irritação entre si, trocando
informações. Com isso, aspectos do ambiente são processados segundo
para dentro do próprio sistema social, sendo que, deste modo, “a sociedade aparece como ‘ambiente’ dos próprios sistemas parciais, que dele (e entre si) se diferenciam por reunirem certos
elementos, ligados por relações, formando uma unidade.” Teoria da ciência jurídica. p. 182 – grifo
do original.
40
Marcelo NEVES, A constitucionalização simbólica. p. 129.
302
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
as regras específicas de cada sistema. Note-se que os sistemas não
vivem isolados, sendo possível adquirir informações de outros sistemas,
que neles ingressam por operações próprias. Para Celso Campilongo,
“política, economia e direito podem trocar prestações, mas nunca atuar
com lógicas intercambiáveis. Dito de outro modo: os sistemas sociais
particulares são funcionalmente isolados e, por isso, só podem ser
autocontrolados e autoestimulados”41. Assim, cada sistema opera segundo
seus próprios padrões, sem que sofra uma sobreposição de funções de
outros; melhor dizendo, não há hierarquia entre os subsistemas sociais.
Os sistemas executam suas operações de acordo com as suas estruturas e
seus elementos, a fim de garantir a função que lhes é inerente. Por isso, o
direito, por meio de suas estruturas (normas jurídicas), desempenha a sua
função específica de garantir expectativas normativas.
Desse modo, o direito pode ser visto como um subsistema
autônomo42, autopoiético, com operações, estruturas, função e códigos
próprios que o diferenciam dos demais subsistemas, que se tornam
ambiente para ele. Isso quer dizer que existe uma comunicação jurídica
específica que se diferencia da comunicação produzida por qualquer
outro subsistema43.
Luhmann ressalta que a comunicação jurídica somente é
reconhecida por meio da função e do código do sistema jurídico44. O
código binário do subsistema do direito pode ser expresso no binômio
direito/não-direito; lícito/ilícito. De acordo com esse código, as
comunicações jurídicas serão qualificadas como pertencentes ou não ao
direito. Assim sendo, as condutas sociais farão parte do sistema jurídico
41
O direito na sociedade complexa. p. 74.
42
Niklas LUHMANN, El derecho de la sociedad. p 88.
43
Esclarece Willis Santiago GUERRA FILHO que o “sistema jurídico, enquanto autopoiético,
é fechado, logo, demarca seu próprio limite, autoreferencialmente, na complexidade própria do
meio ambiente, mostrando o que dele faz parte, seus elementos, que ele e só ele, enquanto autônomo, produz, ao conferir-lhes qualidade normativa (= validade) e significado jurídico às comunicações que nele, pela relação entre esses elementos, acontecem”. Teoria da ciência jurídica. p. 189.
44
El derecho de la socieda. p. 116.
303
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
apenas quando introduzidas por meio do programa do direito, que são
as normas jurídicas. Em outros termos, somente por meio de estruturas
jurídicas conhecidas como normas jurídicas é que as informações do
ambiente ingressam no direito, determinando condutas lícitas ou ilícitas.
O direito visto como um sistema autopoiético autônomo possui
uma comunicação exclusiva. De acordo com Willis Santiago Guerra
Filho, a transmissão da regulamentação das condutas ocorre por meio das
aplicações das normas do sistema realizadas por juízes quando decidem
lides, por particulares ao produzirem um contrato, pelos legisladores ao
elaborarem leis45. Ao que parece, todos esses atos de aplicação resultam
normas jurídicas em suas mais diversas espécies: individual, geral,
concreta e abstrata. Desse modo, a recursividade do sistema jurídico
consiste em normas aplicadas pelos sujeitos competentes que resultam
em mais normas jurídicas.
A evolução do subsistema do direito se dá por meio do
acoplamento estrutural com o seu entorno. Os fatos sociais, isto é, as
informações dos demais subsistemas, causam uma irritação no sistema
jurídico que será por ele processada por meio das normas jurídicas.
O acoplamento estrutural entre o sistema jurídico e seu ambiente só é
possível em razão de sua abertura cognitiva e requer o uso das estruturas
normativas processadas pelo código lícito/ilícito.
O direito não só recebe informações dos outros sistemas, como
também as transmite-lhes, ou seja, o direito além de ser irritado pelos
outros subsistemas também os irrita. Na política, por exemplo, é o direito
que estipula a forma de governo, as regras de eleição, quem pode votar,
etc. Na economia, o direito cria situações favoráveis ao desenvolvimento
de determinados setores, elevando ou diminuindo a carga tributária;
estabelece formas de financiamento de imóveis; entre outras relações.
Entretanto, repita-se, é a estrutura de cada um desses subsistemas
sociais que determina a forma com que essa comunicação jurídica será
45
Teoria da ciência jurídica. p. 195.
304
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
representada internamente, de modo que somente serão fatos políticos,
econômicos, religiosos, científicos, se forem constituídos de acordo com
a comunicação específica de cada subsistema em virtude do fechamento
operativo que possuem.
Percebe-se, então, que o direito, por regular condutas humanas
(econômicas, políticas, religiosas, etc.), produz informação que age em
outros subsistemas sociais, irritando-os. Em vista disso, o direito gera
comunicação jurídica a ser processada pelas estruturas dos demais
subsistemas sociais na autopoiesis específica de cada um. Em razão do
fechamento operativo, o direito não consegue alterar a realidade social
diretamente, principalmente porque uma conduta prescrita em uma norma
jurídica pode ser desobedecida pelo seu destinatário. O simples fato de
uma norma jurídica proibir matar alguém não impede o acontecimento
dessa conduta.
O direito provoca irritações na sociedade, prescrevendo como
deseja que determinadas condutas humanas sejam materializadas.
Acontece que essa informação vai ser processada pelo sistema social de
acordo com suas próprias estruturas, podendo alterá-lo ou não.
3. Cibersistemas
A internet modificou vertiginosamente um dos principais
aspectos do comportamento humano: a sua comunicação. Desse
impacto, outras relações sociais são atingidas. “Atividades econômicas,
sociais, políticas, e culturais essenciais por todo o planeta estão sendo
estruturadas pela Internet e em torno dela, como por outras redes de
computadores”46. Surge, pois, um ambiente em que pessoas de todos os
países, das mais diversas culturas e linguagens, encontram-se trocando
informações processadas digitalmente em uma rede de computadores
interconectada, sem que tenham uma forma material estável no tempo e
46
CASTALLS, Manuel. A galáxia da internet. p. 08.
305
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
no espaço, e sem respeito a qualquer espécie de fronteira. Com a internet
é possível se comunicar, trocar informações, trabalhar, estudar, comprar,
vender, negociar, divertir-se, entreter-se, interagir com outras pessoas.
Por meio da rede digital pode o homem exercer praticamente todas as
tarefas que lhe cabem na sociedade.
Percebe-se que a internet revolucionou o tempo e o espaço.
As tecnologias da informação com base na eletrônica apresentam uma
capacidade de armazenamento de memória e velocidade de combinação
e transmissão de bits incomparáveis. Com isso, permite-se dizer que há
uma relação espaço/tempo ubíqua e assíncrona. O tempo linear passa a dar
lugar a uma estrutura atemporal, com relatos praticamente instantâneos
dos acontecimentos. O espaço também perde sua referência tradicional,
ficando obsoleta a ideia de espaço físico. Surge, então, um novo ambiente
humano e tecnológico, moldado pela rede mundial de computadores que
permite o trânsito da informação entre pessoas de todos os países em
tempo praticamente real: o ciberespaço.
Com a rede mundial de computadores ocorrem fluxos de
informação ao redor do mundo, sem qualquer fronteira. E quanto mais se
desenvolve a internet, ampliando as formas de acesso, mais o ciberespaço
progride, com o aumento das atividades sociais virtuais e o surgimento
de novas condutas sociais virtuais. As implicações culturais e sociais do
digital se aprofundam a cada evolução dos sistemas telemáticos.
Como foi possível perceber, do ponto de vista do ciberespaço,
a localização geográfica é irrelevante: toda a informação pode chegar a
qualquer lugar. Essa não materialização do ciberespaço permite a sua
ampliação, possibilitando mais pessoas ingressarem em seu mundo ao
acessarem a internet. Novos computadores são interconectados, novas
informações são injetadas na rede, ampliando os limites do ciberespaço.
Assim, o ciberespaço, visto como a arquitetura do mundo virtual
criado por redes de computadores tem permitido o surgimento de novas
maneiras de conviver, de interagir, de organizar-se em comunidades e de
306
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
pensar, implicando desafios ao mundo “real”. As relações econômicas,
sociais, políticas, culturais e as jurídicas são transformadas, e precisam
ser repensadas.
O surgimento e desenvolvimento da internet, com a integração
de todos os tipos de mídia em um único suporte, permite uma nova forma
de comunicação entre os seus usuários. O ciberespaço passa a influenciar
nos comportamentos sociais, rompendo com as estruturas tradicionais.
Nesse contexto, pode-se verificar que o ciberespaço passa a influenciar
os sistemas sociais. Surgem novas relações econômicas, religiosas,
científicas, jurídicas decorrentes desse novo âmbito comunicacional.
Gottfried Stockinger atento às inter-relações entre o ciberespaço
e o sistema social, apoiado na teoria dos sistemas de Luhmann, verifica
que o ciberespaço pode ser visto como um sistema autônomo (sui generis)
e não apenas como um novo medium que amplia a comunicação social47.
Desse modo é possível pensar em um cibersistema possuidor
de uma comunicação própria que conduz ao seu fechamento operativo.
Consiste em um conjunto de operações, em que cada estrutura depende
de outra desenvolvendo novas relações que possibilitam o surgimento
de novas estruturas. Para ingressar no cibersistema, a informação requer
a sua tradução pelas estruturas do sistema. É o cibersistema em sua
autopoiesis: cibercomunicação produz cibercomunicação por meio de
cibercomunicação.
Dessa constatação decorre importante conclusão: os usuários da
rede formam apenas o seu ambiente. Stockinger afirma que “A estrutura
comunicativa da rede não representa, portanto, um dispositivo que
regula diretamente o pensamento e as ações humanas. Ela orienta apenas
a comunicação que tornará a aceitação de determinadas mensagens e
informações mais prováveis do que outras”48. O usuário, ao se conectar com
a rede, passa a criar e reproduzir um sistema social, mas sem integrá-lo.
47
A sociedade da comunicação. p. 188.
48
A sociedade da comunicação. p. 185-6.
307
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
É evidente que o ciberespaço gera um aumento de complexidade
nos sistemas sociais. Tal informação permite identificar o acoplamento
estrutural entre ambos; cada subsistema evolui com outro, sendo, ao
mesmo tempo, ambiente para outro subsistema. Uma cibercomunicação,
quando é constantemente utilizada pelos sistemas sociais em sua
autopoiesis, passa a fazer parte das comunicações sociais. É a irritação
que o cibersistema causa no sistema social, que somente será processada
por meio de suas próprias comunicações sociais.
Nesse sentido, Stockinger ensina que o cibersistema além de
ser visto como sistema autônomo49, também é considerado ambiente do
sistema social. Como ambiente, o ciberespaço é considerado o medium
de interação entre sistemas psíquicos e sociais, por ser o suporte em que
as comunicações ocorrem entre os participantes que utilizam a internet.
Com isso, constrói-se um quadro em que os subsistemas sociais
passam a interagir com o cibersistema. Há uma nítida irritação do
ciberespaço no sistema social, porém a cibercomunicação somente será
processada nos subsistemas sociais por meio do acoplamento estrutural
entre esses sistemas, ou seja, mediante operações e códigos próprios de
cada subsistema.
4. A aplicação do direito diante do ciberespaço
Ao se visualizar o direito como um subsistema contido no
sistema social, surgem possibilidades de desenvolver novas formas
de acoplamento estrutural com os demais subsistemas que formam o
seu ambiente social. Destacando-se o cibersistema como um sistema
autônomo, possuidor de sua própria autopoiesis e auto-organização,
pode-se concluir que o acoplamento estrutural permite que as operações
do cibersistema produzam eficazes irritações no sistema jurídico, e,
também, que as operações jurídicas irritem o cibersistema, sem modificar
49
Ibid., p. 188.
308
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
o fechamento de ambos os sistemas, isso porque o direito é ambiente
para o cibersistema e na mesma proporção que o cibersistema é ambiente
para o direito. Em outras palavras, a cibercomunicação pode produzir
efeitos no sistema jurídico por meio das normas jurídicas, assim como as
normas jurídicas podem desencadear operações virtuais no cibersistema.
O direito pode ser definido como um conjunto de regras que
orientam o homem em sociedade, inclusive, na sociedade em rede. As
condutas humanas reguladas pelo direito ingressam no sistema jurídico
por meio das normas jurídicas, conforme sua autopoiesis. Os fatos são
transformados em fatos jurídicos ao entrar no mundo do direito pelas
normas jurídicas. E qual o procedimento para as novas normas entrarem
no sistema? É novamente o direito que determina esse fenômeno,
prescrevendo as formas de produção dos diplomas normativos50. Leis
ordinárias, leis complementares, emendas constitucionais, decretos,
regulamentos são produzidos segundo regras jurídicas. Observa-se que o
direito tem uma dupla função: regular o homem em sociedade e regular
a produção normativa. São duas espécies de normas que se encontram
no sistema jurídico: normas de conduta e normas de estrutura ou de
competência51.
Utilizando-se a teoria luhmanniana, as normas de conduta são
o meio que o direito utiliza para irritar os demais subsistemas sociais,
isto é, são operações jurídicas que produzem informações que devem ser
processadas por outros subsistemas, de acordo com as estruturas próprias
de cada um. A título de exemplo, pode-se citar o dispositivo do Código
50
A característica da recursividade do sistema jurídico, em que normas são produzidas de acordo
com o conteúdo de outras normas, já fora percebida por Willis Santiago GUERRA FILHO. Afirma
o ilustre professor: “Para que haja um ordenamento jurídico regulando condutas, é preciso não só
normas para fornecer essa regulamentação, como também condutas que estabeleçam essas normas, e, em sendo esse ordenamento autônomo, as condutas que estabelecem novas normas já são
elas próprias reguladas por normas anteriores”. Teoria da ciência jurídica. p. 191.
51
BOBBIO, Norberto. Da norma ao ordenamento jurídico. p. 33 e ss. Deve-se registrar que tal
distinção não está protegida de críticas, pois as normas de estrutura também prescrevem um
comportamento humano, já que a produção de novas normas requer necessariamente a presença
humana em sua elaboração.
