FILOSOFIA DO DIREITO: Estudos em Homenagem a Willis Santiago Guerra Filho Marcelo Luis Roland Zovico Organizador FILOSOFIA DO DIREITO: Estudos em Homenagem a Willis Santiago Guerra Filho Apoio: 2012 São Paulo - SP Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Nossos Contatos São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.br Redes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica Zovico, Marcelo Roland (organizador) Filosofia do Direito: Estudos em Homenagem a Willis Santiago Guerra Filho. – São Paulo: Clássica, 2012. recurso digital Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-99651-55-1 (recurso eletrônico) 1.Filosofia do direito. 5. Livros eletrônicos. I. Título. CDU: 340 EDITORA CLÁSSICA Conselho Editorial Alexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros Vita José Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Leonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão Luiz Eduardo Gunther Equipe Editorial Editora Responsável: Verônica Gottgtroy Produção Editorial: Editora Clássica Revisão: Lara Bósio Capa: Editora Clássica Luisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Séllos Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos Esta licença permite que outros façam download das obras licenciadas e as compartilhem, contanto que mencionem o autor, mas sem poder modificar a obra de nenhuma forma, nem utilizá-la para fins comerciais. Prefácio Willis Santiago Guerra Filho Caminhos potentes da filosofia brasileira Belmiro Jorge Patto O nome já desvela o que se poderia supor, nesta vontade guerreira, qual filho do trovão, a justeza das idéias. E aí está o seu nome! Aí está o seu ethos; raro, dos poucos que sabem do assombro do mundo. Nômade de uma trajetória brilhante, ilumina aquilo que está aí, mas obnubilado aos olhos incautos. Sua obra agiganta a imagem do pensamento sempre em busca da atualização, maquinando novos agenciamentos capazes de devolver as potências da vida nesta atividade nobiliárquica, ainda tão desprezada nestes sertões veredas. Pensar a vida que nos faz pensar, encontrar clareiras, ainda que não sejam. Uma profícua ficção de sentidos, e tudo ganha novas cores e formas que brevemente serão transformadas em outras expressões. Capaz da vertigem da memória nos arquivos mais recônditos está sempre à velocidade da luz, atemporalizado, devindo Ereigins. Mas não se para de pensar nas dobras, neste dentro e fora do pensamento que suas intensões nos fazem agenciar, buscando sempre novos sentidos na caminhada. Esta via – filosófica – é difícil de trilhar em muitos sentidos. Suas encruzilhadas são constantes, é tudo muito mal sinalizado e pode-se perder facilmente o referencial. De outro lado os transeuntes nem sempre deixaram de ser bárbaros. Por isso é necessário mesmo ser guerreiro de tradição. Sua verve ancestral denuncia a gravidade e a leveza de seu pensamento. Literato dos espaços e dos movimentos sua pena devém pássaro nas linhas de fuga dos seus vôos acrobáticos. Nada escapa ao seu afeto apaixonado na hora de pensar, e que cinco horas da tarde. Tem também as noites dessa via. Sua poética, que vira de ponta cabeça a vida e o mundo; que chacoalha as malhas e os nós lança os dados e investe o jogo de uma outra dimensão: aquela onde o humano é mais e é também menos, quântico dos cânticos. E também pode ser música, geometria, aritmética, astronomia, as quatro vias da liberdade, e as outras três que iniciam. Tudo isso é dito e feito neste calor que se agita no fogo do encontro. Caminhos que caminham. Alice no país das maravilhas, um tempo absurdado que pula e não corre. Paradoxos de Zeno na via diferencial. Parresiasta total, assume o risco da verdade na filia das suas idéias. Comprometido com a vida, sua arte é plena de positividade, criadora, constituinte de mundos possíveis para o povo por vir. Já esteve do outro lado da via, no múltiplo sentido da via que nos atravessa e arrasta. Sem medo ou delongas rasga as fronteiras dos limites estabelecidos não por gosto ou ressentimento, mas por necessidade de espaço para nomadizar, para desejar. Ensinar a aprender, talvez a missão impossível que acaba se efetivando no horizonte do não sabido. Sonhar a vida que se quer, fazer a vida acontecer na potência dos agenciamentos, experimentar os mundos. Para os incrédulos encarquilhados, a Terra há de comer. Vieste mesmo do fogo, sem medo da morte: Fênix do pensamento. Poderia mesmo ser um manifesto antropofágico, seria merecido também. Neste palco também se atua com desenvoltura, metamorfoseando a larva dos nossos pensamentos larvares. Paredes que construímos sem qualquer ciência, entulhos que juntamos que nos oprimem e deprimem. Romper os gases e os fluxos, sair para o passeio esquizo do pensamento que não julga, acontece. Autofagia do pensamento que complica a matéria para criar imagens e sentidos, vivências e temporalidades. Outridade do pensamento filosófico que retorse o direito e devém justiça. Húmus da terra de ninguém, veio de alguma riqueza desconhecida, o pensamento desliza os platôs da certeza e nomadiza os desejos. Nem chefe nem juiz. E já não se tem qualquer dúvida de que existe uma filosofia brasileira, e não nos interessa saber das grandezas de um pretenso primeiro lugar, somente as potências do pensar criador de mundos melhores, amorais, porque construídos na diferença e na intensidade dos afetos, dos perceptos, dos conceitos. E quantas problemáticas são capazes de fazer uma filosofia? São inúmeras, talvez infinitas para o espaço/tempo de uma vida. Mas nem por isso se vai recusar a tarefa de fazer filosofia. Seu dom e sua vocação, sua voz. Mas não se trata de apologia nem elegia, somente a constatação de uma força que nos atravessa e nos obriga a pensar. Questionamentos que inquietam nossa alma em direção ao movimento constante. Nomadizar o pensamento para agenciar novos encontros: acontecimento! Vem de longe sua peregrinação portentosa de uma coleção quase que inenarrável de expressões inovadoras que agitam a cena do pensamento jurídico nacional. Transversal em todas suas empreitadas, desde logo já anunciava não a novidade, mas a criação. Autopoiético, sem dúvida; poético, com certeza. Filósofo pleno de incertezas, erros e descaminhos que faz dessas características sua maior arma em prol do pensamento. Humildade socrática, humor cínico, coragem espartana, tudo isso se pode encontrar nos agenciamentos de sua filosofia que não renega a tropicalidade do calor entrópico. Quem já presenciou suas intervenções fica marcado com o fogo do acontecimento assombroso. Já se sabe no estar aí, no devir potente do eterno retorno, nas dobras de um sistema autopoiético, na vertigem dos vapores da aurora de uma grande aventura. Não se indicam caminhos nem soluções, isto seria mais a função de um professor. O que se passa na indeterminação de um encontro que dá ensejo ao pensamento, aí está seu milieu. E poderia até ser peripateticamente, se isto ainda fosse permitido neste mundo que se construiu cheio de cercas e paredes. E na verdade é mesmo o passeio do esquizo que faz com que suas aulas sejam o que são: puro desejo fluindo e arrebatando o pensamento. Multiplicidades que nunca se reduzem ao duplo falso mestre/aluno, não, nada disso. Do que se trata é da delicadeza do que passa entre os corpos, seus afetos, suas paixões que criam espaço/tempo e ancoram um ponto essencial no pluriverso das idéias. Já não há pessoas, sujeitos, mas hecceidades. E tudo isso também pode incomodar. E que deliciosa incumbência para o filósofo, não como um centro de agitação, mas como caixa de ressonâncias; porque como se sabe, são elas as criadoras de mundos. Um demiurgo que converge as forças divergentes da Natureza, e já não se sabe em que sentido se faz esta distinção arbitrária entre passado/presente/futuro: a Grécia Antiga como um grande acelerador de partículas. Dobras do espaço/tempo. E é nelas que se instala a criação criadora, a retorsão. Recusar pensar na representação, agenciar movimentos díspares como o direito e as funções biológicas, ou mesmo a quântica da proporcionalidade. Inserir a poética na política como potência da vida, não se deixar cooptar pelas forças territorializadoras do poder neurótico da substancialização, guerrear sempre, nomadizar os fluxos para fazer surgir outras imagens do pensamento, atualizar as ficções. Seria apequenar as trajetórias citar títulos, produções, números quantitativos que interessam às estatísticas do cálculo racional. Mais interessante nos parece buscar a intensidade do que se passa enquanto passa. A passagem, seja aquela de Whitehead ou de Don Juan, buscar na vida o que pode a filosofia, sair da caverna e entrar nos túneis do espaço/tempo/pensamento das fitas de Möbius, dos sons das Musas, dos mundos dos Deuses. Religar os pontos nos cortes de Dedekind onde a reta se curva. Fazer paradoxos na matrix filosófica, dar testemunho da própria vida para acender o fogo da filosofia. Fricção ou ficção, já não há grande diferença, pois é justamente nestas distinções menores que se começa a pensar, a retorser, a dobrar, a deslocar este centro ilusório que nos aprisiona em sujeitos, leis, hierarquias, cavernas. E também não se trata de luz, mas das cores do pensamento, suas freqüências, seus graus de dissolubilidade que nunca tendem ao branco. Deixar borrar o pensamento nas bordas das sombras que possibilitam os volumes que fazem erigir os blocos de sensações: afetos. Desejar o outro do pensamento do outro, humanizar. Fazer direito ainda que por caminhos tortos porque somos humanos, seres improváveis, anti-natureza da natureza, autopoiésis. É na busca que se descobre o caminho que começa sempre pelo meio porque não há começo ou fim, deserto profícuo de imensidões que somente o pensamento pode dar conta. Não platonicamente, nomadicamente. Atravessar o deserto semeando os manás da filosofia de uma vida inteira, constituir oásis não como paraísos, mas como lugares provisórios onde se bebe a água da inquietude que ferve ao fogo do conhecimento. Ebulir na caminhada e quem sabe fazer chover no deserto. E já aqui se dobra o pensamento em busca de pajés e tambores ancestrais, os logos potentes da percussão dos sonhos tropicais. Atabaques e tacapes no horizonte do guerreiro incansável que cruza terreiros e retoma as flechas de seus Orixás qual um Zaratustra equatorial. Redescobrir o Brasil do lixo ocidental, desmacunaimizar as brasas desse território inóspito, de tantas riquezas naturais. Buscar na selva o pensamento que agencia outras naturezas, outros devires. Encontrar os povos, democratizar. Tudo isso é sim inerente ao pensar filosófico. Por certo poderia parecer uma sandice tropicalista, aos olhos de gélidos pensadores encarquilhados em seus departamentos universitários. Mas, justamente, quem já viveu os múltiplos caminhos da vida filosófica é que poderia avaliar à distância, quais as retorsões mais potentes. Constatar a morte do centro já não é novidade, o que se busca é a criação na repetição da diferença nas dobras do pensamento. O que se busca não é interpretar, mas experienciar. A vida filosófica de Willis Santiago Guerra Filho é testemunho vivo das potências do pensamento brasileiro. O pensamento ainda não morreu! Apresentação Faltam-me palavras para expressar o misto de honra, satisfação e gratidão que sinto ao publicar este pequeno projeto, dedicado a homenagear o estimado professor, orientador e amigo, Dr. Willis Santiago Guerra Filho. É, em verdade, uma ideia antiga, que há algum tempo vínhamos maturando, mas que, agora, na condição de Presidente da Associação de Pós-Graduandos da PUC/SP, com o apoio de colegas, parceiros e amigos, tenho a grata oportunidade de concretizar. Trata-se de homenagem mais que merecida e, porque não dizer talvez até tardia. Há muito tempo o professor e filósofo – renomado e conhecido em todo o Brasil e também internacionalmente – Willis Santiago Guerra Filho, está a merecer um tributo, por sua inestimável contribuição acadêmica. Willis é professor inato, que, além de arguto pesquisador e filósofo, compartilha com seus alunos a sua amizade e as suas experiências, encantando a todos com sua forma ímpar de ministrar aulas. Além disso, é orientador dedicado, fiel amigo. Tais predicados, e tantos outros aqui não referidos, fazem do homenageado uma figura humana muito querida por todos. As contribuições aqui trazidas não têm a pretensão de esgotar os temas discutidos, mas apenas marcar e expressar a profunda admiração que todos nós – os que aqui escreveram e também todos seus demais alunos, atuais e antigos, que não puderam contribuir para esta singela homenagem – nutrimos pelo mestre. Ao professor Willis, só tenho a dizer: muito obrigado pelas lições, pelas oportunidades e pelo compartilhar. A todos os que para esta obra contribuíram, igualmente registro a minha mais sincera e profunda gratidão. E ao público leitor desejo, profundamente, que possam usufruir dos textos aqui escritos, em torno de uma única temática: a admiração mútua ao professor e amigo Willis Santiago Guerra Filho. E que esta seja a primeira homenagem, de muitas outras que hão de vir! São Paulo, outubro de 2012. Marcelo Luis Roland Zovico Presidente da Associação de Pós-Graduandos da PUC/SP Sumário O HOMENAGEADO PELO HOMENAGEADO Entrevista com o professor Willis Santiago Guerra Filho por Paola Cantarini.......................................................................... 16 1. O DIÁLOGO ENTRE UM FILÓSOFO E UM JURISTACONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO IX – O DIREITO CRIMINAL NA OBRA “AS LEIS” DE PLATÃO Álvaro de Azevedo Gonzaga e Marco Aurélio Florêncio Filho........... 32 2. A EVOLUÇÃO SOCIAL E A EVOLUÇÃO DO DIREITO CONFORME O MODELO HABERMASIANO Andréia Fogaça Maricato................................................................ 43 3. CONSTITUCIONALISMO TRADICIONAL E CONSTITUCIONALISMO MODERNO: UMA ABORDAGEM CONFORME O PENSAMENTO DE JOSÉ PEDRO GALVÃO DE SOUSA Anthony Tannus Wright ................................................................. 65 4. ENSAIO SOBRE DIREITO E CIDADANIA NA CULTURA POPULAR Belmiro Jorge Patto ........................................................................ 95 5. O DILEMA ENTRE A POÉTICA E O MERCADO JURÍDICO Gustavo S. Paulino........................................................................... 117 6. DIREITO, DOMINAÇÃO E VIOLÊNCIA: PARA UM DIÁLOGO SOBRE AS POSSIBILIDADES DE UMA TEORIA POLÍTICA DO DIREITO Henrique Garbellini Carnio............................................................. 130 7. A HERMENÊUTICA JURÍDICA NA PERSPECTIVA PÓS-POSITIVISTA: A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS Haradja Torrens............................................................................... 143 8. UM MODO DE OLHAR E SITUAR O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE Joaquim Eduardo Pereira ................................................................ 168 9. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DOS DIREITOS HUMANOS Keilla Ellen Borges ........................................................................ 186 10. “ÉDIPO REI” DE SÓFOCLES E A VERDADE SEGUNDO HEIDEGGER Márcia Regina Pitta Lopes Aquino .................................................. 224 11. DIVINDADE NO BBB: MITO OU REALIDADE? Roberta Lopes da Cruz Antonio....................................................... 248 12. A SOCIEDADE DO RISCO NA PERSPECTIVA DE NIKLAS LUHMANN Marcelo Luis Roland Zovico.....................,..................................... 263 13. (NEO)CONSTITUCIONALISMO E PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: ALGUMAS REFLEXÕES DE RELEVO Samantha Ribeiro Meyer-Pflug e Mônica Bonetti Couto.............. 276 14. O DIREITO E O CIBERESPAÇO Tiago Janini....................................................................................... 297 15. JUSTIÇA E BEM COMUM Victor Emanuel Vilela Barbuy....................................................... 316 16. O ESTADO CONSTITUCIONAL COOPERATIVO E A PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL: A EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL DO STF Vladmir Oliveira da Silveira e Samantha Ribeiro Meyer-Pflug.......................................................................................... 343 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho O HOMENAGEADO PELO HOMENAGEADO Entrevista com o professor Dr. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Livredocente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Ceará. Doutor em Ciência do Direito pela Universität Bielefeld, Alemanha. Doutor e Pós-doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor nos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP -, onde coordena o Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos, e também do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Cândido Mendes no Rio de Janeiro – UCAM. Pesquisador das Universidades Paulista (UNIP) e Presbiteriana Mackenzie. Paola Cantarini – Em seu mais novo artigo “Primórdios e Atualidade da Luta pela Constitucionalização no Brasil: Considerações filosóficas no Bicentenário da Constituição de Cádiz”, o professor ressalta o papel do filósofo, na interpretação do direito. Poderia explicar melhor tal relação com a frase, que consta do trabalho “no tempo histórico, futuro é passado”. WSGF – Esta frase é de Kosseleck, professor da universidade de Bielefeld, ainda na época em que fiz meu doutoramento lá. Ele era uma das estrelas, das maiores, só não era maior do que o Luhmann, e antes deles, o Norbert Elias. Bem, como acho que você sabe, deles a minha ligação era com o Luhmann; a frase referida, como o pensamento do autor, é de proveniência heideggeriana; significa que em geral só vivemos o que tínhamos como possível de ser vivido. Logo, ela revela a nossa triste condição de eternamente reviver o passado – mas essa tristeza precisa ser 16 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho transformada em um sentimento que nos eleve, ao invés de abater, pelo que Friedrich Nietzsche chama de amor fati, e justamente diante desse que considera o maior pensamento que o acometeu, o do eterno retorno do mesmo. Paola Cantarini – Por quê? Não entendi o reviver o passado, assim como também não entendo, e gostaria de entender, essa ideia do Nietzsche, esse tipo de amor, ao fado, ao destino... WSGF – É como o direito que pretende regular o futuro, o que vai acontecer. E ele faz isso como? A partir do que já aconteceu no passado; essa para mim, no momento é a principal questão da filosofia do direito. Eu cunhei neste artigo a que você se refere, para nominar esta ação do direito, o verbo retroprojetar, ou seja, projetar no futuro o passado, o que está atrás, retro. Portanto, não tem nada a ver com este simpático aparelho em vias de extinção, o retroprojetor (risos). E o amor fati é uma ideia com uma clara descendência estoica, reproposta no contexto do pensamento nietzscheano por alguém que, é preciso lembrar, sofreu muito, física e afetivamente, e que mesmo assim identificava no dionisíaco o sentido da vida. Paola Cantarini – Depois queria voltar a esse ponto, mas agora não, mais para o final. Então, no mesmo artigo, o professor ressalta a relação do direito e o tempo. Poderia melhor explicitar tal relação, de acordo com sua perspectiva e se teve influência da obra Sein und Zeit, de Martin Heidegger. WSGF – Sim, claro, porém, Heidegger é um autor-chave, para mim, para o Foucault, como ele mesmo diz em uma de suas entrevistas, para toda a chamada filosofia continental contemporânea, a que não é analítica, pois esta se referencia em Wittgenstein – que tem Frege antes dele, assim como Heidegger tem Husserl, não esqueçamos. Mas neste artigo de que você fala, dentre outras coisas, e num lugar, talvez inapropriado, ou, no mínimo, inusitado - por não ser um texto que tenha nascido da filosofia, mas que eu o criei como se tivesse –, enfim, nele procuro mostrar o 17 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho quanto Heidegger deve a Kant, o da primeira edição da crítica da razão pura, o que colocou a imaginação como a faculdade primordial, anterior e superior à própria razão. Paola Cantarini – A passagem é a seguinte: “(...) Mas agora nos interessa realizar uma reflexão jusfilosófica, que nos leve adiante na compreensão do que seria o seu tema central, isto é, o modo de ser do Direito. E nesse sentido fica patenteada a relação ontológica que ele guarda com o tempo, donde se poder verificar o quanto o ser do direito, tal como o ser em geral é (no) tempo, uma perspectiva que foi consagrada na – e consagrou a – obra Sein und Zeit, de Martin Heidegger, publicada em 1927, causando grande impacto, embora assista em nosso modo de ver toda razão a este mesmo A., quando em obra publicada no ano seguinte, Kant e o Problema da Metafísica, credita a Kant – ainda que para kantianos de estrita observância numa jogada de criação retrospectiva das condições para legitimar o seu próprio pensamento – o mérito maior por esta descoberta filosófica. (...)”. WSGF – Sim, é isso – dá vontade de continuar falando do que vem na sequência, mas o texto está aí para quem quiser conferir, não? Aliás, está destinado a uma coletânea que organiza meu Mestre e amigo Paulo Bonavides, mas está às ordens de vocês. para divulgá-lo por aqui, pois tem lá colocações que eu gostaria de ver em discussão o quanto antes, as que são pertinentes à nossa atualidade e, mais especificamente, a “Comissão da Verdade”. Paola Cantarini – Segundo o professor, em outros textos, como a tese de filosofia defendida no final do ano passado no IFCS-UFRJ e também naqueles de psicanálise, tal como os entendi, o Direito seria criado para justificar nosso desejo de nos preservar a vida, a nossa e a dos outros sem que saibamos o porquê. Essa é nossa herança, o legado que recebemos e repassamos, a nossa Lei: a letra que somos, que nos obriga e liberta, sendo, por ambos os motivos, e em seu duplo sentido, de se comemorar. Por nos obrigar a libertar, de que? Estranha essa ideia de 18 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho uma obrigação de ser livre; e é de se comemorar em que sentido? WSGF – O desejo é regulado pelo direito, mas, a regra é que produz o desejo, então, sem regra, não há desejo, a regra existe para criar o desejo. O desejo é a verdade da regra, a regra é o desejo externalizado. E exatamente é uma confirmação do que eu disse antes, a propósito do Nietzsche, do amor fati, pois é o que nos torna humanos, essa regra ou Lei, que barrando os instintos nos liberta deles, produzindo o desejo em seu lugar. Só que, para continuarmos com Nietzsche, não podemos nos acomodar em sermos apenas “humanos, demasiado humanos”, temos de ir além, em direção ao que está além, mas aqui, não no além, sendo o que ele chama de Ubermensch, “super-homem”, que melhor se traduzirá por “além-do-homem”, pois o desejo é infinito e sem objeto pré-determinado, está para além de toda determinação e condicionamento, é a liberdade, e se nós o fixarmos, estagnamos, apodrecemos, morremos, ainda em vida – são os “sepulcros caiados”, de que falava Jesus Cristo, a propósito dos fariseus, dos que viviam para a Lei, e não pela Lei, como muitos de nós, cristãos, ateus ou de outras crenças. Paola Cantarini – E o sonho? Também seria superior ao que vivemos acordados? Acho que Nietzsche diria que sim. Poderia explicar o entendimento do professor, de que vivemos um direito sonâmbulo, da natureza da ordem do desejo, função do desejo (e não da vontade ou da necessidade, do utilitarismo), possuindo o mesmo estatuto dos sonhos, isto é, um caráter onírico; há relação com a “poética dos sonhos (rêverie)” de Bachelard, para quem: “Um mundo se forma em nossos sonhos, um mundo que é nosso mundo. E esse mundo sonhado nos ensina possibilidades de crescimento de nosso ser nesse universo que é nosso”? Assim, o sonhar também permitiria ter experiências sem limites, nos ensina a liberdade, é isso? WSGF – Sim, e eu sou mesmo muito influenciado pelo Bachelard, como, aliás, muita gente, sem que dê margem a que se perceba, e aí talvez eu mesmo me inclua, mas é que talvez também essa seja uma 19 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho característica de obras como a dele, de reviver ou reacordar em nós o que lá já estava, adormecido, e daí temos como nosso mesmo. Eu adoro ele há muito tempo, mas a primeira frase que você cita é de outro que também curto há muito tempo, o Oswald de Andrade, está no Manifesto Antropófago, de 1922. O resto é meu, eu assumo, e espero que com a resposta dada à questão anterior possa ter ficado mais claro, sem também querer esclarecer demais, pois uma certa obscuridade é o que favorece o sono e o sonho, a interpretação de cada um. Eu diria que sua pergunta já dá pistas suficientes para uma resposta também suficiente. Paola Cantarini – Gostaria então que o professor comentasse a frase de Foucault concluindo seu livro “O governo de si e dos outros”, objeto de seu curso de filosofia do direito este semestre no mestrado da PUC-SP: “A parresía filosófica que joga nesse diálogo entre o mestre e o discípulo, conduz não a uma retórica, mas a uma erótica”. (“O governo de si e dos outros”. São Paulo: Editora Martins Fontes. 2ª. ed., 2011). No mesmo sentido: “(...) o erotismo, é, na realidade, um mundo com existência própria”. (“Reflexões sobre o problema do amor e o erotismo. Lou Andreas- Salomé, São Paulo: Landy. 2005, Contracapa) E tem ainda, me permitindo uma referência mais forte, “a chama da filosofia se acenderá sempre na chama do esperma e nos templos ela não será apagada, ainda que mil seres supremos se agitem para lhe sufocar a centelha”. (Marquês de Sade,citado em “Sade contra o ser supremo”, Philippe Sollers. Tradução Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade, 2001). WSGF – Sim, claro, porque não – já Platão dizia algo semelhante, na Carta VII, sobre a necessidade da fricção entre as almas para produzir a chama do conhecimento, e uma alma não pode se friccionar com outra se não for pelo corpo, pois ele está falado do que ocorreria aqui no plano das almas encarnadas (risos). Bem, no erotismo é como no sonho – lembro que ainda estamos no universo nietzscheano, pois a autora que você menciona, como sabemos, foi um grande amor dele, para quem teria 20 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho escrito o “Assim falou Zarathustra”, pelo menos a primeira versão, depois ele acrescentou uma outra parte, menos poética e mais filosófica. Eu citaria o Bataille para fazer uma ponte entre o Foucault e os já chamados de divinos, Platão e o Marquês, ao associar o erotismo com o sagrado, já que o chamado “último Foucault”, o da época a que você se refere, para surpresa de seus seguidores, mostrou-se mais espiritualizado, talvez pelo enfrentamento da doença mortal que o acometia; o Marquês era um naturalista, assim como talvez também o fosse Platão, o da “doutrina esotérica”, transmitida só no contato pessoal, com seus discípulos, tal como Aristóteles, que seria, assim, mais seguidor de seu Mestre do que a tradição nos fez – e faz - acreditar. Paola Cantarini – O Sade tem mais jeito de ser um anarquista... WSGF – Sim, um anarquista e um naturalista, antissocial. Paola Cantarini – No entendimento do professor haveria, talvez, uma relação entre a parresía e a literatura; e entre a parresía e o pensamento de Nietzsche? WSGF – O parresiasta, aquele que se utiliza da parresía, é no entender de Foucault “o homem verídico, isto é aquele que tem a coragem de arriscar o dizer-a-verdade num pacto consigo mesmo”, podendo sim ser associado tal conceito à veridicidade nietzschiana, que seria uma certa maneira de fazer agir essa noção, cuja origem remota se encontra na noção de parresía como risco para quem a enuncia. Logo, tem sim relação com Nietzsche, que, de resto, é um – quase o - autor que Foucault reivindica como seu avatar. Lembremos que Nietzsche proclamava a necessidade da aventura, de correr riscos, para se obter um aprendizado que de outro modo não conseguimos, confortavelmente instalados em nossas cadeiras ou poltronas de estudo. Paola Cantarini – Gostaria então que o professor explicasse melhor o conceito da expressão abaixo, que aparece no seu comentário sobre o Manifesto Antropófago - de qual tabu se trata e de qual transformação? “É o tempo mítico, conceituado por Lévi-Strauss, em sua antropologia 21 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho estrutural, como abrangente do passado, presente e futuro... ‘Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem’”. WSGF – É mais uma citação do manifesto nonagenário, correlacionando com o Lévi-Strauss, que em seu clássico “Estruturas Elementares do Parentesco” disse ser a lei que proíbe o incesto, sobretudo com a mãe, a primeira norma, verdadeiramente universal, a que se encontra em qualquer sociedade humana, sendo por isso a que é, a um só tempo, social e natural. Claro que isso tem a ver com o Freud, a quem o Oswald está citando, que muito antes e de outra perspectiva, informado por uma antropologia mais antiga, em sua obra “Totem e Tabu”, para explicar a universalidade do complexo de Édipo, afirmara algo muito próximo do que dirá Lévi-Strauss e, antes do próprio Freud, um outro autor, muito apreciado por Oswald, e também pelo Nietzsche, um jurista alemão do século XIX, Bachofen, o autor de “Mutterrecht”, “Direito Materno”, em que postula a origem matriarcal da sociedade, bem na linha do que dirá depois o Freud naquele livro. Enfim, o que é proibido, como tabu, e louvado, idolatrado, como totem, “tampona” a origem de nosso desejo, a nossa origem, de seres antinaturais, sociais, portanto, sim, mas por conveniência e convenção. Paola Cantarini – Para o professor qual seria o desejo de direito e de vida que temos? Entende ser a felicidade, assim como o era para Oswald de Andrade, quando proclama também no Manifesto “A alegria é a prova dos nove”? Não poderia ser o amor? WSGF – É, se for um amor alegre – nada de paixões tristes, como diria Spinoza. “Amor, humor” – essa eu já não lembro se é do Oswald ou da montagem do Manifesto Antropófago pelo Teatro Oficina, da qual participei, pelo menos da versão que foi para a FLIP do ano passado... Paola Cantarini – Quando o professor alude a uma das finalidades do ensino voltado às artes, ao teatro, ao possibilitar o contato da dor, ódio, a fusão cósmica de corpos, sensações, também todos estes contatos, trocas e buscas podem se dar fora da sala de aula, fora do teatro, em especial 22 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho nos relacionamentos humanos, na relação homem e mulher, onde apesar do trabalho profissional se enquadrar em tal perspectiva “perfeita”, não se verifica o mesmo interesse em se buscar o mesmo no resto da vida, com os demais relacionamentos? WSGF – Na verdade, a ideia é reduzir mesmo essa distância entre a sala de aula e a vida lá fora, trazer a vida para dentro da sala de aula, e transformar as aulas em lições de vida – mesmo, ou porque não dizer, sobretudo, em se tratando de aulas de direito, ou, pelo menos, de filosofia do direito, pois eu sei que se forem de direito administrativo fica mais difícil, mas por que não? (risos) Teria de tentar, para que o direito fique a serviço da vida, boa, a que se pode ter depois de avançar no aprendizado sobre o próprio desejo. Paola Cantarini – No “Manifesto” escrito com seu amigo e grande filósofo do direito, lamentavelmente falecido, Luis Alberto Warat, os professores fazem forte e direta crítica ao autoritarismo no ensino e sua estrutura formal, dominada pelo capitalismo, afetando à liberdade de cátedra, de estudo, e criando obstáculos ao alcance do verdadeiro conhecimento, fazendo menção ao ensino encontrado em diversas fontes, como nas ruas, nas comunidades, e no teatro – citam a Oficina, e também um cineasta que não é conhecido -, voltado a “uma vivência mais real, mais forte, como vivência mesmo”. Como superar o sistema capitalista que continua vigente, ainda mais por ser um sintoma global? Como humanizá-lo? É a proposta de dois outros amigos seus, os professores Ricardo Sayeg e Wagner Balera, que me parece conta com seu apoio... WSGF – Bem, são muitas perguntas em uma só. Começando pelo Manifesto que escrevi com o meu fraternal amigo Luis Alberto Warat, alguém que politicamente estava muito próximo do anarquismo, inclusive de maneira cada vez mais assumida por aquela época em que escrevemos o texto – que vem de ser publicado em livro lançado no corrente mês de maio, em Fortaleza, comemorativo da primeira década de existência do curso de direito da Faculdade Christus. O cineasta a que você se refere era 23 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho um dos artistas que por aqueles dias circulavam em torno dele, dos que estavam querendo levar para o Rio a proposta do Cabaret Macunaíma, incluindo filmagens. Era – ou é - um baiano, apesar do sobrenome cearense, o Luis Alencar, que propunha um cinema radical e lembro que na época desenvolvia algo abordando o tema da zoofilia – o Warat se encantou com o rapaz, que tinha uma verve glauberrochiana. Não sei o que foi feito dele, se realizou o projeto, mas as experiências requeridas parece que ele já estava fazendo (risos). E isso pode ser relacionado ao capitalismo, com a concepção antropológica que lhe é subjacente, do homem como um ser de interesses gerados por necessidades, tal como os animais, donde a necessidade de humanizá-lo, o que tanto pode ser visto de maneira mais reformista, numa perspectiva cristã, católica – lembremos que a ideia de “ecclesia semper reformanda est”, depois do Concílio Vaticano II, passou também para a igreja romana -, como é aquela dos igualmente fraternais amigos paulistas que propuseram o Capitalismo Humanista, e daí o que se busca é a compatibilização dos conflitos, digamos principiológicos, no campo do direito econômico, em face dos direitos humanos, ou de maneira antes revolucionária, como seria mais a linha do falecido pensador do direito argentino, naturalizado brasileiro, pela qual humanizar o capitalismo significa acabar com ele. De algum modo, vejo isso de uma maneira circular, em que os extremos do espectro ideológico se tocam. Paola Cantarini – As novas bases de sustentação da sociedade, a fim de que esta se mantenha íntegra, então, precisariam mesmo de alguma forma de ideologia seja a mitologia, a religião ou mesmo, mundividências filosóficas, reafirmando ou invertendo valores, ao invés de criar algum novo valor, para que este produza a afirmação de outros valores, em um círculo que não seria vicioso, mas virtuoso, é isso? WSGF – Sim, você pegou bem o “espírito da coisa”. Paola Cantarini – O poema de Charles Baudelaire abaixo põe também em relação opostos – a paixão, até o estupro, e o fato da alma nada arriscar na vida: 24 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho “se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada não bordaram ainda como desenhos finos a trama vã de nossos míseros destinos é que nossa alma arriscou pouco ou quase nada”. O poema acima fala da relação entre paixão e estupro, do sofrimento como condição para o desfrute dos prazeres, haveria alguma relação quanto à sua colocação em texto de seu livro Conceitos de Filosofia, o que fala em “... medo da morte, medo da vida, medo de transformação...