309
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Brasileiro de Trânsito que obriga os passageiros de veículo automotor a
utilizarem o cinto de segurança. Essa norma será processada internamente
e produzirá efeitos jurídicos conforme a regra do jogo do direito. Uma
vez descumprida, o sistema jurídico prevê a aplicação de multa. Tudo
isso na tentativa de influenciar o sistema social, que absorverá os seus
comandos por meio da sua comunicação específica, que são as condutas
humanas. A existência de uma norma jurídica cujo conteúdo prescreve
que todos devem utilizar o cinto de segurança não é suficiente para que o
sistema social processe essa informação.
Por sua vez, as normas de estrutura orientam a auto-organização
do direito, como o direito irá realizar suas operações internas, produzindo
novas normas jurídicas. Uma lei não ingressa facilmente no sistema do
direito, é preciso seguir o procedimento adequado, eleito pelo próprio
sistema jurídico, para poder fazer uma espécie legislativa. E se essa lei
for inserida em desacordo com o sistema? Mais uma vez o direito irá dizer
como ela deve ser extirpada do sistema, sendo declarada inconstitucional,
por exemplo. Aqui o direito cria as regras do seu jogo, estabelecendo
quem pode e como se deve jogar.
Sucede que o direito pode utilizar o ciberespaço como um
instrumento para melhorar o desenvolvimento de suas tarefas. O que
surge é um sistema jurídico interconectado com o sistema eletrônico.
Toda a organização judiciária começa adequar-se à tecnologia baseada
na internet, configurando novos padrões para a comunicação jurídica.
Sob outro aspecto, aparecem condutas sociais que são realizadas
no âmbito do ciberespaço, necessitando da regulamentação do direito. São
fatos virtuais que originam conflitos em um ambiente inovador. Observe
o comércio eletrônico. Se se compra um produto via internet de empresa
localizada na França, a quem se deve reclamar? São novos anseios da
sociedade que clamam por um posicionamento do sistema jurídico.
Percebe-se que o ciberespaço relaciona-se tanto com as normas
de estrutura como com as normas de comportamento, provocando
310
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
irritações no sistema jurídico. Aires Rover diferencia o Direito da
Informática da Informática Jurídica52. No primeiro caso a informática
é o objeto do direito, abrangendo o estudo das normas jurídicas que
regulam os sistemas eletrônicos na sociedade e suas consequências. Já a
Informática Jurídica, na qualidade de meio, diz respeito ao emprego da
tecnologia no âmbito do direito.
A conexão entre o cibersistema e o sistema do direito é
compreendida por meio do acoplamento estrutural entre eles. O
acoplamento estrutural estabelece o contato entre os subsistemas, sendo
que as informações advindas do ambiente devem ser processadas por
meio das estruturas próprias de cada um.
O direito, via acoplamento estrutural, seleciona no ambiente do
cibersistema aquilo que irá acarretar efeitos em seu interior e, ao mesmo
tempo, deixa de lado o que não lhe convém. Há muita comunicação
sendo produzida no cibersistema, porém nem todas essas informações
ingressarão no mundo jurídico. Somente aquilo que as normas jurídicas
selecionarem é que passarão a integrar o direito.
O cibersistema, ao conter novos tipos de comunicação, irrita o
direito, fazendo com que esse subsistema evolua, produzindo comunicação
jurídica. Aqui são utilizadas normas de condutas, que contêm em seu
bojo comportamentos sociais ocorridos no cibersistema. Seria o que foi
chamado de Direito da Informática por Aires Rover. Um claro exemplo
pode ser dado com a pornografia infantil difundida pela internet. Antes
do surgimento do cibersistema esse não era um comportamento existente
na sociedade. Com a internet, apareceu a possibilidade de se divulgarem
fotografias pornográficas de crianças e adolescentes pela rede. Observe
que é uma cibercomunicação que passa a irritar o sistema jurídico,
exigindo seu posicionamento sobre a conduta, determinando se a conduta
é lícita ou ilícita.
52
ROVER, Aires José. Informática no direito. p. 14. Registra-se que o autor identifica uma terceira
relação entre o sistema jurídico e o sistema telemático, que consiste na análise de técnicas de inteligência artificial para a solução de conflitos jurídicos, os chamados sistemas especialistas legais.
311
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Na redação original do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA),
Lei 8.069/90, não havia qualquer menção ao ciberespaço, de modo que o
tipo penal contido no art. 241 prescrevia ser crime fotografar e publicar
cenas de sexo explícito de adolescentes. Por não haver expressamente
a previsão legal de ser crime a utilização da internet na divulgação do
conteúdo pornográfico, usava-se a tese de que essas fotografias postadas
no ciberespaço caracterizava uma conduta atípica. Com isso, surgiu um
imenso debate jurídico nos tribunais sobre o conteúdo do verbo “publicar”.
Instado a se manifestar, o STF posicionou-se no sentido que o fato de
divulgar e reproduzir fotos pornográficas de crianças e adolescentes na
internet era sim abrangido pelo tipo penal, classificando a conduta como
ilícita (ver HC 84561, Rel. Min. Joaquim Barbosa).
Verifica-se a existência de uma cibercomunicação que foi
a divulgação de material pornográfico de crianças e adolescentes na
internet. Em seguida, o direito, diante dessa informação do ambiente,
processou-a por meio de operações próprias, produzindo comunicação
jurídica com a manifestação do Poder Judiciário, inserindo no sistema
jurídico, com a sua decisão, uma norma individual e concreta, cujo
conteúdo afirmava ser a conduta ilícita.
A irritação não parou por aí. Diante da omissão contida no
ordenamento jurídico, o legislador viu necessidade de modificar o ECA,
criando um crime específico para o caso de divulgação de fotografias
pornográficas de crianças e adolescentes pela internet. O direito foi
irritado pelo cibersistema, porém reagiu a essa perturbação por meio de
sua autopoiesis, via acoplamento estrutural, e produziu normas jurídicas
de conduta conforme a informação que recebeu do ambiente. Normas
gerais e abstratas. Dito de outro modo, a cibercomunicação ingressou
no sistema do direito, porém, por meio de operações jurídicas, que se
reproduziram criando novas operações jurídicas.
O direito, ao estatuir normas de condutas cujo conteúdo seja
comportamentos cibersociais, também irrita o cibersistema, que deverá
312
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
processar essas informações conforme a sua cibercomunicação. Tomese como exemplo o certificado digital. Caso haja interesse em produzir
documentos eletrônicos que contenham a garantia de autenticidade, é
necessária a observância das regras contidas na Medida Provisória 2.200-2
de 2001. Agora é a comunicação jurídica que irrita o cibersistema, que deve
processar essas informações segundo os padrões cibercomunicacionais.
Por sua vez, as normas de competência apropriam-se das novas
tecnologias da informação, para auxiliarem-nas no processo de produção
normativo. O cibersistema mais uma vez perturba o subsistema do direito. O
direito, em sua auto-organização, contém normas jurídicas que dizem como
se produz normas jurídicas. Nesse âmbito é possível encontrar a influência
da cibercomunicação, que o direito se apropria, por meio de normas jurídicas
e que o auxiliam no processo de produzir novas normas jurídicas. Veja-se o
processo eletrônico. Há o uso de cibercomunicações pelo direito para fazer
com que o processo judicial seja mais eficiente, econômico e justo. O uso
do e-mail, os sites dos tribunais, a citação eletrônica, são ferramentas que
contribuem com o andamento processual. Porém, tais cibercomunicações só
ingressaram no direito por meio de norma jurídica, que foi a Lei 11.419/06.
Em que pese serem poucos os exemplos apontados, é fácil
perceber a constante perturbação que o cibersistema causa no direito.
Sempre se deve ter em mente que tal irritação somente pode processada
pelo subsistema jurídico e transformada em comunicação jurídica por
meio das suas operações internas. Jamais haverá cibercomunicação no
direito. Se não houver normas jurídicas, sejam elas de conduta ou de
estrutura, o ciberespaço não irá se relacionar com o direito.
Conclusões
Com o surgimento da internet, o ciberespaço tornou-se um
lugar propício para o surgimento de novas relações sociais. Criou-se
o comércio eletrônico, amizades e namoros virtuais, crimes virtuais,
313
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
operações bancárias realizadas pela rede, etc. A grande evolução desse
convívio social fez com que fosse possível pensar em um sistema
autônomo, portador de uma comunicação própria, como estruturas e
operações que o diferenciassem do sistema social tradicional. Origina-se,
portanto, o cibersistema, autopoiético, em que cibercomunicação produz
cibercomunicação por meio de cibercomunicação.
Nesse contexto, o cibersistema passou, constantemente, a
irritar o subsistema do direito, requerendo respostas para os emergentes
desafios sociais. Essa troca de informações só é possível entre sistemas
por meio do acoplamento estrutural. Assim, um subsistema irá selecionar
as informações contidas no seu ambiente (outros subsistemas) e as
processará internamente de acordo com suas operações, sem ferir o seu
fechamento operativo.
Desse modo, a relação entre direito e ciberespaço só ocorre com
o acoplamento estrutural. O direito recebe informações do ambiente, no
caso o cibersistema, em seguida, seleciona aquelas que julga interessantes
e as processa conforme a comunicação jurídica. Sem as normas jurídicas
a cibercomunicação não irá se transformar em comunicação jurídica.
Isto porque a estrutura que o subsistema jurídico escolheu para aplicar o
código lícito/ilícito foi a norma jurídica.
Hoje em dia é sobremodo importante a relação entre cibersistema
e sistema jurídico, já que cada vez mais condutas humanas são realizadas
no ciberespaço. Assim, o direito produz normas jurídicas cuja finalidade
é regular as condutas humanas virtuais; sem deixar, porém, de observar
as regras que determinam o seu fechamento operativo, sob pena da
falência do sistema.
314
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Referências
BOBBIO, Norberto. Da norma jurídica ao ordenamento jurídico. 9. ed.
Brasília: Universidade de Brasília, 1997.
CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa.
São Paulo: Max Limonad, 2000.
CASTELLS, Manuel. A galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet,
os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São
Paulo: Saraiva, 2001.
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. 2. ed. Petrópolis/
RJ: Vozes, 2010.
_______________. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres
Nafarrate. México: Universidad Iberoamericana, 2002.
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
ROVER, Aires José. Informática no direito: inteligência artificial. 4. tir.
Curitiba: Juruá, 2008.
STOCKINGER, Gottfried. A sociedade da comunicação: o contributo de
Niklas Luhmann. Papel Virtual: Rio de Janeiro, 2003.
315
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
15
Justiça e bem comum*
Victor Emanuel Vilela Barbuy
Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008).
Mestrando em Direito Civil, na subárea História do Direito, pela Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo.
* O presente artigo se constitui em versão revista e ampliada de trabalho
apresentado no segundo semestre do ano de 2011 no curso de pós-graduação da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), na disciplina
“O Direito e as formas de Justiça”, ministrada pela
Professora Doutora Elza Pereira Boiteux.
316
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Introdução
No presente artigo, partindo das concepções tomistas de Justiça e
de Bem Comum e da divisão aristotélica das formas de Justiça, buscamos
demonstrar que não existe Justiça sem respeito ao Bem Comum, que é,
ademais, a medida da legitimidade do Estado, da Sociedade, das instituições
e das formas de governo. E concluímos sustentando que, imbuídos do mais
sadio sentimento de idealismo orgânico, isto é, de um idealismo alicerçado
na experiência e orientado pela observação do povo e do meio, devemos
defender a tradição do Bem Comum, pugnando pela integral restauração
de seu primado, condição vital para a instauração de um autêntico Estado
Ético de Justiça, ético por se inspirar na Ética e se mover por um ideal
ético e de Justiça por se pautar nas regras da Justiça e ser movido por
um ideal de Justiça. Tal Estado, que não se confunde com o Estado Ético
totalitário de Hegel ou Gentile, é um Estado a um só tempo antitotalitário e
anti-individualista, não sendo, pois, um Estado absorvente, que sacrifica a
pessoa humana ao seu poder despótico, nem um Estado fraco, que sacrifica
o Bem Comum a um individualismo sem peias.
1. Justiça e bem comum
Profunda e sólida é a tradição que a ideia de Bem Comum
representa no pensamento jurídico ocidental. Tal tradição tem ocupado,
com efeito, lugar de suma importância tanto na teoria quanto na prática
jurídica e política de nosso hemisfério (Blázquez Martín, 2008, p.
183), estando presente na obra dos mais diversos autores (Idem, loc.
cit.; D’Antrèves, 2001, p. 262). Suas origens remontam à chamada
Antiguidade, estando presente, ainda que de forma embrionária, na obra
de Platão, que, em A politeia, nos fala dos guardiões da Pólis, dentre
os quais sairiam seus governantes, que, educados de maneira virtuosa,
fariam o que reputassem ser o Bem da Pólis, jamais aceitando fazer
317
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
aquilo que não o fosse (Platão, 2009, p. 125). Está presente, ademais, e
de forma mais clara, na obra de Aristóteles, que preleciona, por exemplo,
que o propósito dos legisladores é o Bem da comunidade, e que a Justiça
é, por vezes, definida como aquilo que concorre para o Bem de todos
(Aristóteles, 2009, p. 251). E está presente, ainda, na História da Guerra
do Peloponeso, de Tucídides, obra, aliás, anterior a politeia, de Platão, em
passagens como aquela do discurso fúnebre de Péricles, em homenagem
aos primeiros mortos atenienses daquele conflito, onde se ressalta que
aqueles homens deram suas vidas para o Bem da Pólis (Péricles apud
Tucídides, 1986, p. 101).
Embora o termo Bem Comum apareça em diversas traduções de
obras helênicas, incluindo a última aqui citada, surgiu ele, em verdade,
segundo Nicola Abbagnano, apenas na denominada Idade Média
(Abbagnano, 2007, p. 124), época em que, ademais, nomeadamente na
obra de Santo Tomás de Aquino, se constituiu a doutrina do Bem Comum
em sentido estrito, que, baseada na leitura do pensamento aristotélico
à luz da Tradição e da Revelação Cristã (Blázquez Martín, 2008, p.
188), se configura, segundo Georges Renard, na grande contribuição do
pensamento medieval (Renard. In Michel, 1932, p. 17). Santo Tomás,
que fez, com efeito, do Bem Comum elemento central de seu pensamento
político e jurídico, definiu a própria lei positiva como a “ordenação da
razão para o bem comum”, promulgada por aquele que tem o encargo da
comunidade perfeita (Aquino, 1980, p. 1736).
Isto posto, faz-se mister salientar que Santo Tomás de Aquino
fez a “análise do sentimento de justiça” em “termos nunca depois
ultrapassados”, conforme faz salientar Léon Duguit (Duguit, 1927, p.
122), havendo, ademais, conduzido ao apogeu, por meio de sua obra, o
Direito Natural Clássico, ou Direito Natural Tradicional, nos legando,
com efeito, lições tão válidas hoje quanto no século XIII e que se
constituem nas colunas sobre as quais foi possível construir uma ciência
jurídica que, na expressão de Rubens Limongi França, “sem perder de
318
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
vista a realidade externa dos fatos, não fizesse abstração dos juízos de
valor, propiciando assim a restauração da concepção integral, e, por isso
mesmo, realista e verdadeiramente científica do Direito” (França, 1961,
pp. 264-265).
O Bem Comum, conceito que, na frase de Pablo Lucas Verdú,
demonstra, como poucos, “qualidades frutíferas, no campo da filosofia
social”, sendo, segundo aquele professor salmantino, “patrimônio de
toda construção orgânica e personalista da sociedade” (Verdú, 1951, p.
51), representa “para a teoria do Estado aquilo que o Direito Natural
representa para a teoria do Direito” (D’antrèves, 2001, pp. 261-262),
posto que, do mesmo modo que não há lei positiva ou ordenamento
jurídico justo e legítimo sem respeito ao Direito Natural, não há Estado
ou Governo justo e legítimo sem respeito ao Bem Comum.
Ademais, sendo a lei humana, ou lei positiva, consoante
preleciona Santo Tomás de Aquino, como restou dito, a “ordenação da
razão para o bem comum”, promulgada pela autoridade competente
(Aquino, 1980, p. 1736), não há que se falar em lei positiva ou em
ordenamento jurídico justo e autêntico sem que sejam levados em conta os
ditames do Bem Comum. E, da mesma forma, sendo a Justiça, conforme
aduz o Doutor Angélico, com base na definição do jurisconsulto romano
Ulpiano, “um hábito pelo qual, com vontade constante e perpétua,
atribuímos a cada um o que lhe pertence” (Idem, 1937, p. 19. Grifos em
itálico no original), e sendo que, ainda segundo ensina o Aquinate, “todos
os que fazem parte de uma comunidade estão para esta como a parte está
para o todo”, de sorte que “qualquer bem da parte se ordena ao bem do
todo” e que, portanto, “o bem de qualquer virtude, quer o da que ordena
o homem para consigo mesmo, quer o da que o ordena a qualquer outra
pessoa singular, é referível ao bem comum, para o qual a justiça ordena”
(Idem, pp. 28-29), é manifesto que não há que se falar em Justiça sem
se tomar em consideração o Bem Comum. Esta é, com efeito, também a
posição do jusfilósofo patrício Miguel Reale, para quem, objetivamente
319
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
considerada, “a justiça se reduz à realização do bem comum” (Reale,
1953, p. 250).
Com efeito, a justiça geral, também denominada legal, que é
aquela que vai da pessoa para a Sociedade, se fundamenta na obrigação,
que todos têm, de contribuir para o Bem Comum. Enquanto parte da
Sociedade, os indivíduos lhe são subordinados, posto que, como vimos,
o todo prepondera sobre a parte. Isto há que ser entendido, contudo, sem
que se perca de vista a dignidade e a intangibilidade da pessoa humana
e seu fim último transcendente, em relação ao qual deve a Sociedade
proporcionar condições favoráveis a cada pessoa no cumprimento de
sua destinação (Sousa, Garcia, Carvalho, 1998, p. 299). O mesmo, com
efeito, vale para o Estado, que não se confunde com a Sociedade, mas
que é, como ela, um instrumento da pessoa humana, submetendo-se aos
fins transcendentes desta (Telles Junior, 1938, pp. 31-32). Claro exemplo
de justiça legal - assim chamada pelo fato de competir à lei ordenar os
atos humanos em prol do Bem Comum (Sousa, Garcia, Carvalho, 1998,
p. 299), embora as demais formas de Justiça também sejam legais, posto
que regidas por leis (Telles Junior, 2008, p. 368) - é o pagamento de
impostos, que deve ser de acordo com as faculdades de cada contribuinte,
e tem como fundamento o Bem Comum (Defroidmont, 1933, p. 248;
Pinto, 1936, p. 14).
A justiça particular, por seu turno, se divide em justiça comutativa
e justiça distributiva, sendo a justiça comutativa aquela que se dá nas
relações interpessoais, como, por exemplo, entre credor e devedor,
comprador e vendedor, enquanto a justiça distributiva é aquela que parte
da Sociedade para os indivíduos, naquilo que concerne à distribuição de
encargos ou de benefícios. Na justiça comutativa há absoluta igualdade
na própria coisa devida, enquanto na justiça distributiva há igualdade
proporcional, não havendo rigor de igualdade no que diz respeito ao
objeto, desde que respeitada a proporcionalidade entre os méritos, as
aptidões e as funções de cada indivíduo (Sousa, Garcia, Carvalho, 1998,
320
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
p. 299), sendo, neste sentido, justo aquilo que é proporcional e injusto
o que viola a proporção, como aduz o Estagirita (Aristóteles, 2009, p.
153). Tanto a justiça comutativa quanto a justiça distributiva devem,
evidentemente, respeitar o Primado do Bem Comum.
A esta divisão tradicional, ou clássica, das formas de Justiça,
que remonta a Aristóteles, para quem, ademais, a justiça se completa
pela equidade, que vem a ser a retificação, a correção da justiça legal
(Aristóteles, 2009, p. 172), quando, em virtude de lacuna ou deficiência
da lei, a aplicação rigorosa desta puder causar uma injustiça, alguns
autores acrescentam outras formas de Justiça, dentre as quais a mais
relevante é, sem dúvida alguma, a justiça social, que, segundo Johaness
Messner, respeita essencialmente aos grupos sociais, obrigando patrões
e empregados no decorrer das negociações de contratos coletivos de
trabalho e estabelecendo um conjunto de regras para a ordem sócioeconômica (Messner, s/d, pp. 419-420). Muitos autores, contudo, não
veem diferenças entre a justiça geral, ou legal, e a justiça social (Paupério,
1993, pp. 63-64; Sousa, Garcia, Carvalho, 1998, p. 299), sendo que um
deles, Arthur Machado Paupério, havendo observado que a “justiça pode
ser comutativa, distributiva ou social”, pondera que “a justiça social
implica na contribuição de cada um para a realização do bem comum”,
correspondendo à “chamada justiça geral ou legal da nomenclatura
aristotélico-tomista” (Paupério, 1993, pp. 63-64. Grifos em itálico no
original). Já Marcus Claudio Acuava-a considera a justiça social como
mais próxima da justiça distributiva, escrevendo que em Aristóteles já
se antevê “o moderno significado da justiça social, quando esse notável
filósofo enuncia, entre outros, o princípio da justiça distributiva”
(Acquaviva, s/d, p. 502. Grifos em itálico no original).
A expressão “justiça social”, que se constitui num dos princípios
fundamentais da Doutrina Social da Igreja, foi cunhada no século
XIX pelo filósofo tomista e sacerdote jesuíta italiano Luigi Tagarele
D’Azeglio, que preleciona que ela nasce espontânea da ideia do Direito,
321
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
devendo “igualar de fato todos os homens naquilo que diz respeito aos
direitos de humanidade” (Taparelli, 1843, p. 151). Consoante ressalta Pio
XI, na Encíclica Quadragesimo anno, de 1931, “cada um deve [...] ter a
sua parte nos bens materiais; e deve procurar-se que a sua repartição seja
pautada pelas normas do bem comum e da justiça social” (Pio XI, 2004,
n. 58, p. 335).
Enfim, todas as formas de justiça pressupõem o Bem Comum,
que se constitui, ademais, numa das três finalidades essenciais do Direito,
ao lado da Justiça e da Segurança (Paupério, 1993, p. 61).
Isto posto, cumpre assinalar que, do mesmo modo que a noção
de Bem Comum é, assim como o Direito Natural, vital para a teoria do
Direito, também é o Direito Natural, a par da ideia de Bem Comum,
imprescindível para a teoria do Estado, posto que o autêntico Estado
de Direito supõe, inevitavelmente, o Direito Natural, inexistindo sem
o respeito e a tutela dos direitos naturais das pessoas, bem como das
famílias e demais grupos naturais integrantes da sociedade civil, ou
política, cuja autonomia deve ser assegurada (Sousa, 1977, p. 126). Tal
Estado de Direito, ou, como diria Del Vecchio, de Justiça, difere do
Estado Liberal de Direito por não ter no Direito o seu fim único, sendo
Estado de Direito, ou de Justiça, por operar “sobre o fundamento do
Direito e na forma do Direito” (Del Vecchio, 1957, p. 103. Grifos em
itálico no original). Os direitos naturais, sobre cuja base e em função dos
quais deve ser exercida toda a atividade legislativa estatal (Idem, loc.
cit.), decorrem da própria essência da pessoa humana, sendo anteriores
ao Estado, que não se constitui em princípio e nem em fim, mas sim num
meio, num instrumento a serviço da pessoa humana e do Bem Comum53.
53
Dentre os autores que afirmam que o Estado é meio e não fim podemos citar: ACQUAVIVA.
Teoria Geral do Estado. 2. ed., revista e aumentada. São Paulo: Saraiva, 2000; ATHAYDE, Tristão
de. Política. Rio de Janeiro: Livraria Católica, 1932. p. 77; AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do
Estado. 38. ed. São Paulo: Globo, 1998, p. 122; Sumo bem e suma riqueza. Separata do Anuário
da Faculdade de Filosofia “Sedes Sapientiae”, da Universidade Católica de São Paulo, 1953; Idem.
A Família e a Sociedade. In Servir, n. 1297, ano XXVII, São Paulo, 20 de setembro de 1957. p.
77; NOGUEIRA, J. . C. Ataliba. O Estado é um meio e não um fim. 1. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1940. p. 113; PAUPÉRIO, A. Machado. Teoria Geral do Estado. 7. ed. Rio de Janeiro:
322
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
De acordo com a tradição formada pelos filósofos helenos, pelos
jurisconsultos romanos e pelos teólogos e canonistas da Cristandade,
em particular Santo Tomás de Aquino, compreendemos o Direito
Natural como um conjunto de normas inatas na natureza humana, pelo
qual o ente humano se dirige, com o objetivo de agir retamente. Tendo
seu fundamento metafísico último em Deus, o Sumo Bem, ou Bem
Supremo, Princípio e Fim de todas as coisas, o Direito Natural é, como
salienta Alexandre Corrêa, racional, na medida em que a razão conhece
os seus preceitos, intuitivamente, e também experimental, posto que
depende, no travejamento de seus princípios, dos dados ministrados
pela experiência (Corrêa, 1984, p. 36). Faz-se mister ressaltar, porém,
que o Direito Natural por si só não basta como regra de vida, sendo
necessária sua complementação pelo Direito Positivo, ao qual cabe a
concretização dos princípios do Direito Natural, aplicando as máximas
deste às particularidades da vida em Sociedade, o que deve fazer sempre
levando em conta as circunstâncias de tempo e de lugar, motivo pelo qual
deve possuir caráter eminentemente histórico (Sousa, Garcia, Carvalho,
1998, p. 179). Daí concordarmos com Alexandre Corrêa, quando este
ilustre professor e pensador patrício sustenta que as ideias da Escola
Histórica, particularmente sob a forma que lhe imprimiu o Conde Joseph
De Maistre, “são admissíveis, como complemento à verdadeira teoria do
Direito Natural” (Corrêa, 1984, p. 42).
O Bem Comum, que é o bem de todos e de cada um dos membros
da Sociedade, pode ser definido como o conjunto de condições externas
aptas a permitir o integral desenvolvimento do homem, da família e dos
demais grupos naturais integrantes da Sociedade. É ele, como preleciona
Forense, 1979; SALGADO, Plínio. Estado Totalitário e Estado Integral. In Idem. Madrugada do
Espírito. 4. ed. In Idem. Obras Completas. 2. ed., vol. 7. São Paulo: Editora das Américas, 1957. p.
443 (artigo publicado originalmente no jornal A Ofensiva, do Rio de Janeiro, a 01 de novembro de
1936); SOUSA, José Pedro Galvão de. Iniciação à Teoria do Estado. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1976. pp.12-13; SOUZA, José Soriano de. Princípios Gerais de Direito Público e Constitucional. Recife: Casa Editora Empresa d’A Província, 1893. p. 63; TELLES JUNIOR, Goffredo.
Justiça e Júri no Estado Moderno. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1938. p.
31; Idem. Carta aos Brasileiros, 1977. 1. ed. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira Ltda., 2007. p. 80.
323
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Suzanne Michel, o Bem da Sociedade, das pessoas consideradas não
isoladamente, mas em comum; o bem que toca a todos, em bloco, e
também a cada um, em particular, sendo, ademais, o bem intermediário
entre o bem particular e o Bem Divino, ou Bem Supremo, que é, como
vimos, Deus (Michel, 1932, p. 18).
“Maior e mais divino que o bem privado” (Aquino, 1954, pp.
98 e 102), o Bem Comum, embora diverso deste (Aquino, 1937, p. 35;
Buzaid, 1973, p. 30; Michel, 1932, p. 43; Oliveira, 2008, p. 193; Sousa,
Garcia, Carvalho, 1998, p. 60), tem para com ele uma relação não de
antagonismo, mas sim de afinidade e harmonia (Michel, 1932, p. 53). Há
entre eles, com efeito, contínua interação, isto é, comunhão e dualidade
ininterrupta (Buzaid, 1973, p. 30), sendo que, como leciona Santo Tomás,
aquele que busca o Bem Comum busca também o seu próprio bem,
posto que não pode existir o bem próprio sem o Bem Comum, seja ele
da família, da cidade ou da pátria, do mesmo modo que, sendo a pessoa
parte de uma casa e de uma cidade, deve buscar o que é bom para ela pelo
prudente cuidado do Bem Comum (Aquino, 1990, p. 409).
Isto posto, insta salientar que, para o Doutor Comum, o domínio
sobre os bens, as coisas exteriores, concedido por Deus ao ente humano,
deve estar sempre subordinado a um fim, que impõe a necessidade
racional e social do bom uso de tais bens (Arias, 1942, p. 256). Sustenta
o Aquinate que, quanto ao uso de tais coisas, não deve a pessoa humana
tê-las “como próprias, mas, como comuns, de modo que cada um as
comunique facilmente aos outros, quando delas tiverem necessidade”
(Aquino, 1937, p. 162), prelecionando, ainda, consoante já restou dito,
que “qualquer bem da parte se ordena ao bem do todo” (Idem, p. 28).