¨, ao final, na última frase: ¨Tempo, morte, desejo: gozo”. WSGF – Bem, esse texto foi escrito para uma apresentação em Florianópolis, a convite do Warat, em um evento do que ele propunha à época, princípio dos anos 1990, como sendo uma “cinesofia”. Então, a gente discutia filosoficamente filmes. E normalmente a discussão se dava depois da exibição do filme, como hoje em dia se faz muito e tal. Só que eu escrevi aquele texto, “Tempo e Morte”, e li antes da apresentação do filme, que então seria visto da perspectiva proposta no texto, então os dois, texto e filme, formariam uma unidade de sentido, explicando-se mutuamente. Daí que a melhor explicação para o que consta no texto encontra-se no filme, “El Matador”, do Almodóvar – Você viu? Paola Cantarini – Não lembro. WSGF – É o do toureiro, manco e assassino, em que na cena final ele e a advogada dele terminam fazendo sexo, gozando e se matando... Paola Cantarini – Vou procurar p’ra ver, claro. Mas o professor hoje em dia está mais para o teatro do que para o cinema, não? Por que a proposta de teatraulas e não outras formas imaginárias, lúdicas, como a própria linguagem escrita ou outras formas de arte – pintura, escultura, música, dança? WSGF – Bem, as teatraulas que temos feito, dirigidas pelo Francisco Carlos, envolvem outras formas de arte, sobretudo a música, como também deverão se aprimorar no aspecto cenográfico, agora que estamos contando com o patrocínio, que esperamos seja duradouro e consistente, 25 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho do banco Santander – para o dia 23 de agosto está marcada a apresentação no Tucarena, com esse patrocínio, da “trilogia tebana”. Penso que por meio do teatro se pode vivenciar mais, em seu mundo artisticamente criado, do que na vida concreta, nos preparando melhor para ele, ao criar situações de possibilidades abertas, criando assim a sensação de poder realizar a constante transmutação que é inerente à vida, de que falo naquele artigo que comentamos na última pergunta, e em outros, posteriores, especificamente sobre as teatraulas, ou sobre o Kafka, pois foi trabalhando dramaturgicamente textos dele que comecei com a atriz que faz comigo as teatraulas, a Fabianna Serroni, essa pesquisa com o teatro, a performance. Paola Cantarini – Sim, e lembro que no texto sobre o Kafka está dito que o conhecimento só começa quando se deseja a morte, ou, o que seria o mesmo, no desejo de mudar de vida, de “cela” - que é também desejo de se pôr a caminho, de ser transportado, aventurar-se, isto é, consoante Kafka, o que seria representado pela cavalgada, em textos como “Desejo de virar Índio”. Então, que diferença faz o método de ensino, se não se teve já essa experiência? WSGF – Realmente, do que se trata é de provocar essa experiência, da qual nos afastamos cada vez mais, quando mais entramos por esse caminho da virtualização, da descorporificação, desmaterialização, que é o da sociedade atual, então a ideia central da teatraula, como também das oficinas de teatro, filosofia e literatura, a partir dos textos do Kafka, é corporificar e materializar o conhecimento, o que me parece a grande contribuição que uma sala de aula ainda pode trazer, e só algo assim pode trazer, nesses tempos de informações disponíveis de forma massiva para quem se concentrar na rede mundial de computadores. Paola Cantarini – Não seria mais um problema o retrocesso à animalidade, recuperando a sensibilidade, contrapondo-se ao que no texto sobre Kafka, também, é referido como a “alienação do próprio corpo, por força das ideias, em que tendemos cada vez mais a nos 26 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho tornarmos, deixando de ser reais, animais”, pois isso não implica no fato de que além da sensibilidade as demais características do retorno ao animal seriam incorporados, a ausência de limites, de moral? WSGF – Na verdade, o que proponho é que encontremos nosso lugar, como humanos, “entre o animal e o ideal”, quer dizer, que evitemos tanto o rebaixamento à animalização, como também desconectarmo-nos da “base física do espírito”, como consta do título de um livro de meu conterrâneo cearense e grande filósofo, Farias Brito, ou seja, alienarmonos em uma idealização, que tanto pode ser uma religião ou mesmo a ciência, e isso nos impeça de viver da melhor forma essa dificuldade, esse desafio, de horror e maravilha, que é sermos humanos. Paola Cantarini – A causa de tanto desconforto, que seria a vida desenraizada que levamos, e a busca pelo eterno gozar, para completar o vazio, o que nos falta e nos escapa, não poderia ser justamente o que se nega com o apelo ao dionisíaco (já que completamente dominado pelo deus, ficas-se alheio, indiferente aos outros, cedendo lugar aos impulsos do irracional)? O individualismo, que é negado tão fortemente pelo dionisíaco, pelo projeto de teatraula, não carrega em si mesmo um forte conteúdo individualista? Não é o que se pode concluir do trecho abaixo: “(..) A epifania de Dioniso não escapa apenas da limitação das formas, dos contornos visíveis. Ela se traduz por uma magia, uma maya que perturba as aparências. (...) ultrapassagem de todas as formas, jogo de aparências, confusão entre o ilusório e o real, a alteridade de Dioniso depende também do fato de através de sua epifania, todas as categorias ressaltadas, todas as oposições nítidas, que dão coerência à nossa visão de mundo, em vez de permanecerem distintas e exclusivas, se chamarem, se fundirem, passarem umas às outras.(..) quando o bando das Mênades entrega-se em conjunto ao frenesi orgiástico, cada participante agita-se por sua conta, sem preocupação com uma coreografia geral , indiferente ao que os outros fazem (...). Assim que o fiel entra na dança ele se encontra, como eleito, a sós com o deus, completamente submisso á 27 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho potência que o possui e o conduz à vontade” (“Ainda sobre Dioniso”, in: Mito e Tragédia na Grécia Antiga. Jean Pierre Vernant e Pierre Vidal Naquest. São Paulo: Perspectiva,1995, p. 343). WSGF – Bem, na teatraula ainda não rompemos com a separação entre público-espectador e apresentadores, embora dela faça parte o momento final, em que a assistência é convidada a se manifestar. Lá, ao mesmo tempo, nos interessa posicionarmos como retransmissores de uma tradição que se inicia no culto ao Dioniso, em um ato a um só tempo político, educacional e também religioso, além de artístico, claro, como eram as tragédias na Grécia antiga, em Atenas. Mas é muito difícil falar da teatraula, pois ela é antes de tudo uma experiência para se vivenciar, sendo o que recomendo a você e demais interessados em compreender a proposta. Paola Cantarini – Levando-se em conta Platão, em O banquete, poderse-ia dizer, então, que não seria o teatro, mas sim o banquete, o ato de comer em comunhão, o lugar ideal para o conhecimento e aprendizado? E a primeira aula, retomando aquela proposta do Freud, não teria sido o “banquete totêmico”, conforme o que é referido nos textos abaixo, sendo o primeiro de sua autoria? “Após o assassinato do (Deus-)Pai seu corpo teria sido partilhado por todos, havendo neste ato de “comer juntos”, de comunhão, mais do que um sentido de incorporação do poder e de recolhimento em si do morto, a finalidade de instituição da comunidade, de uma “comum-unidade”. “É na mesa e na festa, bem mais do que em estruturas abstratas de troca ou circulação, que se opera a passagem da natureza e da cultura. Dionísio se apresenta como o grande mediador” (“À sombra de Dionísio. Contribuição a uma sociologia da orgia”. Michel Maffesoli, tradução Aluizio Ramos. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p.10). WSGF – Bom, Platão, em seu último Diálogo, “As Leis”, voltado para o direito, como o título indica, recomenda expressamente que o banquete, cuja palavra em grego que o denomina é symposion, seja o lugar em 28 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho que se deveria transmitir de maneira ideal, o conhecimento – algo bem diferente de nossos atuais “simpósios”, portanto (risos). E o que o Maffesoli está dizendo nos indica que nossa época está propicia a uma retomada dessa forma d aprendizado, sendo mesmo o que hoje se tem feito, ainda que não seja com o intuito de obter conhecimento, mas sim, diversão – é preciso acabarmos, urgentemente, com essa dissociação entre divertimento, prazer e estudo, aprendizado, de outro, sendo nesse sentido que propomos as teatraulas. Paola Cantarini – Bem, professor, nossa entrevista já atingiu o tamanho previsto e me parece que essa resposta fica bem para ser a última. Quero agradecer e encerrar prestando uma pequena homenagem. Lendo um poema do professor chamado “Poeta louco”, no livro que está disponível no sítio Jornal de Poesia, ele me fez lembrar de algumas passagens de Nietzsche, às quais coletei e deixo aqui, digamos, de presente, dessa sua aluna e orientanda, que muito o admira. WSGF – Puxa, muito obrigado, Paola. “NUR NARR! NUR DICHTER! Somente Louco! Somente poeta! ¨(...), portanto, aquilinos, de pantera São os anseios do poeta, São teus anseios sob milhares de disfarces, Ó louco! Ó poeta! Tu, que olhaste o homem Como deus e como carneiro – Dilacerar o deus no homem Como o carneiro no homem E rir dilacerando – Isso, isso é a tua ventura, Ventura de uma pantera e águia, Ventura de um poeta e louco!... 29 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho (...) “- lembra-te ainda, lembras-te ardente coração, Como tinhas sede então – Que eu seja banido de toda a verdade! Somente louco!somente poeta!...” “...não esqueças, ó homem totalmente curtido pela volúpia: tu és – a pedra, o deserto , és a morte..” entre as aves de rapina ...mas tu Zaratustra amas ainda o abismo, Fazes como o abeto – Ele finca raízes Onde o próprio penhasco Treme ao olhar a profundeza, Ele hesita à beira de abismos Onde tudo em volta Quer precipitar-se... ...É preciso ter asas quando se ama o abismo... (...) -“quem me aquece, quem me ama ainda Dai-me mãos quentes! Dai-me braseiros para o coração! Estendida, arrepiada,... Sacudida ai! Por febres desconhecidas, Tremendo ante setas agudas e gélidas, ...assim me acho deitada, Torço-me, retorço-me, atormentada Por todos os martírios eternos, Golpeada por ti, caçador crudelíssimo, Tu – deus desconhecido.. Golpeia mais fundo! Golpeia mais uma vez! Traspassa, traspassa este coração! 30 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho ...Tu me pressionas, me oprimes, ah!já perto e mais!ouves-me respirar, espreitas meu coração, ó ciumento! Mas ciumento de que... tua mais orgulhosa prisioneira... Ladrão por trás das nuvens... Fala, enfim... Oculto no relâmpago! Fala! Que queres tu, salteador, de – mim... ... A mim – queres A mim A mim – toda... Não é preciso antes se odiar, para se amar... Eu sou teu LABIRINTO...” 31 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 1 O diálogo entre um filósofo e um jurista - considerações sobre o livro ix – o direito criminal – na obra “As Leis” de Platão Álvaro de Azevedo Gonzaga Ex-aluno do Professor Willis Santiago Guerra Filho. Pós-Doutorando na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Doutor, mestre e graduado em Direito pela PUC-SP. Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo USP. Professor concursado da Faculdade de Direito da PUC-SP. Professor convidado da Escola Superior da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo e da USCS. Ex-presidente do Instituto de Pesquisa, Formação e Difusão em Políticas Públicas e Sociais. Coordenador, autor e coautor de inúmeras obras publicadas pela RT. Advogado em São Paulo. Marco Aurélio Florêncio Filho Ex-aluno do Professor Willis Santiago Guerra Filho. Doutorando em Direito pela PUC/SP, sob a orientação do Professor Doutor Willis Santiago Guerra Filho. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Recife – UFPE. Professor da Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. 32 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Filho de Aríston e Perictione, Platão pertencia a uma tradicional família de Atenas e estava ligado, pelo lado materno, a grandes personalidades do meio político. Sua genitora descendia do grande legislador Sólon, era irmã de Carmides e prima de Crítias, dois dos trinta tiranos que dominaram Atenas durante algum tempo. Talvez seja possível atribuir o desapreço de Platão pelos políticos de seu tempo ao convívio e, consequentemente, ao conhecimento dos bastidores políticos, adquirido desde criança. Fato que marcou a juventude de Platão foi ter conhecido seu maior mestre, Sócrates, que fora condenado pelo governo democrático da época. Frente à injustiça que Sócrates havia sofrido, Platão aprofundou sua descrença na democracia como a melhor forma de governo. Para Platão, o mais sábio e mais justo de todos os homens não poderia ter sido tratado daquele modo, o que o fez crer que não poderia haver um partido político que um homem pudesse integrar sem abrir mão de seus princípios éticos. Além de outros motivos, a descrença no sistema democrático inspira Platão a escrever sua República, ou Da Justiça – obra que apresenta uma cidade idealizada por Platão como a forma perfeita de se organizar uma polis, segundo Kaufmann, “Platão desconfiava da lei e apostava no direito natural fundado nas ideias”1. Ocorre que sua produção filosófica no campo da justiça não se finda com a estrutura politica-social apresentada em “A República”. Avança para uma fase mais madura2 em que verifica que a Justiça, a seu juízo, não pode ser apenas moral, fixando-se em 1 KAUFMANN, A.; HASSEMER, W. Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 67. 2 Platão não abandona sua estrutura de cidade justa disposta em A República. Continua se valendo da justificativa jusnaturalista para fundamentar suas Leis. Em outras palavras, Platão é um jusnaturalista que positiva suas leis naturais. Tal posição muito se assemelha com a perspectiva da doutrina imutável e superior ao direito positivo do jusnaturalismo. Além do que, As Leis Platônicas não nascem para anular o direito natural Platônico exposto em A República, mas surgem para possibilitar seu exercício através da coação. O direito estatal e o direito natural não estão numa relação de antítese, mas de integração. (LUCCIONI, Jean. La pensée politique de Platon. Paris: Presses Universitaires de France, 1958). 33 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho declarações, na expectativa de que as pessoas sigam sem qualquer tipo de coercibilidade estatal. É nesse contexto que o pensador em comento produz, sem abandonar totalmente suas ideias de A República, sua última obra no campo da justiça intitulada “As Leis”. A obra “As Leis” desenvolve-se em um diálogo entre “o ateniense” e “Clínias”, um estrangeiro. Composta por XII livros, “As Leis” se ocupa no livro IX exclusivamente de questões relacionadas ao “Direito Criminal”3. Todavia, cumpre destacar que em outros livros são encontrados assuntos pertinentes ao direito criminal, tais como crimes, penas ou procedimentos penais. Tome-se, por exemplo, no livro VI, as lições de crime e pena trazidas pelo “ateniense” especificamente ao tratar das “condições de vida dos guardas do campo (agrônomos) e regras disciplinares”4. Nesse sentido, percebe-se que apesar do livro IX abordar integralmente questões ligadas ao direito criminal, não é o único livro que trata do assunto. O livro trata das questões judiciais acarretadas pelas leis sugeridas até então, e “O ateniense” logo indica, que: O ateniense: […] nosso próximo passo consistirá em enunciálas [as matérias que envolvem os procedimentos judiciais] na totalidade, indicando minuciosamente que penalidade corresponderá a cada ofensa, e perante que tribunal deverá ser julgada5. 3 Utilizaremos a nomenclatura da obra em estudo. 4 O modo de vida dos magistrados e agrônomos durante os seus dois anos de prestação de serviço será como se segue: em primeiro lugar, em todas as regiões haverá repastos públicos, dos quais todos deverão participar para sua alimentação. Se alguém furtar-se a isto durante o dia ou à noite para dedicar-se ao sono sem ordens expressas dos magistrados ou devido a alguma causa urgente, e se os cinco o denunciarem e afixarem seu nome na praça pública como culpado de abandonar seu posto, ele sofrerá degradação por trair seu dever público, e todo aquele que o encontrar em seu caminho e que o quiser punir poderá açoitá-lo impunemente. (PLATÃO. As leis. Bauru: Edipro, 1999, p. 243). 5 PLATÃO. As leis. Bauru: Edipro, 1999. p. 357. 34 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Para o ateniense, “é, num certo sentido, vergonhoso” que se faça necessário promulgar leis6 para prevenir o crime num Estado como o que 6 Certamente, as leis gregas em nada se confundem com as leis que compreendem os ordenamentos jurídicos modernos, tendo em vista que os gregos desconheceram o princípio da legalidade. “O princípio da legalidade, também conhecido por ‘princípio da reserva legal’ e divulgado pela fórmula ‘nullum crimen nulla poena sine lege’, surge historicamente com a revolução burguesa e exprime, em nosso campo, o mais importante estágio do movimento então ocorrido na direção da positividade jurídica e da publicização da reação penal. Por um lado, resposta pendular aos abusos do absolutismo e, por outro, afirmação da nova ordem, o princípio da legalidade a um só tempo garantia o indivíduo perante o poder estatal e demarcava este mesmo poder como o espaço exclusivo da coerção penal. Sua significação e alcance políticos transcendem o condicionamento histórico que o produziu, e o princípio da legalidade constitui a chave mestra de qualquer sistema penal que se pretenda racional e justo” (BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 65). Segundo José Urquizo Olaechea, “El Derecho penal se presenta como un instrumento creador de libertad y tiene como soporte de esta función el principio de legalidad. No se concibe el Derecho penal occidental sin el principio de legalidad, tanto que simboliza la cultura jurídica de occidente y su marco de influencia” (OLAECHEA, José Urquizo. Principio de legalidad: nuevos desafios. Modernas tendencias en la ciencia del derecho penal y en la criminología. In: Congreso internacional Facultad de derecho de la UNED. Madrid: Universidad Nacional a Distancia, 2000. p. 61). Idealizado por Beccaria em 1764, em sua obra “Dei delitti e delle pene”, o princípio da legalidade tem papel importante para delimitar o âmbito de atuação dos magistrados e, assim, evitar arbítrios dos monarcas. Beccaria afirmava que “[...] só as leis podem determinar as penas fixadas para os crimes, e esta autoridade somente pode residir no legislador [...]” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Revista dos Tribunais,1999. p. 30). Destarte, Beccaria tentava afastar as arbitrariedades existentes naquela época, ao afirmar que competia apenas ao legislador formular as leis e que as penas não poderiam ultrapassar os limites fixados pelas leis. Há de se ressaltar que não coube à Beccaria a formulação jurídica do princípio da legalidade, mas sim a Anselm Von Feuerbach que foi responsável pela construção jurídica do princípio da legalidade, visto que o magnífico trabalho desenvolvido por Beccaria era de cunho político. Segundo Feuerbach, “toda pena jurídica dentro del Estado es la consecuencia jurídica, fundada en la necesidad de preservar los derechos externos, de una lesión jurídica y de una ley que conmine un mal sensible” (1989, p. 63). Dessa assertiva surgem três princípios derivados, são eles: nulla poena sine lege – para se aplicar uma pena, deve existir previamente uma lei penal; nulla poena sine crimemine – uma pena só poderá incidir sobre uma ação criminosa; e nullum crimen sine poena legali – a ação criminosa legalmente cominada está condicionada pela pena legal (FEUERBACH, Anselm von. Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 1989. p. 63). Posteriormente a Feuerbach, as referidas fórmulas latinas decorrentes do princípio da legalidade (nulla poena sine lege, nulla poena sine crimemine, nullum crimen sine poena legali) foram condensadas no famoso brocardo latino nullun crimen nulla poena sine lege (BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 37). O princípio da legalidade é um divisor de águas, visto que a partir da análise deste princípio podemos dividir o direito penal em dois grandes períodos. O período que antecede o princípio da legalidade pode ser chamado de período do terror, enquanto que o período posterior ao princípio da legalidade pode ser chamado de período liberal. O princípio da legalidade colocou como centro do direito penal a dignidade da pessoa humana. Segundo BRANDÃO, “[...] o conceito contemporâneo do Princípio da Legalidade estabelece que pela lei não somente se protege o homem das ações lesivas aos bens jurídicos, pela lei se protege o homem do próprio Direito Penal” (Introdução ao direito 35 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho ele propõe, onde se presumiria que os cidadãos buscam a virtude; porém, reconhece a fraqueza humana, e também que há certos homens que “não recebem a influência das leis, por mais enérgicas que sejam”. Admite também, a possibilidade da advertência antes do crime ser cometido, apelando para a razão de quem sente ímpeto criminoso. “O ateniense” acredita no poder de regeneração da punição, ao mesmo tempo igualando reincidência a incorrigibilidade, que incorrerá em pena de morte: O ateniense: Entendemos que toda punição legalmente aplicada não visa ao mal, mas via de regra produz um destes dois efeitos: ou torna a pessoa que sofreu a punição melhor ou a torna menos má. Mas qualquer cidadão é reiteradamente condenado por esse ato, ou seja, a perpetração de alguma falta gravíssima e infame contra os deuses, os pais ou o Estado, o juiz o considerará como já incurável, reconhecendo que, apesar de todo o treinamento que recebeu desde a infância, não se conteve, a ponto de cometer a pior das iniquidades. Para ele a pena será a morte [...]7. E acrescenta que os crimes do pai não se estenderão aos filhos e à família, que “serão honrados e citados honrosamente”, caso seu comportamento seja virtuoso; razão pela qual também os bens de tal pessoa não serão confiscados. E no caso de crimes afiançáveis, a multa não deve ultrapassar o excedente de produção do criminoso, para que a falta de recursos não faça com que seu lote de terra se torne penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 41). 7 PLATÃO. As leis. Bauru: Edipro, 1999. p. 358-359. Interessante destacar que na primeira parte da citação, Platão menciona que a pena não visa a um mal, mas sim a melhoria da pessoa que sofreu a pena. Diferentemente, nos dias atuais a pena traduz-se na função de infligir um mal à pessoa. As teorias absolutas explicam os fins da pena a partir da idéia de retribuição, isto é, a aplicação do mal pelo mal. Já as teorias relativas, apesar de reconhecerem que a finalidade da pena não repousa na idéia de retribuição, mas sim na da prevenção, não se pode afastar a noção de mal intrínseca na pena (BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 279-284). 36 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho improdutivo. Caso não possa pagar, ele prevê outras punições como prisão, açoitamento e humilhações. “Mas ninguém ficará absolutamente à margem da lei”, salienta. Platão entende que toda punição legalmente aplicada não visa ao mal, mas via de regra produz um destes dois efeitos: ou torna a pessoa que sofreu a punição, melhor ou menos má.8 Isso se verifica, por exemplo, na afirmação de Platão: “porque todo aquele que for pego roubando um templo, se for um estrangeiro ou um escravo, terá o estigma de sua maldição marcado a fogo na sua testa e nas suas mãos, além de sofrer o látego no número de golpes decretados pelos juízes; ademais, será expulso nu para além das fronteiras do país, pois talvez após ser assim punido, possa disciplinar-se para uma vida melhor”. (grifo nosso) As penas podem ser, segundo o Livro IX: de morte, de prisão, de açoites, determinadas posturas humilhantes, sentado, de pé, exposto à porta de um templo nas fronteiras do território, de multas. Essas penas são aplicadas de forma sistematizada, individualizando seus limites e os agentes do crime para a cominação das aludidas penas. Ele também prevê, no caso da pena de morte9 (aplicada no caso de roubo ou profanação de templos, ou de desonra aos pais) a votação entre os guardiões da lei. “Um discurso será feito primeiramente 8 Assim, podemos afirmar que a pena, em Platão, não tem caráter retributivo, é sabido, pois, que a pena retributiva (também chamada de absoluta) traduz-se em aplicar um mal a quem cometeu um mal. Os maiores expoentes modernos dessa teoria são Kant e Hegel. Para Kant a pena não se esgota nela mesma. A pena era um imperativo categórico de justiça. Cada um deve receber o que cada um de seus atos vale. Segundo Kant o réu é punido porque delinqüiu. A pena é produto da lei moral, porque se eu não quero um mal para mim, eu não devo fazer um mal para o outro. Na concepção de Hegel, retribuição jurídica, o crime é uma violação do direito, se ele não viola a letra da norma, ele viola a norma. O crime é a negação do direito. A pena é a negação do crime. Ora, a pena então é a negação da negação do direito, portanto a pena é um ato de afirmação do direito. Já a pena preventiva (também chamada de relativa) traduz-se na prevenção de delitos, cabe a ela evitar a prática de novos delitos. Ela se divide em geral e especial. A prevenção geral almeja prevenir o crime pelo exemplo da aplicação do mal; a especial, pelo tratamento do criminoso. Ainda pode-se falar da teoria mista ou eclética que une o critério da prevenção e da retribuição. 9 A pena de morte para Platão é diferente da pena do assassinato, como veremos mais à frente. Todavia, nos dias atuais, não há diferença entre pena de morte ou pena de assassinato. Os ordenamentos ocidentais modernos buscam o fim da pena de morte, tendo em vista à decadência das teorias retributivas. 37 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho pelo reclamante, seguindo-se pelo discurso do acusado”. Após exame cuidadoso e interrogatório, os guardiões farão votação e darão fim ao julgamento. Outro fato interessante que se pode extrair da obra é a possibilidade da pena de multa ser substituída pela pena privativa de liberdade. Veja, como exemplo, o seguinte caso: quem quer que pareça merecer uma multa superior e não tenha ninguém entre seus amigos desejoso de lhe prestar caução, (pagar por ele) e liberá-lo, terá que ser punido por aprisionamento prolongado, de tipo público e por medidas de degradação. Procedimento semelhante é imposto aos que cometem crimes contra a constituição do Estado, prevendo também o crime de omissão. No caso de roubo de patrimônio do Estado ou de outrem, o ateniense propõe que o ladrão seja aprisionado até que pague o dobro do que roubou, ou seja, perdoado por quem foi roubado. “O ateniense” prossegue numa discussão sobre a natureza do bem, do belo e do justo, e sobre a divergência de opiniões quando paixões estão envolvidas, que culmina na seguinte pergunta: O ateniense: Fareis uma distinção, então, entre más ações voluntárias e más ações involuntárias, e iremos promulgar penas mais pesadas para os crimes e más ações que são voluntários, e penas mais leves para os outros? Ou promulgaremos penas iguais para todos achando que não há o ato voluntário de injustiça?10 Entende “O ateniense” que há diferença entre crime voluntário e involuntário, mas que nem sempre se pode dizer a diferença. Portanto, a resposta seria a compensação no caso de danos, voluntários ou não, além de instrução caso seja voluntário; e também a pena de morte aos incorrigíveis, uma vez que se alguém reincide, 10 38 PLATÃO. As leis. Bauru: Edipro, 1999. p. 367. FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho certamente não o faz involuntariamente, portanto é incorrigível e pode-se aplicar a pena de morte. Após discutir a respeito dos motivos das injustiças, “O ateniense” propõe a criação de dois tipos de leis distintas para atos públicos e privados: O ateniense: Um concerne aos atos cometidos ocasionalmente através de meios violentos e abertamente, o outro diz respeito aos atos cometidos privadamente, encobertos pelas sombras e pela fraude, ou às vezes aos atos cometidos dessas duas maneiras – e para atos desse último tipo as leis serão mais severas se quisermos que se revelem adequadas11. A insanidade também é prevista, e o dano deverá ser reparado na medida exata. Caso o insano mate alguém será exilado por um ano12. A obra ainda faz menção à possibilidade do perdão por parte do ofendido e a respectiva isenção de pena. Assim, no caso do ladrão que tenha furtado uma grande coisa ou pequena de um cidadão, deve, em primeiro lugar, pagar o dobro do valor do artigo furtado. Se não tiver condições para tanto, será aprisionado até conseguir pagar a soma, ou tiver sido liberado por quem o processou. Outro exemplo de perdão é vislumbrado na seguinte hipótese: se alguém for tomado de uma fúria tão incontrolável em relação a seus pais a ponto de realmente ousar dar cabo da vida de um deles no seu louco furor e se acontecer que o pai ou a mãe, antes de morrer, voluntariamente, absolva o culpado do assassinato, este poderá reaver a sua pureza depois de purificar-se da mesma maneira que 11 PLATÃO. As leis. Bauru: Edipro, 1999. p. 367. 12 Nos dias atuais a insanidade, ou desenvolvimento mental incompleto, é analisada dentro do juízo de culpabilidade, para excluí-lo (quando o agente era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato) ou para reduzir a reprovação (quando o agente não era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato). Nesse sentido, como crime é um fato típico, antijurídico e culpável, tem-se que os insanos praticam um fato típico e antijurídico, mas não culpável. Logo, não sofrem pena, pois não praticam crime. 39 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho o fizeram aqueles que cometeram um assassinato involuntário13. O estrangeiro passa a sugerir leis para o assassinato14. No caso de alguém matar um amigo durante os jogos, nas guerras ou nos treinos para ela, não ocorrerá processo, assim como quando o paciente morre contra a vontade do médico, este será isento. Os assassinatos involuntários têm punição diferente se cometidos contra um escravo, tendo-se que reparar o dono do escravo; ou contra um homem livre, caso em que o assassino deve desterrar-se por um ano para não sofrer processo. Em todos os casos, deve-se haver purificação. Ainda, “O mesmo se aplica a todos os médicos: se o paciente vier a falecer contra a vontade de seu médico, este será considerado de mãos puras e isento de pena”15. Também fazem parte desse caso os crimes passionais sem intenção. Os intencionados terão exílio maior como punição. Reincidentes sofrerão exílio perpétuo16. “O ateniense”, então, declara as punições para diversos casos mais específicos, e passa a discorrer sobre assassinatos voluntários, “movidos pelo prazer, os apetites ou a inveja” e também a covardia, diferenciando os casos. As penas para tal também incluem a pena de morte ou o exílio, e o assassino aguarda o julgamento em ostracismo. Os pormenores de cada tipo de assassinato são propostos como no caso dos involuntários. 13 No caso de assassinato involuntário, para que um cidadão não seja processado é necessário ter sido purificado como orienta a regra de Delfos. 14 PLATÃO. As leis. Bauru: Edipro, 1999. p. 372 e ss. 15 Com a estruturação da dogmática jurídica penal, analisam-se, hoje, as intervenções médicas nos pacientes como exercício regular do direito. 16 Com relação ao crime de assassinato, traz-se a importância da intenção para, em decorrência, cominar penas mais graves ou menos graves. Assim, estabelece-se uma gradação da pena, para os casos de assassinato com intenção e sem intenção premeditada. Nesse sentido, afirma o referido filósofo que a característica da intenção deliberada ou a ausência de tal intenção é importante para a cominação de penas mais severas àqueles que matam com intenção e movidos pelo ódio, e penas mais brandas àqueles que o fazem sem premeditação e sob um impulso repentino, isto porque o que se assemelha a um mal maior tem que ser punido com maior rigor, enquanto aquilo que se assemelha a um mal menor, deve ser punido menos rigorosamente. 40 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Como as leis e a religião não se separam para o estrangeiro, muitas das punições propostas vão além da vida e se baseiam em castigos dos deuses e das reencarnações; e às vezes até se pune o cadáver. É o caso também dos suicidas. Nota-se em 873d: O ateniense: […] os túmulos serão, em primeiro lugar, numa posição isolada, nem sequer um outro túmulo adjacente, e em segundo lugar, deverão ser enterrados naqueles limites dos doze distritos que são desérticos e inominados, sem qualquer menção, sem qualquer lápide nem nome que indiquem seus túmulos. Os animais assassinos também são mortos. A respeito dos homicídios de autor desconhecido, o homicida será morto e seu corpo exilado caso seja descoberto. O estrangeiro ateniense conclui então as leis sobre o homicídio e passa a discorrer sobre os casos em que o assassino será absolvido. Os casos incluem legítima defesa contra ladrões e estupradores, e neste último, os parentes também podem exercer a vingança. “O ateniense”, em 874e, 875a, reitera a importância de se promulgar leis, o que nos diferencia dos animais: O ateniense: […] é realmente necessário aos seres humanos fazerem eles mesmos leis e viver de acordo com as leis, sem o que a humanidade não diferirá em absoluto das bestas mais selvagens. E que “a verdadeira arte política necessariamente zela pelo interesse público”. Ele torna, então, à punição de ferimentos, afirmando que, pela infinidade de casos em que ela pode ocorrer, somente alguns serão 41 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho legislados, enquanto os outros terão a punição decidida em tribunal17. Após o preâmbulo, novamente discorre acerca dos pormenores de cada caso, que servirão de exemplos para “impedi-los de ultrapassar os limites da justiça”. As punições incluem reparações, exílio e açoites. O propósito de tais leis e sua relação com a educação são explicitados em 880d-e: O ateniense: As leis [...] são feitas em parte para a segurança dos homens de bem, para propiciar-lhes instrução quanto ao relacionamento que será mais seguro na sua amistosa associação entre si, e em parte também por causa daqueles que se furtaram à educação e que, sendo donos de um temperamento obstinado, não contaram com um tratamento atenuador que impedisse que cedessem a todo tipo de perversidade. O estrangeiro ateniense dá atenção especial ao crime de lesão aos pais ou avós, e, além das suas penas, lista as recompensas para as testemunhas que prestarem socorro, assim como as punições para aquelas que se omitirem. Após listar mais algumas punições em caso de agressão, “O ateniense” conclui o livro, em 876e até 882c. A guisa de encaminharmos as considerações finais deste ensaio, pensam estes autores que mesmo com muitas diferenças e distâncias, tanto na perspectiva histórica como nas perspectivas doutrinária, temporal e espacial, faz-se mister o estudo do pensamento platônico a fim de desmistificar a noção errônea que apregoa ser, este filósofo, apenas um pensador de doutrina idealista sem nenhuma aplicabilidade. Antes, tratase de um estudioso que, com suas limitações históricas e sociais, buscou a conceituação de um Direito Criminal a fim de alcançar a Justiça. 17 Hodiernamente, isso pode ser visto como a discricionariedade do juiz, ou como a possibilidade da construção de uma jurisprudência. 42 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 2 A evolução social e a evolução do direito conforme o modelo habermasiano Andréia Fogaça Maricato Doutoranda, Mestre e Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP. Professora seminarista do IBET de São Paulo. Coordenadora do IBET de São José dos Campos. Advogada. 43 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Introdução Nosso corte metodológico se limita a evolução social e a evolução do direito segundo a teoria de Jünger Habermas, desenvolvida a partir da teoria da ação comunicativa e da ética do discurso. Como veremos, Habermas não ignora o estudo da evolução do direito feito por Luhmann18, reconhece ser relevante para o processo evolutivo da sociedade o aumento da complexidade sistêmica, todavia, dá ênfase à lógica do desenvolvimento de mecanismos de aprendizagem. Para haver evolução no modelo de Luhmann é preciso que estejam diferenciados três mecanismos evolutivos: variação, que se refere a uma comunicação inesperada, que constitui uma negação das estruturas estabilizadas; seleção, que é a escolha ou não da informação, no sentido da construção de estruturas que comportem seu uso repetido, que pode ser positiva ou negativa. Em sendo positiva, o sistema transforma a comunicação desviante em expectativa, isto é, prevê estruturas aptas a comportar a reiteração da informação desviante; e a reestabilização, que é a efetiva inserção das novas estruturas no sistema19. Habermas, ao estudar o mesmo tema, reconstrói, no âmbito da teoria da ação comunicativa e da ética do discurso, o modelo de desenvolvimento ontogenético (do indivíduo), formulado por Jean Piaget e desenvolvido por Lawrence Kohlberg, aplicando-o ao âmbito da evolução filogenético (da sociedade). No entanto, o elemento principal para Habermas, na evolução da sociedade, é o desenvolvimento da consciência moral20. Nesta reinterpretação dos modelos de Piaget e Kohlberg, a partir 18 Cria um modelo de evolução social com base na evolução biológica. Para Luhmann, a evolução social decorre de transformações internas do próprio sistema, que assimila informações advindas do ambiente (transformando o improvável em provável com ênfase no caso); e no aumento da complexidade da sistêmica. (NEVES, Marcelo. 2006. p. 25). 19 NEVES, Marcelo. 2006. p. 18-25. 20 NEVES, Marcelo. 2006. p. 26 44 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho da teoria da ação comunicativa, Habermas vincula ao descentramento progressivo da compreensão do mundo, nos três domínios de referência: mundo objetivo, social e subjetivo, e relaciona com os tipos de ação e a diferenciação de um plano discursivo em face das ações. Nosso objeto de estudo se restringe na análise da evolução social como desenvolvimento da consciência moral e a evolução do direito conforme o modelo habermasiano, através dos três níveis de desenvolvimento da consciência moral: nível pré-convencional, nível convencional e nível pós-convencional, não só no plano individual, mas também em relação aos tipos de sociedade e de direito. 1. Do desenvolvimento ontogenético Habermas reconstrói a teoria de Piaget desenvolvida por Kohlberg compartilhando na investigação da estrutura e aquisição das competências humanas. Considera o trabalho de Piaget sobre cognição, e o de Kohlberg sobre o juízo moral21. De Piaget utilizam-se e reconstroem-se os elementos básicos da teoria dos estágios do desenvolvimento cognitivo e do julgamento moral da criança, conforme demonstrado a seguir. 1.1 Teoria dos estágios do desenvolvimento cognitivo: Jean Piaget Jean Piaget voltou suas atenções, para a teoria psicológica, numa tentativa de, refutando o naturalismo empirista, investigar as bases biológicas do conhecimento22. Assim, tentou reconstruir os modos pelos quais a inteligência humana seria constituída, desde uma perspectiva gerativa de intercâmbio entre suas estruturas esquemáticas e o meio ambiente que a circunda. 21 WHITE, Stephen K.. 1995. p. 64. 22 LOPES, Rafael Ernesto. 