Segundo Heraldo Barbuy, as instituições medievais, de acordo
com o pensamento do Aquinate, afirmavam, por um lado, “o direito
natural da propriedade” e, por outro, “a sua instrumentalidade, o fim
social do seu uso”, partindo do pressuposto de que “a propriedade, como
instrumento de produção de riqueza, deve servir de meio à consecução
324
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
dos fins para os quais a sociedade política se constitui, fins que se
resumem no maior benefício da comunidade”, enquanto o seu uso, a fim
de “não violar os limites da moral natural, deve ser ordenado a esses fins:
Jus utendi, non abutendi” (Barbuy, 1950, pp. 13-14).
A concepção tomista dos bens econômicos em geral e da
propriedade em particular foi retomada pelo Papa Leão XIII, que, na
Encíclica Rerum Novarum, de 1891, sustentou que a propriedade,
produto do trabalho humano, é um direito natural, porém subordinado
ao Bem Comum, estando, pois, condicionado a um dever do proprietário
(Leão XIII, 2004, n. 36, p. 300). Tal ideia tem sido repetida pelos sumos
pontífices seguintes em todas as encíclicas e demais pronunciamentos
sobre a questão social, sendo a ela associada à expressão “função social”
desde a Encíclica Quadragesimo Anno, de Pio XI, dada, conforme já
aqui assinalado, em 1931 (Pio XI, 2004, n.s 45 e 57, pp. 331 e 335).
Como é sabido, o primeiro a empregar a expressão “função
social”, aplicada à propriedade, foi o jurista francês Léon Duguit, no ano
de 1911, o que não significa, porém, que haja sido ele o criador da ideia
de função social da propriedade, já clara em Santo Tomás de Aquino, em
Leão XIII e nos pensadores sociais católicos do século XIX e princípio
do século XX, sendo denominada “lei de solidariedade” por Enríque
Gil Robles, no Tratado de Derecho Politico según los principios de la
Filosofía y el Derecho Cristianos, cuja primeira edição é de 1899 (Gil
Robles, 1961, p. 258), e “noção social” pelo Marquês de La Tour-du-Pin,
em Vers un ordre social chrétien, livro cuja primeira edição data de 1907
(La-Tour-Du-Pin La Charce, s/d, p. 4).
Duguit, que, como vimos, era profundo admirador de Santo
Tomás, fundamentou, com efeito, a defesa da função social da
propriedade na noção tomista de Bem Comum (Araújo, s/d (a), p. 198).
Cumpre enfatizar, todavia, que, para Duguit, “a propriedade não é um
direito, é uma função social” (Duguit, 1911, p. 101), ao passo que para a
Doutrina Social da Igreja, inspirada nas preleções do Doutor Angélico, a
325
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
propriedade é um direito natural condicionado ao dever do proprietário
para com o Bem Comum, tendo e não sendo uma função social.
Faz-se mister salientar, ademais, que, caso compreendamos,
a exemplo de Telga de Araújo, a ideia de função social da propriedade
como um dever do proprietário de atender à sua finalidade econômica e
social com vistas ao Bem Comum (Araújo, s/d (b), p. 7), não poderemos
deixar de concordar com o jusagrarista patrício quando este sustenta que a
“tradicional doutrina católica” já cogitara da função social da propriedade
muito antes de Duguit, reconhecendo o elemento social da propriedade,
ao lado do particular (Idem, p. 5). Tal é, com efeito, também a posição do
jusagrarista espanhol Ballarín Marcial, para quem “a verdadeira concepção
tomista e cristã [...] foi sempre a de conceber o direito de propriedade ao
serviço dos fins humanos, de funções individuais, familiares e sociais”
(Ballarín Marcial, 1965, p. 7). Ademais, cumpre assinalar que mesmo as
constituições formais que primeiro consagraram o princípio da função
social da propriedade, a saber, a mexicana de 1917 e a denominada
Constituição de Weimar, de 1919, bem como as constituições brasileiras de
1934 e 1946, que igualmente o consagraram, não empregaram a referida
expressão, que, em nosso País, apareceu pela primeira vez no Estatuto da
Terra (Lei 4504/64) e, pouco mais tarde, na Constituição de 1967, estando
também consagrada na Constituição de 1988.
Havendo feito referência à Constituição de Weimar, reputamos
oportuno salientar que o artigo 153 de tal diploma legal afirma que “a
propriedade obriga” e que “seu uso constitui, consequentemente, um
serviço para o Bem Comum [Gemeine Beste]”, conceito que, como
faz notar António Sardinha, está, assim como o conceito de Trabalho
adotado por aquela constituição, muito “perto do conceito cristão e
tradicionalista”, sendo, segundo o ensaísta e poeta português, uma pena
que tal doutrina fosse “diminuída pelo critério materialista do Estado
alemão, inteiramente sujeito ao prestígio ideológico do marxismo”
(Sardinha, 1928, p. 19).
326
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
A concepção da propriedade à luz da doutrina cristã e tomista
foi muito bem sintetizada por Plínio Salgado, na obra Direitos e Deveres
do Homem, cuja primeira edição data de 1950 e em que, partindo da
divisão tomista da Lei,54 demonstra o escritor e pensador patrício que
a propriedade privada, prevista na Lei Divina do Decálogo e de acordo
com a natureza humana, havendo sido aceita como “bem necessário” pelo
“consenso universal” ao longo dos séculos, “não tem um fim egoístico”,
devendo ser “instrumento de benefício social”, encontrando, em tal
caráter, “irrecusável fundamento moral” e representando “imperiosa
necessidade ao bem comum” (Salgado, 1957, p. 261), salientando,
ainda, que o “duplo caráter individual e social” da propriedade, bem
assinalado por Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum, e por Pio XI,
na Encíclica Quadragesimo Anno, “não destrói, antes fortifica o direito
de propriedade” (Idem, p. 259), de que o ente humano “se utiliza para
o seu próprio bem, para o bem da sua família e para o bem social, que,
em última análise, reflui sobre ele, como um bem de que participa em
comum com os seus semelhantes” (Idem, p. 262).
Isto posto, cumpre assinalar que o Primado do Bem Comum não
implica na absorção dos direitos naturais da pessoa humana pelo Estado,
não se confundindo, pois, com o coletivismo ou o totalitarismo, ou, como
diria Ricardo Dip, o princípio de totalidade, com a Primazia do Bem
Comum, não impõe que os entes humanos, “segundo toda sua pessoa e
54
Para Santo Tomás de Aquino, a Lei se divide em Lei Eterna, Lei Natural, Lei Divina Positiva, ou, simplesmente, Lei Divina, e Lei Humana Positiva, ou, apenas, Lei Humana. A Lei Eterna
nada mais é que a razão da divina sabedoria enquanto rege o Universo, dirigindo todos os atos e
movimentos. Já a Lei Natural é a participação da Lei Eterna na criatura racional, se constituindo
em um conjunto de normas segundo as quais o homem vive enquanto homem, distinguindo por
natureza o justo do injusto, a honestidade da torpeza, a virtude do vício. A Lei Divina Positiva, por
seu turno, é aquela que o próprio Deus promulga por meio de uma intervenção direta na História,
como é o caso do Decálogo, que Deus confiou a Moisés, e da Lei do Evangelho, ou Lei de Cristo.
Por fim, a Lei Positiva é a ordenação da razão para o Bem Comum, promulgada por aquele que
tem o encargo da comunidade perfeita. A divisão da Lei aparece na Suma Teológica, na questão
XCI do denominado Tratado da Lei (AQUINO, Tomás de). Suma Teológica. 1ª parte da 2ª parte, q.
XCI. Trad. de Alexandre Corrêa. Org. e dir. de Rovílio Costa e Luís Alberto de Boni. vol. 4. Porto
Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Livraria Sulina Editora; Caxias do
Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980. pp.1736-1745.
327
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
todos seus bens, se submetam plenamente ao todo estatal”, posto que aí
já não haveria, em realidade, Primado do Bem Comum, “mas exatamente
a negação do conceito de comum” (Dip, 2009, p. 156). Neste sentido,
pondera Alexandre Corrêa que a doutrina de Santo Tomás de Aquino,
“conjunto de princípios reais e realistas”, não cedendo a nenhum exagero,
“nem ao panestatismo, que absorve e aniquila o indivíduo, nas suas mais
elevadas e nobres aspirações”, nem permitindo “concentração egoísta num
individualismo feroz, completamente descurado da sua finalidade social e
das justas exigências do bem comum”, se mantém, pois, num “justo meio,
que nem sacrifica o indivíduo ao Estado, nem o bem comum coletivo a um
individualismo desenfreado” (Corrêa, 1984, pp. 319-320). Ainda assim, tal
primado não foi aceito pelo liberalismo econômico e político, que, caindo
no erro do individualismo, rejeitou como salienta Blázquez Martín, tanto o
termo quanto o conceito de Bem Comum (Blázquez Martín, 2008, p. 184),
inaugurando “a era do Interesse”, preponderantemente particular (Idem, p.
189. Grifos em itálico no original).
Bem conhecidos são os erros do liberalismo, que, afastado do
Primado do Bem Comum, implantou uma verdadeira tirania do Capital
e da propriedade, que concentrou nas mãos de poucos, gerando profunda
injustiça social, contra a qual se levantaram tanto os chamados cristãos
sociais quanto os socialistas, os primeiros, em nosso sentir, corretos
tanto nas críticas ao liberalismo quanto nas alternativas a ele propostas,
no sentido de harmonizar as relações entre o Capital e o Trabalho em
benefício de todo o tecido social e de fazer com que o direito natural de
propriedade fosse exercido com vistas ao Bem Comum e estendido ao
maior número possível de famílias, enquanto os socialistas, quase que
plenamente certos no que toca à análise dos problemas engendrados pelo
liberalismo econômico, erraram, contudo, naquilo que a ele opuseram,
pregando a extinção do Capital e do direito de propriedade, sem atentar
para o fato de que o mal não estava neles, mas sim na forma pela qual
eram geridos sob a égide do liberalismo.
328
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
A partir do final do século XIX, diante do agravamento da
questão social provocada pelo liberalismo, a noção tomista de Bem
Comum, afirmada pela Doutrina Social da Igreja e pelos denominados
neotomistas, recuperou considerável terreno. Mais tarde, já no chamado
período “entreguerras”, surgiu o denominado institucionalismo, que,
como sublinha Blázquez Martín, igualmente recuperou a ideia de Bem
Comum, em clara crítica tanto ao liberalismo quanto ao bolchevismo
(Blázquez Martín, 2008, p. 190).
Tratando do chamado neotomismo e do institucionalismo,
Blázquez Martín salienta que estas doutrinas desempenharam papel
relevante na forte reação intelectual que se operou contra as ideias
individualistas do liberalismo nas décadas de 1920 e 1930, ressaltando
que as ponderações de tais doutrinas obedecem ao intento de estabelecer
“uma visão harmônica do sistema social no marco dos importantes
conflitos sociais e econômicos do momento”, que decorriam, de um lado,
“do sistema econômico capitalista, e de seus fundamentos individualistas
e egoístas do interesse privado”, e, de outro, “da visão conflitualista que
o marxismo oferecia sobre a base da ideia da luta de classes” (Blázquez
Martín, 2008, pp. 190-191).
Havendo feito referência, por meio de citação de Blázquez
Martín, ao sistema capitalista, reputamos oportuno assinalar que por
capitalismo compreendemos o sistema econômico em que o sujeito
da Economia é o Capital, cujo acréscimo ilimitado, pela aplicação de
pretensas leis econômicas mecânicas, é considerado o objetivo final
único de toda a produção. Neste sentido, podemos citar, dentre outros, o
sacerdote e pensador argentino Julio Meinvielle, que, na obra Concepción
católica de la Economía, de 1936, define o capitalismo como “um sistema
econômico que busca o acréscimo ilimitado dos lucros pela aplicação de
leis econômicas mecânicas” (Meinvielle, s/d, p. 5), e Miguel Reale, que,
em O capitalismo internacional, de 1935, aduz que o “capitalismo é o
sistema econômico no qual o sujeito da Economia é o Capital, sendo
329
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
o acréscimo indefinido deste considerado o objetivo final e único de
toda a produção” (Reale, 1935, p. 87). Cumpre salientar, ainda, que o
capitalismo, que, afastando a instrumentalidade da riqueza material, a
vê como um fim em si, trocando a busca do Sumo Bem por aquela da
“suma riqueza”, como observa Heraldo Barbuy (Barbuy, 1953, p. 146),
e que, como frisa Vázquez de Mella, não percebe que o problema não é
a produção da riqueza, mas sim sua distribuição equitativa (Vázquez de
Mella, 1903), não é o sistema da propriedade privada e da livre iniciativa,
que, com efeito, são naturais, já existindo muito antes de seu surgimento,
mas, como pondera Hilaire Belloc, o sistema que “emprega esse direito
em benefício de uns poucos privilegiados contra um número muito maior
de homens que, ainda que livres e cidadãos em [suposta] igualdade de
condições, carecem de toda base econômica própria” (Belloc, 1979, p.
154), isto é, o sistema econômico no qual os meios de produção são
controlados por uma minoria e a esmagadora maioria dos cidadãos se
encontra excluída e despossuída (Idem, 2002, p. 28).
Fazemos nossas, pois, as palavras de Pio XII, que, tratando
do “sistema econômico conhecido pelo nome de capitalismo, do qual a
Igreja não tem cessado de denunciar as graves consequências”, salienta
que a Igreja, com efeito:
apontou não somente os abusos do capital e do próprio direito
de propriedade que o mesmo sistema promove e defende, mas
tem igualmente ensinado que o capital e a propriedade devem
ser instrumentos da produção em proveito de toda a sociedade
e meios de manutenção e de defesa da liberdade e da dignidade
da pessoa humana (Pio XII, 1998, n. 115, p. 499).
Assim, voltemos ao institucionalismo. Partindo do pressuposto
de que “as instituições representam, no direito como na história, a
categoria da duração, da continuidade e do real” e de que “a operação de
330
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
sua fundação constitui o fundamento jurídico da sociedade e do Estado”
(Hauriou, 2009, p. 11) e criticando a teoria individualista rousseauniana
do “Contrato Social” (Idem, pp. 11-12), inspiradora do liberalismo
político, o institucionalismo buscou, conforme salienta Ruiz-Giménez,
reintegrar a Filosofia do Bem Comum no lugar ocupado até a época de
seu advento pela Filosofia do Contrato Social, fazendo sua uma visão
social da pessoa humana que superasse o individualismo, conciliando o
Bem Comum e o bem particular e permitindo a realização integral do ente
humano (Ruiz-Giménez, 1944, p. 251), tudo isto sob forte influência do
pensamento tomista, sendo importante ressaltar que, como aduz Georges
Renard, “Santo Tomás está em todas as páginas da Teoria da instituição”
(Renard, 1932, p. VIII). E se em Maurice Hauriou, criador da teoria da
instituição, a influência de Santo Tomás já é marcante, mais forte é ela,
ainda, nos outros dois grandes mestres do institucionalismo, a saber, o
próprio Renard e Joseph Delos.
Graças à vigorosa ação da Doutrina Social da Igreja, do
denominado neotomismo e do institucionalismo, a ideia de Bem
Comum, abandonada sob influência do utilitarismo e, sobretudo,
do liberalismo individualista, voltou à tona, no século XX, nos
campos da Filosofia, da Ciência Política, do Direito e da Sociologia,
ainda que, como enfatiza José Pedro Galvão de Sousa, nem sempre
empregada “com a significação autêntica e com aquela plenitude
de sentido de que se reveste no vocabulário tomista” (Sousa, 1974,
p. 124). Neste contexto, consoante assinala Blázquez Martín, tal
noção, juntamente com outras sustentadas por aqueles grupos,
em reação tanto contra o liberal-capitalismo individualista quanto
contra o socialismo estatista e coletivista, se configuraram na
origem doutrinária dos fundamentos político-antropológicos do
Estado Social de Direito (Blázquez Martín, 2008, p. 191).
331
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Conclusão
Encerremos este artigo. Temos consciência de que, conforme
salienta Tobias Barreto, “as instituições que não são filhas dos costumes,
mas produtos abstratos da razão não aguentam muito tempo a prova da
experiência e vão logo quebrar-se contra os fatos” (Barreto, 1962, p.
204), bem como de que, como preleciona Giambattista Vico, na Scienza
Nuova, “as coisas fora de seu estado natural não se adequam nem duram”
(Vico, 2006, n. 134, p. 246) e de que, consoante preleciona Arlindo Veiga
dos Santos, “Tradição é vida, é progresso” e “o pretenso progresso que
renega a tradição é eterno recomeço, perpétua imperfeição”, posto que
“progresso é acréscimo, não substituição” (Santos, s/d, p. 4), de sorte
que não terá futuro o presente que negar o passado (Idem, loc. cit.;
Idem, 1962, p. 76). Assim, rejeitamos o idealismo utópico, que não é
senão, como faz notar Oliveira Vianna, o idealismo que não leva em
consideração os dados da experiência (Vianna, 1939, p. 12), podendo
ser definido como “todo e qualquer conjunto de aspirações políticas
em íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade
que pretende reger e dirigir” (Idem, p. 10), a ele opondo o idealismo
orgânico, que, na lição do autor de O idealismo da Constituição, é aquele
formado tão somente de realidade, apoiado tão somente na experiência e
orientado tão somente pela observação do povo e do meio (Idem, pp. 1213). Corresponde esta última forma de idealismo ao “idealismo fundado
na experiência”, de que nos fala o médico, filósofo e sociólogo ítaloargentino José Ingenieros (Ingenieros, 1936, p. 14), nascido Giuseppe
Ingegneri em Palermo, na Sicília, e que, conforme escreve Julio Endara,
representa “uma força moral inspirada no desejo de melhorar o real” e
não uma simples ideologia abstrata (Endara, 1922, p. 94).
O idealismo orgânico é, numa palavra, o idealismo consciente
de que as instituições devem brotar da Tradição e da História dos
povos e não de voos de fantasia de ideólogos engendradores de mitos
332
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
e quimeras, o idealismo que extrai da História uma Tradição sólida e
viva, um coeficiente espiritual de edificação moral, social e cívica, um
desenvolvimento estável e verdadeiro, transmissor e enriquecedor do
patrimônio de pensamento e de costumes herdado de nossos maiores.
Imbuídos, pois, de idealismo orgânico, cremos que, sem o
devido respeito ao Primado do Bem Comum, carecem de legitimidade
e de autenticidade o Estado, a Sociedade e as instituições em geral, do
mesmo modo que não há que se falar em Justiça ou em Direito, entendido
este como “o direito da justiça” de que nos fala Ignacio Poveda e que é
assim denominado por derivar da Justiça, se configurando na “seiva que
vivifica a árvore da convivência social” (Poveda Velasco, 2011, p. 11).
Assim, afirmamos a tradição do Bem Comum, que, nas palavras de Alfredo
Buzaid, não é senão um “capital acumulado de valores humanos e culturais,
legados que as gerações transmitem umas às outras” (Buzaid, 1973, p. 30),
e proclamamos a necessidade de plena restauração da Primazia do Bem
Comum, como pressuposto da instauração de um autêntico Estado Ético
de Justiça, ético não por ser a própria encarnação da Ética, como querem
Hegel e Gentile (Hegel, 1997, pp. 204-205; Gentile, 1932, pp. 847-84855),
mas sim por ser inspirado na Ética, que lhe é anterior e superior, e movido
por um ideal ético, como defendem, dentre outros, Gino Arias, Giorgio Del
Vecchio e Miguel Reale (Arias, 1937, p. XVIII; Idem, 1942, p. 410; Del
Vecchio, 1957, p. 210; Reale, 1934, p. 197), e de Justiça não por ser o criador
da Justiça, que igualmente lhe é precedente e superior, mas por se pautar
nas regras da Justiça e se mover por um ideal de Justiça, promovendo, de
acordo com o princípio de subsidiariedade, o Bem Comum, cuja aquisição,
como ensina Leão XIII, deve ter por finalidade o aperfeiçoamento dos
entes humanos (Leão XIII, 2004, n. 50, p. 305).
55
O texto citado, que consta do verbete Fascismo da Enciclopedia Italiana di Scienze, Lettere ed
Arti, não é assinado e foi muitas vezes atribuído a Benito Mussolini, mas, em verdade, foi escrito a
pedido deste por Giovanni Gentile (V. GREGOR, A. James. Phoenix: Fascism in our time. 1. ed., 4.
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342
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
16
O estado constitucional cooperativo
e a prisão do depositário infiel:
a evolução jurisprudencial do stf
Vladmir Oliveira da Silveira
Pós-Doutor em Direito pela UFSC, Doutor em Direito pela PUC/SP,
Professor da PUC/SP e da UNINOVE, Diretor do Centro de Pesquisa em Direito
da UNINOVE, Presidente do Conselho Nacional de
Pós-Graduação em Direito – CONPEDI
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug
Doutora e Mestre em Direito pela PUC/SP, Coordenadora do Curso de Direito da
UNINOVE, membro do Conselho Superior de Estudos Jurídicos da
Federação do Comércio/FECOMERCIO
343
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Introdução
O Direito atualmente passa por um processo de internacionalização,
na mesma medida em que também constata-se uma constitucionalização
do Direito Internacional.56 O fenômeno da internacionalização do Direito
verifica-se nas mais diversas áreas, embora de forma mais nítida no
Direito Constitucional, no Civil, no Penal e no Ambiental.
A internacionalização do Direito faz com que as normas jurídicas
que regulam as atividades dos cidadãos não sejam mais unicamente
produzidas pelo legislador nacional, mas por documentos normativos
internacionais.57 Há uma ampliação da cidadania, que deixa de ser
unicamente estatal para ser também regional e universal.58
Nesse sentido, as fontes e a tutela de direitos também ampliamse. Não há como negar que o processo de internacionalização do Direito
encontra-se em estágio mais avançado na Europa, com a criação e
desenvolvimento da União Europeia, contudo também é identificável na
América Latina, não apenas em projetos de integração como o Mercosul,
mas em novas doutrinas, legislação e jurisprudência nacionais.
A adoção de um tratado por um Estado ou sua inserção em
organismos ou comunidades supranacionais e intergovernamentais
implica, na maioria dos casos, a necessidade de adaptação do direito
56
Segundo Héléne Tourard: “A internacionalização das Constituições ultrapassa o contexto das relações entre o Estado e o Direito Internacional. Ela se projeta para além da problemática relação
entre Direito Internacional e Direito Interno. Trata-se, na verdade, de abordar a questão das relações
entre o Direito constitucional e o Direito internacional em uma perspectiva menos abstrata (...) considerada a realidade dos fenômenos políticos e das relações internacionais” (TOURARD, Héléne.
L´internationalisation dês Constitutions Nationales. Paris: L.G.D.J., 200, p.11) (tradução livre).
57
Cf. MEYER- PFLUG, Samantha Ribeiro. “A internacionalização do Direito Constitucional”
In.: Coletânea de Estudos Jurídicos. ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira; PETERSON,
Zilah Maria Callado Fadul. Coordenadoras. MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Organizadora.
Brasilia: Superior Tribunal Militar, 2008, p.436
58
Ver, neste sentido: SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos
humanos: conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010.
344
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
interno a essa nova realidade. Tal adaptação pode ocorrer por meio
de uma revisão constitucional ou pela aplicação da hermenêutica e
interpretação levada a efeito pelas Cortes Constitucionais.59 Há uma
nítida tendência de harmonização de conceitos – o que é um processo
de mão dupla, pois as Constituições nacionais passam considerar as
relações do Estado com o Direito Internacional, sofrendo este uma
crescente influência dos dispositivos constitucionais relevantes. Assim,
pode-se dizer que o Direito Internacional tem um efeito irradiador sobre
os sistemas constitucionais internos.60
No Brasil, o processo de internacionalização aprofundou-se com
a promulgação da Constituição de 1988, que conferiu especial ênfase
à proteção dos direitos humanos, e de outros princípios relativos às
relações internacionais – além, é claro, da previsão de integração com
a comunidade latino-americana, já iniciada com o Mercosul, dentre
outras iniciativas. No entanto, o referido processo esbarra no princípio
da supremacia formal e material da Constituição brasileira sobre todas
as normas nacionais. A adequação das normas internas em face da
legislação supranacional torna-se mais dificultosa diante desse princípio,
que pressupõe a existência de um controle de constitucionalidade,
via de regra repressivo e jurisdicional, com a presença de uma Corte
Constitucional para interpretar e defender o texto constitucional. Nesse
sentido, a superação do impasse pode ocorrer por meio da atuação tanto
do Poder Judiciário – e principalmente do Supremo Tribunal Federal –
como do Poder Legislativo.
Neste cenário, objetiva-se demonstrar as consequências
59
Luís Maria Diéz-Picazo anota: “(...) daí que um Estado não pode estar convencionalmente vinculado contra a sua vontade (ex consensu advenit vinculum). Isso é conseqüência da confluência
do direito internacional: primeiro, o caráter inorgânico e descentralizado da sociedade internacional, que carece de uma autoridade legislativa central; segundo, o princípio da isonomia dos
Estados, pelo qual a vontade de um não é juridicamente superior a vontade do outro” (Constitucionalismo da União Européia, Madrid: Cuadernos Civitas, 2002, p. 88, tradução livre).
60
Segundo Heléné Tourard, “a internacionalização do direito corresponde à influência do Direito
Internacional sobre a formação e o conteúdo das espécies normativas de determinado sistema
jurídico estatal” (TOURARD, Héléne. Op. cit., p. 6).
345
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
resultantes da evolução do debate sobre a hierarquia dos tratados
conferida pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente em relação aos
tratados de direitos humanos, com o advento da Constituição Federal de
1988, destacando-se o conteúdo dos §§ 1º e 2º do artigo 5º, como também
as consequências provenientes da aprovação da Emenda à Constituição
nº 45/04 no tocante ao status normativo desses tratados e à prisão do
depositário infiel.
Neste particular, o texto pretende analisar questões como a
prisão civil por dívidas no Brasil, bem como a nova posição do Supremo
Tribunal Federal, adotada no julgamento do Recurso Extraordinário
nº 466.343, entendendo-se que os tratados internacionais de direitos
humanos ratificados pelo Brasil antes da referida Emenda possuem status
normativo supralegal, como o Pacto de São José da Costa Rica e sua
implicação na interpretação do dispositivo constitucional que autoriza
expressamente a prisão civil no caso do depositário infiel.
1. A constituição federal de 1988 e os tratados de direitos
humanos
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu o Estado Social e
Democrático de Direito como princípio estruturante da ordem jurídica
brasileira, garantiu um amplo rol de direitos e garantias fundamentais, e
apresentou-se extremamente sensível à ordem internacional e ao processo
de internacionalização. Já no parágrafo único do seu art. 4º a Carta Magna
estabelece: “A República Federativa do Brasil buscará a integração
econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando
à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
Trata-se de uma cláusula aberta que possibilita a efetiva
integração de uma comunidade latino-americana – na realidade, é
uma norma constitucional que permite a influência direta do Direito
Internacional no âmbito interno, ao prever a criação de uma comunidade
346
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
supraconstitucional. Soma-se a isso o fato de o próprio art. 4º elencar
de maneira explícita os princípios que devem reger o Brasil nas
relações internacionais, quais sejam: I - independência nacional; II prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos;
IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da
paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo
e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da
humanidade; X - concessão de asilo político. Note-se que o inc. VIII
do art. 4º, que versa sobre o repúdio ao terrorismo e ao racismo, é
uma clara cláusula de extraterritorialidade. No convívio com os demais
sujeitos de Direito Internacional Público, o Brasil deverá priorizar
determinados princípios e valores.
No tocante à proteção conferida aos direitos humanos, o texto
original da Constituição de 1988 dispôs em seu art. 5º, §2º: “Os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Da leitura do
dispositivo, combinado com o artigo 60, §4º, IV, da CF, depreende-se
que, a princípio, os tratados de direitos humanos no Brasil usufruem
de um status constitucional. Não foi esse, contudo, o entendimento
predominante no Supremo Tribunal Federal, que os equiparou às leis
ordinárias, de vez que eram originalmente internalizados pela ritualística
igual a dessas leis.
Parte da doutrina, todavia, destacando-se autores como Flávia
Piovesan61 e Cançado Trindade62, sempre defendeu o reconhecimento da
hierarquia constitucional dos tratados que versam sobre direitos humanos
– antes da Emenda Constitucional nº 45/04 – com base na interpretação já
mencionada, conferida com base no art. 5º, §2º, do texto constitucional, o
61
Cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Direito Constitucional Internacional. São Paulo:
Saraiva, 2007.
62
CANÇADO TRINDADE, A. Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos — fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991.
347
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
qual estabelece que os direitos fundamentais elencados na Constituição
não excluem outros decorrentes dos tratados – na busca de valores
comuns entre os Estados –, com o §4º, IV, do artigo 60, que estabelece os
direitos fundamentais como cláusulas pétreas na Constituição brasileira.