1993. p. 15 ss. 45 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Esse intuito levou-lhe à observação empírica do comportamento infantil, no sentido da identificação de uma transição das formas mais simples da inteligência até o seu amadurecimento nas estruturas da idade adulta. Por esta razão, elaborou uma teoria complexa do nascimento da inteligência baseada na proposta de uma seqüência discreta de estágios cognitivos hierarquizados. A passagem de um estágio para o subseqüente pressuporia um respectivo ganho de complexidade e capacidade de coordenação entre os esquemas, segundo ele irreversível, em condições normais. Além disso, não poderia haver “saltos”, ou seja, superação de estágios alheia à seqüência pré-determinada, devendo-se seguir uma complexidade crescente até os níveis identificados, teoricamente, com os últimos alcançados pelas formas humanas de inteligência até o momento23. Deste modo, na fase inicial da vida, correspondendo à idade de zero até os 24 meses24, chamado de nível sensório motor ou pré-operativo do desenvolvimento psicológico, a criança não faz distinção do sujeito com seu ambiente. Com o aprendizado, a criança começa a distinguir o eu do ambiente, mas não diferencia claramente25. Nesta fase prepondera o egocentrismo cognitivo e moral, ou seja, a criança só considera as situações partindo do seu ponto de vista. Para que ocorra a passagem deste estágio para o seguinte, é necessária uma progressiva descentração, pela interiorização do mundo e exteriorização da consciência, na forma de constantes acomodações. Ou seja, deveríamos fazer referência ao processo gradual de aquisição de hábitos; ao surgimento da intencionalidade com as primeiras diferenciações entre o meio e fim. Posteriormente, à capacidade de objetualização presentificada, pela qual os objetos atuais passam a ter existência fora do indivíduo, assim como os modos de distinção do real 23 PIAGET, Jean. 1983, p. 53. 24 PIAGET, Jean; Inhelder, Bärber. 2001. p. 14-79. 25 NEVES, Marcelo. 2006. p. 26. 46 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho permanente do real “evocado” 26. No nível das operações concretas (aproximadamente entre os 2 e 7 anos)27, a criança começa a construir o sistema de delimitação do eu, e passa a não mais confundir os signos lingüísticos de seus significados; passa a diferenciar subjetividade em face da natureza e da sociedade. Aqui ela já tem uma postura objetivista e sociocêntrica. Nesta fase, o indivíduo simplesmente aceita o que lhe é imposto ou ensinado, isto porque, “não há reflexividade cognitiva em relação à realidade objetiva que se percebe, nem uma postura crítico-reflexiva em relação às normas institucionalizadas” 28. Já na adolescência, chamado de nível de desenvolvimento das operações formais (entre os 11-12 anos de idade aproximadamente) 29, o indivíduo não aceita mais passivamente as pretensões de validade contida nas assertivas e normas, pois, já distingue o eu do ambiente e supera o objetivismo com relação à natureza e sociedade. O jovem, aqui, começa a criticar as ordens normativas, a lei transmitida e passa a compreender e a criticar as normas socialmente vigentes, as convenções, baseado nos princípios. Supera o dogmatismo do dado e do existente, e se torna um eu capaz de pensar e discutir. Contudo, o sistema de delimitação do eu se torna reflexivo e universalista, e passa a discutir a verdade e validade normativa fora do seu próprio contexto social, se tornando um sujeito observador. 1.2 Teoria moral evolutiva: Lawrence Kohlberg Kohlberg, baseando-se na psicologia cognitiva de Piaget, propôs um modelo de desenvolvimento do julgamento moral nos três níveis, 26 PIAGET, Jean; Inhelder, Bärber. 2001. p. 14-79. 27 LOPES, Rafael Ernesto. 1993. p. 76 ss. 28 NEVES, Marcelo. 2006. p. 27. 29 LOPES, Rafael Ernesto. 1993. p. 76 ss. 47 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho pré-convencional; convencional; pós-convencional, abrangendo seis estágios, ou seja, dois para cada nível. Tais estágios de pensamento não são simples respostas no modelo de estímulo-resposta de aprendizado, mas são tanto adaptações como construções ativas do sujeito. Esses estágios, afirmam-se culturalmente universais quanto sequencialmente invariantes, embora o progresso através dos estágios varie através tanto quanto nas sociedades30. Assim, no desenvolvimento desses três níveis, a passagem de um estágio para outro é compreendida como um processo de aprendizagem31, a criança se move de um estágio para o seguinte e vê o estágio mais elevado como mais adequado, porque a coloca em maior equilíbrio com o seu ambiente. Para isto, obedece às seguintes condições: i) os estágios constituem uma sequência invariável, irreversível e consecutiva, ou seja, todos os estágios devem ver vivenciados; ii) no processo de desenvolvimento, o sujeito não pode compreender o raciocínio moral de um nível posterior àquele em que se encontra, e; iii) a passagem de um estágio para outro ocorre porque o nível superior se revela capaz de solucionar problemas de interação que o precedente não conseguiria até então32. Esses níveis são definidos a partir de três tipos de relação do eu com as expectativas e normas sociais: no nível pré-convencional as normas e expectativas sociais constituem algo externo para o eu; no nível convencional, o eu identifica-se com as normas e expectativas sociais ou internaliza-as; e no nível pós-convencional, as pessoas diferenciam as suas próprias normas e expectativas das adotadas pelos outros, definindo os seus valores em termos de princípios autoescolhidos33. Nível pré-convencional: As normas e expectativas sociais 30 WHITE, Stephen K.. 1995. p. 64. 31 HABERMAS, Jürgen. 2003. p. 154. 32 HABERMAS, Jürgen. 2003. p. 157. 33 NEVES, Marcelo. 2006. p. 28. 48 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho constituem algo externo para o eu - Este nível que é dividido em dois estágios vemos uma completa dependência do indivíduo em relação ao grupo social. A criança obedece às regras e rótulos culturais do bom e mau, certo e errado, mas as interpreta em termos de conseqüências físicas, seja das conseqüências hedonísticas da ação (punição, recompensa, troca de favores), ou em termos do poder físico daqueles que enunciam tais regras e rótulos34. 1º estágio: moralidade heterônoma ou punição e obediência35. Neste primeiro estágio, a criança obedecer às regras para não ser punido, ou seja, obedece ilimitadamente ao mandamento da autoridade não por respeito a uma ordem moral, mas por medo da punição. Sob o ângulo da perspectiva social, a criança adota um ponto de vista egocêntrico. Suas razões para agir corretamente é evitar o castigo, isto porque, neste estágio a criança não faz distinção entre o eu e o mundo e não há um julgamento moral, ela aceita o que vem de fora e não contesta. 2º estágio: individualismo, o objetivo instrumental e a troca. As relações humanas são vistas em termos semelhantes às relações mercantis, de modo que o direito é aquilo que é bom para ambas as partes e a ação deve ser pautada sempre por troca. Desta forma, a criança entende como sendo moralmente correto, agir de acordo com seus próprios interesses e necessidades, deixando os outros fazerem o mesmo. Seu julgamento moral é baseado em critérios voltados para conseqüências físicas e hedonísticas, pois, a pessoa se relaciona com outra e integra os conflitos interindividuais de interesses através da troca instrumental de serviços e da satisfação de necessidades instrumentais36. Nível Convencional: O eu identifica-se com as normas 34 WHITE, Stephen K.. 1995. 71. 35 NEVES, Marcelo. 2006. p. 29. 36 NEVES, Marcelo. 2006. p. 30. 49 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho e expectativas sociais - Neste segundo nível, a pessoa mantém as expectativas da família, grupo ou nação, buscando-se, de acordo com as regras do jogo, agir de modo a conseguir sempre o maior benefício possível, no entanto, vale a idéia de que as normas garantem, em última análise, o bem estar de todos37. Por esta razão, o nível convencional, é marcado pela perspectivação de segunda pessoa38, ou seja, a uma assunção recíproca de papéis que faz surgir o âmbito de um agir estratégico que procura levar em conta as perspectivas dos outros como concorrentes na realização de suas próprias intenções. 3º estágio: expectativas interpessoais mútuas, os relacionamentos e a conformidade interpessoal ou a orientação do “bom moço”. Um bom comportamento é aquele que agrada aos outros e é por eles aprovado por estar vinculado a uma pauta estabelecida. O indivíduo procura fixar-se como membro da sociedade, obedecendo às regras para ser aceito pela sociedade. Aqui, entende-se como sendo moralmente correto, corresponder às expectativas das pessoas próximas, o “ser bom”, significa ter bons motivos e intenções, mostrando consideração pelos outros. Faz-se necessário, ser bom aos seus próprios olhos e aos olhos dos outros, chamada de “regra de ouro”, ou seja, se alguém se puser no lugar do outro, iria querer um bom comportamento de si próprio 39. Ainda, não desaparece o egoísmo, mas o prazer perde sua ligação a bens mais concretos e vai em busca do sentimento de aprovação e valorização social ligado ao reconhecimento do bom exercício do papel. 4º estágio: sistema social e consciência40 (orientação lei e ordem). 37 HABERMAS, Jünger. 2003. p. 176. 38 Idem, p. 176. 39 NEVES, Marcelo. 2006. p. 30. 40 NEVES, Marcelo. 2006. p. 31. 50 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho O moralmente correto aqui é cumprir dos deveres com os quais se concordou. Deve-se obediência à autoridade das normas estabelecidas e a intenção firme de manutenção inquestionável da ordem normativa. A pessoa preserva as instituições sociais, para evitar o colapso do sistema e cumprir as próprias obrigações da consciência. Aqui, já se encontra a distinção entre ação e norma, mas não tem como discutir princípios. O indivíduo coloca-se como observador, e tem uma visão privilegiada da sociedade, pois, ele já se enquadrou no sistema para observar, mas as críticas dele com relação às normas são baseadas em considerações generalizada e abstrata. 4½ estágio: Crise da adolescência41 - Kohlberg abre um parêntese, para se referir ao problema da regressão relativista, classificando esta fase como o estágio de transição entre o nível convencional e o pósconvencional, chamado de 4 ½. Este estágio é caracterizado por ceticismo, egoísmo e relativismo. É representado como crise da adolescência, pois, a escolha dos padrões de comportamento é compreendida como pessoal e subjetiva. Neste estágio, o indivíduo vê a sociedade de fora, tomando decisões sem compromisso ou contrato generalizado com a sociedade sem se basear em princípios. Habermas critica este estágio, vendo-o como insuficiente, e argumenta que, o ceticismo axiológico inerente a esse estágio não pode ser reduzido a um momento de transição do desenvolvimento moral, uma vez que pode ser estabilizado através de posições filosóficas sérias42. Nível pós-convencional: A pessoa diferencia suas próprias normas e expectativas das adotadas pelos outros, definindo os seus valores em termos de princípios autoescolhidos - É neste nível, que a pessoa supera a ingenuidade cotidiana, e passa a ter uma visão descentrada do mundo, questionando as pretensões de validade à luz de princípios43. 41 NEVES, Marcelo. 2006. p. 37. 42 NEVES, Marcelo. 2006. p. 37. 43 NEVES, Marcelo. 2006. p. 35-36. 51 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 5º estágio: do contrato social, da utilidade e dos direitos individuais. Entende por moralmente correto, a observância dos direitos, valores e contratos legais básicos da sociedade, mesmo quando estiverem em conflitos com as regras e leis concretas do grupo44. Sua razão para agir corretamente, é cumprir as obrigações perante o direito, para o bem estar geral e a proteção dos direitos de todas as pessoas. Tem aqui, um sentimento e compromisso contratual, assumido livremente, em relação à família, à amizade, à confiança e ao trabalho. Faz uma clara visão do relativismo dos valores e opiniões das pessoas, dando ênfase as regras de procedimento para alcançar o consenso. Exceto pelo que é constitucional e democraticamente acordado, tem-se que o direito é uma questão de valores e opinião pessoal45. Presente a distinção entre ação e normas, e princípios e normas, o indivíduo vê o conflito do princípio com as normas, mas não sabe solucionar, pois seu discurso é voltado para o grupo. 6º estágio: princípios ético-universais. Aqui, o justo é definido pela decisão, de acordo com princípios autonomamente escolhidos, aos quais apelam à compreensão lógica, à universalidade e à consciência, como os únicos critérios que não são particulares e são, portanto, dotados daquela reversibilidade típica da descentração dos últimos estágios do desenvolvimento cognitivo. Assim, é o moralmente correto seguir princípios éticos autoescolhidos, quais sejam, os princípios gerais de justiça – a igualdade dos direitos humanos e o respeito à dignidade dos homens como pessoas individuais. Suas razões para agir corretamente são a crença na validade universal de princípios morais e o senso no compromisso pessoal para 44 NEVES, Marcelo. 2006. p. 32. 45 WHITE, Stephen K. 1995. p. 72. 52 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho com eles. A um ponto de vista moral do qual derivam e em que se baseiam os acordos, normas e valores sociais46. 1.3 Teoria da ação comunicativa aplicada ao desenvolvimento cognitivo – ainda no desenvolvimento ontogenético Habermas reinterpreta os modelos de Piaget e Kohlberg a partir da teoria da ação comunicativa, aplicando ao descentramento progressivo da compreensão do mundo, nos três domínios de referências47: o mundo objetivo, o social e o subjetivo e relacionando com os tipos de ação (estratégica e comunicativa) 48. Nível pré-convencional - Neste nível não há descentramento dos mundos (objetivo, social e subjetivo), também não há distinção dos tipos de ações (estratégica e comunicativa), e não há uma diferenciação do plano discurso em face às ações. 46 NEVES, Marcelo. 2006. p. 33. 47 Não se pode confundir mundo da vida com o mundo como referência dos agentes comunicativos. O primeiro se refere ao pano de fundo do agir comunicativo, coordenado pelo entendimento e estruturado pela cultura, sociedade e personalidade. Já o “mundo” apresenta-se como referência aos agentes comunicativos, diferenciando-se em mundo objetivo, social e subjetivo. Os três mundos se relacionam com os critérios de validade: i) a verdade (enunciado verdadeiro) é o mundo objetivo, o mundo como referência do agente; ii) a retidão ou justiça (mundo social), que esteja em harmonia com o sistema de normas vigentes; e iii) a veracidade ou sinceridade (mundo subjetivo), que a intenção expressada coincida com a intenção do falante. O mundo da vida racionaliza-se tanto pela diferenciação interna de seus componentes estruturais (cultura, sociedade e personalidade) quanto pela diferenciação das referências do mundo (objetivo, social e subjetivo) e das respectivas pretensões de validade (verdade, retidão e veracidade). A racionalização é indissociável da distinção dos tipos de ação assim como entre plano de ação e do discurso. Mas a racionalidade do mundo da vida está vinculada a sua diferenciação externa em relação ao sistema sendo que o sistema ao se tornar mais complexo aumenta a racionalização do mundo da vida contribuindo para a racionalidade do saber, a solidariedade dos membros e para a autonomia da pessoa, mas a hipertrofia do sistema invade o mundo da vida provocando perda do sentido, psicopatologias e anomias. (fichamento. NEVES, Marcelo. Entre têmis e leviatã, 2006. pp. 59-78). 48 Ação estratégica se opera, quando o sujeito “A” utiliza-se do sujeito “B”, para realizar seus interesses. E a ação comunicativa se dá, quando um sujeito toma o outro como sujeito, e não como meio para utilizar seus interesses. (caderno de anotações da aula expositiva do prof. Marcelo Neves, Teoria Geral do Direito, no curso de mestrado na PUC/SP, em 14/08/07). 53 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 1º estágio: perspectiva egocêntrica ou individualista concreta. Aqui, o indivíduo não faz uma distinção clara entre subjetividade, objetividade (natural) e intersubjetividade (social), nem entre ação e norma, ou seja, as condutas são baseadas na regra de causalidade e não de imputação, isto porque, não se pode distinguir entre o agir orientado para o êxito e o agir que se busca o conhecimento. Todas as regras impostas são cumpridas e obedecidas para não ser punido. 2º estágio: troca de equivalências como critério de avaliação de condutas49. O indivíduo age com relação às coisas que tem interesse, com base na troca. Ele começa fazer uma distinção do eu e o ambiente, mas utiliza a outra pessoa como um meio para se chegar ao fim que deseja, de modo a tirar uma vantagem. A pessoa é utilizada pelo outro como um instrumento, (agir instrumental, tem consciência da outra pessoa, mas a utiliza com um instrumento para realizar seus próprios interesses). Nível convencional - Já há um descentramento dos mundos (objetivo, social e subjetivo), mas ainda de forma intuitiva, pois, não tem como questionar as pretensões de validade (sinceridade, verdade e retidão ou validade normativa). Todavia, há distinção ente ação e norma, e já se distinguem os planos de ações (estratégica e comunicativa). Em ambos os estágios deste nível as crenças intuitivamente partilhadas no mundo da vida não são passíveis de ser questionadas, pois, a identidade ainda está subordinada aos imperativos institucionais50. 3º estágio: o indivíduo internaliza as expectativas das pessoas próximas, considerando as ações em termos de papéis concretos. Neste estágio, o indivíduo segue as regra para se inserir na sociedade e para se sentir aceito por ela. Ele deixa de ser egocêntrico e acata as regras do grupo, com o objetivo de fazer parte deste grupo e de 49 NEVES, Marcelo. 2006. p. 34. 50 NEVES, Marcelo. 2006. p. 35. 54 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho dar identidade ao mesmo, é a chamada “regra do bom moço”. Porém, ainda não tem uma visão privilegiada da sociedade. 4º estágio: a perspectiva do observador diferencia em face de um sistema de regras e valores. O indivíduo ainda não faz distinção entre ação e discurso e nem se discute as pretensões de validade (verdade, retidão e sinceridade), sustentadas implicitamente no plano da ação. Mas, por outro lado, tem uma visão privilegiada da sociedade, é tido como observador, pois, tem uma visão intuitiva das referências dos mundos (objetivo, social e subjetivo). Nível pós-convencional51 - Somente neste nível há o descentramento bem nítido e definido dos mundos. Isto porque, já está superada a ingenuidade da prática cotidiana, e não se aceita as coisas de forma passiva (desdogmatização). Há a introdução do discurso como forma reflexiva da ação, e as pretensões de validade em relação aos mundos subjetivo, social e objetivo, sustentadas na linguagem cotidiana, passaram a ser passíveis de contestação com base nos princípios éticos universais. Tendo assim, capacidade para questionar (desinstitucionalização da moral). A autonomia se opõe a heteronomia (normas impostas), ou seja, o sujeito não aceita as normas impostas de forma passiva, porque ele já tem uma visão crítica (de autonomia), que vai criticar as normas com base nos princípios. 5º estágio: a estrutura da expectativa de comportamento apresenta-se como regras para exame de normas, ou seja, princípios (normas de normas). Surge a noção de princípios, e a possibilidade de se questionar as coisas com base nos princípios, mas o indivíduo não sabe como. Aqui, se diferencia ação, norma e princípios, mas não tem o procedimento para trabalhar norma e princípios. 51 NEVES, Marcelo. 2006. pp. 35-36. 55 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 6º estágio: a estrutura da expectativa de comportamento apresenta-se regra para exame de princípios: procedimento de fundamentação de normas. Por fim, neste estágio, a pessoa tem a noção de princípios e os próprios princípios são discutidos, conhecida como auto reflexividade, pois, já tem procedimento para fazer a análise das normas vigentes e conjugá-las com os princípios universais. A autonomia é bem visível neste estágio, e o indivíduo não aceita as coisas de forma passível e tem como contestar. 2. Do desenvolvimento filogenético: Jürgen Habermas Habermas traça um paralelo entre os dois modelos ontogenéticos de desenvolvimento, ao seu modelo filogenético, entendendo que o processo evolutivo das sociedades são conseqüências do desenvolvimento da consciência moral. Ao transportar o modelo individual para o social, sustenta a existência de homologias e traça um paralelo dos níveis da consciência moral do indivíduo com a sociedade, entendendo que o desenvolvimento filogenético comporta três níveis de consciência moral: pré-convencional – sociedades arcaicas; convencional – sociedade das culturas avançadas; e pós-convencional – sociedade moderna. Nível pré-convencional: sociedade arcaica - Este nível passa por dois planos, o plano sacro, onde não há descentramento entre os mundos (objetivo, social e subjetivo). As estruturas normativas são baseadas nas tradições, crenças, de modo que não há questionamentos. As ações do agente estão voltadas para o seu resultado e não para suas intenções. Não há uma distinção nítida entre cultura e natureza; normativo e cognitivo; indivíduo e sociedade manifestam-se através de rituais e mitos. Não tem agir comunicativo e nem estratégico. 56 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Já no plano profano, há uma pequena diferenciação entre ações orientadas para o êxito e ações orientadas para o entendimento. Entretanto, como há confusão entre os mundos (objetivo, social e subjetivo), as imagens místicas, a identidade do indivíduo se confunde com a do grupo, clã, família ou tribo. As pretensões de verdade, sinceridade e retidão constituem uma síndrome. Ou seja, não tem plano comunicativo, e quando tem é precário. A visão que o indivíduo tem da sociedade é míope, não vislumbra a sociedade com um todo52. Nível convencional: sociedade de culturas avançadas - No plano sacro, já há o descentramento dos mundos (objetivo, social e subjetivo), mesmo na religião, porém, de modo intuitivo. Tem-se uma distinção entre ação estratégica e comunicativa, mas a ação não é mais voltada simplesmente aos seus resultados. Ainda não se discute sobre religião, sacra e metafísica, pois, estão envolvidos num conceito holístico de validade. E as pretensões de verdade, sinceridade e retidão mantêm-se em síndrome. No que se refere ao plano profano, vê-se uma dissolução do conceito holístico da validade53, distinguindo o plano da ação e do discurso, mesmo não tendo discurso, embora se tenha uma consciência da distinção entre ação e discurso, ele não tem ferramentas para contestar isto, porque não tem discurso especifico para cada ambiente de validade. A identidade do individuo não mais se confunde com a do grupo, mas se mantém vinculada a uma organização territorial cuja unidade é referida ao soberano, isto porque, neste plano, ainda não se questionada as instituições. Nível pós-convencional: sociedade moderna54 - O início da era moderna, chamado ainda de plano sacro, há uma pretensão de validade 52 NEVES, Marcelo. 2006. p. 41. 53 HABERMAS apud NEVES, 2006. p. 42. 54 NEVES, Marcelo, 2006. p. 43-44. 57 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho específica, no âmbito científico, porém, ainda não há distinção suficiente dos discursos e das pretensões de validade. Somente no plano profano, com as formas modernas de religiosidade rompe-se com o dogmatismo, que se manifesta na contraposição dicotômica e hierárquica, tornando possível às distinções de validade no plano da ação e do discurso. Nesta etapa, já tem uma visão reflexiva e descentrada do mundo, e é possível a distinção entre o agir comunicativo e o agir estratégico, e conseqüentemente entre ação, norma e princípio, tanto no plano da ação como no discurso. A consequência disto é a dessacralização das instituições e instituição do discurso. Ocorrendo, assim, o desacoplamento entre sistema e mundo da vida. Para Habermas, na modernidade, o desenvolvimento social não está ligado só à racionalização com respeito a fim, conforme defende Weber55, ele a aceita, mas só para o sistema, tem que integrar o agir comunicativo. Também com a modernidade, tem-se o aumento da consciência, e em conseqüência, aumentar a capacidade discursiva, ou seja, quanto maior a consciência moral, maior é a evolução do sistema. Verifica-se a diferenciação entre sistema e mundo da vida, e por fim, na modernidade há a construção do consenso – universalismo moral e jurídico. Vemos que a análise do desenvolvimento ontogenético transportado para o desenvolvimento filogenético, realizou-se uma analogia simbiótica entre ambos, agregando-se a isso os tipos de ação ínsitos aos modelos habermasiano, a fim de demonstrar que a evolução social não se caracteriza tão somente pela prevalência de ação racionalcom-respeito-a-fins (estratégica ou instrumental), tal como acontece numa visão marxista (acúmulo de riquezas) ou mesmo weberiana, mas, especialmente, pela ação comunicativa, ou seja, pela lógica do desenvolvimento estabelecida por meio de relações intersubjetivas, 55 58 WEBER, Marx apud NEVES, Marcelo. 2006. p. 45-46. FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho normativamente orientadas. Neste sentido, dispõe Marcelo Neves56, que Habermas afastase dos diagnósticos de modernidade contrário tanto aos modelos fragmentários e aos paradigmas de crítica à ideologia. Segundo sua visão a ênfase deve ser no agir comunicativo condicionado pela racionalidade discursiva, não subordinada a determinações sistêmicas, ou seja, o aumento da complexidade de um implica na maior racionalidade do outro, e a patologia é verificada quando o sistema desenvolve-se ao extremo e tende a colonizar o mundo da vida57. 3. Da evolução do direito58 Habermas associa a cada um dos três níveis de consciência moral, formulado pela psicologia cognitiva a um tipo de direito. Nível pré-convencional – direito revelado; convencional – direito tradicional; e pós-convencional – direito estatuído, formal ou positivo. Acrescenta ainda um nível, que precede a positivação, denominado “direito deduzido”, reconstruído da concepção weberiana (dos níveis do desenvolvimento do direito em termos de sua progressiva racionalização), porém, por ter 56 NEVES, Marcelo. 2006, p. 44. 57 O direito é visto como transformador entre o sistema e o mundo da vida, Habermas propõe que o direito seja compreendido como um meio de conversão do poder comunicativo em poder administrativo. No Estado Democrático de Direito, sustenta que há um entrelaçamento entre moral, política e direito, impondo por um lado a fundamentação na moral, ou seja, o dever ser jurídico não pode ofender o princípio da justiça; e por outro lado o pluralismo da esfera pública exige a consideração da diversidade de valores no âmbito dos procedimentos políticos. A tensão entre factividade e validade, Habermas, no Estado Democrático de Direito estende ao âmbito do poder. Para ele, o processo de formação racional da vontade política implica na relação entre discurso pragmático, ético-político, moral, jurídico e as negociações reguladas por procedimentos, porém, segundo Marcelo Neves, Habermas não afasta sua posição inicial de fundamentos na moral, éticos-políticos e pragmáticos. Insiste em um universalismo consensual que dificulta uma consideração adequada da problemática do pluralismo em uma sociedade altamente complexa. E a idéia de aceitabilidade dos resultados não responde ao problema do dissenso estrutural na esfera pública nas condições supercomplexas da sociedade mundial do presente. (NEVES, Marcelo. 2006. pp. 118-58) 58 NEVES, Marcelo. 2006. pp. 53-58. 59 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho fundamento em princípios, pode ser incluído como um primeiro estágio do nível pós-convencional. Nível pré-convencional: direito revelado - Aqui, não se distinguem as pretensões de validade: mundo social (retidão), objetivo (verdade), e subjetivo (sinceridade). Baseia-se em uma ética mágica fundamentalmente em expectativas de comportamento particulares59. Não existe distinção entre ação e norma, cultura e natureza, indivíduo e coletividade. E não há procedimento de aplicação de normas. Ignoram-se as intenções do agente, dando ênfase aos resultados da ação. Inexiste um terceiro heterônomo capaz de solucionar conflitos, pois, a solução concreta de conflitos é feita mediante autocomposição, autodefesa e retaliação. A coercitividade neste ponto é difusa, através dos próprios indivíduos ou dos rituais. E as penas são rituais, não se apresentando como imposição de uma autoridade, por ter como objetivo restabelecer o status quo ante. Nível convencional: direito tradicional - Distinguem-se as pretensões de validade: mundo social (retidão), objetivo (verdade), e subjetivo (sinceridade), mas ainda de forma intuitiva. A ética é baseada na lei, isto porque, já existe norma como expectativa generalidade de comportamento e há uma distinção entre ação e norma. Aqui, são introduzidos procedimentos de aplicação e execução em virtude da centralização do poder e as violações já são avaliadas de acordo com a intenção do agente. As sanções são vistas como reparação do ilícito, e não mais para restabelecer o status quo ante. E o fato de não existir distinção entre direito, moral e ética, impede uma reflexão crítica das normas a partir de princípios. Nível intermediário entre o convencional e o pós-convencional: direito deduzido - Neste nível, há a existência de princípios à luz dos quais as instituições já podem ser questionadas, porém, ainda não se diferenciam a ética, moral e o jurídico. De modo que, é possível criticar as normas jurídicas 59 60 NEVES, Marcelo. 2006. p. 54. FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho frente a princípios metajurídicos, mas estes não podem ser questionados. Nível pós-convencional: direito positivo - Somente a partir da positivação é que se diferem moral, ética e o jurídico onde as normas já não se confundem mais em princípios metajurídicos, mas especialmente jurídicos, reflexivamente criticáveis60, necessitando de fundamentação racional nos termos de procedimento. O direito positivo, apesar de distinto da moral e da ética, não se caracteriza pela de fundamentação, mas se baseia em princípios. O direito é utilizado como instrumento de poder e do mercado, todavia, exige uma fundamentação ética e moral. Há a distinção clara das pretensões de validade no plano subjetivo, social e objetivo. Habermas concorda com Weber, no sentido de que o direito moderno, é um instrumento do poder e do mercado, mas de forma parcial, pois, acrescenta que é preciso que seus princípios sejam discutidos nos planos ético e moral, dentro de uma moral universalista. Para Habermas são características do direito moderno a positividade, o legalismo e a formalidade, mas também a universalidade, que exige uma justificação moral. O direito, além de ser instrumento do poder e do mercado, deve ser tanto ético quanto moral, deste modo, o direito posto de forma legítima, segundo Habermas, é aquele criticável dentro de uma moral universalista, implicando uma criticabilidade dos princípios jurídicos frente a questões jurídicas, pragmáticas, ético-jurídicas e morais. Por fim, entendemos, que a recepção do modelo psicológico de desenvolvimento cognitivo para teoria da ação comunicativa e pela ética do discurso, transportando-o os níveis da consciência moral do indivíduo para a sociedade e posteriormente para o direito, feita por Habermas, não tem como se enquadrar, empiricamente, na evolução social histórica, exceto em contextos restritos. Isto porque, primeiro não tem como 60 NEVES, Marcelo. 2006. p. 57. 61 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho confundir o modelo ontogenético com o filogenético, e segundo, que nem todos os indivíduos agem da mesma maneira, respeitando o nível de desenvolvimento de sua sociedade. Conclusões Vimos que Habermas entende que o processo evolutivo é conseqüência do desenvolvimento da consciência moral. Associa o amadurecimento cognitivo e moral ao descentramento progressivo da compreensão do mundo nos três domínios de referência: mundos objetivo, social e subjetivo; a distinção entre tipos de ação (estratégica e comunicativa); e à diferenciação de um plano de discurso frente às ações. Assim, com base na ação comunicativa e da ética do discurso, reconstruiu o modelo de desenvolvimento ontogenético, formulado por Piaget, e desenvolvido por Kohlberg, transportando para o âmbito da evolução filogenético. Feito isto, Habermas fez um paralelo dos níveis da consciência moral do indivíduo com a sociedade, concluindo que o desenvolvimento filogenético comporta três níveis de consciência moral: pré-convencional – sociedades arcaicas; convencional – sociedade das culturas avançadas; e pós-convencional – sociedade moderna. Após, associou a cada um dos três níveis de consciência moral, um tipo de direito: nível pré-convencional – direito revelado; nível convencional – direito tradicional; e nível pós-convencional – direito estatuído, formal ou positivo. Acrescentou ainda um nível, que precede a positivação, denominado “direito deduzido”, porém, por ter fundamento em princípios, pode ser incluído como um primeiro estágio do nível pósconvencional. Associar a evolução do direito à sua fundamentação em uma moral universalista, à legitimação procedimental do direito vincula-se a uma criticabilidade dos princípios jurídicos frente a questões jurídicas, 62 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho pragmáticas, ético-políticas e morais. Neste ponto, Habermas distancia de Luhmann, pois, afirma que o direito deve ser fundamentado nos princípios, enquanto Luhmann sustenta que o direito se fundamenta no próprio direito. Para ele, o direito deve ser discutido nos planos éticos e moral, dentro de uma moral universalista. Por fim, concluímos que, exceto em contextos restritos, não é possível enquadrar, empiricamente, o modelo proposto por Habermas, à evolução social na história. 63 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. LOPES, Rafael Ernesto. Introdução à psicologia evolutiva de Jean Piaget. São Paulo: Cultrix, 1993. NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: Uma relação difícil. O Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. PIAGET, Jean. Epistemologia Genética. In: Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril, 1983. __________­­­___. A formação do símbolo da criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. PIAGET, Jean; INHELDER, Bärber. Psicologia da criança. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. WHITE, Stephen K. Razão, justiça e modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. São Paulo: Ícone, 1995. 64 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 3 Constitucionalismo tradicional e constitucionalismo moderno: uma abordagem conforme o pensamento de José Pedro Galvão de Sousa Anthony Tannus Wright Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR. Especialização em Direito Constitucional Contemporâneo no Instituto de Direito Constitucional - IDDC. Mestrando em Direito pela PUC - SP 65 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Introdução Tema central do direito constitucional e, ao mesmo tempo, questão esquecida entre as diversas esferas do âmbito político e jurídico dos últimos séculos, particularmente no Brasil, o conceito do que deve ser uma constituição sob o pensamento de José Pedro Galvão de Sousa oferece, no mínimo, uma séria reflexão acerca do que exatamente deve ser uma lei fundamental do Estado. O presente trabalho tem por objetivo considerar o constitucionalismo tradicional a partir da ótica de José Pedro Galvão de Sousa. Não se trata, contudo, de tecer considerações acerca da Constituição Federal existente ou as havidas no Brasil, mas ainda de abordar no plano dos princípios, de forma ampla, o que se faz necessário para a compreensão universal da verdadeira natureza de uma constituição, quais seriam suas diversas formas possíveis e seus avatares. Com este propósito, será necessário retomar o conceito básico do que corresponde ser a constituição da sociedade, o que é uma constituição do Estado e qual a importância dos grupos intermediários que, na atualidade, são praticamente inexistentes em nossa Terra. Percebeu-se, também, a conveniência de salientar brevemente os erros presentes e explicar, com base na história política, as razões do insucesso do constitucionalismo brasileiro e suas consequências. Com a intenção de justificar a pertinência do tema e os perigos deveras sérios de um pensamento constitucional equivocado, permitiu-se trazer ao artigo um compêndio de fatos que respaldam a ponderação das profecias de Galvão de Sousa, que alerta, em suas obras O Totalitarismo nas origens modernas do Estado (1972) e O Estado Tecnocrático (1973), a privação das liberdades em detrimento do poder estatal. Tendo em vista a atual constituição política do Brasil, cuja única forma de representação política conhecida, majoritariamente, é o sufrágio universal, notou-se como relevante recordar as outras formas do sistema representativo. 66 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Para tanto, foram utilizados os mais variados escritos de José Pedro Galvão de Sousa, dos seus livros aos artigos, em particular, aqueles publicados nos anos 80, em “O Estado de São Paulo”. Ainda com o intuito de melhor elucidar o pensamento do autor em questão, proporcionando-lhe o justo e devido reconhecimento, concedeu-se, no presente artigo, uma breve história deste magnífico pensador. Essa menção não se deve apenas ao fato do mesmo nos ter deixado uma herança intelectual invejável, tampouco tecer somente referências aos seus inúmeros títulos acadêmicos, mas, particularmente, pela forma íntegra que viveu seus oitenta anos como pai de família, amante da pátria e fiel defensor da Fé Católica. 