Se não podem, portanto, ser revogados por lei constitucional, muito
menos poderão ser revogados por lei ordinária.
Para Flávia Piovesan, o direito interno e o direito internacional
estão em constante interação na realização do objetivo convergente e
comum de proteção dos direitos humanos.63 Com efeito, a referida autora
defende a necessidade de se conferir status constitucional aos tratados de
direitos humanos, defendendo a criação de um bloco de constitucionalidade
composto pela Constituição, pelos tratados de direitos humanos e pelos
princípios gerais de Direito, com base na chamada cláusula de abertura
brasileira – ou seja, o artigo 5º, §2º, do texto constitucional.
Todavia, conforme mencionado, não foi essa a interpretação
adotada pela jurisprudência brasileira e em especial pelo Supremo
Tribunal Federal, o guardião da Constituição, a despeito de grande parte
da doutrina nacional e internacional defender tal posição. Na realidade,
a norma constante do §2º do art. 5º é uma cláusula aberta e como tal, por
meio da interpretação, poder-se-ia ampliar ou restringir seu sentido e sua
aplicação, optando a Corte Suprema por restringi-la.
Em 2004 o Congresso Nacional, sensível à realidade da
internacionalização do Direito e tendo em vista a posição adotada pelo
Supremo Tribunal Federal, promulgou a Emenda Constitucional nº 45
(Reforma do Judiciário), que acrescentou dois novos parágrafos ao art.
5º.64 São eles: “3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos
63
Cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Direito Constitucional Internacional. São Paulo:
Saraiva, 2007.
64
Nesse sentido, Sylvie Torcol acentua que “a internacionalização das constituições afeta o equilíbrio institucional estatal: o Poder Executivo, em sua qualidade de principal ator em matéria de relações internacionais; o Poder Legislativo, na qualidade de poder normativo e de controle dos órgãos de
governo; e o Poder Judiciário, em sua função de aplicação das fontes de direito às situações concretas”
(apud Luis Cláudio Coni, op. cit., p. 85). TORCOL, Sylvie. Les mutations du constitucionnalisme à
348
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros,
serão equivalentes às Emendas constitucionais” e “§4º. O Brasil se
submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha
manifestado adesão.”
A introdução destes dois parágrafos representou uma nova fase
no processo de internacionalização do Direito Brasileiro. Destarte,
há que se considerar que o teor do §3º do art. 5º acabou por restringir
definitivamente a aplicação extensiva do §2º do mesmo artigo, na medida
em que determina que os tratados de direitos humanos, para equipararemse às Emendas à Constituição, devem ser aprovados com quorum de três
quintos e votação em dois turnos. Em cada Casa do Congresso Nacional
impede-se que, por meio da interpretação atribuída ao §2º do art. 5º da
Constituição, como pretendia Flávia Piovesan65, fosse conferido status
constitucional aos tratados de direitos humanos.
Importa destacar que o novo parágrafo representou um retrocesso
na proteção conferida aos direitos humanos, pois o §3º do art. 5º: 1)
dificultou o processo de internalização de direitos humanos; e 2) em
tese só é aplicado aos tratados aprovados após a sua promulgação, de
vez que se omite em relação aos tratados incorporados antes de sua
existência. Assim sendo, não compreende os tratados e convenções
que lhe são anteriores e versam sobre aspectos relevantes da proteção
dos direitos humanos. Por outro lado, há que se reconhecer que, na
prática, acabou por representar um avanço, possibilitando que os
tratados de direitos humanos passassem finalmente a usufruir, desde
que observadas certas condições, do status constitucional – o que não
se apresentava possível até então em face da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal acerca do tema.
l´épreuve de la construction européenne. Tese de doutorado defendida em 12/12/2002 na Faculdade de Direito da Universidade de Toulon et du Var, Lylle, A.N.R.T.
65
Cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Direito Constitucional Internacional. São Paulo:
Saraiva, 2007.
349
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Passar-se-á agora a analisar detidamente as alterações trazidas
pela Emenda à Constituição n º 45/04 ao sistema constitucional pátrio.
1.2. A Constituição Federal de 1988 e a Emenda à Constituição nº 45/04
A Emenda à Constituição nº 45/04 trouxe significativas alterações
no tocante ao status normativo dos tratados de direitos humanos no
sistema jurídico brasileiro. Note-se, contudo, que a redação do novo §3º
do art. 5º da Constituição menciona que os tratados de direitos humanos
serão equiparados às Emendas à Constituição, o que significa dizer, num
primeiro momento, que serão um gênero diferenciado de norma, pois não
serão considerados normas constitucionais na medida em que o texto faz
referência à expressão “equivalentes às emendas constitucionais”. Será
conferido, portanto, um status constitucional a esses tratados.
Nesse contexto, com o advento da Reforma do Judiciário (EC
nº 45/04) e a introdução do §3º do art. 5º, parte da doutrina, a exemplo
de Flávia Piovesan, entendeu que a reforma foi prejudicial à proteção
dos direitos humanos ao incluir a expressão “equivalente à emenda
constitucional”, deixando claro, portanto, que os tratados de direitos
humanos não são normas constitucionais. Excluiu-se a possibilidade de
conferir uma interpretação extensiva ao §2º do art. 5º. Seguindo essa
linha de raciocínio, a Emenda à Constituição nº 45/04 representaria um
retrocesso na proteção dos direitos humanos, o que a tornaria inclusive
inconstitucional.
Tendo em vista o teor do §3º do art. 5º, cumpre destacar que
ele não estabelece expressamente a quem cabe propor a aprovação
dos tratados de direitos humanos como equivalentes às Emendas à
Constituição – o que implicaria a necessidade de regulamentação da
matéria por leis ordinárias. Isso em virtude de, no Brasil, a alteração da
Constituição ocorrer por meio da edição de Emendas que têm seu rito
expressamente previsto no art. 60 da Carta Magna. Segundo o disposto
350
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
na Lei Maior, podem apresentar Propostas de Emendas Constitucionais
(PEC) o Presidente da República; mais da metade das Assembleias
Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se cada uma
delas pela maioria relativa de seus membros; e um terço, no mínimo,
dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal. A
proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três
quintos dos votos dos respectivos membros. A Emenda à Constituição
será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal, com o respectivo número de ordem.
Nesse contexto surgem alguns pontos suscetíveis de discussão
tendo em vista o teor do §3º do art. 5º da Constituição. O processo de
internalização de um tratado pelo Brasil dá-se consoante o disposto no
texto original da Constituição de 1988: inicia-se com a negociação pelo
Executivo ou seus assessores (diplomatas), e termina com a assinatura do
tratado pelo Presidente da República (Chefe de Estado). Após a assinatura
do Presidente, o texto deve ser encaminhado com uma mensagem
ao Congresso Nacional, que a submete à aprovação da Câmara dos
Deputados e Senado Federal pelo quórum de maioria simples e votação
unicameral. A essa espécie normativa dá-se o nome de decreto legislativo,
que é assinado pelo Presidente do Senado (ratificação doméstica). Após
sua edição, cabe ao Presidente da República providenciar a ratificação
externa (ou depósito) e editar um Decreto com o conteúdo do tratado
– e somente após a expedição desse decreto o tratado é internalizado.
Na maioria dos casos há um grande lapso temporal entre a edição do
Decreto legislativo pelo Congresso Nacional e a expedição do Decreto
presidencial.
Na hipótese prevista pelo §3º do art. 5º – a aprovação de um tratado
de direitos humanos com quórum de três quintos e votação bicameral
– cumpre questionar a quem caberá provocar a aprovação do tratado
nesta forma ou por intermédio da ritualística menos complexa da lei
351
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
ordinária, portanto, norma infraconstitucional. Poderá ser o Presidente da
República, ao encaminhar a mensagem que assinou o tratado, ou aqueles
legitimados para apresentar proposta de Emenda à Constituição, dentre
os quais o próprio Presidente da República ou qualquer parlamentar,
que poderá ao apreciar a matéria – e independentemente do conteúdo
da mensagem presidencial enviada ao Congresso Nacional – propor sua
aprovação na forma do referido parágrafo? Note-se que nesta última
hipótese seria alterada a ritualística da Emenda à Constituição, já que
atualmente requer-se um terço dos parlamentares para tais Emendas.
De outra parte, na hipótese de o tratado ser apresentado na forma
do §3º do art. 5º (ou seja, para ser aprovado com o quórum de três quintos
em dois turnos nas duas Casas) mas não conseguir obter esse quórum de
votação, poderá ser aprovado apenas com o quórum de maioria simples
(que é o quórum necessário para aprovar-se uma lei ordinária) – ou seja,
com status de lei ordinária – ou o mesmo deverá ser rejeitado? A nosso
ver esse aspecto não se encontra definido e necessita ser regulamentado
o quanto antes, pois poderá implicar uma esquizofrenia sistêmica que
admite a existência de direitos humanos de primeira classe (hierarquia
constitucional), de segunda classe (hierarquia supralegal) e de terceira
classe (hierarquia lei ordinária).
Outra questão versa sobre a alteração do próprio parâmetro de
controle de constitucionalidade brasileiro. Se um tratado é aprovado
na forma do §3º do art. 5º, ele passa a integrar a Constituição e será,
portanto, incorporado ao seu texto – ou seja, deve ser incluído no
corpo da Constituição ou figurar como um apêndice, formando de tal
sorte uma espécie de “bloco de constitucionalidade”. Note-se que em
ambos os casos se poderá arguir a inconstitucionalidade de qualquer
ato normativo interno que venha a contrariar o conteúdo do tratado
de direitos humanos equivalente à Emenda à Constituição. A partir da
promulgação dos tratados, portanto, passou a existir no Brasil o controle
de convencionalidade e não apenas constitucionalidade.
352
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
E no caso de o tratado de direitos humanos ser denunciado pelo
Brasil, deixaria ele de ser matéria constitucional? Essa não parece ser a
melhor solução, tendo em vista as características do Direito Constitucional
brasileiro. Parece-nos que, mesmo existindo a denúncia do tratado, ele
continuará a ter validade internamente como norma constitucional,
não podendo ser alterado nem por Emenda à Constituição, uma vez
que o sistema brasileiro considera os direitos e garantias individuais
como cláusula pétrea. Insuscetível, portanto, de alteração pelo poder
reformador, como aponta Vladmir Oliveira da Silveira66:
Novamente, deve-se repetir que, sendo o princípio da
anterioridade uma garantia do cidadão, obviamente está protegido
pelas chamadas cláusulas pétreas. Conforme já sustentado, em
capítulos anteriores, os direitos e garantias individuais – que se
prefere chamar de fundamentais – abrangem não só os alocados
no artigo 5º da Constituição, como também outros, dispersos no
seu interior. E, certamente, o princípio da anterioridade é uma
dessas garantias. Por outro lado, não há a mínima possibilidade
de expansão das exceções a esse princípio, tendo em vista que
o Poder constituinte assim não permitiu. O rol de exceções é
taxativo, não podendo o Poder reformador inovar nesse sentido,
sob pena de violação frontal da cláusula pétrea.
Nessa linha de raciocínio, consoante o disposto no art. 60, §4º,
inc. IV, da Constituição Federal, os direitos e garantias individuais são
cláusulas pétreas – ou seja, não podem ser abolidos por Emenda
à Constituição. Assim sendo, resta saber se os tratados de direitos
humanos aprovados na forma do §3º do art. 5º do texto constitucional
são ou não cláusulas pétreas – entendendo-se que sejam. Se assim
66
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da. O poder reformador na Constituição brasileira de 1988 e os
limites jurídicos às reformas constitucionais. São Paulo: Rcs, 2006.
353
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
forem considerados, os tratados não poderão sofrer qualquer
modificação por Emenda à Constituição, de modo que, mesmo
sendo denunciado o tratado, o texto aprovado permanecerá como
parte integrante da Carta Magna.
A despeito de todas essas controvérsias, o Congresso Nacional
aprovou em 9 de julho de 2008, e sem que houvesse qualquer
regulamentação, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova
Iorque em 30 de março de 2000, na forma do §3º do art. 5º. Trata-se
do Decreto Legislativo nº 186 (ato infraconstitucional), com força de
norma constitucional. Nesse viés, o Congresso Nacional acabou por
dar efetividade direta ao referido dispositivo constitucional. Todavia,
os questionamentos suscitados ainda permanecem em aberto e devem
ser enfrentados, valendo destacar que a denominação dada a essa
espécie normativa passou a ser “decreto legislativo com força de norma
constitucional”.
Por fim, ainda, resta saber se será necessária a edição do Decreto
do Presidente da República para que o tratado seja internalizado ou se
a simples edição do Decreto Legislativo, na forma do §3º do art. 5º, já
cumpriria essa função. Registre-se que as Emendas constitucionais, por
representarem a manifestação do poder reformador, dispensam a sanção
do Presidente da República, sendo promulgadas pelas Mesas da Câmara
e do Senado Federal.
Destarte, o referido Decreto Legislativo nº 186 foi promulgado
pelo Presidente do Senado, na forma do art. 48, inc. XXVIII, do Regimento
Interno daquela Casa, que estabelece dentre suas competências a de
promulgar as resoluções e os decretos legislativos. Já as Emendas à
Constituição são promulgadas pelas Mesas da Câmara dos Deputados
e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. Traçando um
paralelo com essa nova hipótese, depreende-se que, levando a efeito uma
interpretação sistemática, os decretos legislativos aprovados na forma do
354
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
§3º do art. 5º dispensariam a edição do Decreto Presidencial. No entanto,
essa questão permanece sem resposta.
2. O pacto de são josé da costa rica e a prisão civil por dívidas
O Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica, o
sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. O item 7 do
art. 7º da referida convenção, que trata do direito à liberdade pessoal,
dispõe expressamente que:
7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita
os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em
virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.
A redação do dispositivo supratranscrito é clara, vedando a prisão
civil por dívidas. Permite-se a prisão penal, mas como regra proíbese a civil. A única exceção é a prisão decorrente do inadimplemento
de obrigação alimentar, pois o direito que se está a proteger aqui é do
hipossuficiente o direito da criança, do idoso ou ainda do ex-cônjuge que
não tenha condições de se auto sustentar.
Em outras palavras, na ponderação dos valores em conflito –
quais sejam: vedação da prisão civil e o direito ao alimento – prevalece
esse último, tendo em vista a proteção da dignidade da pessoa humana
(núcleo essencial dos direitos humanos). Nessa hipótese há um conflito
aparente entre o direito à liberdade e o direito à solidariedade, diretamente
relacionado à sobrevivência do hipossuficiente. Prevalece, na hipótese, o
direito à solidariedade.
O Pacto de São José da Costa Rica dá nítida prevalência ao direito
à liberdade, restringindo, em tal viés, as hipóteses de prisão. Destarte, os
países que aderirem ao Pacto devem coadunar suas normas aos preceitos
355
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
nele estabelecidos. Ademais, deve-se aderir aos tratados de direitos
humanos sem a imposição de reservas, sob pena de comprometer-se a
proteção desses direitos no âmbito interno de cada país. O Brasil ratificou
o referido Pacto sem qualquer reserva, o que num primeiro momento
levaria à conclusão de que entre nós não seria possível a prisão civil do
depositário infiel.
De outra parte, há que se considerar igualmente o critério da
norma mais favorável à vítima em se tratando da proteção dos direitos
humanos. Conforme tal critério, restaria afastada a possibilidade de
prisão do depositário infiel em caso de conflito entre uma norma nacional
e a do tratado de direitos humanos. No caso, deve-se dar prevalência à
norma do tratado.
Assim, num primeiro momento, em caso de aparente conflito
entre uma norma nacional que permita a prisão do depositário infiel e
uma norma internacional que proíba tal prisão, deve-se dar prevalência
à última. Trata-se de um conflito aparente entre o direito à liberdade e o
direito à propriedade, no qual deve prevalecer, de acordo com o conteúdo
do Pacto de São José da Costa Rica, o direito à liberdade.
Nesse particular, salienta Flávia Piovesan que se a situação
fosse inversa – isto é, se a norma constitucional for mais benéfica que a
normatividade internacional – deveria ser aplicada
a norma constitucional, inobstante os aludidos tratados
tivessem hierarquia constitucional e tivessem sido ratificados
após o advento da Constituição. Vale dizer, as próprias regras
interpretativas dos tratados internacionais de proteção aos
direitos humanos apontam a essa direção, quando afirmam que os
tratados internacionais só se aplicam se ampliarem e estenderem
o alcance da proteção nacional dos direitos humanos.67
67
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva,
2007.
356
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Destarte, é imprescindível considerar que os direitos
decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos visam
aprimorar e fortalecer os direitos humanos, ampliando sua proteção
no âmbito interno dos países. Trata-se da aplicação do princípio da
complementaridade. Nesse sentido esclarecem Vladmir Oliveira e da
Silveira e Vanessa Toqueiro Ripari:
(...) o princípio da soberania compartilhada deve harmonizase com a necessária cooperação internacional no âmbito dos
direitos humanos, num eco às reais necessidades da humanidade,
por intermédio da relação de complementaridade entre as
esferas de proteção, que fundamentam as distintas cidadanias
complementares. Assim, ao afirmarmos que cidadania é o direito
a ter direitos, é evidente que o ser humano pode ter (como de
fato já possui em diversas partes do planeta) direitos nacionais,
regionais e universais.68
Importa ressaltar que a Constituição Federal de 1988 dispõe
no rol dos seus direitos e garantias individuais – e mais precisamente
em seu art. 5º, inc. LXVII – que “não haverá prisão civil por dívida,
salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de
obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Num primeiro momento
depreende-se da leitura de ambos os dispositivos que há um conflito, o
que exige algumas considerações sobre a prisão civil.
2.1. Os casos de previsão normativa da prisão civil no Brasil
Como referido, a Constituição Federal de 1988 dispõe em seu
art. 5º, inc. LXVII, que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do
68
SILVEIRA, Vladmir Oliveira. ; RIPARI, Vanessa Toqueiro . A cidadania regional americana e o
ordenamento jurídico. Revista da Escola Paulista de Magistratura, v. 5, p. 23-28, 2009.
357
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação
alimentícia e a do depositário infiel”.
Permite o texto constitucional a prisão civil em duas hipóteses
apenas: a do inadimplemento voluntário e inescusável da pensão
alimentícia e a do depositário infiel. É interessante notar que a
redação do inc. LXVII do art. 5º não utiliza a expressão “prisão civil
por dívidas”, mas o instituto do depositário infiel, diferentemente
do que ocorre com o Pacto de São José da Costa Rica, como visto
anteriormente.
A prisão civil é destinada a compelir alguém a realizar algo e
nesse sentido ela é decretada no caso do não-cumprimento de determinada
obrigação. A finalidade da prisão não é outra senão a de compelir o
indivíduo a realizar determinada obrigação, seja de natureza civil, seja de
natureza comercial, sem nenhum caráter apriorístico de punição.69 Não é,
portanto, uma pena, mas um instrumento de coercibilidade, pois uma vez
cumprida a obrigação ela obstaculiza ou cessa imediatamente a medida.
A despeito de o Código Civil brasileiro referir-se, num primeiro
momento, à prisão civil como pena, na medida em que implica a restrição
da liberdade do devedor mediante coerção, há de se ter em vista que, uma
vez cumprida a obrigação, não há que se falar na aplicação da prisão.
Não é esse, pois, seu principal objetivo, ou melhor, seu objetivo direto. A
prisão dá-se no âmbito do Direito Civil, com vistas ao adimplemento de
uma obrigação, e a restrição à liberdade individual só ocorre em razão da
não-realização de um comportamento esperado.
A prisão civil, portanto, tem caráter indireto, pois é um meio
coercitivo que tem por finalidade compelir o devedor/depositário a
realizar determinada obrigação. Ela só ocorre em face de uma obrigação
não cumprida – a de devolver o bem que está sob sua guarda.
Esclareça-se que a prisão civil não possui caráter satisfatório, pois
mesmo findo o lapso temporal estabelecido pela decisão para a prisão,
69
MOLITOR, Joaquim. Prisão civil do depositário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p.12.
358
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
não fica o devedor/depositário livre do cumprimento da obrigação. Ela
permanece mesmo após a prisão, só sendo satisfeita com a realização da
obrigação, ou seja, com a devolução do bem que lhe foi confiado.
2.2. O depositário infiel
No caso do depositário infiel, a instrumentalidade do depósito,
via de regra, se dá em virtude da guarda do bem que visa assegurar a
opção quanto à adjudicação ou hasta pública, e não em razão da obrigação
jurídica que decorre do contrato, ou seja, o pagamento da dívida. Para
Odete Queiroz, é “aquele que tendo a obrigação de restituir coisa alheia
que recebeu para custódia não o fez, não cumpriu sua obrigação. E, ao
colocar-se na posição de inadimplência, acaba por trair a confiança que
nele depositou quem lhe entregou coisa para guardar, tornando-se com
isso um devedor em mora”.70
O Código de Processo Civil, em seus artigos 902, §1º, e 904,
expressamente estabelece que, uma vez transitada em julgado a sentença
e sendo expedido o mandado para que o réu entregue a coisa em vinte e
quatro horas ou o valor equivalente em dinheiro, e no caso dele não tomar
nenhuma das providências, o juiz decretará sua prisão, desde que tenha sido
expressamente formulada na inicial, não podendo ser decretada ex officio.
O art. 666, §3º, do referido Código estabelece ainda: “A prisão
de depositário judicial infiel será decretada no próprio processo,
independentemente de ação de depósito”. É permitido ao juiz,
incidentalmente no processo de execução ou na fase de cumprimento
da sentença, decretar a prisão do depositário infiel, desde que tenha sido
determinada a entrega do objeto e o devedor permaneça inerte em face
da ordem judicial. A justificativa da prisão não reside na dívida, mas na
infidelidade – ou seja, na quebra de confiança.
70
QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. Prisão civil e os direitos humanos. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004, p. 55.
359
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Ademais, mesmo que o devedor cumpra o prazo de prisão
estabelecido pelo juiz, resta-lhe o dever de restituir a coisa ou o equivalente
pecuniário ao proprietário, o que confirma a natureza coercitiva da prisão.
Essa prisão tem caráter exaustivo, podendo ser aplicada uma única vez.
Assim, não restituída a coisa, cabe ao autor ingressar com ação de busca
e apreensão ou com ação de execução por quantia certa.
Portanto, restaria afastada a aplicação do teor do Pacto de São
José da Costa Rica71, já que o depositário infiel não é preso em razão da
dívida, mas da recusa em devolver o que lhe foi confiado, fazendo com que
passe da condição de depositário fiel à de infiel. Deste modo fica evidente
que a prisão civil não é uma pena, mas um “meio de coerção processual
destinado a compelir o devedor a cumprir a obrigação não satisfeita”.72
2.3. O depósito em razão dos contratos de alienação fiduciária
em garantia
A alienação fiduciária pode ser compreendida como um contrato
formal e acessório que tem como finalidade precípua assegurar o
cumprimento de uma obrigação previamente estabelecida. É realizada
entre um credor, denominado fiduciário, e um devedor, denominado
fiduciante, em que o credor concede um crédito e o devedor o recebe.
Ela está expressamente prevista no art. 1.361 do Código Civil:
“Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel
infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”.
Na verdade, a alienação fiduciária nada mais é do que uma garantia
para o credor do recebimento de seu crédito. Trata-se da transferência
do domínio, sob uma condição resolutiva, feita pelo devedor do bem
adquirido, na maioria das vezes por meio de um financiamento.
71
Supremo Tribunal Federal, 1ª Turma, Recurso em Habeas Corpus n. 90.759, Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, decisão de 15/05/2007 e Informativo STF n. 467.
72
Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 76.712, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em
24/04/1998, Primeira Turma, DJ de 22/05/1998.
360
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Constata-se uma nítida diferença entre o instituto do depositário
infiel e o da alienação fiduciária. No primeiro caso, não pode o depositário
infiel, via de regra, fazer uso do objeto que lhe foi confiado – a permanência
do bem com o depositário visa preservar o bem. Já na alienação fiduciária,
o devedor exerce a posse sobre o objeto e sua restituição é suficiente para
garantir o crédito caso o mesmo não seja pago.
No caso da alienação fiduciária está-se diante de uma dívida, o
que não ocorre na hipótese do depositário infiel. Nesse contexto, o Pacto
de São José da Costa Rica, ao vedar a prisão civil por dívidas, está na
realidade vedando a prisão no caso da alienação fiduciária em garantia,
não abrangendo o depositário infiel.
Ao permitir expressamente a prisão do depositário infiel, o texto
constitucional de 1988 não pretende assegurar o pagamento de uma
dívida, como ocorre no caso da alienação fiduciária como garantia, mas
proteger – ou melhor, tutelar – a relação de confiança entre as partes, que
foi violada. Nesse sentido não há nenhum conflito entre o teor do Pacto
de São José da Costa Rica e a Constituição Federal.
Sobre o possível conflito entre o Pacto e a Constituição, o Supremo
Tribunal Federal inicialmente, no tocante à prisão do depositário infiel,
firmou jurisprudência no sentido de que em “nada interfere na questão do
depositário infiel em matéria de alienação fiduciária o disposto no §7º do
art. 7º da Convenção de São José da Costa Rica”.73 Entendia ainda que
não caracterizava afronta ao inc. LXVII do art. 5º o fato de o devedor ter
bens em condições suficientes a satisfazer o débito, desde que ofertados
logo que ocorrida a citação no respectivo processo.74
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal era no sentido
73
Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 72.131, Rel. p/ o ac. Min. Moreira Alves, julgamento
em 23-11-1995, Plenário, DJ de 1º-8-2003. No mesmo sentido têm-se os seguintes julgados: Agravo de Instrumento n. 403.828-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 5-8-2003, Segunda
Turma, DJE de 19-2-2010; Habeas Corpus n. 73.044, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em
19-3-1996, Segunda Turma, DJ de 20-9-1996.
74
Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 200.475-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio,
julgamento em 17-11-1997, Segunda Turma, DJ de 6-2-1998.
361
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
de que a conduta cabível ao devedor que “descumpriu o compromisso
judicial de depositário e alienou o imóvel penhorado, é a prisão civil”.75 O
entendimento predominante consistia na possibilidade de decretação da
prisão civil do depositário, no processo de execução, independentemente
da propositura da ação de depósito.76 A infidelidade depositária é
caracterizada como o “desvio patrimonial dos bens penhorados, praticado
pelo depositário judicial ex voluntate própria e sem autorização prévia do
juízo da execução”.
Com efeito, resta claro que a prisão do depositário infiel não
decorre de uma relação contratual, mas do “munus publico assumido
pelo depositário”. Ele o assume na condição de órgão auxiliar da Justiça,
na exata medida em que “a ele é confiada guarda dos bens que garantirão
a efetividade da decisão a ser proferida no processo judicial”.77 É o
vínculo funcional entre o Juízo e o depositário que permite, verificada
a infidelidade, a decretação da prisão deste último, não se tratando,
portanto, de uma prisão contratual.78
O Supremo Tribunal Federal, destarte, permitiu a prisão civil do
depositário infiel, a despeito do disposto do Pacto de São José da Costa
Rica, conferindo aos tratados de direitos humanos o status normativo
de lei infraconstitucional, ou seja, abaixo da Constituição. Portanto, no
caso de conflito entre o texto constitucional e o conteúdo de um tratado
internacional de direitos humanos, prevalecia a Constituição, muito
embora se entenda que exista um erro conceitual na redação originária
de nossa Carta Magna, haja vista que o depósito, como mencionado, não
é uma espécie do gênero prisão civil por dívida.
75
Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 76.286, Rel. p/ o ac. Min. Nelson Jobim, julgamento em 16-6-1998, Segunda Turma, DJ de 28-3-2003.
76
Supremo Tribunal Federal. Recurso em Habeas Corpus n. 80.035, Rel. Min. Celso de Mello,
julgamento em 21-11-2000, Segunda Turma, DJ de 17-8-2001.
77
Supremo Tribunal Federal. Recurso em Habeas Corpus n. 80.035, Rel. Min. Celso de Mello,
julgamento em 21-11-2000, Segunda Turma, DJ de 17-8-2001.
78
Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 84.484, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em
30-11-2004, Primeira Turma, DJ de 7-10-2005.
362
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Todavia, o Supremo Tribunal Federal, levando em consideração
as modificações trazidas pela Emenda à Constituição nº 45/04, entendeu
ter ocorrido uma mudança de paradigma na proteção dos direitos humanos
no sistema jurídico pátrio, o que implicou uma nova interpretação do
status normativo conferido aos tratados de direitos humanos.
Em face das consequências advindas da edição da Emenda à
Constituição nº 45/04 e do caráter supralegal dos tratados de direitos
humanos, é imperioso analisar mais detidamente a evolução da
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nessa seara.