1. José Pedro Galvão de Sousa - breves notas biográficas “[...] ocultava uma energia vital impressionante e uma força interior incomum. Era de uma laboriosidade intelectual incansável”. Clovis Leme García José Pedro Galvão de Sousa foi um dos mais expoentes pensadores tradicionalistas do Brasil, palavras estas afirmadas por D. Francisco de Elías de Tejada, e, posteriormente, confirmadas pelo Catedrático da Universidade Católica de Buenos Aires, Félix Adolfo Lamas, em seu artigo Tradicíon, Tradiciones y Tradicionalismo61. No cenário filosófico jurídico brasileiro, como bem descreve 61 DIP, Ricardo Henry (Org). Tradição, Revolução e Pós-Modernidade. Campinas: Millennium, 2006. p.17. 67 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho José J. Albert Márquez, José Pedro foi conhecido como um dos maiores jusnaturalistas: “no solo por su extension y profundidad, sino también, y fundalmentente por oferecer um marcado caráter pluridisciplinar, puesto que en ella se abordan problemas diversos que van de la teoría del Estado a la filosófia del derecho, del derecho político al derecho constitucional, sin olvidar la sociologia, la história del derecho, y su labor apologética católica”.62 Nascido em 06 de janeiro de 1912, na capital de São Paulo, e vindo a falecer na mesma cidade em 31 de maio de 1992, José Pedro Galvão de Sousa teve a chance, como bem observa o historiador Flávio Lemos Alencar, de viver “plenamente o século XX, seus problemas e dilemas, guerras e crises, revoluções e contrarevoluções”63. No Brasil, presenciou a sucessão de três regimes republicanos, o Estado Novo de Getúlio Vargas, o período militar e a volta da democracia de 1985. Atrelado a estes eventos, teve a oportunidade de acompanhar de perto a promulgação de seis constituições64. Durante os anos 1924 a 1929, José Pedro, junto com seu irmão mais velho, João Batista de Sousa Filho, estudou no Ginásio de São Bento. Lá, dedicou-se em aprender a língua francesa, idioma ensinado conforme o costume da época, a língua inglesa e a literatura de sua “[...] não só por sua extensão e profundidade, senão também, e fundamentalmente por oferecer 62 um marcado caráter multidisciplinar, posto que nela se abordam problemas diversos que vão da teoria do Estado à filosofia de direitos, do direito político ao direito constitucional, sem esquecer a sociologia, a história do direito e seu trabalho apologético católico”. MÁRQUEZ, José J. Albert. Hacia um Estado Corporativo de Justicia: Fundamentos del Derecho y el Estado em José Pedro Galvão de Sousa. Barcelona: Atelier Libros Jurídicos, 2010. p.23. ALENCAR, Flávio Lemos. José Pedro Galvão de Sousa (1912-1992): a influência de Santo Tomás 63 em seu pensamento. Disponível em: http://www.aquinate.net/revista/caleidoscopio/atualidades/ atualidades-9-edicao/Personalidades/atualidades-personalidades-Galvao.html. Acessado em: 04.05.2006. MÁRQUEZ, Op.Cit., p23. 64 68 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho língua materna, a portuguesa. Daí, provavelmente, surgiu seu grande afinco pela leitura, fato que foi registrado após seu falecimento por sua biblioteca pessoal reunir mais de oito mil volumes dos mais diversos assuntos entre história, política, filosofia, passando também pelas obras literárias de José de Alencar e Machado de Assis65. Seus estudos jurídicos começaram em 1930, ano em que ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, notoriamente conhecida como Academia de Direito São Francisco, “por referência ao convento franciscano em que se instalou”66. Em 1935, licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Letras de São Bento, que foi fundada pelo abade beneditino Miguel Kruse. Naquela época, a faculdade mantinha estreitos vínculos com a prestigiosa Universidade De Lovain67. Assim, José Pedro teve a chance de ser aluno de grandes mestres, como do belga tomista Leonardo Van Acker. Ele relataria essa experiência anos depois, em um de seus artigos publicados no “Estado de São Paulo”. No âmbito acadêmico, as atividades de José Pedro Galvão de Sousa não se restringiram ao estudo. Ainda como aluno, fundou e foi presidente da Ação Universitária Católica e do Centro D. Miguel Kruze. Antes mesmo de exercer a carreira de docente, engendrou a escrita de matérias para diversas revistas e jornais. Entre estas, destacase “O Legionário”, jornal publicado pela Congregação Mariana de Santa Cecília, cujo presidente era Plínio Corrêia de Oliveira. Mais tarde, continuou a escrever artigos de caráter sociológico e político no diário paulista “A Gazeta”, e, posteriormente, nos renomados jornais “O Estado de São Paulo” e “O Globo”. Foi presidente da Revista “Hora Presente” e diretor e fundador da revista “Reconquista”; contudo, não sendo suficiente, os escritos de 65 Ibid.,p.25. 66 ALENCAR, Op.Cit. 67 MÁRQUEZ, Op.Cit., p26. 69 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho José Pedro Galvão de Sousa atravessariam o Atlântico: Na Alemanha, no “Jahrbuch des Oeffentilichen Rechts der Gegenwart”, na Espanha, “Estudios Americanos”, em Portugal, “Scientia Iurídica”, e na Itália, “Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto”68. Como historiador e pensador político, em 1935, Galvão de Sousa começou sua carreira docente lecionando sociologia na Escola de Serviço Social69. No ano seguinte, introduziu ao curso de direito as matérias de direito constitucional e direito civil. Ao continuar seus estudos referentes à política brasileira, Galvão de Sousa demonstrou grande interesse em valorar o conflito que ele mesmo denominava de “Brasil institucional” e o “Brasil real”70. Sua vida entre as cadeiras universitárias ainda seria marcada por episódios históricos. Após ser contratado, em 1938, como Assistente de Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento, Galvão de Sousa fez parte da comissão organizadora da Faculdade Paulista de Direito, a qual veio se tornar, em 1948, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUCSP. José Pedro foi professor fundador da mesma universidade, assumindo também a Cátedra de Teoria Geral do Estado. Foi professor da Universidade de São Paulo, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e da Faculdade de São Bento. Mas sua história não foi somente submersa por êxitos e alegria. Em 1940, ao disputar o cargo da Cátedra de Filosofia do Direito da Universidade de São Paulo (USP), José Pedro recebeu a notícia, na noite anterior, por parte de um dos membros do Tribunal examinador, de que o posto já estava comprometido71 possivelmente por motivos políticos 68 MÁRQUEZ, Op.Cit., p29. 69 Ibid.,p.27. 70 Ibid.,p.30. 71 “Como a história se repete, também na vida de cada um de nós! Quando, ainda bem jovem, e seis anos após a formatura, me apresentei ao concurso para catedrático de Filosofia do Direito, fiquei sabendo por um dos examinadores, o Prof. Alexandre Correia, que a Congregação não homologaria o parecer da banca. Isto me foi dito exatamente na véspera da última prova, a prova didática, e bem podes imaginar com que esforço e em que estado de espírito fui dar a 70 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho relacionados a outro candidato, Miguel Reale. Os fins dos anos 40 e início dos 50 foram anos importantes para Galvão de Sousa. Sua primeira viagem à Europa, em 1948, e depois, em 1949, rendeu-lhe a oportunidade de conhecer Francisco Elias de Tejada, que seria, para ele, um irmão. Desta amizade, brotará a José Pedro Galvão de Sousa, grande admirador do integralista lusitano Antônio Sardinha, a possibilidade de se familiarizar com os grandes escritos dos pensadores ibéricos tradicionais, como Juan Vázques de Mella, Guijarro, Juan Donoso Cortés, entre outros. De igual maneira, por conta da sólida amizade firmada, Francisco Elías de Tejada visitou o Brasil, onde conheceu distintos pensadores, como Plínio Correia de Oliveira e Alexandre Correia. No Velho Continente, Galvão de Sousa visitaria, ainda, distintos núcleos culturais, tendo como companheiros, e depois amigos, os esculápios Michel Villey e Gonzague Reynold. Se, para Galvão de Sousa, a Europa trazia boas recordações e fora marcada pelas novas amizades empreitadas e pela profunda admiração ao ambiente cultural existente, no Brasil a situação era bilateralmente oposta. Eram duas as causas de suas desilusões: a primeira, relacionada ao movimento militar de 1964, durante o qual Galvão de Sousa esperava influenciar os adeptos desse movimento para que fosse um instrumento do tradicionalismo político. Porém, com o passar dos anos, verificouse que era necessário um fundamento doutrinal e intelectual mais apurado para os militares, caso contrário não seria possível assegurar o desenvolvimento econômico e a segurança pública. Outro ponto que culminou no fracasso do pensamento tradicionalista entre os militares foi o grande desentendimento com a Associação Integralista Brasileira (AIB), os conhecidos “camisas aula. Sendo os outros concorrentes bem mais fracos, a disputa estava entre eu e o Miguel Reale. Recusada a homologação, este último, por um recurso administrativo, acabou sendo nomeado pelo Presidente Getúlio Vargas, a quem passou a servir, abandonando os seus companheiros do integralismo, então perseguidos pelo mesmo Vargas”. Correspondência privada de José Pedro Galvão de Sousa, Fundácion Franscisco Elías de Tejada y Erasmo Pèrcopo, Madrid. C/74/3/5. In: MÁRQUEZ, Op.Cit., p31. 71 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho verdes”, que exerciam, na época, certa influência entre os militares mais conservadores72. O segundo motivo é, provavelmente, o que lhe mais causaria angústia e tristeza: a perseguição sofrida, em 1963, dentro da própria PUCSP. Na época, difundia-se, na Igreja Católica brasileira, uma divisão de ideologias heterodoxas, sendo mais conhecida a denominada “Teologia da Libertação”, a qual chegou a ter militantes nos mais altos postos desta mesma universidade73. Após anos de intrigas e lutas dentro e fora do âmbito universitário, em 1968, Galvão de Sousa, em reunião com um grupo de amigos de São Paulo, decidiu fundar a revista “Hora Presente”. Essa revista tinha por objetivo defender a honra de Deus e da Igreja no momento em que a Teologia da Libertação estendia seu campo de ação nos seminários, nas escolas católicas, nas universidades e, até mesmo, entre a alta hierarquia da Igreja Católica no Brasil74. A direção da revista ficou a cargo de José Orsini, posto que foi assumido, em 1971, por Clovis Lema García. O apogeu da intriga entre os militantes da Teologia da Libertação e Galvão de Sousa perdurou por dez anos, em 1973-74, momento em que todos os professores ligados a ele — Clovis Leme García, Adib Casseb e José Fraga Teixeira de Carvalho — foram expulsos da universidade por desentendimento de cunho religioso com o bispado de São Paulo. Acusados de terem insultado o Arcebispo de São Paulo e o GrãoChanceler da universidade, os reacionários respondiam às criticas, afirmando que todo católico deve antes obediência ao Papa, e depois ao seu bispo. Tal evento repercutiu, também, no Rio de Janeiro, onde os editorais católicos, como a revista “Permanência” dirigida pelo literato Gustavo Corção, denunciou que a hierarquia eclesiástica brasileira criava uma “Nova Igreja75”. A própria revista “Hora Presente” publicou um 72 MÁRQUEZ, Op.Cit., p34. 73 Ibid.,p.35. 74 Ibid., p.37. CORÇÃO, Gustavo. A descoberta do outro. Disponível em: http://pensadoresbrasileiros.home. 75 72 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho manifesto assinado por Galvão de Sousa, Italo Galli e Lauro de Barros Siciliano, descrevendo a decisão da Cúria Paulista como um “terrorismo cultural” 76. Mesmo diante das adversidades, Galvão de Sousa resolveu remar em outros mares. Após ter passado um período na Europa, onde lecionou como professor convidado, José promoveu as Jornadas Brasileiras de Direito Natural, em São Paulo, no ano de 1977. Participaram daquele evento renomados personagens, como Miguel Ayuso, Monsenhor Dersi77, Clovis Lema, Ibáñez, Juan Vallet Goytisolo, Italo Galli, Gerardo Dantas Barreto, Tomás Barreiro, Ricardo Dip, Margarida Corbusier, Cláudio de Cicco e Francisco de Tejada. Em 1959, José Pedro casou-se com Dona Alexandra Chequer, “persona de cultura y educación esquisitas” com a qual compartilhou todos os êxitos e dissabores de uma vida unida por um inquebrável sentido cristão78. Reflexo desta união são as palavras “diletíssima e delicadíssima esposa”79, com as quais José Pedro descreve sua esposa em uma de suas dedicatórias. Clovis Leme Garcia, grande amigo de Galvão de Sousa e da sua família, atesta que Alexandra “lhe proporciono ininterruptas condições de paz e de tranquilidade para expandir seus dotes intelectuais, acompanhado em constante apoio e estímulo para que pudesse elaborar o valido legado que deixou”.80 Como pai de família, Galvão de Sousa comcast.net/pensadoresbrasileiros/GustavoCorcao/a_ descoberta_da_outra.htm. Acessado em: 04.05.2011. MÁRQUEZ, Op.Cit., p. 35. 76 77 Nasceu em 1907, faleceu em 2002. Foi arcebispo católico, filósofo argentino, um dos principais promotores do neotomismo, além de ser fundador da Universidade Católica da Argentina. Disponível em: http://www.filosofia.org/ave/001/a080.htm. Acessado em: 04.05.2011. 78 “pessoa de cultura e educação rara (...) com quem compartilhou os êxitos e dissabores de toda uma vida unida por um inquebrável sentido cristão de existência”. MÁRQUEZ, Op.Cit., p38. 79 Ibid., p.38. 80 GARCIA, Clovis Leme. Elogio do Patrono José Pedro Galvão de Sousa. Disponível em: http:// www.fundacioneliasdetejada.org/Documentacion/Anales/PDF%20ANALES%2001/ANA01063- 074.pdf. Acessado em: 04.05.2011. 73 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho deixou três filhos, José Pedro, Miguel Fernando e João Batista, que não seguiram sua trajetória jurídica. Como todo grande intelectual, Galvão de Sousa nos deixou alguns discípulos: Ricardo Henry Dip, Clovis Leme Garcia, José Fraga de Teixeira de Carvalho, Manuel Octaviano Junqueira Filho, José Guarany Orsini e Luiz Marcelo de Azevedo. Ainda no relato de Ricardo Dip, muitos que conheceram José Pedro e frequentaram o Centro de Estudos de Direito Natural, permaneceram influenciados por seu pensamento. Como exemplo, são citados Jaques De Camargo Penteado, Vicente de Abreu Amadei, José Antonio Paula Santos, Luciano Camargo Penteado, dentre outros. Nota-se, ainda, que José Pedro testou seu pensamento em variados artigos e livros relacionados à história, política, filosofia e ao direito. Diante da imensa vastidão, como explica Flávio Alencar, fica impraticável citar todas as suas obras. Contudo, pelos títulos de alguns de seus livros, pode-se ter uma noção dos temas tratados: O Positivismo Jurídico e o Direito Natural (1940), Conceito e Natureza da Sociedade Política (1949), Formação Brasileira e Comunidade Lusíada (1954), História do Direito Público Brasileiro (1962), Da Representação Política (1971), O Totalitarismo nas Origens da Moderna Teoria do Estado, Um Estudo sobre o “Defensor Pacis” de Marsílio de Pádua (1972), O Pensamento Político de São Tomás de Aquino (1980) e Dicionário de Política (1998, póstumo)81. Não obstante ter sido o homem que foi o nome de José Pedro Galvão de Sousa é um anonimato no orbe jurídico e acadêmico, inclusive na PUCSP. Hoje, seu nome é mais conhecido e difundido nos países de língua espanhola do que no solo onde nasceu. Na Espanha, particularmente o já falecido Rafael Gambra e Miguel Ayuso, amigos pessoais de Galvão de Sousa, publicaram dois livros em sua homenagem, intitulados “José Pedro Galvão de Sousa, filósofo del Derecho y iuspublicista” e “La 81 74 ALENCAR, Op.Cit. FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho representación política en la obra de José Pedro Galvão de Sousa82. Com a morte de José Pedro Galvão de Sousa, o Centro de Estudos de Direito Natural, cuja atividade permanece até hoje, em São Paulo, integra seu nome, sob a presidência de Clovis Leme. Ciente da história e do patrimônio cultural legado por José Pedro Galvão de Sousa, tendo sido ilustre jurista brasileiro, tradicionalista político e promitente difusor do jusnaturalismo, os leitores do presente artigo terão, agora, a chance de compreender seu pensamento, de forma mais aguçada, no que se refere ao Direito Constitucional. 2. A ideia de constituição “Uma constituição não é tudo, não pode dispor a respeito de tudo, não é um projeto de construção nacional, muito menos uma regulamentação minuciosa da vida social, e tampouco deve ser um conglomerado de preceitos abrangendo todos os ramos de direito público e do direito privado”. José Pedro Galvão de Sousa A constituição enquanto lei fundamental do Estado, conforme conhecemos, surge, por assim dizer, depois da Revolução de 1789 e da 82 MÁRQUEZ, Op.Cit., p. 41. 75 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho formação dos Estados Unidos da América. Antes, o termo empregado era “leis fundamentais”, por não possuir, exatamente, a mesma estruturação. Entende-se, dessa maneira, que a constituição pode ser uma lei escrita, como no caso do Brasil, ou um conjunto de regras estabelecidas dominantemente pelos costumes, como ocorre no Reino Unido. A primeira constituição similar à que vigora, atualmente, refere-se à constituição norte-americana, de 1787, que foi escrita e sistematizada decorrente do fato da Carta Magna Britânica, datada do século XIII, abordar a garantia dos direitos e a limitação do poder, características essas próprias do regime constitucional. Outros historiadores apontam essa legislação como o primeiro esboço de uma constituição política moderna. Ressalva-se, aqui, a pertinência de retroagir e estudar os avatares do constitucionalismo. No período medieval, o constitucionalismo emanava de duas fontes: o direito natural e o direito histórico. Por direito natural, explica José Pedro: O direito é essencialmente o justo, quer dizer, o objeto da justiça. Desde logo, pois, a idéia de direito implica o reconhecimento do direito natural. Isto porque o justo não é criação do homem, mas decorre de uma ordem objetiva de justiça, a ser respeitada por todos e inalterável aos caprichos de cada um83. O direito natural afasta um critério subjetivo de justiça, dando à ordem jurídica fundamentação ética e metafísica. Cícero, em sua obra De Legibus (Das Leis), já expunha que o direito natural não resulta das opiniões dos homens, mas uma força inata o insere em nós. Desta forma, a palavra natural, quando em referência ao direito natural, significa algo intrínseco e essencial, e não acidental e contingente. Seriam os chamados princípios 83 SOUSA, José Pedro Galvão; GARCIA, Clovis Leme; CARVALHO, José Fraga Teixeira. Dicionário de Política. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1998. p.179. 76 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho sinderéticos, presentes em Aristóteles e, posteriormente, desenvolvidos por Tomás de Aquino. Decorrentes destes, os primeiros princípios do direito natural são: 1º a sindérese que fornece os princípios universais; 2º a razão estendendo-se e tirando conclusões; 3º a consciência, com a lei natural, conhecida pela razão, sendo aplicada à situação particular. Como exemplo, tem-se: 1º princípio sinderético: evitar o mal; 2º afirmativa da razão: o adultério é um mal, por ser ação desonesta e injusta; 3º juízo da consciência: este adultério deve ser evitado84. Contudo, o direito natural, por si só, não basta enquanto regra de vida, devendo ser complementado com o direito positivo, seja este consuetudinário ou legal.85 Incumbe-se à autoridade competente concretizar os princípios do direito natural “para aplicar as máximas gerais às particularidades da vida social”. 86 Daí tem-se em conta o chamado direito histórico, considerando as circunstâncias de tempo e lugar. Estes elementos foram apontados pelo jurista francês François Gény, ao estudar a elaboração científica do direito privado e direito público, com os termos: dado (le donné) e o construído (le construit)87. Nas palavras de Galvão de Sousa: Ante os dados reais, históricos, racionais e ideais de sociedades em que vive, o legislador elabora a norma (no caso, o legislador constituinte e a norma constitucional). A constituição escrita é uma construção do legislador, que deve ser devidamente adequada aos dados do meio ambiente, da época e da formação histórica e cultural do povo88. 84 Ibid.loc.cit. 85 Ibid.,loc.cit 86 Ibid.loc.cit. 87 FILHO, Rogério Machado Mello. A Aplicação do Direito sob a Ótica das Escolas de Interpretação das Normas jurídicas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/ rev_50/ artigos/art_rogerio.htm#IV.III. Acessado em: 04.05.2006. 88 SOUSA, José Pedro Galvão. O que deve ser uma constituição. São Paulo: Edições Pátria. Estado de São Paulo, 1987. p.08. 77 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Portanto, é equivocada a crítica feita ao jusnaturalismo clássico, na medida em que se alega que o direito natural é um “direito utópico”, pois a universalidade do direito natural não significa uniformidade nas leis e nos regimes políticos de sociedades diversas. Faz-se necessário perceber que a constituição jurídico-formal do Estado deve estar em conformidade com a constituição social e histórica da nação, sendo essa composta por famílias e demais grupos, cuja legítima liberdade deve ser respeitada pelo Estado. A constituição natural da família, sendo sempre anterior ao próprio Estado, não cede fundamentos para que a burocracia ou os órgãos estatais sufoquem os deveres e direitos familiares ou das agremiações autônomas devidamente constituídas. 3. A constituição da sociedade e a constituição do estado “O que há precisamente de mais fundamental e de mais essencial constitucional nas leis de uma Nação não pode ser escrito”. Joseph de Maistre A sociedade é a “união moral e estável de homens que buscam um fim comum debaixo de uma autoridade”89, conforme afirma Galvão de Sousa. Nesse sentido, somente os seres humanos, seres inteligentes, podem viver em sociedade, por ser, somente eles, dotados de consciência e liberdade, podendo discernir, assim, a forma de cooperação, a união GALVÃO DE SOUSA, José Pedro Galvão. Iniciação à teoria do Estado. São Paulo: Revista dos 89 Tribunais, 1976. p.01. 78 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho moral. É necessária, também, a presença de estabilidade, porque, para a constituição de sociedade, não basta a reunião de homens em um estádio de futebol ou outro evento temporário. Ao mesmo tempo, deriva dessa união o objetivo de um fim comum a todos, já que sozinho o homem não pode alcançar tudo que precisa. Por mais difícil que se possa parecer, é necessário, contudo, que exista uma autoridade, já que a reunião de pessoas gera divergências para a tomada de decisões, e, sem uma autoridade que faça convergir a atuação de todos para o bem geral, não se realiza o desígnio de todos90. A constituição da sociedade é algo intrínseco à mesma, como já recordara Joseph de Maistre; ao explicar que “nenhuma constituição resulta de uma deliberação, tinha em vista a constituição da sociedade”91. Deriva, com isso, o sentido mais literal da palavra constituição, ação de constituir, isto é, “de formar alguma coisa, sendo empregada também para expressar o conjunto dos elementos que formam um ser, a natureza de todo daí resultante”92. Enquanto tal, no sentido mais sociológico que jurídico, o termo “constituição” é empregado de forma mais abrangente. Logo, não é um termo unívoco, ou equívoco, mas análogo, podendo ter vários sentidos relacionados entre si93. Faz-se indispensável, antes de se pensar em uma constituição jurídico-formal, engendrar o estudo da constituição da sociedade, levando em conta as particularidades deste organismo vivo que forma um povo, com suas práticas sociais, costume, religião, situação geográfica, afinidades políticas, pobrezas, riquezas, vícios e virtudes. Este conhecimento prévio da constituição da sociedade é imprescindível para compreender quais seriam os elementos a estar devidamente contidos na constituição escrita, sendo que esta deve ser 90 GALVÃO DE SOUSA. Op.Cit., 1976. p.02. 91 Ibid Op.Cit., p.127. 92 Ibid Op.Cit., p.127. 93 GALVÃO DE SOUSA.,1987. p.08 79 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho correspondente à constituição real da sociedade, não se apresentando como mera abstração. Deriva, assim, a constituição jurídica do Estado, que deve conformar-se à constituição histórica da sociedade sem esquecerse da base metafísica do direito natural. O esquecimento ou a simples não consideração dos elementos fundamentais como a família, mater da sociedade leva a constituição escrita a um fracasso sem precedentes. 4. Paraconstituição e contraconstituição “A essas deformações – e a tais conseqüências no plano político – se prestam as constituições como cartas ideológicas abstratas e não como instrumentos pragmáticos eficazes de uma técnica do poder uma técnica de liberdade”. José Pedro Galvão de Sousa Georges Daskalakis classifica como “paraconstituição” e “contraconstituição” dois possíveis fenômenos que acontecem no caso da constituição formal não corresponder à constituição escrita, ou seja, quando há uma desarmonia entre o país legal e o país real94. No primeiro caso (paraconstituição), ele explica que a constituição formal continua em vigor, mas é modificada, nas suas aplicações, por regras do direito escrito, por costumes, pela interpretação e por usos constitucionais. 94 80 Ibid. p.11. FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Podemos citar, como exemplo, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a união estável homossexual como entidade familiar, sendo que a própria Constituição Federal (art.226)95 é clara ao mencionar somente a união entre homem e mulher como legítima. O segundo caso (contra-constituição), diz respeito à situação na qual a constituição, segundo Karl Loewenstei96, se transforma em chiffon de papier e as práticas públicas se desenrolam na contramão das intenções, enquanto as instituições fundamentais contradizem o regime constitucional formalmente estabelecido. Verifica-se, com facilidade, esse tipo de situação nas constituições europeias formuladas após a Segunda Guerra Mundial. Estas constituições foram criadas na tese do poder constituinte, a qual, segundo a formulação dada por Emmanuel Joseph Sieyès, tem como concepção a base erroneamente colocada no poder originário, independente de qualquer outro poder não limitado por lei, caracterizando como plenitude a vontade geral do povo, conforme desejava Rousseau. Resulta-se, assim, que as novas constituições formuladas com base neste pensamento são sempre um fracasso, pois sua elaboração tem como fundamento o caráter ideológico presente na mente do legislador97. Não são casuais as elaborações de constituições liberais vindouras da Revolução Francesa, cedendo à vontade do príncipe como força de lei, mas que agora transporta o poder do príncipe para o povo, tornando a constituição uma criação e- nihilio da ordem jurídica. A história do Direito Constitucional Brasileiro sofre até os dias atuais as terríveis consequências deste pensamento, como descreve José Pedro: 95 Art. 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. . (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constitui%C3%A7ao.htm. Acessado em: 05.05.2011). 96 GALVÃO DE SOUSA, Op.Cit., 1976. p.132. 97 GALVÃO DE SOUSA, Op.Cit., 1987. p.10 81 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho é um suceder de constituições, paraconstituições e contraconstituições, reduzindo a nada o mito de estabilidade constitucional. Deve-se isso em grande parte ao -idealismo utópico- das elites marginais, alheias às realidades sociais e à nossa formação histórica98. Observação idêntica à mencionada por Oliveira Vianna, em seu estudo “Idealismo na evolução política do Império e da República”, ao descrever que essa situação de constitucionais abstratas era perfeita para políticos de carreira, demagogos e aventureiros se servirem da democracia para conseguirem posições distintas. Por estas deformações constitucionais, o Brasil, desde 1824, teve promulgadas oito constituições (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967/69 e 1988), sem mencionar os diversos atos legislativos que visaram alterar as constituições, como, no caso atual, as emendas. Ainda pela forte abstração ideológica presente nas constituições e pelos perigos do paraconstitucionalismo e contraconstitucionalismo, conforme anteriormente indicados, pode-se averiguar uma crescente totalitarização do Estado pela via democrática, de acordo com o que planejou Antonio Gramsci, confirmando as previsões feitas por Donoso Cortes e Alexis Tocqueville99. 5. Os grupos intermediários “Os grupos intermediários respaldam a liberdade dos homens, exposta a sucumbir no 98 Ibid. p.11. 99 Ibid. p.7. 82 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho regime individualista e na livre concorrência desordenada, em que os mais fortes esmagam os mais fracos, ou ainda na concorrência regulamentada exclusivamente pelo Estado”. José Pedro Galvão de Sousa Com a vinda das constituições modernas carentes de pressupostos históricos e sendo elaboradas como cartas de ideias políticas impraticáveis, faz-se existente o risco iminente de que os regimes democráticos sejam, cada vez mais, levados à centralização de poder. È possível averiguar essa tendência, de uma maneira mais clara, na Venezuela de Hugo Chaves, país em que o próprio presidente, em nome de salvaguardar a democracia, altera a Constituição. Vemos, também, nos governos militares centralizadores que foram trocados pelos governos do séc. XX e XXI, a invocação do constitucionalismo moderno democrático, mantendo, contudo, e até aumentando a centralização, em detrimento das liberdades. Diante dessa realidade política, é notório lembrar que o Estado deve ter sua devida parcela de poder, mas, ao mesmo tempo, não pode restringir a liberdade exercida por seus indivíduos, tampouco estrangular as autonomias dos grupos sociais. Neste sentido, como defendeu, nos anos 20 e 30, Hipolito Irigoyen, presidente da Argentina: A constituição da família é matéria de suma gravidade e de importância tal que, a respeito dela, os deputados não 83 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho podem deliberar invocando a eventual delegação popular que receberam100. Evidenciava-se, assim, a obrigação do Estado em salvaguardar e não sufocar a família, célula social por excelência e constituição natural de qualquer sociedade. O Estado deve respeitar os grupos intermediários, pois “entre as famílias e o Estado, há numerosos grupos que compõem a sociedade global”, fato esse muitas vezes esquecido após a doutrinação iluminista que corroborou para o individualismo, produtora do Estado moderno. Essa vê a criação deste com base no “contrato social”, sendo ele nada mais do que a soma de todo cidadão. Tal colocação deixa de considerar o homem em família ou pertencente a um grupo, além da sociedade civil como conjunto orgânico de grupos. A preocupação de José Pedro Galvão de Sousa reside no fato de que o homem, ao ser considerado indivíduo isolado, e sendo o Estado o único a exercer a regulamentação da vida social, teria como implicação, necessariamente, um Estado totalitário. Para tanto, seria necessária a existência dos grupos intermediários, como as associações profissionais, grêmios de esportes e centros culturais, cujo poder normativo não fosse de incumbência, necessariamente, do Estado, mas de autoridades sociais dos respectivos grupos ou de um município, as quais garantissem, em face da união, sua autonomia. Além disso, já explicava Galvão de Sousa, acerca do perigo que acarretava o enfraquecimento dos grupos intermediários: A debilitação, quando não o desaparecimento, dos grupos intermediários deixa campo livre para as exorbitantes interferências estatais na ordem privada. Perde-se a noção de um princípio importantíssimo e de grande alcance; o princípio 100 84 Ibid. p.14. FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho de subsidiariedade, segundo o qual o Estado não deve chamar a si as tarefas de que se podem desempenhar as sociedades menores, limitando-se a supri-las, nesse desempenho, com subsídio prestado em caso de deficiência ou falta de meios para atingir finalidades mais amplas101. Injustificável é a atuação de um Estado que outorga a si todas as prerrogativas econômicas, tornando-se um Estado empresarial, suprimindo a livre economia de mercado e, ainda, desempenhando o papel de um Estado educador, que não permitisse a educação privada. O Estado deve se preocupar menos com as funções produtoras de diminuição da liberdade das pessoas e deve passar a atuar, de forma mais eficaz, no âmbito que seja verdadeiramente de sua competência, como, por exemplo, a área de segurança nacional e saúde pública. Ao invés disso, vê-se uma crescente burocracia e uma má administração em âmbitos que deveriam ser considerados e trabalhados como prioridade nacional. A constituição que desconsidera a necessidade dos grupos intermediários exime-se do que seria o mais importante, ou seja, da identidade nacional e cultural daquele povo para a qual ela está a serviço e foi elaborada. Quando isso não ocorre, as disposições constitucionais que regulamentam a separação de poderes são vãs, pois o único elemento que garante “uma barreira à invasão, pelo Estado, da ordem privada, com grave dano para as liberdades pessoais e associativas” 102 é a existência dos grupos intermediários. 6. Da representação política “A representação em direito político é completamente distinta 101 Ibid. p.16. 102 Ibid.loc.Cit. 85 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho da representação em direito privado”. Carl Schmitt Escrevia José Pedro Galvão de Sousa: “o problema mais relevante, na elaboração constitucional, é a representação política”103. Não por acaso publicou, em 1971, um livro dedicado, exclusivamente, a este tema104. A história acerca dos sistemas de representação política pode ser divida em duas partes. A primeira, referente à representação tradicional decorrente da Idade Média, e o segundo sistema enquanto representativo dos Estados Modernos, nascido da revolução de 1789. 105 Para facilitar a compreensão e a diferença entre a mentalidade tradicional e moderna, recorre-se a Heraldo Barbury, autor que, em um de seus artigos, engloba toda a questão. O problema de se saber como a sociedade deve ser se reduz ao de saber como a sociedade é. Ora, para esta pergunta só há três respostas possíveis: 1º ou a sociedade é uma hierarquia de grupos; 2º ou a sociedade é uma soma de indivíduos; 3º ou a sociedade é massa informe106. A citação de Barbury é esclarecedora, pois, na representação tradicional, a sociedade era ordenada conforme uma hierarquia estabelecida e grupos. Isso pode ser visto ao analisarmos a organização da sociedade na qual a família desempenhava papel fundamental, em que o feudalismo (França) transformava os grupos de famílias em 103 Ibid. p.18. 104 SOUSA, José Pedro Galvão. Da representação Política. São Paulo: Saraiva, 1971. 105 SOUSA, Op.Cit., 1976. p.82. 106 Ibid. p.86. 86 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho miniestados e o barão exercia os poderes inerentes à soberania, como militar, tributação e justiça. Ainda, tinha-se, conforme recordaram historiadores, a divisão entre clero, nobreza e povo, nomeados de formas distintas, em diferentes países, mas organizados de forma semelhante, tais como “Estados gerais”, na França, “parlamento”, na Inglaterra e “cortes”, em Portugal. 107 Recorda-se que, naquela época, não havia autoridades sociais de fato que representassem a classe popular, tendo apenas o clero e a nobreza esse tipo de privilégio. Somente muito tempo depois, em Portugal, houve a ocorrência do sistema representativo por meio dos procuradores, os quais, por um mandato imperativo, apresentavam as reivindicações da classe popular. O soberano, ainda, exercia o poder legislativo, mas dispunha dos legistas que o auxiliavam na elaboração das leis. Ao mesmo tempo, os corpos representativos (“cortes, parlamento”) preenchiam a lacuna entre sociedade e poder108. Após a Revolução Francesa, este sistema representativo foi colocado em xeque, vindo a ser substituído pela concepção errônea da obra de Rousseau, Contrato Social, a qual nega a sociabilidade natural do homem, defendendo o seu “estado de natureza”. 109Esse seria o estado no qual o homem vivia feliz por ter sido dotado de uma liberdade total, até que resolveu, por um ato livre desta mesma liberdade, estabelecer um contrato social com os outros indivíduos, abdicando de sua liberdade em prol do conjunto. Para o pensador francês, a autoridade não existiria caso não houvesse o consentimento e a soma de todas as liberdades individuais, sendo que somente a soma de cada liberdade individual seria o que compõe o Estado. Já que todos os homens, por natureza, seriam iguais e livres, não caberia a ninguém exercer, propriamente, a soberania, pois este é nada mais do que o resultado de uma união em que todos os 107 Ibid. p.85. 108 SOUSA, José Pedro Galvão. Da representação Política. São Paulo: Saraiva, 1971. 109 Ibid. p.87. 87 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho indivíduos livremente cedem sua liberdade110. Decorrente do pensamento acima proposto, a concepção de que o povo é soberano e de que a autoridade emana do povo resultaria na ausência da razão da existência das sociedades intermediárias – grupos intermediários – uma vez que existiria, agora, o elo direto entre indivíduo e o Estado. Daí decorre a base da democracia, ou seja, do regime político em que o povo se autogoverna. Ciente de que o regime democrático direto de Rousseau é inexequível, a não ser em pequenas cidades, surgem as democracias indiretas, nas quais o povo elege seu representante, atribuindo-lhe o poder de mandato. Nomeou-se esse tipo governamental de representativo. 