3. O supremo tribunal federal e o caráter supralegal dos
tratados de direitos humanos no caso do depositário infiel
Analisando o entendimento do Supremo Tribunal Federal ao
longo do tempo, pode-se observar que, antes de 1977, a referida Corte
posicionava-se pela primazia do tratado internacional quando em conflito
com a norma infraconstitucional. Todavia, o notório julgado do Recurso
Extraordinário nº 80.004 surgiu como divisor de águas, modificando o
ponto de vista da Suprema Corte, que a partir de então passou a adotar o
sistema paritário ou o chamado monismo moderado, segundo o qual os
tratados e convenções internacionais têm status de lei ordinária, devendo
eventuais conflitos com as demais normas infraconstitucionais, nesta
condição, ser resolvidos do mesmo modo que conflitos comuns entre leis
ordinárias – ou seja, através das regras de conflitos.
A posição firmada no Supremo Tribunal Federal, portanto, após
1977 e antes da EC nº 45, foi no sentido de que todos os tratados (de
direitos humanos ou não) seriam recebidos como lei ordinária. Por esse
motivo, a Suprema Corte entendeu – nos julgados dos Habeas Corpus
72.131-RJ, 73.044-SP e 75.306-RJ, dentre outros – que a prisão civil do
depositário infiel em alienação fiduciária é constitucional, uma vez que o
Pacto de São José de Costa Rica teria natureza geral em face das normas
363
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
especiais previstas em lei ordinária sobre a prisão civil do depositário
infiel, além de ser lei anterior, que é derrogada por lei posterior.
Entretanto, o antigo entendimento do Supremo Tribunal Federal
sobre o Pacto foi superado na votação do Recurso Extraordinário nº
466.343-SP. A referida Corte, ao analisar a constitucionalidade dos
tratados de direitos humanos aprovados antes da EC nº 45/04 – ou
seja, dos tratados que não foram aprovados na nova forma prevista
do §3º do art. 5º –, firmou entendimento de que os mesmos possuem
status normativo supralegal e não mais de simples lei ordinária. Em
outras palavras, o Supremo Tribunal Federal alterou sua jurisprudência
para conferir aos tratados aprovados antes da EC nº 45/05 caráter
supralegal, ou seja, abaixo da Constituição Federal mas acima das
leis ordinárias. A supralegalidade é, na verdade, uma norma ordinária
com qualidade especial: é metade constitucional (materialmente) e
metade ordinária (formalmente).
Optou a Corte Suprema por criar uma nova espécie normativa que se
encontra abaixo da Constituição e acima da lei ordinária. Note-se que essa
espécie normativa não tem previsão expressa no texto da Constituição. O
ministro Gilmar Mendes, em voto proferido no Recurso Extraordinário
n.º 466.343-1/SP, afirmou:
Não se pode negar, por outro lado, que a reforma também
acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos
humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre
os Estados pactuantes, conferindo-lhes um lugar privilegiado no
ordenamento jurídico. (...) a mudança constitucional ao menos
acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos
tratados e convenções internacionais já ratificados pelo Brasil
(...).
364
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
Ele também reconhece que:
é preciso ponderar, no entanto, se, no contexto atual, em
que se pode observar a abertura cada vez maior do Estado
Constitucional a ordens jurídicas supranacionais de proteção
de direitos humanos, essa jurisprudência não teria se tornado
completamente defasada. Não se pode perder de vista que,
hoje, vivemos em um ‘Estado Constitucional Cooperativo’,
identificado pelo Professor Peter Häberle como aquele que não
mais se apresenta como um Estado Constitucional voltado para si
mesmo, mas que se disponibiliza como referência para os outros
Estados Constitucionais membros de uma comunidade, e no
qual ganha relevo o papel dos direitos humanos e fundamentais.
Para Häberle, ainda que, numa perspectiva internacional, muitas
vezes a cooperação entre os Estados ocupe o lugar de mera
coordenação e de simples ordenamento para a coexistência
pacífica (ou seja, de mera delimitação dos âmbitos das soberanias
nacionais), no campo do direito constitucional nacional, tal
fenômeno, por si só, pode induzir ao menos a tendências que
apontem para um enfraquecimento dos limites entre o interno e
o externo, gerando uma concepção que faz prevalecer o direito
comunitário sobre o direito interno. Nesse contexto, mesmo
conscientes de que os motivos que conduzem à concepção
de um Estado Constitucional Cooperativo são complexos, é
preciso reconhecer os aspectos sociológico-econômico e idealmoral como os mais evidentes. E, no que se refere ao aspecto
ideal-moral, não se pode deixar de considerar a proteção aos
direitos humanos como a fórmula mais concreta de que dispõe o
sistema constitucional, a exigir dos atores da vida sócio-política
do Estado uma contribuição positiva para a máxima eficácia das
normas das Constituições modernas que protegem a cooperação
365
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
internacional amistosa como princípio vetor das relações entre
os Estados Nacionais e a proteção dos direitos humanos como
corolário da própria garantia da dignidade da pessoa humana.
O Estado Constitucional Cooperativo substitui o conceito
tradicional de Estado-Nação, entendido como Estado constitucional
democrático internamente, mas não-cooperante e não-aliado no plano
internacional. Frise-se que o Estado Constitucional Cooperativo não
deixa de ser um Estado nacional, mas agrega à sua estrutura elementos
de abertura, cooperação e integração que o descaracterizariam como
unidade fechada, centrada na soberania clássica.
Este novo conceito defende que, em seu atual estágio de
desenvolvimento, o Estado Constitucional não se justifica por si só, mas
encontra-se condicionado por circunstâncias externas – ou seja, está
condicionado de fora para dentro, e desde o início até o fim. Não por
acaso nossa atual Carta Magna contempla temas como o do dualismo
constitucional (art. 4º) e o da abertura aos direitos humanos (art. 5º,
§2º)79, à semelhança do que ocorre nas Constituições de inúmeros países
e principalmente em documentos comunitários, como no preâmbulo
da Constituição da União Europeia (Maastricht), quando aborda a
“solidariedade entre os povos”. É uma evidência empírica de que não só
o Brasil como outras nações valem-se da cooperação em distintos níveis
no seu cotidiano.80
A supralegalidade desses tratados possibilita, então, que
os mesmos paralisem a eficácia jurídica de qualquer ato normativo
79
Art. 5º, §2º, da CF/1988: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que
a República Federativa do Brasil seja parte”.
80
No caso brasileiro, além da cooperação regional (Mercosul e OEA, por exemplo) e universal
(ONU e OMC), ainda existe a cooperação entre os membros da Federação. “Artigo 23. Parágrafo
único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em
âmbito nacional”.
366
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
infraconstitucional com eles conflitante, pois nenhum desses atos pode
contrariar o disposto no tratado de direitos humanos que lhe é superior em
razão de sua supralegalidade. A França, a Holanda, a Rússia (por força
da reforma jurídica em 1993) e a Grécia também adotam essa posição de
supralegalidade em relação aos tratados de direitos humanos.
Ressalte-se que o ministro Celso de Mello, em seu voto-vista
proferido no Habeas Corpus nº 87.585-8/TO, conferiu aos tratados de
direitos humanos natureza constitucional em face das modificações
realizadas pela EC nº 45/04. Esta é, todavia, posição minoritária na
Corte Suprema. O Código Tributário Brasileiro de 1966, anterior à
Constituição de 1988 e por ela recepcionado, estabelece em seu art. 98
a vigência do princípio da prevalência do direito internacional sobre o
direito interno infraconstitucional e o próprio Supremo Tribunal Federal
possui jurisprudência reconhecendo essa prevalência, embora apenas em
matéria tributária.
Como dito anteriormente, a Constituição Federal, em seu art. 5º,
LXVII, autoriza a prisão civil no caso do depositário infiel, enquanto o
Pacto de São José da Costa Rica, o Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos e a Declaração Americana dos Direitos da Pessoa
Humana proíbem a prisão civil por dívidas. Há, portanto, em tese, um
conflito entre o disposto na Constituição e o conteúdo do tratado.
A posição do Supremo Tribunal Federal sempre foi a de dar
prevalência à Constituição sobre o tratado de direitos humanos. Com
a alteração de sua jurisprudência e a concessão de caráter supralegal
a esses tratados, passou-se a proibir a prisão do depositário infiel
a despeito da permissão expressa no texto constitucional. Vale
observar, todavia, que o Supremo Tribunal Federal entendeu que a
Constituição permite tal prisão, mas, como o Pacto de São José da
Costa Rica a proíbe e em virtude de sua supralegalidade, fica apenas
impedida a regulamentação do dispositivo constitucional, tornando
inviável a prisão do depositário infiel. Foi uma posição intermediária
367
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
adotada pelo Supremo Tribunal Federal, que não confere caráter
constitucional aos tratados de direitos humanos – salvo àqueles
aprovados conforme previsão do art. 5º, §3º, da Constituição
Federal. Os efeitos práticos, no entanto, são os mesmos, pois se
impede a prisão do depositário infiel.
Passou, assim, a firmar entendimento no sentido que “a subscrição
pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil
por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia,
implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à
prisão do depositário infiel”.81 Para a Corte Suprema, desde a adesão
sem reservas do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica e ao Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 1992, “não há mais
base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial
desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar
específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição,
porém acima da legislação interna”.82 É o que se denomina de status
normativo supralegal, que tem o condão de “tornar inaplicável toda a
legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou
posterior ao ato de adesão”.83 Assim sendo, não se pode mais efetuar a
prisão do depositário infiel no Brasil, em qualquer de suas modalidades.
Em síntese, o Supremo Tribunal Federal, ao conferir status supralegal
aos tratados de direitos humanos não aprovados na forma do §3º do art. 5º da
Constituição, estabeleceu a não-subsistência “da prisão civil por infidelidade
81
Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 87.585, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em
3-12-2008, Plenário, DJE de 26-6-2009.
82
Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, voto
do Min. Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de 5-6-2009. No mesmo sentido: HC 98.893-MC, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 9-6-2009, DJE
de 15-6-2009; RE 349.703, Rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2008, Plenário,
DJE de 5-6-2009. Em sentido contrário: HC 72.131, Rel. p/ o ac. Min. Moreira Alves, julgamento
em 23-11-1995, Plenário, DJ de 1º-8-2003. Vide: HC 84.484, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento
em 30-11-2004, Primeira Turma, DJ de 7-10-2005.
83
Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, voto do
Min. Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de 5-6-2009.
368
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
depositária, independentemente da modalidade de depósito, trate-se de
depósito voluntário (convencional) ou cuide-se de depósito necessário,
como o é o depósito judicial”.84 Com fundamento em tal jurisprudência,
editou o Supremo Tribunal Federal a Súmula Vinculante nº 25, que dispõe:
“É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade
do depósito” – o que equivale a dizer que a referida Súmula vincula toda
a Administração Pública direta e indireta, federal, estadual e municipal, e
todos os órgãos do Poder Judiciário federal e estadual.
No entanto, a despeito da decisão do Supremo Tribunal Federal
sobre o status normativo conferido aos tratados de direitos humanos
aprovados anteriormente à edição da Emenda à Constituição nº 45/04,
que implicou a impossibilidade da prisão do depositário infiel, entendese que o Pacto de São José da Costa Rica não se aplica à hipótese de
prisão do depositário infiel, mas à prisão civil por dívidas.
Não há que se falar de conflito entre a Constituição Federal e o
Pacto de São José da Costa Rica. Nesse sentido, a proibição da prisão civil
se aplicaria somente aos contratos de alienação fiduciária em garantia.
Essa hipótese, sim, remete à prisão civil por dívidas, como visto, e não
ao instituto do depositário infiel. Não foi esse, todavia, o entendimento
prevalecente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Conclusão
A constante necessidade de conferir-se efetividade à proteção
dos direitos humanos, no âmbito interno e no internacional, exige uma
alteração no status normativo conferido aos tratados de direitos humanos
dentro da ordem jurídica brasileira. Não há negar-se que o §3º do art.
5º trouxe a possibilidade de alguns tratados de direitos humanos serem
equivalentes às propostas de emendas à Constituição. No entanto, tal
84
Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 90.450, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em
23-9-2008, Segunda Turma, DJE de 6-2-2009.
369
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
alteração ainda é inócua para conferir aos direitos humanos um status
privilegiado dentro do ordenamento jurídico pátrio.
É necessário que todos os tratados de direitos humanos tenham
status constitucional. De outra parte o Supremo Tribunal Federal conferiu
status de norma supralegal aos tratados de direitos humanos não aprovados
na forma prevista no §3º do art.5 º da Constituição de 1988. Criouse, assim, uma nova espécie normativa, que tem hierarquia normativa
superior às leis ordinárias, mas inferior às normas constitucionais.
Essas alterações levadas a efeito tanto no Texto Constitucional,
como na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tiveram impacto
direto no caso da prisão civil do depositário infiel, pois o Pacto de São
José da Costa Rica veda a prisão por dividas e a Constituição Federal de
1988 permite. O Supremo Tribunal Federal em face da alteração de sua
jurisprudência fixou entendimento no sentido de que não é permitida a
prisão do depositário infiel em face do caráter supralegal do Pacto de
São José da Costa Rica, que a despeito de aparentemente conflitar com
o teor da Constituição, tem o condão de obstar a aplicação da legislação
infraconstitucional que regulamenta a prisão civil do depositário infiel.
Contudo, em face de todo o exposto verifica-se que não há conflito
entre o texto da Constituição de 1988 e o Pacto de São José da Costa Rica
no tocante à prisão civil do depositário infiel. Isso decorre do fato de o
depositário infiel não ser preso em razão da existência de uma divida,
mas sim em virtude da recusa em devolver o bem que lhe foi confiado.
O bem juridicamente protegido aqui é a relação de confiança existente
entre as partes. Nesse sentido, tem-se que a prisão civil não é uma pena,
mas sim um meio de coerção que visa compelir o devedor a devolver o
bem que lhe foi confiado.
Já no caso da prisão civil por dividas, precipuamente do depósito
em razão dos contratos de alienação fiduciária em garantia a prisão objetiva
assegurar o pagamento de uma divida. Tal divida inexiste no caso do
depositário infiel. Trata-se de situações distintas. Nesse particular tem-se
370
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
que o Pacto de São José da Costa Rica não conflita com a Constituição
de 1988, pois os bens tutelados são distintos. Portanto, permanece válida
a prisão civil do depositário infiel constitucionalmente assegurada.
Destarte, faz-se imprescindível uma jurisprudência mais
adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas
principalmente à proteção da dignidade da pessoa humana e à preservação
de valores comuns aos Estados.
371
FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho
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