111 Auxiliado por toda essa ideia de representação política de sufrágio universal, com base no voto individual e igualitário, sendo a liberdade considerada como a raiz de soberania e culminada com as inovações no campo da tecnologia e urbanização, José Pedro Galvão de Sousa sintetiza a atual crise política que defrontamos: Com os métodos modernos de propaganda, acompanhado à urbanização da vida, a soma dos indivíduos se transforma na massa amorfa, tangida pelas oligarquias partidárias ou pelos demagogos, e organizada compulsoriamente pelo Estado, mediante a burocracia dos ministérios, departamentos e institutos, a uns e outros servindo os modernos meios de comunicação de massa como veículos de propaganda [...]. Este peso da máquina estatal tira cada vez mais o sentido da representação política, que já deixara de ser uma autêntica representação, pois só por uma ficção se poderia dizer que os deputados representam a vontade do povo112. 110 Ibid.loc.Cit. 111 Ibid. p.92. 112 Ibid. p.89. 88 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho A partir dessas colocações e observados os dois moldes de representação política, a tradicional e a moderna, deve-se ter claro que, na representação tradicional, as reivindicações políticas ocorriam através dos diversos grupos de categoria social que expressavam suas aspirações à autoridade. O povo, assim, tinha como controlar o abuso de poder por meio das bases corporativas, pois se tinha um verdadeiro contato representado, que, pelo “mandato imperativo”, sabia, exatamente, quais eram suas incumbências113. Outro fator que se deve salientar acerca do sistema tradicional está voltado para a elaboração das leis. Diferentemente das assembleias legislativas constituídas, hoje, por leigos na matéria, para não dizer iletrados, tinha-se, naquela época, uma verdadeira preocupação com a competência e formação detida pelos governantes. O soberano, além de ser educado para as tarefas específicas do governo, tinha a seu dispor um corpo de juristas para seu auxílio114. No entanto, não importa, nos governos representativos modernos, o nível de qualificação dos que compõem a assembleia, nem “a sua competência ou incompetência. Não importa, tampouco, que haja evidente distanciamento entre a vontade dos eleitores e a dos deputados que os representam, os quais costumam fazer prevalecer a sua própria vontade”115, quase sem qualquer possibilidade de um controle popular eficiente. A relação entre o sistema de representação e a constituição se dá no fato de que somente em um sistema no qual exista uma representação política autêntica terá a constituição uma vinculação com o sucesso. Pode se citar, como exemplo, a Inglaterra, país que não tem uma constituição escrita, como a Brasileira, mas que, ao preservar os grupos intermediários, 113 Ibid. p.92. 114 Ibid. p.92. 115 Ibid.loc.cit. 89 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho consegue uma representação política satisfatória. 116 Isso se deve ao fato de que o sistema constitucional britânico preservou sua continuidade histórica e não absorveu as concepções individualistas francesas. Conclusões A constituição não deve ter como objetivo regular todas as esferas da vida social, tampouco pode englobar os mais diversos ramos do direito público e privado. Como lei fundamental do Estado, deve a constituição levar em consideração o direito natural, que não advém do desejo de um homem particular (rei), nem da mera vontade da maioria (sufrágio universal), mas decorre de uma ordem objetiva de justiça. Em vista dos argumentos apresentados, a constituição que não nutre de tais fontes jamais cumprirá sua finalidade. No entanto, para existir a efetividade da constituição não basta, por si só, o direito natural; é necessário o direito positivo, seja legal ou com base nos costumes (consuetudinário). Cabe, então, ao governo competente, dotado de autoridade, aplicar o direito natural às particularidades da vida social. Decorrente dessa ação, surge a necessidade do direito histórico que considera as circunstâncias de tempo e lugar para elaboração das normas. Viu-se, que o direito histórico considera a constituição da sociedade fazendo referência à união moral e estável de homens que buscam um fim comum debaixo de uma autoridade. Leva-se em conta, portanto, que antes de efetivar a elaboração do texto constitucional faz-se o reconhecimento da família como célula mater de qualquer sociedade e a ciência das características desta célula viva, da sociedade: seus costumes, deformidades, qualidades, etc. Restou explicar a “paraconstituição” e “contraconstituição” com o objetivo de abordar as possíveis conseqüências de uma constituição 116 90 Ibid. p.93. FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho que não tem em seu regimento e como fundamento o direito natural e o direito histórico. Desta forma, foi visto que as constituições modernas, particularmente as promulgadas após a Segunda Guerra Mundial ignoram o direito natural, tendo o poder originário como ilimitado. Ainda, a respeito das constituições modernas, observou-se que muitas não passam de cartas políticas, ou seja, são elaboradas a partir de um viés claramente ideológico e utópico, deixando de corresponder à sua verdadeira finalidade. Pela observação dos aspectos analisados, os grupos intermediários são peças fundamentais dentro do Estado. Sem tais grupos fundamentais, o Estado corre o risco de sufocar as liberdades individuais. Estes grupos, como o próprio nome diz, são indispensáveis, pois cabe a eles preencher a lacuna política entre as famílias e o Estado. Neste sentido, sem os grupos intermediários o homem é visto pelo Estado como um ser isolado e solitário, sendo necessário o próprio Estado regulamentar toda a vida social, tornando-se, assim, um Estado totalitário. Para tanto, é de vital importância a existência destes grupos, pois, ao se unirem, preservariam de forma real os interesses próprios e as liberdades pessoais. O tema da representação política teve relevância maior no campo histórico e teórico em detrimento da apresentada no campo prático. Não era objetivo do presente trabalho dizer como seria uma representação política ideal para o Brasil do séc. XXI, tampouco a ideia traduziu-se em transportar o sistema do tradicionalismo político aos dias de hoje. Nesse sentido, fez-se necessário tratar da representação política para elucidar que, mesmo após as “comemoradas” mudanças derivadas da Revolução Francesa, o moderno sistema de representatividade contém graves falhas, ao ponto de muitas vezes não ser um sistema que represente politicamente o povo. Visto isso, pode-se dizer que uma constituição, seja escrita ou consuetudinária, deve respeitar sempre direito natural e aplicá91 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho lo conforme o direito histórico, observando as peculiaridades de cada sociedade. Para tanto, é necessária a existência dos grupos intermediários, os quais darão aos representantes políticos uma resposta realista das características da própria sociedade que está sob o seu comando e da qual exerce representatividade. 92 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências ALENCAR, Flávio Lemos. José Pedro Galvão de Sousa (1912-1992): a influência de Santo Tomás em seu pensamento. Disponível em: http://www.aquinate.net/revista/caleidoscopio/atualidades/atualidades9-edicao/Personalidades/atualidades-personalidades-Galvao.html. Acessado em: 04.05.2006. CORÇÃO, Gustavo. A Descoberta do Outro. Disponível em: http:// pensadoresbrasileiros.home.comcast.net/pensadoresbrasileiros/ GustavoCorcao/a_descoberta_da_outra.htm. Acessado em: 04.05.2011. DIP, Ricardo Henry (Org). Tradição, Revolução e Pós-Modernidade. Campinas: Millennium, 2006. FILHO, Rogério Machado Mello. A Aplicação do Direito sob a Ótica das Escolas de Interpretação das Normas Jurídicas. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/revista/ rev_50/artigos/art_rogerio.htm#IV.III. Acessado em: 04.05.2006. GALVÃO DE SOUSA, José Pedro. O Positivismo Jurídico e o Direito Natural. São Paulo: Revista do Tribunais, 1940. _____________. Da Representação Política. São Paulo: Saraiva, 1971. _____________. A Historicidade do Direito e a Elaboração Legislativa. São Paulo: Saraiva, 1970. _____________. Dicionário de Política. São Paulo: T.A Queiroz, 1998. _____________. O Estado Tecnocrático. São Paulo: Saraiva, 1973. 93 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho _____________. História do Direito Político Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1962. _____________. Raízes Históricas da Crise Política Brasileira. São Paulo: Vozes, Petrópolis, 1965. _____________. O que deve ser uma Constituição. São Paulo: Pátria, 1987. _____________. Conceito e Natureza de Sociedade Política. São Paulo, 1949. _____________. Iniciação à Teoria do Estado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. _____________. O Crescimento do Estado e o Enfraquecimento da Sociedade. São Paulo, Revista Pensamento Brasileiro, 1981. _____________. A Importância Capital dos Grupos Intermediários. São Paulo: Jornal O Estado de São Paulo, 20 de janeiro de 1988. GARCIA, Clovis Leme. Elogio do Patrono José Pedro Galvão de Sousa. Disponível em: http://www.fundacioneliasdetejada.org/Documentacion/ Anales/PDF%20ANALES%2001/ANA01-063- 074.pdf. Acessado em: 04.05.2011. MÁRQUEZ, José J. Albert. Hacia um Estado Corporativo de Justicia: Fundamentos del Derecho y el Estado em José Pedro Galvão de Sousa. Barcelona: Atelier Libros Jurídicos, 2010. 94 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 4 Ensaio sobre direito e cidadania na cultura popular Belmiro Jorge Patto Mestre em Direito Processual e Cidadania pela Universidade Paranaense – UNIPAR. Doutorando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP. Professor de Processo Penal na Universidade Estadual de Maringá – UEM. Advogado em Maringá (PR). 95 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Cidadão (Composição: Moraes Moreira/Capinam) Na mão do poeta O sol se levanta E a lua se deita Na côncava praça Aponta o poente O apronte o levante Crescente da massa Aos pés do poeta A raça descansa De olho na festa E o céu abençoa Essa fé tão profana Oh! Minha gente baiana Goza mesmo que doa REFRÃO Abolição No coração do poeta Cabe a multidão Quem sabe essa praça repleta Navio negreiro já era Agora quem manda é a galera Nessa cidade nação Cidadão Advertência Como em uma Overture, é preciso uma advertência paradoxal sobre a metodologia que pretendemos aplicar ao presente trabalho. É que seria incongruente adotar as regras usuais da pesquisa científica em texto 96 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho como o nosso, uma vez que o que questionaremos será justamente a falta de criatividade que perpassa a dogmática jurídica em seus mais variados contextos. Não seria diferente ao tratar do problema da metodologia, pois de outro modo estaríamos admitindo na prática aquilo que em teoria desejaríamos questionar. Ou seja, aqui não se fará uso de citações ou mesmo de referências bibliográficas nos termos das regras usuais, mas submeteremos a um outro regime essas questões, esperando demonstrar ser possível, na esteira do que refere, por exemplo, Stengers, novas possibilidades metodológicas na própria pesquisa científica. Assim, o texto requer que seja expresso numa forma que, à primeira vista, não se conforma com as regras usuais estabelecidas para a pesquisa, mas que, no entanto, não inviabiliza a localização das referências apontadas. Desse modo, os autores referidos deverão ser pensados no contexto geral de suas obras, uma vez que entendemos a técnica da citação em nota de roda-pé, por exemplo, um recorte indevido do todo da obra dos autores que se quer referir. Ora, não se pode mais descurar na pesquisa dessas “incongruências” que podem deturpar, não raro, o sentido que deu ao texto o próprio autor. O caráter paradoxal é apontado no sentido de que o rigor, aqui também buscado, não se confunde com certeza, como muito bem já advertiu Deleuze em vários de seus belíssimos textos. Fica então apontado o caminho sem que isso signifique privar as possíveis conexões que serão feitas pelo próprio leitor. A estruturação do texto também se utiliza da linguagem musical, bem como poética, para separar as várias secções, denotando ser possível a multidisciplinaridade da qual tanto se refere e pouco se insere nos trabalhos científicos sem que isso signifique completude de sentidos; no limite, apenas estranhamentos. Usamos, ademais, trechos do próprio poema da canção que ensaiamos como forma de dar consistência ao texto através da poesia, suas potências liberadoras, uma vez que não raro seu(s) sentido(s) ultrapassa(m) as próprias palavras. 97 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Introdução Na mão do poeta O sol se levanta E a lua se deita A idéia de falar sobre a música popular e sua interação com a vida pública no Brasil já é de per si bastante instigante. Para mim, que pessoalmente tenho uma relação muito próxima com a música (toquei profissionalmente por 15 anos), a alegria é dupla. O caminho histórico do direito e da cultura popular são efetivamente muito imbricados, pois se hoje se pode gozar com certa tranqüilidade as conquistas, isso não significa que o passado não foi de lutas e muitas vezes com ingredientes de frustração e tristeza. Mas já disse Caetano Veloso: A tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim... E são dessas lutas que nos contam os poetas que somos chamados a dizer algumas coisas sobre esta improvável conexão entre o direito e aquilo que passa pela cidade como um afoxé, a festa, a sagração. Vamos iniciar já pelo título, que em linguagem poética ultrapassa a palavra com seu duplo significado, quais sejam, o cidadão da cidadania e a grande cidade como espaço público das manifestações dos desejos de liberdade e justiça. E é de uma felicidade e beleza que só mesmo a poesia é capaz, que se afirma ser a mão do poeta o fio condutor da produção e criação de um mundo onde o direito se insere. Aqui cabe referir, nesta mescla de texto arte/ciência, as propostas de Guerra Filho, no sentido da função ficcional do direito que vem abrindo muitas possibilidades de novos rumos para se pensar o multiverso jurídico. Assim, enunciando o porvir o poeta se aproxima do jurista que busca incessantemente a justa composição do social, dentro de quadros muitas vezes ficcionais, mas que não significam irreais. A realidade 98 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho que se quer construir não está pronta, faz-se em processo como numa composição. Por isso a aproximação que num primeiro momento parecia improvável se mostra plausível e frutífera. É através das palavras, este misto de arma e pensamento, de poder e desejo, que somos nutridos nessa busca pela mudança, o devir louco da poesia vertiginosa, o devir outro da diferença da dignidade humana. Como pode o sol e a lua estar sob a égide da mão do poeta? Como pode uma multidão caber em seu coração? Tudo não passaria de mera métrica, não fosse o ritmo a demarcar o tempo que nos insere no mundo como diferença pura, potência do cidadão. De fato, Paz assevera que o ritmo é condição do poema, porque é ali que a liberdade do pensamento se expressa com toda sua força. E a distinção de ritmo e métrica é importante justamente no sentido de que o ritmo possibilita a imagem, ainda que esteja ausente a palavra. Este paradoxo da criação (poiesis) que faz surgir o tempo e a presença é inerente à poesia e também à música, por isto o ritmo é tão intenso e potente como forma de expressão artística. É disso, pois, que se trata. Primeiro Movimento Na côncava praça Aponta o poente O apronte o levante Crescente da massa Romper os grilhões da opressão e buscar uma vida digna, essa foi a luta secular dos escravos no Brasil, o último país a abolir esta forma vil e sórdida de relação com o outro, com a diferença. Mas como mostra a História, nunca se pode afirmar o absoluto negativo de qualquer 99 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Acontecimento. As potências do desejo são capazes de novas conexões, onde quer que elas tenham um mínimo espaço de eclosão. E foi da tristeza e da melancolia que surgiu uma das mais potentes formas de transformação social no Brasil. A música popular tem uma história comovente e instigante. Fruto da atualização do encontro de virtualidades culturais tão díspares (africana e européia), inclusive denunciando o paradoxo hegeliano escravo/senhor, pode-se ver aí um dispositivo de luta por inclusão e cidadania. Como se sabe, a junção de vários padrões rítmicos e melódicos (lundu, maxixe, modinha, polca, etc.), bem como o intercâmbio e adaptação na forma de execução dos instrumentos (por exemplo, o violão que é tipicamente europeu vai ganhar na, mão dos negros, novas possibilidades uma vez que o dedilhar dos instrumentos de corda africanos era totalmente diferente), vai construindo uma musicalidade nova, brasileira. De outro lado, não se pode esquecer que na cultura africana a dança e a música são inseparáveis, pois representam o êxtase das expressões religiosas, como, por exemplo, o candomblé. Demais disso, aqui no Brasil estas expressões todas vão ser submetidas a uma forte repressão pelos detentores do poder senhorial, uma vez que representavam uma espécie de autarquia na relação de poder, o que era obviamente inadmissível do ponto de vista das instituições daquela época. Tanto a monarquia quanto a igreja se sentiam fortemente ameaçadas por estes tipos de expressão. Assim, se observa que foram proibidas, a título de ofensa aos bons costumes, a dança da umbigada bem como a capoeira e as religiões afro-descendentes. Tudo isso, no entanto, não impediu a eclosão de tais intensidades. Juntamente com as mudanças sócio-políticas da sociedade brasileira, quando da passagem da monarquia para a república, e da consolidação da urbanização, estas expressões musicais vão surgir a partir de certa crítica cultural da influência européia (assim a participação de 100 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho figuras como Chiquinha Gonzaga), abrindo espaços sociais à participação de atores que até então não tinham voz na vida da nação. A canção vai ganhando cada vez mais influência na cultura popular e sorrateiramente toma conta da cena social brasileira. No início do século XX, com as tecnologias de comunicação de massas se afirmando, também em território nacional, já não havia barreiras para sua entrada definitiva em todos os lares do Brasil, tornando-se assim, estas expressões, o principal influxo de crítica e inclusão da diferença na potência da micro-política. Segundo Movimento Aos pés do poeta A raça descansa De olho na festa E o céu abençoa Essa fé tão profana Também a cidadania no Brasil sofreu percalços instigantes. Talvez ainda não tenhamos até hoje o exercício pleno dessa condição sine qua non da democracia. Isto porque a luta é constante e passa por altos e baixos. Assim como na escravatura, nossas instituições sempre falharam em proteger os cidadãos brasileiros. Os modelos de mundo adotados pela corte portuguesa, a monarquia quase idiossincrática, a república militarizada, a república velha cooptada pelo getulismo, a revolução de 1964, até a chegada da democratização, tudo isso coloca em xeque o real sentido da cidadania plena que deve ser fruto de conquistas, mais do que de concessões paternalistas. Quando dizemos proteger, não queremos significar o mesmo paternalismo que criticamos, mas sim apontar para a preservação das liberdades advindas da diferença da dignidade humana pelo fortalecimento 101 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho institucional que ultrapasse os interesses pessoais dos governantes, bem como pela obediência constitucional dos deveres do Estado. Só assim será possível o exercício pleno da cidadania. Assim como o afoxé, por exemplo, penetrou na cultura popular brasileira, o mesmo deve ocorrer com os valores da democracia e do Estado de Direito. Parece-nos que este ponto é fundamental para se transformar significativamente a vida pública no Brasil. E talvez seja justamente através de propostas como a desta aproximação entre mundos aparentemente tão díspares que seja possível uma maior participação e exercício da cidadania. A Política não pode ser assunto de especialistas com seu jargão técnico que beira ao tédio, nem o Direito pode se resumir a fórmulas retóricas de brocardos latinos. As leis devem ser razoáveis e compreensíveis, e por mais que esta mesma fórmula possa padecer dos vícios que aqui se apontam, não podemos nos escusar de lutar ferrenhamente por este ideal que traduz a própria sociedade em que se vive. Ao mesmo tempo, não se podem esquecer as especificidades que diferenciam a sociedade brasileira das demais, bem como das diferenças internas que tornam ainda mais complexa a relação direito/ cidadania. É preciso deixar claro que o Brasil dificilmente se conforma com aquilo que hoje se chama de Ocidente. Parece-nos cada vez mais inconteste não ser esta a nossa posição no mapa geopolítico mundial. Precisaríamos admitir nossas diferenças culturais para que também o direito brasileiro estivesse mais no compasso dos nossos ritmos. Afinal se estas expressões culturais surgiram somente aqui, não significaria isto uma qualidade bastante importante da nossa formação e constituição enquanto nação? Como bem lembrou Oswald de Andrade, somos antropofágicos. E se isto ainda nos choca e ao resto do mundo, é porque definitivamente somos outros. Assim, copiar modelos europeus, norte-americanos, não resolve nosso problema; até porque não ajudam nem a colocar os problemas de 102 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho maneira a que reflitam nossas reais possibilidades de soluções. Por isso num país de cultura essencialmente oral – como ainda somos e temos que admitir que somos – o direito escrito ficará mesmo relegado a instâncias elitizadas de manutenção do poder. Eis aí o impasse. Manifesto Oh! Minha gente baiana Goza mesmo que doa Neste afoxé/poema, que deveria ser ouvido enquanto da leitura deste texto, somos instado a exercer a cidadania como se participa de um bloco de rua em dia de festa. E seria bem mais proveitoso ao Direito pátrio que nos despíssemos das nossas galimatias e fôssemos mais pop. Seria necessário deixar o cidadão falar com sua voz própria, sem a mediação da linguagem técnica excessiva, que, no limite, serve apenas a ideologias espúrias de manutenção de poder. Onde estão as praças? Se a nossa vida começa depois do carnaval, seria importante não esquecer as dores e os calos dos pés no restante da caminhada. O apronte e o levante deveriam ser carregados para o dia-adia da vida pública no restante do ano, até que o ciclo do eterno retorno surgisse diante do novo carnaval. Mas sem ser cooptado pelos interesses financistas e financeiros, muito mais a potência do encontro, do bloco na rua, da alegria bem-humorada das fantasias sadias de uma brincadeira que extenua e impulsiona. Fazer tremer o chão das nossas certezas. Estar pronto para o desarme do encontro, ritmo, vida, satisfação. Mas também entender que somos responsáveis pelos nossos destinos e daqueles que virão. Não se quer garantia nem segurança, mas que a festa possa continuar também para eles, no ritmo deles, que também será o nosso. E na vida pública o mesmo sentimento de cidadania sem poder. 103 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho A mesma lógica de participação, como num bloco, compondo a multidão sem deixar de existir como único, a multitudo de Spinoza. Você ali no meio da rua, intensidade pura, com sua voz única, constituinte da nação. Talvez esta seja a expressão da nossa democracia, da democracia brasileira que sabe participar das alegrias e das tristezas, das potências e das poesias. Sem ingenuidade, com muita ingenuidade. Afinal, somos antropofágicos. Ritornello Oh! Minha gente baiana Goza mesmo que doa Aqui se poderia pensar dogmaticamente com o direito na cabeça. Mas preferimos o Corpo-sem-Órgãos que Deleuze e Guattari foram sabiamente buscar em Artaud. Por isso não se poderia rigorosamente falar em direito na cabeça e ritmos no pé, senão em fluxos de intensidades que atravessam esse Corpo-sem-Órgãos compondo diagramaticamente máquinas desejantes, potências que não se deixam capturar, mas que insistem na ruptura. Ruptura esta que é sempre melhor expressada no ritmo que devolve ao tempo a temporalidade. Fazemos música quando exercitamos cidadania, legislamos quando puxamos o enredo. Por que confinar estas potências em campos distintos do saber? Seria exclusivamente jurídico dizer que o que se busca é estabelecer uma sociedade justa e solidária? Mesmo os códigos binários do sistema jurídico lícito/ilícito não denotam uma rítmica de fluxos e cortes de fluxos que, no limite, expressam uma contradança que escapa ao próprio sistema no momento em que o Direito requer aplicação? Ou seja, o modelo binário digital requer o mundo analógico dos possíveis subjectos que atualizam as potências do virtual contidas na norma. E novamente com Deleuze, de subjectos a superjectos. 104 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho E não seria diferente na música onde sons e silêncios não são suficientes, mas há que estar presente o tempo: este mesmo tempo que atualiza o direito na aplicação, faz a música no ritmo. Ora, se se pode afirmar que o samba, o frevo, o afoxé, o baião, o maracatu são brasileiros, na verdade o que se afirma é esta temporalidade única. Onde começa nosso calendário? Quais os eventos que marcam nossa passagem em vida neste território? Este tempo que é uma marca, uma expressão do nosso viver, é acima de tudo o que nos constitui de direito. Além disso, o que se percebe é uma curiosa falência das instituições que copiamos como modelos que não expressam nossas virtualidades, bem como uma pujança das expressões culturais que não param de produzir novidades e acontecimentos. Isto já seria suficiente para nos alertar de que nossos modelos políticos não estão aptos a deflagrar o pleno exercício da cidadania, muito ao contrário, eles acabam por inibir a participação na vida pública, uma vez que corrompem suas potências. De outro lado, a cultura popular se mostra cada vez mais produtiva, crítica e participativa. Ora, então, por que não adotamos um modelo que leve em consideração estas características? Por que não transformar a praça em ágora? Discurso Musical Na mão do poeta O sol se levanta E a lua se deita O poeta é também cancioneiro, aquele que faz dos sons e das palavras uma produção que ultrapassa seus elementos, um uno de diversidades, um multiverso. A música trabalha as dobras dos significados e estende os signos para além de suas possibilidades, não só na melodia 105 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho bem como na harmonia. E é este conceito musical que o Direito precisa aprender a brindar em sua chegada, porque o que se coloca como tensão sonora pode muito bem ser resolvido de várias maneiras, como bem sabem os músicos. É preciso entender que a racionalidade jurídica do positivismo clássico não dá conta da realidade complexa em que vivemos. Buscar novas formas de solução, que não pressupõem dominância, nem unicidade. E vejam que a própria música trabalha com estes elementos também. Uma escala musical, dependendo de seu formato, pode apresentar tônicas, dominantes, subdominantes, e assim por diante, e se pode utilizar estes elementos de forma criativa para encontrar respostas aos problemas de tensão que a melodia evoca, sem deixar de expressar beleza e equilíbrio nessas passagens. Não como se estivéssemos diante de um mundo acabado, mas justamente a abertura necessária para a inconclusão da solução, como no Direito hoje se vê, embora muitos ainda se angustiem com esta possibilidade. É notório que já vivenciamos no Direito uma realidade bastante distante daquela do dogmatismo. Os paradoxos são cada vez mais freqüentes, as complexidades assim os configuram. Por isso é preciso pensar novos conceitos, produzi-los mesmo, para dar conta dos problemas, inclusive para melhor formulá-los. Por isso pensar com musicalidade o Direito pode ser uma das possíveis soluções. Como bem lembrou Flusser, a língua portuguesa é mesmo musical, por isso esta conjunção de culturas única no Brasil produziu coisas tão belas e potentes. O carnaval que faz serpentear a multidão nas ruas é uma expressão das nossas crenças mais profundas, dionisíaca, de que a festa é capaz de transformar a vida, em suma de nos libertar. E não é por acaso que tudo isto se dá aqui, onde através da pena de Leminski Descartes se vê desconcertado, enlouquecido pelo cenário tropical, pela exuberância irracional, num estapafúrdio catatau. Olha que isso dá samba! 106 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho E no bater dos tambores, esta quase violência capaz de gerar beleza e pulsação, os corpos se deixam levar em multidão, esquecidos de suas infâncias egóicas, em movimento harmonioso de um todo complexo, um bloco de sensações que ultrapassa os indivíduos e avança no coletivo como uma onda democrática de desejo de integração. Estar no meio, não saber mais onde começa e onde termina a subjetividade, somente o ritmo sendo o agente dessa união, não são palavras de ordem que nos unem, mas o movimento do ritmo que as anima e nos dão um sentido de totalidade na multitudo. Essa a democracia que queremos. Poetar Na côncava praça Aponta o poente O apronte o levante Crescente da massa Foram inúmeros navios negreiros, entre a vida e a morte, acorrentados como animais paralisados pelo pavor da insanidade dos algozes. O deslocamento no ritmo das ondas, as chibatadas fazendo sangrar até a morte uma musicalidade bestial, e tudo isso se transforma em alegria e beleza. Não seria o caso de celebrar esta potência de se reinventar? Quantas surpresas devem ter causados aos olhos dos senhores estes escravos da criação. E quanto paradoxo nessa forma de ler a vida. A racionalidade estúpida que chegou a imaginar que a cor negra estava relacionada com traços de caráter, antecipando uma espécie de visão lombrosiana do mundo, não foi capaz de fazer cessar o desejo de liberdade que, sobretudo através da força criativa das expressões culturais africanas, ensejaram um novo mundo. Mas aqui, uma vez mais, tudo se mistura ao sabor do vento 107 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho tropical, das delícias de um território paradisíaco, aonde em se plantando tudo dá. Nesse antagonismo tão díspar do pessimismo português com a melancolia banto, a força do mar vai sincretizar os deslocamentos necessários para a constituição de um território único de apropriações recíprocas, devolvendo ao mundo a novidade. A longa travessia, na qual ainda nos encontramos, é o grande vetor de constituição do Brasil. E tudo por aqui é mesmo sui generis, desde a origem mítica (em duplo sentido), até a atualidade pulsante. Somos brasileiros quando deveríamos ter sido brasilianos. Extratores da terra para que de seu sumo nos constituíssemos como gente, como agentes daquilo que Schumpeter muitos séculos depois denominaria destruição criativa. Destruímos as culturas européia e africanas para agenciar um brasileirismo cultural ímpar. Porque também as naus conhecem a deriva, este movimento imprevisível que leva a outros rumos, outras descobertas. E assim, tudo aqui se passava como num sonho, um delírio de outros povos, um deserto povoado de sonhos. Muitas vezes sem ter a quem se reportarem, aqueles que aqui viviam conheciam a verdadeira anarquia. Até que de repente se instalava um novo ciclo de poder e opressão. Uma missão colonizadora territorializante em busca de riquezas. Extrair o sangue, as almas, o ouro alquímico onde quer que ele estivesse. Aprendemos assim a extrair, mas também a transformar. Começamos pelo acaso da descoberta ainda obscura de um objeto de desejo europeu, e nos tornamos multidão. O que isto poderia ensinar ao Direito? Lata Aos pés do poeta A raça descansa De olho na festa 108 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho E o céu abençoa Essa fé tão profana Palavra sonora, de amplitude incomum, aquilo que não cabe em si e que, no entanto, pode ser o continente. Se o direito se permitir ultrapassar suas próprias fronteiras, vai se enriquecer com conhecimentos de outras dimensões, aproximando a esterilidade do positivismo científico, de um lado, com as intensidades que constituem o humano de outro. Em sua travessia pelo mar, o caminho do direito não se contaminou pela suavidade deste território sem estrias, enfim, não se desterritorializou. E é bem por isso que somos reféns de incongruências estruturais que dificultam nossa percepção e nossa relação com o jurídico. Europeizado, o direito brasileiro não mergulhou os códigos na terra mátria, não absorveu os conhecimentos e sentimentos daqueles que efetivamente construíram o país. Direito de castas, ainda vivemos questões absolutamente distantes de nossa sociedade plural, diversa, rizomática. Convivemos com elites político-econômicas que insultam a Constituição diariamente sem qualquer pejo. Demais, sem contraste institucional e do Poder Judiciário desses mesmos insultos. Os casos escabrosos de corrupção são tantos que é até mesmo difícil lembrá-los, tamanha a frequência e dinâmica dos acontecimentos. As estruturas estão contaminadas, por isso se pensa necessária uma renovação dos conceitos. Um rearranjo institucional, talvez até sem instituição estatal centralizada, que se mostra cada vez mais nociva aos interesses da sociedade em escala mundial. Por isso o contágio que é verificado e permitido através da música talvez seja um modelo. Por isso o poder transformador dos ritmos talvez seja um modelo. Modelo que se refaz a cada etapa do processo. Como nas possibilidades musicais, a cada vez que se toca se toca uma mesma e nova música. Seja porque é impossível a reprodução idêntica, 109 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho seja porque o ouvinte já é um outro a cada momento. Por que então pensar o direito a partir da certeza? Por que afirmar que este sentimento é ínsito aos seres humanos, e que a incerteza gera insegurança? Parecemnos falsas as premissas. Poderíamos dizer cinicamente (os antigos), que a certeza é que gera insegurança, pela simples razão de ser ela impossível no mundo em que vivemos. Se, tivemos esta ilusão no passado recente, hoje é inconteste a falsidade da afirmação. Mas então, por que não pensar o direito a partir da incerteza? E veja que o paradoxo é justamente que a função do direito seria a de reduzir a incerteza a partir de uma ilusão de certeza, criada pelo próprio direito. Se, fabricamos o mundo que agora queremos ver desaparecer, ao menos deveríamos guardar a necessária honestidade intelectual de reconhecer a fragilidade da tese e nos permitir outras possibilidades. Por isso já afirmou Gilberto Gil, que “quando o poeta diz lata, pode estar querendo dizer o incontido”. Ultrapassar o direito, assim como o desejo de Nietzsche com relação ao humano é tarefa que se impõe ao exercício da cidadania. Cidadania é muito mais que direito posto ou pressuposto de Grau, é muito mais porque é do âmbito dos agenciamentos coletivos que são capazes de criatividade a partir do zero absoluto. Cidadania é uma força que age por contágio, por linhas de fuga e desterritorializa o direito tornando-o devir, jurisprudência. Neste movimento, o direito não pode ser aquilo que se cristaliza nas decisões ou na lei positivada. Neste movimento o direito não pode ser atribuição, mas predicação. O direito é. Ser no presente absoluto; esta temporalidade que é a da música e pode também ser a do direito. Ser cidadão é estar na praça, no meio do acontecimento. Quando se diz no meio, não se refere aqui à noção de espaço entre dois extremos, mas ao espaço/tempo do acontecimento, das sensações e das intensidades. É a vivência com todos os riscos que ela oferece, além do bem e do mal. Ainda operamos as máquinas jurídicas à custa dos ressentimentos 110 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho e das lamentações de culpas. Não conquistamos ainda a potência da ultrapassagem, dos devires que constituem a vida. Fixados nesses pontos do passado, são eles que conduzem nosso presente e as possibilidades futuras, sem qualquer abertura para novas soluções compositivas. É sintomático que os chamados meios alternativos de solução de conflitos tenham tão pouca penetração em nossa cultura jurídica. Ali até se vislumbra uma temporalidade outra, ao menos mais próxima da atualidade do acontecimento. Seria preciso entender que é possível o surgimento de figuras como um Cartola no direito, através do exercício da cidadania plena. Não se requer conhecimento musical formal para fazer obra prima, assim como não se requer o conhecimento formal do direito para ser cidadão. A vida é fruto da sensibilidade, o que conviria pensar que a função da política é antes, a de permitir que tal sensibilidade aflore do que a instituição de estruturas formais rígidas que vêm se mostrando a cada passo, geradora de inúmeros problemas e distorções dos agenciamentos coletivos. Teremos que ficar presos ao modelo que se mostra incapaz, até quando? Quando do surgimento do samba no Brasil, o choque foi imenso, até porque os padrões culturais daquela época eram muito mais rígidos do que o são hoje em dia. Por isso nos parece plenamente possível pensar novos caminhos que reformulariam, ao menos, as funções do Estado. Que ultrapassariam esta ótica institucional como única possibilidade, para alcançar na experiência das culturas populares outras fontes de saber e de fazer e enriquecer a vida pública, e assim, a própria cidadania. Pense-se, por exemplo, nas parcerias entre os compositores. É comum se fazê-las a quatro mãos, ou mesmo mais, sem que isto dê ensejo a invejas ou individualismos, muito ao contrário, são exemplos de micro-políticas que funcionam por ultrapassamento. Já não se sabe quem é o autor, quem escreveu o que, pois as idéias de um disparam a criatividade do outro, que devolve ao primeiro novo impulso criador, 111 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho e assim por diante. Exercer a cidadania dessa perspectiva é o que nos parece necessário e urgente. Fazer política com este sentimento é o que nos parece fundamental. Refrão Abolição No coração do poeta Cabe a multidão Quem sabe essa praça repleta Navio negreiro já era Agora quem manda é a galera Nessa cidade nação Cidadão!!! Toda estrutura pode gerar novas estruturas. Este princípio é hoje reconhecido inclusive na biologia, pois de outra forma não seria possível a diversidade. Este conceito de autopoiesis, advindo das teses de Maturana e Varela, aportou no direito pela pena de Luhmann, que a partir da teoria dos sistemas chegou a conclusão de que a criação é processo criativo. Disso resulta que estaríamos ainda no Talião não fossem tais ocorrências. E veja-se que não se trata de teoria, estritamente falando, mas do próprio fenômeno. De outro lado, não se considera aqui a externalidade do epifenômeno, mas do próprio Acontecimento. Podemos pensar que o direito nasce para ser abolido. Assim como já constou de nossos códigos a previsão do status de escravo, as dinâmicas sociais estão sempre dispostas no sentido de ultrapassar aquilo a que chamamos, afirmamos aqui, equivocadamente direito. E é justamente a busca por um outro conceito de direito que nos move a fazer estas considerações e aproximações de perspectivas que de inicio poderiam parecer tão distantes. 112 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Nesse diapasão é que retomamos o tema para afirmar a liberdade como potência humana máxima, aquela que nos identifica e nos constitui de forma definitiva. Como já se afirmou, sem descurar do contraponto da responsabilidade, ou seja, respostas que reflexivamente damos em nossa relação com o fora do mundo, e para com o outro, esta liberdade constitutiva está sempre em vias de sofrer as intervenções coercitivas desse direito que se quer atributivo, uma vez que enxerga o humano da perspectiva hobbesiana do selvagem indômito. Que as maldades existem é mais do que patente, mas o problema está na forma de responder a elas. Ou somos coniventes com as forças territorializantes das estruturas de dominação e poder, ou fazemos o carnaval, a festa pagã que não reconhece a autoridade estabelecida e invade a praça trazendo consigo a hybris. Este ultrapassamento que é também o da destruição, mas como já se viu, da destruição criadora do novo, da abolição das ordens de valores para instituir novas conexões, que, por sua vez, tendem a ser elas mesmas confrontadas no futuro. Por isso esta proposição da criação de conceitos, que mais do que tarefa da filosofia, é a tradução do mundo em que vivemos; mundo da poética e das possibilidades de novos seres que se constituem no agenciamento de suas próprias relações, a micro-política da roda de samba, do bloco de rua, da literatura menor de um poema fecundo de rimas e diatribes contra o instituído na sedução de um humano desencorajado pela ilusão da certeza e da segurança. É preciso fazer soar os tambores e seus estrondos, sua temporalidade cheia de presságios e intuições. Fazer o direito descer até o batuque e encontrar o chão, território sem domínio onde cada passo constrói o caminho e onde a cabeça pode então estar vazia no êxtase das sensações musicais, pura incompreensão criadora que abole a racionalidade e instaura um pensar absoluto, encontrar o silêncio em cada nota musical, fazer parar o tempo em cada figura musical, deixar dissonante a harmonia em cada acorde musical. Em suma, estar cidadão. 113 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Conclusão Diante do proposto, parece ser possível pensar o Direito como um dispositivo que permite a liberação das potências da cidadania, no sentido de se fazer ecoar, pela festa, pela música, o sentido da liberdade que é ínsito dos agenciamentos coletivos e das desterritorializações da micropolítica, sem descurar das especificidades da nossa História, que é justamente onde devem ser buscados os elementos de possibilidade das soluções dos nossos problemas, para que se alcance aquilo que expressa o Direito em seus mais variados modos e meios, inclusive ultrapassando o próprio texto. Só o ato Só a vida É mais ativa que a morte... 114 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências ARTAUD, Antonin. Apud Daniel Lins: Antonin Artaud: O artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. DELEUZE, Gilles. O anti-édipo. Capitalismo e esquizofrenia. Gilles Deleuze e Félix Guattari. Trad. Geoges Lamazière. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. ___________. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. ed. 34., vol. 2, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro, 1995. FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. 3. ed., São Paulo: Annablume, 2009. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2002. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Por uma poética do Direito: Introdução a uma teoria imaginária do Direito (e da totalidade). In: Panoptica Law e-Journal, virtual, n. 19. Disponível em www.panoptica. org. Acessado em 03.03.2011. LEMINSKI, Paulo. Catatau. Um romance idéia. Curitiba: Travessa dos Editores, 2004. LUHMANN, Nicklas. Introdução à teoria dos sistemas. 2. ed., Petrópolis: Vozes, 2010. MATURANA, H.R.; VARELA, F.J – A Árvore do Conhecimento: as 115 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho bases biológicas da compreensão humana. Trad. Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Pala Athenas, 2001. PAZ, Otávio. Signos em rotação. 3. ed., São Paulo: Perspectiva, 2009. SCHUMPETER, Joseph Alois. Teoria do desenvolvimento econômico. Uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. Trad. Maria Sílvia Possas. São Paulo: Nova Cultural, 1997. SPINOZA, Benedictus de. Ética/Spinoza. Trad. e notas Tomaz Tadeu, 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. STENGERS, Isabelle. Power and invention. Situating Science. In: Theory out of bounds. vol. 10. London: Minneapolis, 1997. 116 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 5 O dilema entre a poética e o mercado jurídico Gustavo S. Paulino Mestrado em Direito (Filosofia do Direito e do Estado) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP 2006). Graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru (FDB-ITE 1997). Professor da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu (USJT) e Diretor Pedagógico do Centro de Estudos Avançados em Direito e Justiça (CEADJUS). Colabora ainda como pesquisador na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Gedais - PUC/SP). 117 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Introdução O presente texto, publicado alhures (Cf. Paulino, 2008: 153-161), foi concebido para desempenhar uma função claramente “provocativa”, isto é, foi pensado para evitar a zona epistemológica de conforto na qual somos acomodados pela teoria jurídica tradicional, servindo também, no corpo da obra mencionada, como arremate da argumentação acerca da crítica do direito enquanto tecnologia de controle social. Demarcou, assim, a ambiguidade das posições numa relação de controle: afinal quem controla e quem é controlado? Com efeito, reaparece aqui, praticamente em sua forma original, como reflexão autônoma (mais próxima de um ensaio), mas não isolada, pois em conexão com os outros textos componentes desta obra, e se não exatamente em termos semânticos, esta conexão se dá pelos laços estreitos ao redor do homenageado por esta publicação. Permanece, ainda assim, conservando seu intento provocativo, como forma de retribuir as oportunidades e os estímulos recebidos nos cursos de Filosofia do Direito ministrados por Willis Santiago Guerra Filho, na PUC-SP. Especificamente sobre essa abordagem “poética” que este texto trata, foi fundamental a participação no curso intitulado “Direito e Poética”. Assim como o texto é provocativo, são também provocativas as aulas do Professor Willis: diria mais ainda, são evocativas, pois estão sempre a nos chamar à reflexão jusfilosófica mais profunda ao problematizarem não apenas os temas jurídicos em sentido estrito, mas igualmente a nossa própria condição humana num mundo tecnificado, reificado, endurecido por leis e regras que o tornam – bem como as relações que nele ocorrem – algo a ser disputado nas esferas da posse e da propriedade, sensibilizando-nos a nos esforçar para atingir alguma distância da vacuidade ética que tem tornado o convívio humano cada vez mais inóspito. 118 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Se este ensaio puder auxiliar o direito, por intermédio dos seres humanos que nele laboram, a deixar de ser parte considerável do “problema” para ser parte da “solução”, creio que teremos cumprido um pouco da nossa missão – eu e o homenageado – pois mesmo não frequentando por enquanto as suas aulas, não deixei de compartilhar com ele – e agora com os novos leitores – o núcleo de significado que fez com que nosso contato acadêmico tenha se tornado para mim um dos pontos altos da minha formação como intelectual e como pessoa. 1. O dilema entre a poética e o mercado jurídico Na análise de Walter Benjamin, Charles Baudelaire assume um papel central como vivenciador do tipo de resistência que estamos esboçando, por isso é considerado como protótipo do artista moderno. Qualificar Baudelaire como “um lírico no auge do capitalismo” é retratar a figura de um homem (subjetividade) e sua relação ambígua com a cidade moderna ou em processo de modernização (Paris do século XIX). Propomos, assim, retornar ao início da modernidade117, a artística pelo menos, para poder acompanhar Baudelaire face ao mercado literário. Seu conflito: como vender sem perder a dignidade? A ambiguidade de Baudelaire com relação ao mercado é, em última instância, o reflexo de sua angústia diante da cidade que se moderniza. É o flâneur, pois sai da “torre de marfim” e percorre as ruas para se misturar à multidão, mas não para se dissolver nela: o “burburinho” que fascina o poeta simultaneamente o mantém a um dada distância, com um certo ar de entojo, porque o que ele vê exerce um antagonismo de posições – fascinação e repulsa. 117 Para efeitos de marcação temporal, estamos delimitando a modernidade artística nos seguintes termos: início em meados do século XIX (com o impressionismo ou período pós-romantismo) e o seu fim por volta da década de 70 do século passado (momento em que os artistas começam a questionar a “necessidade” da arte; um declínio, portanto, com relação aos movimentos anteriores que viam a arte como portadora da emancipação). 119 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho A solidão do flâneur, ao percorrer as ruas, ao se situar entre o público e o privado, ao estar na multidão (proximidade) e observar (distanciamento), é o que lhe confere agudeza de espírito. Essa agudeza de espírito assegurou a Baudelaire uma contemplação do mercado literário alijada de eufemismos: Por mais bela que seja uma casa, ela tem antes de tudo – e antes que nos detenhamos em sua beleza – tantos metros de altura e tantos de cumprimento. Assim também é a literatura, que reproduz a substância mais difícil de avaliar, antes de tudo um enchimento de linhas, e o arquiteto literário cujo simples nome não promete lucros tem de vender a qualquer preço (Baudelaire apud Benjamin, 2010: 29). A angústia de Baudelaire é o sentimento de estreiteza, de “espaço reduzido”, de carência e de inquietação diante da nova cidade. Com o seu olhar refinado, ele observa o processo de transformação de sua cidade, de sua casa118 e se pergunta: haverá ainda espaço para mim (enquanto sujeito)? Com o poema dirigido a uma mulher de rua, ironiza sua própria situação119 e se impõe o seguinte dilema: se ser autor significa preservar a sua subjetividade e autonomia (distância do observador), e, paradoxalmente, ser lido é se expor (ao observar, em meio à multidão, também se é observado) aos olhares alheios para vender, como vender o 118 “A rua se torna moradia para o flâneur que, entre prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apóia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente” (BENJAMIN, 2010: 35). 119 “Para ter sapatos, ela vendeu sua alma; / Mas o bom Deus riria se, perto dessa infame, / Eu bancasse o Tartufo e fingisse altivez, / Eu, que vendo meu pensamento e quero ser autor” (BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 2010: 30). 120 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho seu pensamento e querer ser, ao mesmo tempo, autor? 120 Pensemos um pouco nessa questão da angústia que Baudelaire vivencia, sob a análise de Heidegger, onde a existência humana pode ser entendida pelos seguintes aspectos: (a) facticidade – refere-se ao fato de o homem estar jogado no mundo121; (b) existencialidade – ou transcendência porque o homem é um ser que faz projeções, é um ser que se projeta para fora de si mesmo, encontrando os limites no mundo. É uma forma de projeção “no mundo, do mundo, e com o mundo, de tal forma que o eu e o mundo são totalmente inseparáveis”; (c) a ruína – seria o deslocamento da tarefa primordial de cada indivíduo – o autoconhecimento – diante das forças dissuasivas do cotidiano: “o ser humano, em sua vida cotidiana, seria promiscuamente público e reduziria sua vida à vida com os outros e para os outros, alienando-se totalmente da principal tarefa que seria o tornar-se si-mesmo” (In: Heidegger, 1991: IX). Acontece que, para Heidegger, o homem enquanto um ser para a morte tem de lidar com a angústia como o estado subjetivo anterior e, até certo ponto, responsável pela tomada de duas posturas diametralmente opostas, isto porque ela é, [...] dentre todos os sentimentos e modos da existência humana, aquele que pode reconduzir o homem ao encontro de sua totalidade como ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela imersão na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana. [...] A própria dissolução do eu nas coisas do mundo e nas trivialidades impede-o de localizar a causa de sua angústia, [...] ela é onipresente. Por isso, envolve o homem com um sentimento de estranheza radical. Todos os socorros e todas as proteções são ineficazes para debelá-la; o homem sente-se 120 “Até o fim da vida, Baudelaire, permaneceu mal colocado no mercado literário. Calcula-se que, pelo conjunto de sua obra, não tenha ganho mais do que 15 mil francos” (BENJAMIN, 2010: 29). 121 Mundo: para Heidegger significa o conjunto de circunstâncias espaciais, temporais, sociais, econômicas, culturais etc., no qual um indivíduo está imerso. 121 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho completamente perdido e desvalido (In: HEIDEGGER, 1991: X, grifos nossos). Da angústia, duas alternativas surgem para o homem: (a) ou ele, diante de tamanha perplexidade, cede e procura refugiar-se novamente no lugar comum representado pelo cotidiano; (b) ou ele se lança numa tentativa de superação dessa angústia, o que, em última instância, significa superar o mundo e a si mesmo. A esse acontecimento, Heidegger chama de transcendência. A angústia pode ser, assim, tanto a “mola propulsora” da criação quanto sua “pá de cal”. Enfrentá-la requer coragem para convidá-la à sala de estar e oferecer-lhe um lugar de destaque: observar a angústia (a nossa angústia) é uma abertura, um primeiro passo, para o diálogo com nós mesmos. A angústia, assim como a doença, é nossa interlocutora. Com uma vantagem: ambas são honestas. Dizem-nos francamente o que não gostaríamos de ouvir e o que exigem em troca da franqueza com que nos expõem a nós mesmos é apenas o esforço da interpretação. O ser humano, ao perceber-se como um “eu”, inexoravelmente delimita o “não-eu”. Para cada elemento que conhece e utiliza para se identificar exclui o seu par oposto (luz/sombra). Isso acontece devido ao fato de que [...] toda identificação que se apoia numa decisão deixa um dos polos de fora, do lado de lá da porta. Porém, tudo aquilo que nós não queremos ser, tudo o que não desejamos encontrar dentro de nós, tudo o que não queremos viver, e tudo o que não queremos deixar participar de nossa identificação, forma a nossa sombra. A rejeição da metade de todas as possibilidades não as faz de forma alguma desaparecer, mas sim apenas as exclui da identificação pessoal ou da identificação efetuada pela mente 122 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho consciente. O “não”, na verdade, fez desaparecer de nossa vista um dos polos, mas nem por isso nos livramos dele (Dethlefsen, T.; Dahlke, R., 1997: 41 – 42). Se ao nos depararmos com a angústia procurarmos debelá-la, estaremos caindo no lugar comum, na vida ordinária, e deixando de conhecer a nós mesmos. O “não-eu” não virá a integrar o “eu” (o polo consciente), não haverá, portanto, acréscimo de (auto) conhecimento rumo ao “si-mesmo” (“eu” + “não eu”); a opção pelo lugar comum é justamente o recurso daquele que desiste de si mesmo e parte para a ilusão do cidadão médio bem ajustado que se acha, a priori, justificado porque trabalha (ou, em outras palavras, porque é um funcionário), paga suas contas e tem um animal de estimação. O outro caminho possível nos leva à transcendência. Se o homem “pode transcender”, isto significa dizer, em outras palavras, que o homem: [...] está capacitado a atribuir um sentido ao ser. O homem está naturalmente fora de si mesmo, sobre o mundo, em relação direita com um mundo que ele produz e para o qual ele se projeta incessantemente: “Produzir diante de si mesmo o mundo é para o homem projetar originariamente suas próprias possibilidades” (In: Heidegger, 1991: X). Em princípio, a chance da transcendência está sempre disponível. O pensamento heideggeriano, ao considerar o ser humano com um ser em movimento, como um “vir a ser”, mostra que este: [...] jamais seria um ser acabado e nunca seria tudo aquilo que pode ser; estaria sempre diante de uma série infinita de possibilidades sobre as quais se projeta. [...] Assumindo o seu 123 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho passado e, ao mesmo tempo, seu projeto de ser, o homem afirma sua presença no mundo. Ultrapassa então o estágio da angústia e toma o destino nas próprias mãos (In: Heidegger, 1991: XI; grifos nossos). Mas, no que efetivamente essas colocações podem repercutir para superarmos a situação do funcionário, do operador do Direito? O primeiro grande desvelamento já advém da aproximação – ousada, diga-se de passagem – entre “Direito” e “Poética”, onde a primeira pergunta que devemos fazer é: qual a “substância” do Direito? Qual é a sua “materialidade”? De imediato, o que se nos afigura como “material” é o seu discurso positivo, oral ou escrito. Na verdade, o Direito como “materialidade” é “sólido” enquanto obtiver adesão. Sua materialidade é condicional. Se for “quadrado” assim o será até que a crença geral o veja “materialmente” como um “círculo”. Direito positivo é o que se põe, portanto, é o direito posto. Se é posto, o é por alguém e seria esse alguém a figura mitificada e justificadora do legislador racional? A diferença do operador do Direito para o poeta do Direito, se nos permitirmos pensar assim, é menos uma questão de atividade que de consciência. O primeiro “produz” um discurso que crê ser dedutivo, um discurso de extração de partículas substanciais de um Direito Material (que difere, portanto, do processual) capaz de convencer, ou como prefere, capaz de provar. Convence antes de tudo, porque já está convencido o seu autor: o seu discurso obtém sucesso porque reproduz (não produz) a “materialidade”, reproduz o padrão – ele acha que criou algo novo no exercício da sua “liberdade”, que descobriu a verdade da lei, quando, por um outro prisma, o que fez foi apenas dizer o que queriam ouvir... Ganha a “causa” porque se apoiou na “melhor” doutrina ou na jurisprudência 124 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho dominante... Ele domina não por sua originalidade; domina por ser “dotado” de “competência” e só domina porque foi o primeiro a se convencer da dominação. Seu discurso é o da confirmação. Escreve para ser confirmado. Já o poeta do Direito é um visionário que assume de antemão a natureza “corrente” do seu discurso – do latim discursus: “ação de correr para diversas partes, de tomar várias direções” (Houaiss). O poeta trabalha com a dinâmica, com a fluência e com os arranjos conjunturais e sabe que, em algum momento, eles podem se desmanchar. Seu discurso é uma performance, é contextual, é situado até mesmo porque ele – seu autor – é, em certa medida, um “não situado”, uma vez que se percebe existente, se percebe um ser em movimento. O poeta sabe que: O mundo em que vivemos é o que construímos a partir de nossas percepções, e é nossa estrutura que permite essas percepções. Por conseguinte, nosso mundo é a nossa visão de mundo. Se a realidade que percebemos depende de nossa estrutura – que é individual –, existem tantas realidades quantas pessoas percebedoras (Mariotti, 2012). Isso não quer dizer que não haja um solo comum ou pontos de contato entre essas inúmeras realidades individuais. O solo comum é o que comunica, que liga, que aglutina e permite a troca interpessoal numa comunhão. Porém, nesse espaço onde se dá o discurso, o operador do Direito não se percebe “poiético”, ele é “objetivo”. E, para Humberto Mariotti (2012), relembrando Maturana: “quando alguém diz que está sendo objetivo, na realidade está afirmando que tem acesso a uma forma privilegiada de ver o mundo e que esse privilégio lhe confere alguma autoridade, que pressupõe a submissão de quem não é objetivo”. 125 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho O operador/funcionário não é autor, ele vende. Vende porque o que “cria” é a reprodução do que está posto. Reproduz o que está posto porque crê na “materialidade” do Direito. Crê na “materialidade” do Direito porque é vassalo da pedagogia da dominação... E como todo “vassalo”, que sonha um dia em ser “senhor”, ele reproduz a pedagogia, ensina a “materialidade” e domina porque exibe (prova) que é dotado de uma visão privilegiada que o permite ser objetivo e enxergar a “realidade” que os outros não veem. Contrariando essa “tendência”, ou melhor, o Establishment, temos na configuração “poética” a tentativa de se trabalhar o Direito como um discurso ficcional (e não meramente lógico-dedutivo). Acontece que, um empreendimento como esse exige uma abertura cognitiva bastante ampla, como bem coloca Willis S. Guerra Filho, ampla o suficiente para assumirmos que: Um discurso dessa natureza há de ser, necessariamente, bem mais livre e criativo que os discursos filosóficos e científicos, em geral – para não falar daqueles religiosos e, mesmo, aqueles estritamente literários. Aqui não temos compromissos com nenhuma tradição, com dogmas, teoremas, axiomas, doutrinas, figuras ou personagens, pois queremos fazer a experiência do pensamento da origem, da raiz, o pensamento original, radical. Isso não quer de modo algum significar que iremos apelar para uma espécie de fabulação, para a invencionice. O discurso, para ser verossímil e persuasivo, para nos agradar, deve ser construído tomando elementos da realidade, do que compartilhamos de mais elementar, completando-os e, por assim dizer, cimentandoos com a argamassa de nossos sonhos, os que temos dormindo ou acordados, pois são nossos maiores desejos, os desejos de saber. Daí podermos esperar um discurso que, mesmo quando imaginativo, é bastante revelador (Guerra Filho, 2005: 2). 126 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho A liberdade criativa, nesse nível, requer a percepção do espaço comum interacional – o espaço linguístico – não a nossa dissolução nele. Lembremo-nos de como o flâneur se movia na multidão, de como a rua era a sua casa e de que, para Heidegger, a língua é a morada do ser. O ser humano é, essencialmente, um ser em comunicação com os demais – daí o discurso ser um modo de existência. O existente humano possui uma linguagem, se utiliza dela e, ao mesmo tempo, também por ela é possuído (e, quem sabe, utilizado). No modo de ser discursivo, “a compreensão e a interpretação possuem a possibilidade do ser-emcomum cair sob o domínio da gente, isto é, tornar-se redundante e puro palavrório. Em outros termos, a linguagem torna-se meio, instrumento de significações cristalizadas, estabilizadas” (Paviani, 2003: 27). Com isso, o risco para a autonomia da subjetividade e do seu projeto final de encontrar o si-mesmo fica terrivelmente ameaçado, uma vez que nessas significações já massificadas, “o sentido cede lugar aos modos de sentir e de pensar comuns. Por decorrência, a ditadura do se impessoal do pensa-se assim, do age-se assim, as relações resultam ambíguas e, nelas, confundem-se o real e o possível” (Paviani, 2003:27). A gravidade resulta finalmente na comprovação de que o “ser humano perde-se no comércio público com os entes, soterra-se em suas próprias ocupações e torna-se surdo ao silêncio primordial do ser” (Paviani, 2003: 27). Para Heidegger, o que distingue o existente humano é a capacidade de preocupar-se consigo mesmo, o feixe nuclear da compreensão humana revela-se na noção de cuidado (na sua forma mais elementar). Vivemos num mundo que é ameaçador e a angústia que sentimos diante da vida e da nossa própria finitude é o motor que nos move por meio de antecipações de acordo com certos padrões prévios normalmente não iluminados que, em última instância, são responsáveis pelo modo com que nos posicionamos na existência. Contudo, esse círculo não é intrinsecamente vicioso ou fatal. 127 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho A hermenêutica da facticidade criada por Heidegger surge como um método de conscientização capaz não de nos tirar deste círculo, mas de fazer com que nele ingressemos de maneira atenta ou, em outras palavras, hermeneuticamente situados. Baudelaire, por exemplo, “sabia como se situava, em verdade, o literato: como flâneur ele se dirige à feira [para nós mercado]; pensa que é para olhar, mas na verdade, já é para procurar um comprador” (Benjamin, 2010: 30). E quanto a nós, em face do mercado jurídico, em face do espaço comum de intercâmbio linguístico especificado como “mundo do Direito”, o que é que de fato queremos: vender ou ser autor? O nosso texto, a nossa “literatura”, a nossa “poesia”, ainda que em prosa, é um esforço de nos fazer entender, de nos expor enquanto subjetividades autônomas numa comunicação que pressupõe interlocutores também autônomos – num esforço recíproco de interpretação do “eu” e do “não-eu” que habita em nós conjuntamente com a alteridade (o “eu” e o “não–eu” que habita também no outro)? Ou estamos nos escondendo de nós mesmos embaixo das vestes do cidadão médio bem ajustado que, como bom profissional/funcionário que deve ser, escreve objetivamente sobre a realidade porque, antes de se fazer entender, ele, que de tudo entende, escreve para ser confirmado? 128 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos M. Barbosa e Hemerson Alves Baptista. 3. ed. São Paulo: Ática, 2010. (Obras escolhidas, vol. 3). DETHLEFSEN, Thorwald; DAHLKE, Rüdiger. A doença como caminho: uma nova visão da cura como ponto de mutação em que um mal se deixa transformar em bem. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 1997. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Filosofia ficcional. Negatividade em ontologia, teologia, ética e direito: dificuldades com o ser, em deixar ser e para deixar de ser. São Paulo, PUC/SP: 2005. (Texto disponibilizado pelo autor para utilização no curso Direito e Poética). HEIDEGGER. Vida e obra. In: Martin Heidegger: conferências e escritos filosóficos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores). MARIOTTI, Humberto. Autopoiese, cultura e sociedade. 1999. Disponível em: http://www.geocities.com/pluriversu/autopoies.html. Acessado em: 08.05..2012. PAULINO, Gustavo Smizmaul. O ensino do direito em crise: reflexões sobre o seu desajuste epistemológico e a possibilidade de um saber emancipatório. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008. PAVIANI, Jayme. Sentido e significado na perspectiva fenomenológica. In: FELTES, Heloísa Pedroso de Moraes (Org.). Produção de sentido: estudos transdisciplinares. São Paulo: Annablume; Porto Alegre: Nova Prova; Caxias do Sul: Educs, 2003. 129 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 6 Direito, dominação e violência Para um diálogo sobre as possibilidades de uma teoria política do direito Henrique Garbellini Carnio Doutorando e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Bolsista do Centro de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior - CAPES. 130 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 1. Sobre a relação entre política e direito A questão fundamental que aqui se coloca é uma pergunta muito bem proposta por Max Weber em sua célebre conferência tratando sobre a política como vocação profissional (Politik als Beruf)122, a saber: “Quando e por que os homens obedecem?”123 Neste texto, Weber apresenta a política como a participação no poder ou a luta para influir na distribuição de poder124. Tal colocação remete a reflexão diretamente para o conteúdo do direito, pois indubitavelmente, desde sua gênese, o direito encontra-se em relação estreita com o poder, tão estreita que muitas vezes pode se encontrar quem o reduza às relações de poder, “tendo como consequência a politização absoluta – tendencialmente absolutista, autoritária, quando não, totalitária – do direito, que assim é degradado à condição de uma espécie de disfarce da política, mero instrumento do poder”125. Interessante notar que, dependendo do prisma que se olha a questão das relações entre direito e poder – plenamente coordenadas sobre as matrizes da política e da violência – enfoques diferentes podem ser colocados. Se a análise pautar-se em termos pré-civilizatórios, como nas comunidades primitivas, encontrar-se-ia uma genealogia do próprio direito, do poder e da civilização, pois como demonstrado anteriormente, as relações de débito e crédito (troca, escambo) e sua consequente projeção violenta em termos de castigo e medo dos ancestrais determinaram as relações humanas e propiciaram o terreno de todo o processo civilizatório. Poder-se-ia ainda se restringir essa relação no mencionado reducionismo, que reduz o direito às relações de poder, causando a 122 Weber, Max. Ensaios de sociologia. 3. ed. Trad. Waltensir Dutra, rev. técnica de Fernando Henrique Cardoso, Rio de Janeiro: LTC , 1974. 123 Weber, Max. Ensaios de sociologia, cit., p 99. 124 Weber, Max. Ensaios de sociologia, cit., p. 98. 125 Guerra Filho, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei. ano 1, n. 4. Panóptica. p. 65. 131 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho politização absoluta com ramificações possíveis para o absolutismo, autoritarismo e mesmo totalitarismo. Por fim, projetando-se de forma histórica a análise, chegar-se-ia à figura do Estado Moderno e toda sua configuração político-jurídico, o que ocasiona outro tipo de reducionismo, metodologicamente dizendo, pois reduz a política e o próprio direito a uma forma jurídica de exercício do poder126. Willis Santiago Guerra Filho, ao se referir à conferência aqui tratada e a proposta de sua perspectiva sociológica compreensiva, verifica que Weber se vale de León Trotski para dar cabo de sua investigação, demonstrando como a ideia de “força” era o fundamento do Estado, ou seja, ocorria consagração da força física como o meio empregado tipicamente pelas associações políticas127. Tal noção de força é que passa a ser referida por uma denominação mais precisa, a de violência. Essa noção de violência é que serviu a certas instituições sociais àquilo que será a própria configuração do Estado, haja vistas as predecessoras formas de organizações sociais, aqui já mencionadas, a exemplo das comunidades primitivas, mais precisamente dos clãs, tribos e organizações gentílicas. Em termos jurídicos, mais precisamente em termos de Teoria do Direito, a discussão – que perpassa as teorias contratualistas e suas críticas com as teorias da dominação e poder como configuradoras do Estado e o próprio positivismo jurídico normativista kelseneano – revela a questão de se caracterizar a legitimidade do emprego da violência pelo direito para regular as relações sociais, daí a importância da pergunta que encabeça este tópico: “Quando e por que os homens obedecem?”. O desenvolvimento dessa colocação parece sugerir que a presente discussão instaura praticamente uma zona de indeterminação 126 Guerra Filho, Willis Santiago. (Anti-) Direito e força de lei. Op.cit., p. 65. 127 Guerra Filho, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei. Op. cit., p. 67. 132 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho entre a filosofia política e a filosofia jurídica, arriscando-se a dizer aqui que, ao se referir propriamente nestes termos, é que se está no campo de uma Teoria Político-Jurídica, em sua forma mais precisa. As pistas deixadas por Weber revelam que sua tentativa foi a de uma resposta em termos científicos, pois ao privilegiar a questão do como se obedece, em termos funcionais, se atingiria a sua clássica tipologia – tripológica – das três formas “puras” de legitimação, a saber: dominação legal, dominação tradicional e a dominação carismática128. A grande sacada de Weber seria, então, a de que as formas puras de dominação apoiam-se internamente em base jurídicas legitimadoras, ou seja, é o direito que fornece a legitimidade da autoridade e quando esta é desacreditada as consequências são de grande alcanço129. Nas linhas traçadas por Weber, encontra-se um fundamento antropológico de todas as “puras” formas de dominação. A obediência e a sujeição se dizem determinadas pelos motivos bastante fortes do medo e da esperança. O medo da vingança do detentor do poder, que possuía poderes mágicos; e a esperança de recompensa neste mundo ou noutro. E, além da vingança e da recompensa, medo e vingança era igualmente causados pelos mais variados interesses. Seria esta, então, a justificativa para o respeito ao direito e ao Estado, que foi dada por alguns autores que fundamentam o pensamento político moderno, utilitarista e positivista, como Maquiavel e Hobbes130. 128 Weber, Max. Os três tipos puros de dominação legal. Gabriel Cohn (Org). 7. ed., n. 4, São Paulo: Ática, 2003. pp. 128-141. 129 Mais precisamente, nas palavras de Weber: “A dominação, ou seja, a probabilidade de encontrar obediências a um determinado mandato pode fundar-se em diversos motivos de submissão. Pode depender diretamente de uma constelação de interesses, ou seja, de considerações utilitárias de vantagens e inconvenientes por parte daquele que obedece. Pode depender também do mero ‘costume’, do hábito cego de um comportamento inveterado. Ou pode fundar-se, finalmente, no puro afeto, mera inclinação pessoal do súdito. Não obstante, a dominação que repousasse apenas nesses fundamentos seria relativamente instável. Nas relações entre dominantes e dominados, por outro lado, a dominação costuma apoiar-se internamente em bases jurídicas, nas quais se funda a sua ‘legitimidade’, e o abalo dessa crença na legitimidade costuma acarretar consequências da grande alcanço.” [...]. Weber, Max. Os três tipos puros de dominação legal. Op. cit., p. 128. 130 Guerra Filho, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei. ano 1, n. 4., Panóptica. p. 70. 133 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho As questões que surgem, e que serão discutidas, aprofundam um pouco mais o tema: tais argumentos são suficientes para, em termos meramente fáticos e basicamente acríticos, compreender o por quê da submissão à violência organizada juridicamente? E, mais, pelo fato da violência ser na realidade proveniente do Estado e este ser o configurador ficcional em termos administrativos de nossas vidas? 2. A governamentabilidade da vida e o direito Como bem evidencia Willis Santiago Guerra Filho, vivemos atualmente num estado de onipresença e ubiquidade da violência, pois esta se encontra em todos os planos e espaços de convivência, desde a família, passando pela comunidade em que se vive, até as grandes cidades e, ainda, em escala planetária, onde atuam os Estados e organizações para-estatais que não se limitam a exercer a violência em determinado território131. Seria, aparentemente, esta a análise proposta pelo contemporâneo filósofo italiano Giorgio Agamben nos rastros da genealogia da governamentabilidade de Michel Foucault, em especial na obra O reino e glória. Sua premissa parte exatamente da investigação dos modos e dos motivos pelos quais o poder foi assumindo, no ocidente, a forma de uma oikonomia (de oikos “casa”, e nomia, “regramento”), ou seja, de um governo dos homens132. Nesta medida, o direito vem sendo construído pela tensão entre um ideal de justiça, jamais realizado, e na realidade da violência na qual se ampara o poder. Poder este de assenhoramento de um sujeito sobre outro. Em sentido jurídico, pelo exercício da autoridade (legítima), e, em sentido psicológico, para assujeitar o outro a uma simples vontade de poder, isto é, um desejo de sujeição para suprir a carência de ser, própria 131 132 Guerra Filho, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei., ano 1, n. 4, Panóptica. p. 70. Giorgio Agamben. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo, tradução de Selvino J. Assmann, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 9. 134 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho do ser ficcional, artificioso, desejante e anormal, que é o ser humano133. O poder aqui mencionado, conhecido em todas as sociedades que se tem notícia, salvo aquelas surgidas na modernidade, é um poder que tem como fundamento uma força superior, divina, como bem demonstra Walter Benjamin ao final de seu texto Para uma crítica da violência (Zur Kritik der Gewalt134), e que é bem aproveitado por Jacques Derrida em seu Força de lei135. Segundo Walter Benjamin, em seu espetacular ensaio supramencionado, há uma oscilação semântica constante a partir do termo Gewalt entre os sentidos de violência e poder. Todo o seu esforço é para demonstrar coma a origem do direito e do próprio poder judiciário surge a partir da violência. De modo cuidadoso, Derrida evidencia que a tradução da palavra Gewalt proposta da forma como o fez Benjamin exige precauções, pois Gewalt além de violência pode significar também o domínio ou a soberania do poder legal, a autoridade autorizante ou autorizada: a força de lei. Em sua análise, Derrida demonstra como Benjamin pretende colocar em questão o direito, mais propriamente, com todo rigor, uma “filosofia do direito”. Para tanto, cria uma primeira distinção entre as duas violências do direito: a violência fundadora, aquela que institui e instaura o direito (die rechtsetzende Gewalt), e a violência conservadora, aquela que mantém, confirma, assegura a permanência e a aplicabilidade do direito (die rechtserhaltende Gewalt)136. Logo em seguida, surgem duas outras distinções, a saber: a distinção entre a violência fundadora do direito, que é dita “mística”; e 133 Willis Santiago Guerra Filho. (Anti-)Direito e força de lei. Op.Cit., p. 71. 134 Benjamin, Walter. Para una critica de la violencia, Trad. Héctor A. Murena, Buenos Aires: Editorial Leviatán, 1995. p. 46. 135 Derrida, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla PerroneMoisés, São Paulo: Martins fontes, 2007. p. 72. 136 Derrida, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Op. cit., p. 73. 135 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho a violência destruidora do direito (Rechtsvernichtend), que é dita divina. E, por fim, a distinção entre a justiça (Gerechtigkeit), como princípio de toda colocação divina de finalidade (das Prinzip aller göttlichen Zweckstzung) e o poder (Macht), como princípio de toda instauração mística do direito (aller mythischen Rechtsetzung). Segundo Derrida, o termo “crítica” (Kritik), utilizado por Benjamin, não significa simplesmente uma avaliação negativa, rejeição ou condenação legítimas de violência, mas um juízo, uma avaliação dos meios de se julgar a violência. Na realidade, o conceito de violência pertence à ordem simbólica do direito, da política e da moral, de todas as formas de autoridade ou de autorização ou pelo menos de pretensão de autoridade137. 3. A violência, o sacrifício e a sacralização A par de tudo o exposto, é interessante ainda notar como René Girard em sua obra A violência o sagrado138 (La violence et le sacré) aborda o tema fundamental da violência na exteriorização da noção de sacrifício praticada pelos homens. Em seu texto, o referido autor trata sobre o mistério do sacrifício, evidenciando nucleicamente, que só o sacrifício de alguém, “o bode expiatório”, pode catalisar a violência de todos contra todos. Tudo pelo sentimento mimético do ser humano de desejar o que o outro deseja, sem se saber o por quê se deseja.139 Essa figura do “bode expiatório” é a que encontramos hoje em nossa sociedade moderna, pois enquanto modernas e racionais, não são mais crentes em magias e ritos, na forma de incluídos/excluídos da sociedade, “ou seja, os que se acham internos e internados, em domicílios, 137 Derrida, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla PerroneMoisés, São Paulo: Martins fontes, 2007. pp. 74-75. 138 Girard, René. La violence et le sacré, Paris: Bernard Gasset, 1972. 139 Girard, René. La violence et le sacré, Paris: Bernard Gasset, 1972. pp. 13-14. 136 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho reformatórios, asilos, delegacias, prisões, hospitais e também naquela instituição paradigmática dessas todas, segundo Giorgio Agamben (em Homo Sacer, 1995), que é o campo de concentração, para refugiados ou prisioneiros em geral, de status indefinido”140. Giorgio Agamben, em sua obra-projeto, ao se referir ao Estado de Exceção, evidência na obra Homo Sacer o estatuto paradoxal do campo de concentração enquanto espaço de exceção, pois este consiste em nada menos do que um pedaço de território que é colocado fora do ordenamento jurídico normal, mas não é por causa disso que é torna-se meramente um espaço externo141. Esse movimento interno/externo evidencia que, na medida em que seus habitantes foram despojados de todo o estatuto político e reduzidos integralmente à vida nua, o campo é também – em termos paradigmáticos – o mais absoluto espaço bio-político que jamais tenha sido realizado, pois nele o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação. Daí a afirmação do autor de que o campo é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política torna-se bio-política e o homo sacer confunde-se virtualmente com o cidadão142. Cabe ressaltar aqui que a noção bio-político143 utilizada por Agamben possui uma matriz foucaultiana, e sua significação fica clara no momento em que se instaura um novo modelo – de relacionamento humano – que ressalta a tomada do poder sobre o homem enquanto ser vivo e que tem no Estado do século XIX sua força catalisadora. 140 Guerra Filho, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei. Op. cit., p. 74. 141 Agamben, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 167. 142 Agamben, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Op. cit., p. 167. 143 Segundo Foucault: [...] uma das mais maciças transformações do direito político do século XIX consistiu, não digo exatamente em substituir, mas em completar esse velho direito de soberania – fazer morrer ou deixar viver – com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo, perpassá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer [...]. Michel Foucault. Aula de 17 de março de 1976. In. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 287. 137 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 4. As práticas governamentais e a fatalidade da força politizadora Na dimensão de tudo isso é que resta, por fim, o interessante apontamento sobre o conceito de política em Carl Schmitt e o modo pelo qual evidencia a potência de uma violência instauradora e mantenedora do direito em nossa sociedade atual. Em termos de legalidade, Schmitt defende que a forma especial de manifestação do direito é a lei e a justificação específica da coerção estatal é a legalidade, cabendo ao soberano decidir sobre o estado de exceção, ou seja, na figura do soberano reúnem-se os seguintes elementos que acontecem simultaneamente: supremo legislador, supremo juiz e supremo mandatário, última fonte de legalidade e última base de legitimidade144. Para Schmitt, a razão última da política é a possibilidade extrema da guerra, que se expressa na dualidade dos conceitos opostos de amigo/ inimigo. Como bem nota Lorenzo Córdova Vianello, em Schmitt pode-se encontrar quatro características fundamentais da contraposição amigo/ inimigo145. A primeira seria que a distinção amigo/inimigo constitui um elemento originário, ou seja, a confrontação proposta não é um resultado de uma série de situações que se pode definir como políticas, mas, pelo contrário, constitui a premissa para poder qualificar tais situações como políticas. Essa dimensão define o fenômeno político como toda situação conflitiva que pode ser reconduzida, em última instância, a confrontação entre amigo/inimigo deve ser considerada como pertencente à esfera da política. 144 Schmitt, Carl. Legalidade e legitimidade. Trad. Tito Lívio Cruz Romão. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. pp. 3-4. 145 Vianello, Lorenzo Córdova. Derecho y poder: Kelsen y Schmitt frente a frente, México: FCE, UNAM, IIJ, 2009. pp. 213-217. 138 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Em segundo lugar, o dualismo amigo/inimigo é uma parelha de categorias autônomas, que não pode ser comparada a dicotomias de outras espécies, como da moral, da estética ou da economia. Em outras palavras, ser amigo não significa ser bom, belo ou útil, da mesma maneira que ser inimigo não significa ser mal, feio ou inútil. Os conceitos amigo e inimigo são antitéticos, é dizer, que se excluem reciprocamente e são exaustivos. Enquanto antitéticos, os conceitos definem um ao outro através da negação e da contraposição em relação ao outro. Isto é importante, pois, enquanto antitéticos não é possível se criar um meio termo para amigo e inimigo. Por fim, a quarta característica seria a de que na dicotomia há um conceito mais forte do que o outro, no caso, o de inimigo, pois a partir dele é que se consegue atingir a contraposição ao conceito de amigo. Nesta dimensão, o conceito de inimigo tem uma prioridade lógica sobre o conceito de amigo. A par destas considerações iniciais, tem-se a divisão da política concebida como a expressão do conflito e esta pode se desenvolver de forma especial em dois campos diversos, a saber: no campo internacional (“alta política”) e no campo nacional, palco de uma política concebida pelo contrário, como algo degradado a extremos “parasitários” e “caracturais”146. E mais, isso revela que somente a partir do Estado um povo pode expressar a decisão política fundamental: a decisão sobre o amigo/ inimigo. A dicotomia entre amigo e inimigo é que dá, então, a tônica da existência de um povo, pois a identidade de um coletivo é determinada pela confrontação e pela luta contra um inimigo comum, ou seja, um povo pode se considerar unido politicamente quando todos os seus membros possuem os mesmos inimigos e os combatem e, por outro lado, que a 146 Vianello, Lorenzo Córdova. Derecho y poder: Kelsen y Schmitt frente a frente. Op. cit., p. 220221. 139 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho derrota e o aniquilamento do inimigo pode confirmar a existência de um grupo de homens constituídos em um povo, surgindo, assim, a essência da política como mors tua vita mea147. O grande problema deste articulado pensamento de Schmitt, que remete a relação de seu conceito político, é a de que tragicamente para se identificar o elemento forte, inimigo, qualquer diferença pode ser utilizada para determiná-lo. Isto é, qualquer diversidade de tipo étnico, religioso, cultural ou econômico pode ser utilizada e enfatizada para estabelecer quem é o outro que se deve combater e aniquilar148. Essa dimensão politizada entra num esquema fatal reconhecido hodiernamente em práticas governamentais que podem ser exemplificadas nas três seguintes situações – a primeira delas já trabalhada de acordo com a proposta de Agamben: a) a identidade racial construída pelo nazismo para justificar a aniquilação dos judeus, dos ciganos e dos homossexuais durante o Terceiro Reich, b) as identidades étnicas sobre as quais se baseiam as reivindicações de autonomia do Estado da ExIugoslávia, precursoras de guerras e de limpezas étnicas e c) a guerra global declarada pelos Estados Unidos a partir dos atentados terroristas do 11 de Setembro, criando a chamada guerra contra o terror.149. O direito, nessa perspectiva intrinsecamente relacionada à violência, é atingido pela capacidade manipuladora das mencionadas instituições, criadas modernamente e que dissimulam a complexa prisão simbólica de nossas pulsões, exasperada pelos meios de comunicação em massa e pela capacidade dissimuladora de uma das principais instituições ficcionais responsáveis pela regulação dos seres humanos, o próprio direito. 147 Vianello, Lorenzo Córdova. Derecho y poder: Kelsen y Schmitt frente a frente. Op. cit., p. 225. 148 Vianello, Lorenzo Córdova. Derecho y poder: Kelsen y Schmitt frente a frente. Op. cit., p. 226. 149 Vianello, Lorenzo Córdova. Derecho y poder: Kelsen y Schmitt frente a frente. Op. cit., p. 227. 140 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010. ______________. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo. Trad. Silvino J. Assomam São Paulo: Boi tempo, 2011. BENJAMIN, Walter. Para una critica de la violencia Trad. Héctor A. Murena, Buenos Aires: Editorial Leviatán, 1995. DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins fontes, 2007. FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1976. In. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. GUERRA FILHO, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei. ano 1, n. 4, Panóptica, 2006. GIRARD, René. La violence et le sacré, Paris: Bernard Gasset, 1972. SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade. Trad. Tito Lívio Cruz Romão, Belo Horizonte: Del Rey, 2007. VIANELLO, Lorenzo Córdova. Derecho y poder: Kelsen y Schmitt frente a frente, México: FCE, UNAM, IIJ, 2009. WEBER, Max. Ensaios de sociologia, 3. ed., Trad. Waltensir Dutra, rev. técnica de Fernando Henrique Cardoso, Rio de Janeiro: LTC , 1974. 141 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho ______________. Os três tipos puros de dominação legal. Gabriel Cohn (Org), 7. ed., n. 4., São Paulo: Ática, 2003. 142 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 7 A hermenêutica jurídica na perspectiva pós-positivista: a judicialização das relações sociais Haradja Torrens Douranda em Direito (PUC-SP). Mestrado em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (2001). Diretora Executiva do Instituto Latino-Americano de Estudos Constitucionais. Coordenadora de Pesquisa do Curso de Direito da Faculdade Farias Brito. 143 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 1. Hermenêutica e norma jurídica: da regra de conduta ao ordenamento jurídico pós-positivista O filósofo Raimundo de Farias Brito150 conceitua o ato de pensar, a própria filosofia, como uma atividade permanente do espírito humano, tomando esta afirmativa como fio condutor, não provoca estranhamento à dificuldade em apontar a origem histórica da Hermenêutica, pois sendo a interpretação uma atividade ligada ao próprio pensar e à produção de significado, se afigura impreciso determinar a partir de quando a interpretação passa a ser reconhecida como técnica específica, a par do próprio pensar. A etimologia do vocábulo não é precisa, mas é possível alcançar conceitos similares em sociedades anteriores até termo o grego ermenéia e a forma latina correspondente Interpretatio151. Cogita-se ainda atribuir a origem do termo ao mito grego de Hermes, filho de Zeus e intérprete das palavras dos Deuses para os mortais, o primeiro intérprete, hábil no manejo do conhecimento e da argumentação. Conceituada por Scheleiermacher152 como “arte da compreensão, arte que não visa o saber teórico, mas sim seu uso prático, a praxes ou a técnica da boa compreensão de um texto falado ou escrito”, a Hermenêutica desenvolveu-se combinando a investigação linguística, histórica e filosófica. O emprego da Hermenêutica Jurídica contempla a racional aplicação do Direito através de um procedimento metodológico que busca analisar as interpretações possíveis para escolha da mais adequada ao objeto, livrando o intérprete de falácias, vícios e prejulgamentos, para alcançar o significado acima da linguagem. Diante de vários métodos interpretativos (literal, gramatical, histórico, sistemático, teológico, sociológico) a hermenêutica estuda e valora significados com a finalidade de ressaltar a melhor interpretação. 150 Filósofo cearense, autor de “A Filosofia como Atividade Permanente do Espírito Humano”. Trabalho publicado em l895. 151 Cf. Sílvio de Macedo. In Enciclopédia Saraiva do Direito. vol. 41, p. 145. 152 SCHELEIERMACHER. 2010, p. 67. 144 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Recentemente, o reconhecimento de normas principiológicas nos ordenamentos jurídicos aportou novo patamar hermenêutico. A concepção de ordenamento jurídico enquanto conjunto de normas de conduta e normas de estrutura foi ampliado com a percepção de normas que traçam diretrizes políticas, assim como, normas que consagram princípios e valores. Assim, o Direito passou a ser compreendido tanto (a) textualmente, na formulação de lei reguladora da conduta, como, (b) axiologicamente, a partir do conteúdo valorativo da norma que consagra as dimensões da dignidade humana, impulsionando o desenvolvimento hermenêutico desta nova categoria de norma principiológica. O próprio conceito de direito positivado ou direito posto foi modificado, podendo assumir a forma tradicional de norma sancionadora da conduta (regra jurídica), ou trazer uma norma consagradora de alguma dimensão da moralidade pública ou da equidade política presente na norma constitucional: igualdade, solidariedade, democracia e a dignidade. Toda a formulação pós-positivista sobre a interpretação e aplicação do Direito decorre da releitura da terminologia “direito posto”, que deixa de ser considerada sob a lente positivista para atingir as categorias normativas de substrato axiológico. Tal processo foi percebido mundialmente a partir da incorporação do conteúdo moral dos direitos humanos nas constituições ocidentais. No Brasil, o termo “pós-postivismo” foi tratado originalmente por Willis Santiago Guerra Filho em artigo denominado “Pós-modernidade, pós-positivismo e a Filosofia do Direito”, publicado em Nomos - Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC entre 1995 e 1996, no mesmo ano, abordado por Paulo Bonavides, na edição atualizada do Curso de Direito Constitucional. O desenvolvimento hermenêutico na interpretação e aplicação do Direito, não apenas aprimorou a noção de justiciabilidade, mas também a noção de direito enquanto norma, renovando o próprio significado de direito posto. A utilização do prefixo pós junto ao termo positivismo busca identificar esse novo parâmetro que desponta diante 145 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho da realidade multifacetada da sociedade contemporânea e impõe às doutrinas jurídicas contemporâneas, a necessidade da distinção entre a formulação tradicional de norma e a norma de natureza principiológica. A Constituição Federal brasileira de 1.988 é um claro exemplo de norma de conteúdo principiológico. Já no artigo primeiro consagra a República um Estado democrático de direito sob o fundamento da dignidade da pessoa humana, aponta como objetivo o princípio da igualdade: 3º. IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Representativa do processo histórico de constitucionalização dos Direitos Humanos, a Constituição da República Federativa do Brasil impõe o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial na categoria principiológica. Na teoria do Direito, o percurso traçado é bem observado a partir da sequencia positivista estabelecida diante do trajeto Kelsen – Hart – Dworkin, que pode ser relacionado respectivamente ao positivismo, neopositivismo e pós-positivismo jurídico. Kelsen é notadamente o autor mais próximo do rigor normativo, afastando o conteúdo jurídico da Moral. Ao analisar a Teoria Pura do Direito, Kelsen ressalta a inexistência de um critério objetivo para distinção entre o justo e o injusto e afasta da Teoria Pura qualquer tentativa de valorar o Direito positivo, afirmando que essa tarefa pertenceria à religião ou metafísica social e tornando impróprio cogitar a presença de princípios jurídicos no Direito positivado: [...] a questão quanto ao que é o Direito positivo, o Direito de certo país ou o Direito em um caso concreto é uma questão de um ato criador de Direito que teve lugar em certo tempo e espaço. A resposta a essa questão não depende dos sentimentos dos sujeitos que respondem; ela pode ser verificada por fatos objetivamente verificáveis, ao passo que a questão quanto a ser justo o Direito de certo país ou a decisão de certo tribunal depende da idéia 146 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho de justiça pressuposto pelo sujeito que responde, e essa idéia baseia-se em função de sua mente153. H. Hart desenvolveu uma teoria positivista que constata a existência de uma segunda espécie normativa a par das regras de condutas que ficou conhecida como neopositivismo. Para ele, as duas espécies normativas seriam então as regras primárias e as regras secundárias. As primárias impõem um dever jurídico aos indivíduos, enquanto as secundárias são potestades para a criação, modificação ou determinação dos efeitos das regras primárias. As espécies normativas estariam organizadas em uma estrutura hierárquica na qual seria possível delinear uma “regra de reconhecimento”, tal regra seria o fundamento de validade da Constituição e poderia designar algum conteúdo moral ou principiológico154. Posteriormente, a partir da crítica à doutrina neopositivista do inglês Herbert Hart, tornou-se paradigmática a contribuição formulada por Ronald Dworkin diferenciando as espécies normativas em relação ao conteúdo, distinguindo regras jurídicas, princípios e diretrizes (rufles, principles e policies) como espécies do gênero “norma ou proposições jurídicas”, os standards155. Reportando-se à teoria de Dworkin, Willis S. Guerra Filho (1999) relata que a “superação dialética entre o positivismo e jusnaturalismo” trouxe para a Teoria do Direito a distinção das normas jurídicas que são 153 (KELSEN, 1997. p. 294). Kelsen foi um dos principais expoentes da doutrina formalista do Direito, Positivismo Jurídico, no título “A doutrina do Direito Natural e o Positivismo Jurídico” publicado originalmente em 1945 em Teoria Geral do Direito e do Estado (General Theory of Law and State, Harvard University Press), Kelsen traz argumentos fundamentais da Teoria Pura do Direito em congruência ao formalismo e rigor cientificista daquele momento. 154 Na obra “Conceito de Direito”, Hart aborda a possibilidade de incorporar a principiologia de valores ao Direito, denotando o teor suavizado de sua tese positivista. 155 Dworkin explicita a terminologia detalhadamente no texto “Is Law a System of Rules?” (1997), aduzindo que é mais comum utilizar o termo ‘princípio’ genericamente, para referir a todo o conjunto de proposições diferentes das regras, ocasionalmente, chama de ‘diretriz’ aquele tipo de proposição que determina objetivos a serem alcançados, geralmente um desenvolvimento em algum setor econômico, político ou social da comunidade. 147 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho regras daquelas que são princípios. As primeiras possuem uma “estrutura lógica-deôntica” onde há uma descrição de uma hipótese fática e previsão da consequência jurídica. Os princípios não descrevem situações fáticas ou jurídicas, mas valores que adquirem validade objetiva ou positividade. O princípio se reveste de toda a normatividade de uma regra, portanto, é uma proposição que deve ser observada, não porque irá desenvolver ou assegurar uma situação econômica, política, ou social desejável, mas principalmente porque é um requisito de justiça, de equidade ou de outra dimensão de moralidade, neste ponto determinante à atuação judicial. Os princípios são normas vigentes e eficazes, aptas a produzirem efeitos no mundo fático, cuja concretização fica pendente apenas da interpretação e da aplicação. A ampla repercussão da doutrina de Ronald Dworkin fez denotar a superação do conceito tradicional de sistema jurídico, que veio ser denominado pós-positivismo jurídico. 2. A suavização do positivismo: neopositivismo e póspositivismo Ao desenvolver uma teoria sobre Direito que pudesse ser aplicada em qualquer regime, Hart (1997, 77-99) reconhece a concepção até então dominante, que em muitos exemplos a norma detém o enunciado de uma coação ou de uma obrigação não opcional. No entanto, enfatiza que o Direito não se resume a normas coativas, pois identifica a existência de normas de natureza diversa, enquanto distingue regras primárias e regras secundárias. As regras primárias exigem do indivíduo uma ação ou abstenção que independe da vontade humana. As regras secundárias não atuam diretamente em relação ao indivíduo, mas em função da introdução, modificação, extinção, incidência e controle das regras primárias. Assim, enquanto as primeiras impõem deveres e atuam no âmbito das ações humanas, as outras conferem poderes que criam e modificam aqueles deveres, notadamente, os poderes públicos de legislação e de jurisdição 148 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho e os poderes privados exercidos nas relações intersubjetivas. O conjunto das regras primárias e secundárias forma o núcleo de cada sistema jurídico. Quando reciprocamente consideradas essas regras de natureza diversa formam uma importante ferramenta para a identificação da teoria jurisdicional e política predominante no sistema. Vislumbradas em conjunto, as regras secundárias criam e modificam as regras primárias, determinam a tutela dessas e até obrigam o indivíduo à satisfação das regras primárias. Ademais, as regras secundárias oferecem critérios que convalidam fática e racionalmente as regras primárias. Não obstante, Hart (1997, p. 102-105) adverte para o fato de que o sistema não é apenas a união de regras primárias e secundárias, pois acomoda ainda elementos de outras ordens, ou de natureza diversa. Conforme a teoria desenvolvida por H. Hart, as regras secundárias podem ser regras de modificação, de jurisdição ou de reconhecimento. As regras secundárias de modificação estão relacionadas à atuação legislativa, ou seja, à criação, alteração e extinção das regras primárias. As regras secundárias de jurisdição se referem à organização judiciária, bem como à imposição do cumprimento das regras primárias através da tutela jurisdicional. Já a regra secundária de reconhecimento identifica as regras como tais através de critérios determinados como o processo legislativo adequado, a observância prática costumeira, a ressonância das regras nas decisões precedentes e, na forma prioritária dos sistemas constitucionais, a conformação com a Constituição. O traço específico que faz de Hart um neopositivista está no que ele denominou “regra de conhecimento”, pois através dela o autor se expressa para admitir o conteúdo axiológico na norma jurídica ainda no arcabouço de uma doutrina positivista. Apesar de não refutar o positivismo, Hart ultrapassa a separação entre o Direito e a Moral imposta ao longo da teoria positivista e inaugura a comunhão desses elementos no instrumento que vislumbrou para a convalidação do sistema jurídico, tudo sem se afastar do Direito, 149 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho uma versão suavizada do positivismo, contudo não refuta as teorias positivistas precedentes. A relação entre a regra jurídica e a regra de reconhecimento determinará a validade da regra primária. Portanto, no conceito de Direito desenvolvido, a validade da regra depende da satisfação dos critérios contemplados na “regra de reconhecimento”. Já a eficácia só será dimensão de validade das regras de um sistema se estiver inclusa nos critérios oriundos da regra de reconhecimento. A própria regra de reconhecimento depende da anuência prática dos tribunais, dos administradores públicos e dos indivíduos em identificar as regras como tais através dos critérios determinados pela regra de reconhecimento. Assim, enquanto a observância oficial das regras secundárias deve consistir em uma prática consistente e reiterada, a observância das regras primárias pelos indivíduos pode contemplar divergências, sendo importante apenas o cumprimento pela maioria e somente no que tange às regras válidas; isto porque a dissonância estatal sobre os critérios da regra de reconhecimento produziria uma inconsistência que abalaria todo o sistema jurídico em virtude do caos oriundo das decisões oficiais contraditórias. No intuito de desenvolver um conceito ou concepção de Direito aplicável a qualquer sistema jurídico, Hart enfatiza a possibilidade de validade do Direito ainda que desvencilhado da Moral, na hipótese da regra de reconhecimento não contemplar a moralidade como critério de validade daquele sistema, portanto, uma teoria jurídica que não discorda da possibilidade de regras ou decisões injustas. A regra de reconhecimento seria passível de conteúdos diversos, conforme o sistema jurídico ao qual ela se reporte ou reconheça, o conteúdo moral não seria imperioso, apenas as exigências do devido processo legislativo, equiparável ao pedigree da norma seriam necessárias. É justamente a relação do Direto com a Moral o ponto que diferencia essencialmente a concepção de Direito em Hart para Dworkin. A teoria interpretativa de Ronald Dworkin determina que a validade de uma proposição jurídica 150 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho dependerá diretamente das premissas situadas nos princípios dos quais decorre, além disso, deve concorrer para a observância da melhor prática institucional e da melhor justificação moral. Assim, toda norma depende de uma justificativa moral. Dworkin estabelece a interpretação do Direito em três fases: na primeira, a fase pré-interpretativa, quando o intérprete procura identificar os elementos da proposição jurídica; a segunda fase, quando o intérprete busca a justificação da proposição; e a terceira, de adequação dos elementos à justificação da proposição. A possibilidade de uma norma desvinculada da Moral só existiria na fase pré-interpretativa, a norma injusta não resistiria à segunda fase e tampouco alcançaria a terceira, determinando uma teoria interpretativa que refuta qualquer perspectiva de validade de uma norma injusta, a qual sucumbe logo na primeira etapa do processo interpretativo, jamais se afirmando como Direito. A teoria criada por Dworkin (1997, p. 145) pode ser traduzida com “Teoria Integrativa do Direito”, denominada também de “Teoria da Integração”, tem como traço distintivo aplicar a moralidade como critério determinante para a melhor resposta perante cada sistema jurídico. São duas as dimensões de justificação de uma resposta: uma dimensão de enquadramento legal e outra de moralidade. A primeira proporciona uma resposta que consista na melhor justificação legal dentre as existentes, mas como comumente os sistemas jurídicos oferecem duas ou mais respostas igualmente válidas na aplicação do Direito ao caso concreto, será a segunda dimensão, ao analisar as respostas diante dos princípios morais, que solucionará o problema da multiplicidade de respostas. Diante de justificações igualmente satisfatórias haverá uma superior como teoria política ou moral, e será aquela que melhor determina os direitos que os indivíduos realmente detêm. Através dessas dimensões e do sopesamento de respostas, é possível determinar qual a melhor resposta para casos difíceis e afastar a discricionariedade do exercício da jurisdição. Neste ponto se encontra a principal divergência entre as 151 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho doutrinas desenvolvidas por Hart e Dworkin, a utilização da dimensão da moralidade como critério propõe impedir que as lacunas do ordenamento jurídico sirvam de subterfúgio para prática de atos moralmente condenáveis. Ao inserir na interpretação jurídica atributos morais e políticos se possibilita à comunidade a construção do Direito embasada na consciência política e jurídica e se determina ao indivíduo que aja de conformidade com a moralidade política, tornando desnecessária a constante criação e reformulação das leis. 3. Implicações hermenêuticas de um sistema hierárquico de regras e princípios: a norma de matriz principiológica e a judicialização do direito O constitucionalismo contemporâneo tornou as constituições republicanas o ambiente natural de princípios que delineiam o Estado Democrático de Direito, assim, todo o ordenamento jurídico recebe o influxo principiológico. As restrições lógico-formais impostas pela natureza das leis impulsionaram a importância e a valorização dos princípios jurídicos para o Direito, sejam eles originados de normatividade expressa ou decorrentes de uma regra ou de outro princípio. Eros Grau (1988, p. 71) assinala a existência de princípios no ordenamento jurídico ainda que não expressamente enunciados. Assim, tanto pertencem à ordem jurídica, os princípios referidos pela Constituição, prévios, como aquele descoberto, um verdadeiro direito “pressuposto” ao direito posto. Integram a ordem constitucional, indistintamente, os princípios jurídicos positivados, identificáveis no texto constitucional; bem como os princípios extrapositivos, não designados expressamente, porém plenamente aplicáveis. Bonavides (2006, p. 259-266) ressalta a necessidade de se reconhecer a hegemonia e a supremacia dos princípios na pirâmide jurídica por representarem a “mais alta normatividade que fundamenta a 152 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho organização do poder”. Remetendo ao processo histórico, consigna que a juridicidade dos princípios passou por três distintas fases: a primeira, a jusnaturalista, quando os princípios estavam circunscritos a uma formulação completamente abstrata e uma dimensão ético-valorativa; a segunda, a juspositivista, quando os princípios ingressaram nos Códigos, porém apenas como fonte normativa complementar ou subsidiária; e, finalmente, a pós-positivista, nas últimas décadas do século XX, em acentuada hegemonia axiológica, reconhecidamente com conteúdo de direito, com força vinculante e superlativo a todo o ordenamento jurídico das democracias, principalmente, a partir da Constituição. A essencialidade dos princípios, assim como a possibilidade de suscitar princípios não expressos também é ilustrada também por Perelman (1999, p. 103) tomando como exemplo os excessos do nacionalsocialismo, os crimes abomináveis cometidos por oficiais de Hitler, os quais, apesar da ausência de disposições legais expressas não poderiam escapar à justiça. Os oficiais foram julgados e condenados quando os juízes de Nuremberg afirmaram a preexistência de um princípio geral a proteger a dignidade humana, inerente à natureza de todas as nações instituídas a partir do Direito. Seguindo a lógica axiológica dos princípios, decorre que eles também influenciam a interpretação do Direito em uma nova hermenêutica. Canotilho (1993, p. 119) consiga aos princípios uma função interpretativa, a “idoneidade normativa irradiante”, e oferece uma substancial distinção entre princípio e norma, a completar que “a distinção entre norma e princípio baseia-se na objetividade e presencialidade normativa do último, independentemente da consagração específica em qualquer preceito particular”. O autor faz observações que restringem características amplamente atreladas às diferenciações tradicionalmente traçadas entre princípio e norma, (i) o fato dos princípios necessitarem de uma concretização normativa posterior, pois muitas normas também carecem de alguma regulação; (ii) a aplicação das normas no sistema de 153 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho tudo-ou-nada, principalmente no que tange às normas constitucionais; (iii) as gradações valorativas dos princípios por discordar da ponderação de valor sobre bens constitucionais igualmente valiosos. Para Canotilho, a existência diferenciada dos princípios decorre do maior grau de abstração, da aplicação mediata (através de outros princípios e regras), do conteúdo valorativo, da possibilidade existência implícita e do nãoafastamento de princípios em choque. A supremacia das normas constitucionais e dos valores que consagram, implica em substancial alteração do papel do Estado, do conceito de Constituição e da hermenêutica jurídica156. No Brasil, A Constituição Federal de 1988 sedimentou a abertura democrática do Estado através da consagração dos valores do constitucionalismo contemporâneo, das declarações universais de direitos humanos e das lições de equidade vertidas nos textos filosóficos visualizada com a positivação do direito à “vida”, “dignidade”, “liberdade” e “igualdade”. Essa nova normatividade implicou em outra sintaxe a ser verificada a partir do teor humanista contido nos direitos de liberdade, igualdade e solidariedade consagrados através de normas principiológicas e constituições democráticas. A crítica que procura refrear essa nova perspectiva hermenêutica está justamente na oposição à ampliação da jurisdição, sendo comum que a doutrina, a mídia e a sociedade discutam a atividade jurisdicional questionando se o judiciário está tomando para si a determinação de políticas públicas, passando a legislar e a impor a ação executiva onde anteriormente residia a discricionariedade administrativa e legislativa dos representantes eleitos. Poderia o juiz deferir diretamente a fruição 156 Bonavides (2006, p.398-399) Ressalta que “na Velha Hermenêutica interpretava-se a lei, e a lei era tudo, e dela tudo podia ser retirado que coubesse na função elucidativa do intérprete, por uma operação lógica, a qual, todavia, nada acrescentava ao conteúdo da norma; em a Nova Hermenêutica, ao contrário, concretiza-se o preceito constitucional, de tal sorte que concretizar é algo mais do que interpretar, é em verdade interpretar com acréscimo, com criatividade. Aqui ocorre e prevalece uma operação cognitiva de valores que se ponderam. Coloca-se o intérprete diante da consideração de princípios, que são as categorias por excelência do sistema constitucional. 154 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho de um direito não previsto expressamente? Estariam os juízes brasileiros legislando? Estamos diante de julgamentos políticos? Assim, os principais argumentos opostos ao pós-positivismo hermenêutico podem ser resumidos em três aspectos: (i) se as decisões políticas forem retiradas dos legisladores e transpostas para os tribunais, o poder político dos eleitores estará diminuído e as soluções judiciais sobre escolhas políticas abalariam o exercício da soberania porquanto careceriam de representatividade; (ii) o julgamento fundamentado em princípios alargaria a atuação jurisdicional permitindo o subjetivismo e a discricionariedade judicial na aplicação do direito, gerando incerta jurídica; e, (iii) o conteúdo axiológico das normas principiológicas demandariam que os magistrados fossem, na realidade, filósofos. 3.1 A politização do direito O primeiro óbice consiste em argumentos engendrados a partir dos resquícios lógico-formais da interpretação jurídica dogmatista, na concepção estanque do direito e na percepção restritiva do ordenamento jurídico como conjunto de normas que não comporta dimensões axiológicas. Esta objeção pode ser combatida por três parâmetros presentes no próprio sistema judicial: primeiramente, a proibição de non liquet a determinar que os juízes resolvam os casos que lhe são propostos; em segundo lugar, a obrigatória a motivação de toda decisão judicial como atributo do Estado de Direito; e por fim, a situação fática, pois muitas questões genuinamente políticas atingem os tribunais antes que o parlamento tenha possibilidade de cogitar uma lei. A judicialização dos conflitos sociais não pode ser confundida com ativismo jurisdicional, pois é a natureza do sistema que conduziu a ampliação da jurisdição. Do fenômeno de transposição do valor para a norma advêm implicações hermenêuticas que resultam na ampliação da função jurisdicional, pois como magistrado detém a tarefa de apreciar 155 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho toda lesão ou ameaça de lesão a direito157, por decorrência da ampliação do conteúdo normativo, estará obrigado a julgar direitos decorrentes de categorias axiológicas assim como os direitos inerentes às regras de conduta. Tal circunstância conduziu ao Poder Judiciário questões que tradicionalmente eram definidas pela atuação dos órgãos legislativos e executivos; conflitos que versavam, direta ou indiretamente, sobre o direito à saúde, biossegurança, ações afirmativas, racismo, privacidade, aborto de anencéfalos suscitaram a tutela jurisdicional. A situação é maximizada pelo sistema de controle de constitucionalidade brasileiro que, além do controle por ação direta, que conduz determinadas matérias diretamente ao Supremo Tribunal Federal para exame de constitucionalidade em tese, acolheu ainda formulação abrangendo o controle difuso e incidental de constitucionalidade, dotando todo magistrado de jurisdição constitucional através da prerrogativa-dever que compete afastar a lei que se mostre inconstitucional diante do caso concreto. Em contrapartida, a atuação do magistrado, já nasce limitada pela regra geral da inércia, que determina ao juiz agir apenas mediante provocação158. É defeso ao Poder Judiciário se manifestar espontaneamente, promover o exame de constitucionalidade, pois toda a atuação da magistratura decorre de provocação, portanto, não se pode considerar o Judiciário o responsável pela ampliação da função de julgar. O sistema se auto-regula e impõe limitações ao exercício da função também pelo princípio da congruência processual, obrigando o juiz a decidir a lide dentro dos limites em que foi proposta159. A obrigatoriedade que toda decisão seja fundamentada é outra característica do Estado de Direito que limita e legitima a decisão judicial. 157 CF, ART. 5º XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito. 158 CPC, art. 2º: Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais. E ainda, art. 262: O processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial. 159 CPC, art. 128: O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito à lei exige a iniciativa da parte. 156 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho A decisão judicial deve encontrar perfeita ressonância no ordenamento jurídico. Os princípios constitucionais, comuns às sociedades democráticas contemporâneas, funcionam como alicerces dos direitos fundamentais, enquanto a formulação em Estado Democrático de Direito representa o compromisso com a efetividade dos direitos fundamentais através dos dois princípios interdependentes que orientam a dialética desse Estado: legalidade e democracia. Ao motivar a decisão, o magistrado busca o direito aplicável em concreto no ordenamento jurídico, e remete a uma ordem superior de regras e princípios constitucionais e valores democráticos, por isso, a atuação do magistrado deve ultrapassar a mera técnica para possibilitar a aproximação do Direito à Sociedade, realizando os valores das declarações de direitos incorporadas ao ordenamento jurídico. Perelman (1999, p. 191) ressalta que o papel da lógica na argumentação judicial, não seria a decisão judicial o espaço para uma lógica subjetiva de livre convencimento, mas para a lógica contemplada pelo raciocínio direcionado à justiça e à paz social. O julgador deve buscar tornar aceitável sua decisão através da motivação, considerando as pretensões em juízo, as discussões sociais, os precedentes judiciais. A motivação deve ser razoável, buscar estabelecer a paz social, e, em razão da força da coisa julgada, procurar se estabelecer no tempo e evitar arbitrariedades e injustiças. Por fim, é impossível negar que a cada dia torna-se mais comum que os juízes sejam chamados a decidir situações novas derivadas de casos ainda não regulados pela legislação, são situações concernentes às políticas sociais, que pendem pela prestação da tutela jurisdicional. Os juízes serão sempre chamados a decidir questões que implicam a determinação de uma política pública quando lides que propugnam interesses coletivos como saúde, educação, transporte, moradia alcançam o Poder Judiciário; e, ainda, nas lides que versam sobre direitos individuais que repercutem 160 160 Além da legislação processual, (CPC, art. 165), a Constituição Federal, consagra como garantia à Justiça no artigo 93, IX: todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade(...). 157 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho para toda uma classe, como o direito do indivíduo como consumidor ou a preservação ambiental. No sentido ora expresso, um julgamento pode ser considerado político e ainda assim válido e necessário; porém não seria político no sentido de ser um julgamento eivado de interesses obscuros ou, político porque segue orientações político-partidárias. O juiz, embora indivíduo inserto na conjectura política, não decidirá a lide em virtude da interpretação de seu partidarismo político, mas sobre princípios políticos que apelam para direitos políticos e argumentos de política social. Na última década, vários casos de ampla repercussão social demandaram respostas do Poder Judiciário e foram solucionados através da hermenêutica dos princípios. Exemplificativamente, foi o que ocorreu quando o princípio da dignidade da pessoa humana orientou o debate sobre o direito à interrupção da gravidez de fetos anencéfalos em face da proibição geral de aborto no julgamento da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental No. 54. Em manifestação por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade No. 3.510, enquanto se discutia a constitucionalidade da Lei de Biossegurança perante o Supremo Tribunal Federal, os ministros entenderam que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida, tampouco a dignidade da pessoa humana. Ainda versando sobre dignidade, ao julgar o Habeas Corpus 8.2424, o Supremo Tribunal Federal restringiu a liberdade de expressão e proibiu a circulação de livros antissemitas considerando racismo divulgar e comerciar livros “fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias” contra a comunidade judaica 161 . O Supremo Tribunal se manifestou sobre políticas públicas ao julgar o pedido de declaração da constitucionalidade da Resolução nº 7/ 2006, 161 Ementa: habeas-corpus. Publicação de livros: antissemitismo. Racismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Liberdade de expressão. Limites. Ordem denegada. “O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.”. HC 82424/RS. Habeas corpus. Relator: Min. Moreira Alves. Julgamento: 17/09/2003. Orgão Julgador: Tribunal Pleno. STF. 158 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho do Conselho Nacional de Justiça, que vedou o nepotismo no âmbito do Poder Judiciário na Ação Declaratória de Constitucionalidade No. 12. Igualmente, ao julgar a homologação da demarcação de terras indígenas na faixa de fronteira conhecida como região de Raposa/Serra do Sol, na Petição No. 3.388. As teorias pós-positivistas enfatizam a concretização do sistema de valores advindos dos princípios constitucionais, propiciando que se efetive a democracia através de decisões políticas que são legítimas enquanto decorrentes da decisão política fundamental, das normas principiológicas e da Constituição Federal. O fundamental é que os magistrados, ao decidir questões que invoquem um posicionamento político, o façam desprovidos do interesse de agradar a um grupo partidário, mas sempre através da atuação racional e metodologicamente orientada a partir da hermenêutica jurídica. 3.2 Subjetivismo e discricionariedade judicial Outra objeção ao pós-positivismo consiste considerar que a hermenêutica principiológica propugne por um sistema aberto e subjetivo de interpretação do Direito como se os julgamentos fundamentados em princípios autorizassem a criação judicial do Direito, a atuação discricionária, facultando ao juiz traçar subjetivamente seu juízo de equidade. Ao contrário, uma análise detalhada sobre o dogma da completude indica que é na formulação estritamente positivista que se permite casos julgados sem fundamentação em norma precedente. As teorias positivistas asseveram a construção do ordenamento jurídico a partir de dois tipos normativos, as normas de conduta e as normas de estrutura ou competência. Bobbio (1997, p. 51-56) faz referência a juízos morais como “juízos de equidade” nos quais o juiz está autorizado a resolver a controvérsia sem fundamentar a decisão em uma norma legal 159 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho preestabelecida. Segundo Bobbio, a equidade seria uma esfera alheia ao Direito que residiria em uma autorização para que o juiz produzisse o próprio direito, e, mais gravemente, ultrapassando a limitação material das normas existentes. O juízo de equidade seria utilizado em casos de lacunas ideológicas ou de direito a ser estabelecido (quando o intérprete depara-se com a falta de uma solução) e lacunas reais, de direito já estabelecido, caso em que a norma apresenta uma solução, porém refutada pelo intérprete que considera injusta a solução atrelada à norma existente. A saída para contornar a existências de lacunas no ordenamento composto exclusivamente de regras contraria o fundamento positivista, a segurança jurídica, pois os juízos de equidade autorizam a criação judicial do direito ex post facto, aferindo o direito discricionariamente, após a ocorrência do fato. As teorias pós-positivistas determinam que a argumentação judicial seja racional, reduzindo a incerteza e a insegurança de um regime plural. Ao invés de atribuir aos juízes e tribunais liberdade para inventar o Direito, impõem uma prática que exige coerência e mantém a subordinação do juiz a um sistema jurídico que não é apenas um conjunto de regras, mas de normas que são regras e princípios. Diante do redimensionamento da expressão direito posto deixam de existir lacunas axiológicas no ordenamento jurídico, a hermenêutica pós-positivista corrobora para o Judiciário exercer o papel de órgão que se legitima pela atuação não discricionária e pelo respeito ao devido processo substantivo. O sistema judiciário, em especial nos tribunais superiores, se estabelece a partir do exercício de uma função política de renovação e validação do ordenamento jurídico através de valores decorrentes da Lei Fundamental e do Estado Democrático de Direito. A crise do positivismo jurídico decorre, principalmente, da inabilidade do jurista, que atua sob esta ideologia, em lidar com termos de conteúdo metajurídicos, para além da tecnologia jurídica formal. As lacunas oriundas da concepção formalista da lei continuam a solapar o 160 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho sistema jurisdicional com conflitos nos quais falta ao julgador uma norma específica regulando a conduta (lacuna ideológica) ou a norma existente conduz a uma decisão injusta (lacuna real). Quando se realiza hermenêutica na formulação principiológica, mesmo diante da inexistência de uma regra, sempre existirá um valor consagrado pelo ordenamento jurídico, seja através de normas principiológicas ou da fórmula política, Estado Democrático de Direito. Esta constatação permite ao juiz realizar um julgamento pautado por valores consagrados pela ordem jurídica, ao invés de, usar a solução positivista e eleger um julgamento subjetivo por critérios pessoais e discricionários. A inexistência de lacunas axiológicas baliza as decisões judiciais por valores eleitos pela ordem jurídica, que decorrem da concepção contemporânea de direitos inerentes à humanidade e da busca cotidiana pela democracia e pela justiça. 3.3 Juízes filósofos? O terceiro argumento negativo seria a necessidade de transformar os juízes em filósofos, tornando obrigatório o aprendizado da filosofia para a aplicação do Direito quando a norma consagrar conceitos como liberdade, igualdade, fraternidade. Não se pode negar a influência da Filosofia na sociedade, em particular, no caminho percorrido pela motivação jurisdicional. Não há como ignorar, também, a contribuição de filósofos – clássicos e contemporâneos – que se dedicaram ao debate e explanação da Ética, da Moral, do Direito e da Política. Por outro lado, o conhecimento filosófico não é linear nem preestabelecido, ele comporta argumentações diferentes, e, em sua maioria, divergentes. Esses conceitos não são conteúdo exclusivo da Filosofia, eles foram delineados pela história política e estão longe de atingir uma formulação ideal, mesmo quando considerados em tempo e espaço específicos. Por isso, não se pode seguir no Direito desvencilhado da Filosofia enquanto atividade libertadora do ser humano, 161 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho mas quando o argumento filosófico é trazido à motivação judicial ele está contextualizado no conteúdo axiológico constitucional. Assim, em uma ordem jurídica orientada por princípios, a familiaridade daqueles que interpretam o ordenamento jurídico com conceitos filosóficos é tão necessária como são os conhecimentos sobre Economia, Antropologia e História sem que se cogite que o magistrado seja economista, antropólogo ou historiador para exercitar a jurisdição. Conclusão Em suma, a interpretação de regras e princípios jamais será apenas uma questão de Teoria do Direito. O modo como os tribunais interpretam o ordenamento jurídico definirá a atuação da Constituição Federal e a realização de princípios explícitos e implícitos na fórmula do Estado Democrático de Direito consagrada na Constituição. O surgimento de teorias pós-positivistas, alicerçadas no reconhecimento e na afirmação de normas principiológicas não procurou afastar os séculos de desenvolvimento positivista no Direito. Cabe afirmar que o pós-positivismo superou a tese positivista através do raciocínio lógico-filosófico, mas não negou aquela tese, pois não se trata de uma teoria de antagonismo ao positivismo, ou de uma teoria jusnaturalista, ou ainda, mais uma teoria crítica. A tese positivista contém elementos que continuam realçados no pós-positivismo, tais como a importância do direito posto como fonte do Direito, a valorização da segurança jurídica e a observância prática da ordem jurídica estatal refletida no processo legislativo, na institucionalização da Justiça e da sanção. No entanto, através da superação dialética, o pós-positivismo utiliza elementos da antítese, como a metafísica, a axiologia e o humanismo. Longe de ser uma concepção doutrinária isolada, o póspositivismo emerge do consenso necessário ao surgimento de um novo paradigma. As teorias pós-positivistas realçam a necessidade do jurista 162 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho em lidar com valores e instâncias que remetem à axiologia da Justiça, da dignidade da pessoa humana, da liberdade, dos valores sociais, da fraternidade, da Paz e da democracia. O pós-positivismo jurídico, decorre de uma convergência doutrinária que vai se concretizando no senso de um paradigma, um conceito que se erige a partir de amplo processo histórico, das exigências sociais de uma geração e da nova interpretação de antigos conceitos, assim como peças de um quebra-cabeça teórico que passa a agregar tantas outras, preenchendo vazios epistemológicos. Para propiciar a superação de alguns dos paradigmas positivistas que ao início do século XXI ainda estão presentes na produção doutrinária e jurisprudencial do Direito brasileiro parte-se da necessidade de superar, primeiramente, aqueles paradigmas oriundos da interpretação do Princípio da Separação de Poderes: a concepção de que a atuação política do Magistrado vulneraria a ordem jurídica porque esta pressupõe a organização do poder em três esferas distintas e específicas e a inexistência de legitimidade no exercício da jurisdição, já que esta não decorre da atuação de representantes eleitos. Em seguida, se torna necessário exceder os dogmas relacionados à organização do ordenamento jurídico sob a óptica positivista, para suscitar a ambiência de espécies distintas de normas – as regras e os princípios, bem como, a existência de princípios decorrentes da fórmula política, dos direitos humanos e da universalidade, estejam eles prescritos no texto constitucional ou em estado de latência. A partir de então, o jurista terá uma tarefa ainda mais árdua: o manejo de valores. A hermenêutica pós-positivista ultrapassa aspectos teóricos, descritivos e analíticos para alcançar aspectos práticos de adequação e reajustamento do Direito às mudanças sociais. Além disso, supera a tradicional dicotomia entre o Direito e a Moral, impondo a observância de uma instância interpretativa apta a mensurar a moralidade das respostas jurídicas. O paradigma pós-positivismo impõe à hermenêutica a realização da justiça material como objetivo da interpretação do Direito 163 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho e propõe ao intérprete um caminho já trilhado pela Filosofia: a procura incessante por uma melhor apreensão do sentido, especificamente, a busca por uma resposta que seja, a um só tempo, justa, jurídica, racional e metodologicamente orientada. 164 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. ________________. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Limitada, 1994. DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Massachusetts: Harvard University Press, 1986. ________________. A matter of principle. Massachusetts: Harvard University Press, 1987. ________________. Is Law a System of Rules? In: The Philosophy of Law. New York: Oxford University Press, 1997. FRANÇA, Limongi. Hermenêutica Jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. GRAU, Eros Roberto. A Ordem econômica na Constituição de 1988. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1988. GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Orgs.). Direito 165 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Constitucional, estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade. In: Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995. ________________. Autopoiese do Direito na Sociedade Pós Moderna. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. ________________. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Celso Bastos, 1999. ________________. Teoria Processual da Constituição. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2000. ________________. Teoria Política do Direito. Brasília: Brasília Jurídica, 2001. HART, H. L. A. The concept of law. New York: Oxford University Press, 1997. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991. HECK, Luís Afonso. O Controle judicial de constitucionalidade das leis no Direito comparado. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. KELSEN, Hans. O que é Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ________________. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 166 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência Jurídica. 2. ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. Lisboa: MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 20. ed. São Paulo: Forense, 2006. PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica – Nova retórica. São Paulo: Martins Fontes: 1999. SCHLEIERMACHER, Friedrich. Hermenêutica – Arte e técnica da interpretação. 8. ed. São Paulo: Vozes, 2010. VERDÚ, Pablo Lucas. Teoría de la Constitución como ciencia cultural. Madrid: Dykinson, 1998. 167 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 8 Um modo de olhar e situar o princípio da proporcionalidade Joaquim Eduardo Pereira Mestrando em Direitos Humanos na PUC-SP. 168 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Introdução Nas sociedades pré-modernas o fundamento último que servia para justificar o conhecimento em geral e consequentemente o direito e a política era teológico. Estas duas formas de exercício do poder, que normalmente se concentravam em uma mesma figura, legitimavam-se reciprocamente. O governante era reconhecido legítimo por ser o instrumento através do qual Deus se manifestava na Terra. Assim sendo, este era legitimado a dizer o direito sagrado, por meio do qual se organizava a sociedade e o próprio exercício do poder. Desta maneira, o poder social que instalava o direito, através deste se transformava em poder político. Nas palavras de Habermas: Ambos os processos, que decorrem simultaneamente, são interligados: a autorização do poder através do direito sagrado e a sanção do direito através do poder social realizam-se uno acto. Deste modo, o poder político e o direito sancionado pelo Estado surgem como dois componentes dos quais se origina o poder do Estado organizado de acordo com o direito162. Importante salientar que apesar de Habermas utilizar a expressão ‘Estado’, trata-se exatamente a situação descrita do modo como se organizava a sociedade antes de se instalar a figura do Estado moderno. Neste verifica-se o fim do poder hegemônico da Igreja, o que proporciona o rompimento com o modo de fundamentar teológico. Nesta seara, o homem passa a ser a condição de possibilidade do conhecimento163, o que requer um modo diferente de fundamentar este e, consequentemente, de legitimar o poder e o direito. 162 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. vol.1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 180. 163 O problema do conhecimento deixa de ser transcendente e passa a ser transcendental. In STEIN, Ernildo. Uma breve introdução à filosofia. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2005. p.73. 169 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Antes o direito já se pressupunha legítimo, devido ao fato de sua gênese estar intrinsecamente ligada ao poder social, o qual era imposto e aceito acriticamente mantendo-se o status de sagrado de ambos. Agora, com o advento da modernidade, o direito, assim como o poder, perde este fundamento sólido, necessitando buscar outros fundamentos, os quais devem passar pelo próprio homem, para legitimar o exercício de dominação de alguns homens sobre os outros, como também a imposição do direito e o respeito de suas decisões. Evidencia-se assim o grande problema da modernidade no que tange às relações sociais: necessidade de legitimar sua regulamentação por um ente, o Estado, que exsurge da necessidade de frear as guerras religiosas e instaurar um lócus privilegiado para o desenvolvimento do capitalismo que se estrutura a partir do individualismo ínsito à modernidade, decorrente do cristianismo. O Positivismo caracteriza-se principalmente por romper com o Jusnaturalismo moderno, partindo do pressuposto de que o Estado é resultado das relações de dominação e poder, rompendo com as teses contratualistas. Consegue-se então romper com a idéia de que o fundamento apriorístico que empresta legitimidade ao direito são valores provenientes da Razão, os quais seriam inerentes ao homem e, portanto, universais. Os direitos fundamentais agora assumem a feição de direitos que garantem a participação de todos no processo de escolha de quem os representará, (n)o Estado. Nesta nova configuração, este se legitima por ser a expressão da vontade popular, tendo a legitimidade, consequentemente, de instituir o direito através do qual irá regular a sociedade. O direito legítimo será aquele produzido pela autoridade competente, desde que não contradiga as regras formais de sua produção, instituídas pelo Estado numa Constituição. A lei assume relevância que jamais tivera, propiciando a passagem do Estado moderno para o Estado Liberal, como assevera José Reinaldo de Lima Lopes: 170 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho No direito, no entanto, os juristas elegeram um objeto e o privilegiaram: a lei, o ordenamento positivo. Esta eleição foi possível justamente porque o Estado moderno, em processo de transformação para Estado Liberal, havia conseguido estabelecer-se com a centralização das suas fontes normativas, com a centralização da jurisdição e com o ideário do constitucionalismo, pelo qual toda a normatividade dependia de regras constitucionais164. As razões históricas, morais e éticas levadas em consideração pelo legislador no momento de produção do direito vigente, não devem ser levadas em consideração em sua aplicação: diferencia-se o direito e a Ciência do Direito. Há um corte epistemológico que tem a pretensão de caracterizar o direito como uma ciência, retirando dele toda a carga moral, para que o mesmo possa atingir seu objetivo de possibilitar uma segurança jurídica para a sociedade, na medida em que faz jus à função da estabilização de expectativas. Acredita-se, deste modo, tornar o direito independente da política, posto que o problema da racionalidade é purificado de todos os fundamentos de validade suprapositivos. 2. Positivismo e sua (não) superação O positivismo jurídico, num primeiro momento, se caracteriza principalmente por equiparar o Direito à lei e, devido à impossibilidade desta conter todas as hipóteses do mundo real e ser considerada uma construção fictícia, mas construção esta que garante a harmonia do sistema jurídico, permitir, em suas vertentes mais novas, a discricionariedade no ato decisional, posto que ao intérprete é possibilitado escolher qual a lei que melhor se adapta ao caso, uma vez que todas são previamente 164 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 204. 171 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho fundamentadas em uma lei fundamental dada aprioristicamente, relegando o ato interpretativo a segundo plano. Deste formalismo advém a disposição em deduzir o Direito a partir de um sistema de conceitos e princípios, com a crença de que a decisão correta decorre do acerto formal de uma operação de subsunção da norma ao fato concreto165. Isto ocorre devido ao fato de o positivismo jurídico estar assentado sob o paradigma das Filosofias da Consciência, sendo que estas possuem como principal característica a concepção da linguagem como um instrumento que se coloca entre o homem e os objetos, sendo que entre eles existe(ria) uma ponte. Ora a compreensão está nos próprios objetos, ora está na consciência do homem, ou seja, este tem acesso àqueles através da representação. Isto quer dizer que o homem conhece os objetos como eles realmente são, em sua essência, que pode estar neles mesmo ou na consciência daquele166. Há uma relação de separação entre sujeito e objeto, entre o ente cognoscente e o ente a ser compreendido. Entretanto, todo esse formalismo do positivismo jurídico, com seu método interpretativo baseado no sujeito solipcista e na matematicidade próprios da modernidade, se mostrou disfuncional para resolver os problemas jurídicos através da legislação, com suas normas gerais e abstratas, feitas a partir de espécies de fatos ocorridos no passado e para regular toda uma série indeterminada de fatos semelhantes a ocorrerem no futuro167. A virada linguística consiste numa possibilidade de superação da Filosofia da Consciência. Há uma falência da idéia de que o sujeito possa alcançar a verdade em relação aos objetos que se colocavam diante dele, como se estivessem radicalmente separados o sujeito cognoscente 165 GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini. Teoria da Ciência Jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. pp. 21 e 55. 166 Cf. OLIVEIRA, Rafael Tomas de. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio. São Paulo: Livraria do Advogado, 2008. 167 GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini. Teoria da Ciência Jurídica, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 24. 172 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho e os objetos consociados, e fossem estes últimos independentes das determinações das faculdades cognitivas do primeiro. Vale dizer, o sujeito não conhece os objetos através de representações, mas a partir da interação entre eles. Há uma inter-relação, em que ambos estão juntos no mundo, não podem, portanto, serem separados radicalmente. A linguagem passa a ser, então, encarada de modo diferente, não mais tendo uma função, como mero instrumento a serviço do homem. Ela passa a ser verdadeira condição de possibilidade para que o sujeito compreenda os objetos, pois só tem acesso a eles através da linguagem. O homem não pode compreender o objeto enquanto ente, mas apenas no seu ser e, o processo de compreensão do ser é limitado por uma história, a história do ser que limita a compreensão168. A linguagem assume uma dupla função, a de meio de comunicação intersubjetiva e, ao mesmo tempo, da interpretação do mundo169, isto é, a linguagem é meio pelo qual temos acesso ao ser do ente e também é através da linguagem que podemos explicitar a compreensão que temos desse ser. Somente após essa concepção de linguagem é possível romper com o esquema sujeito-objeto e, também com todos os demais dualismos. Pode-se compreender também a incongruência dos métodos matemáticos na afirmação da verdade, pois esta é feita metodicamente através da análise das proposições, que serão confrontadas com um dado a priori, estabelecido pelo homem. Será, então, a correlação, no Direito, entre o fato ocorrido e a norma préestabelecida, como se esta, por tal característica, fosse plena, pudesse conter todas as possibilidades de sentido. Essa transformação no modo de encarar a linguagem vai refletir no Direito. Muda-se radicalmente a relação sujeito-objeto e também a concepção de verdade, que, podemos perceber com o que diz Gadamer: 168 STEIN, Ernildo. Aproximações Sobre Hermenêutica, 2. ed. Porto Alegre: Edpucrs, 2004. p. 75. 169 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 717. 173 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho A desespacialização da ‘distância temporal’ e a desidealização da ‘coisa mesma’ nos leva, então, a compreender como é possível reconhecer no ‘objeto histórico’ o verdadeiramente ‘outro’ em face das convicções e opiniões que são ‘minhas’, quer dizer, como é possível conhecer a ambos. É bem verdade que o objeto histórico, no sentido autêntico do termo, não é um ‘objeto’ mas a ‘unidade’ de um e de outro. Ele é a relação, isto é, o ‘pertencimento’ pelo qual ambos se manifestam: a realidade histórica, de um lado, e a realidade da compreensão histórica, de outro. É essa ‘unidade’ que constitui a historicidade originária em que se manifestam, obedecendo ao seu mútuo pertencimento, o conhecimento e o objeto históricos. Um objeto que nos chega através da história não é simplesmente um objeto que se possa discernir de longe, mas sim o ‘centro’ no qual o ser efetivo da história e o ser efetivo da consciência histórica aparecem170. Disto decorre que o texto (a lei) não é um objeto do qual o sujeito vai retirar um sentido. Muito pelo contrário, o sujeito, em uma inter-relação com o texto, vai atribuir-lhe um sentido, sendo fruto deste processo a norma. Ou seja, o intérprete deve promover um choque entre as possibilidades de sentido que lhe concebe sua historicidade e o ser do texto. Há entre o texto e a norma apenas uma diferença (ontológica), uma diferença entre ente e ser, mas estes não podem existir separados, apenas relacionados. Isto quer dizer que o texto não traz em si seu significado, ele diz respeito a algo, que foi explicitado através da linguagem, mas esta, assim como o homem, é finita. Para se chegar ao que foi encoberto pela linguagem que se estruturou, é necessário ir além do texto, mas não quer dizer que podemos atribuir ao texto qualquer norma, qualquer significado. 170 GADAMER, Hans-Georg. O Problema da Consciência Histórica. 3. ed. Trad. Pulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 71. 174 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho A verdade como fruto da compreensão e não de métodos rígidos, próprios da modernidade transfere o momento de determinação da mesma do momento a priori, justificador, para um momento posterior, de explicitação. No Direito, portanto, deve haver um deslocamento do momento de sua determinação, que parte do momento de elaboração das regras, para o momento de sua concretização, isto quer dizer, para o momento da decisão judicial. O Direito como justo, objeto de estudo da Filosofia do Direito171, deve ser determinado no momento em que se promove a resposta ao conflito existente no caso concreto. A verdade, vale dizer, a decisão correta é fruto da interpretação (compreensão), e não do amoldamento do fato a uma regra pré-estabelecida. A razão pela qual este ideal de completude sucumbe reside principalmente no caráter finito da linguagem, posto que através dela não conseguimos ter uma acesso completo ao ser, devido à nossa própria finitude. A partir daí, verifica-se que as proposições em geral, inclusive as regras, dizem respeito a algo, o qual explicitamos através da linguagem, mas nunca conseguimos dizer tudo, sempre fica algo escondido, que se enrijece. A verdade está na explicitação deste algo que ficou estruturado no sentido, não sendo mais apropriado, nas ciências do espírito, a concepção de verdade das ciências naturais. Daí decorre que a introdução do mundo prático no Direito, fazse no momento de determinação deste, ou seja, no momento da decisão judicial, e não em um momento anterior à decisão, como se antes dela fosse possível antecipar todas as hipóteses de conduta, as quais ensejariam uma subsunção. Pelo contrário, esta impossibilidade deve ser compreendida e explicitada em cada caso concreto. Em cada decisão deve-se fundamentar a decisão, que não pode ser uma “construção” apriorística, mas deve ser construída no decorrer do processo, por meio do qual se deve efetivar a Constituição, sendo esta o lócus privilegiado para a determinação do Direito. Isto quer dizer que uma resposta correta, no âmbito do Estado 171 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. 3. ed. São Paulo: Calouste Gulbenkian, 2009. p. 11. 175 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Democrático de Direito não deve partir de premissas que contenham as possibilidades de prever uma solução antes do caso. A resposta correta deve ser resultado do confronto, que sempre deve ocorrer, em cada caso, entre a relação jurídica que se estabelece, ou seja, os interesses em voga, e a sua solução que deve ir ao sentido de satisfazê-los na maior proporção possível, tendo como parâmetro a Constituição, que vai garantir a cada um deles um mínimo de efetividade. Apesar da apropriação que fez do Positivismo, o Estado Social mostrou-se incongruente com todas as conquistas provenientes da modernidade, especialmente o direito de liberdade, desenvolvido sob o individualismo que acomete o sujeito moderno e sacralizado em direito fundamental, condição de possibilidade para a perpetuação do capitalismo. Deve-se perquirir um Estado que garanta os direitos fundamentais sem que para isso se desvincule da obrigação de garantir, ao mesmo tempo, os direitos subjetivos. Surge nesta perspectiva o Estado Democrático de Direito. A fim de se compatibilizar com o novo modelo de Estado que surge o ordenamento jurídico também passa por mudanças. É composto agora não só de leis, mas também de princípios, os quais são os responsáveis, como a base do sistema jurídico, por estabelecer as condições que se impõem ao Legislativo e ao Executivo, como também por limitar e legitimar as decisões do Judiciário. Já sob influência da virada linguística172 que acontece na filosofia, parte-se de um direito posto, o qual deve ser compatível com a Constituição para que seja reconhecido como legítimo, porém esta legitimidade deve ser aferida no momento de efetivação do direito, no momento da decisão judicial. Uma vez que as leis não conseguem abarcar no plano abstrato todas as possibilidades de casos concretos deve-se conceber um modo novo de interpretar, o qual não se restringe às leis, mas interpreta-se o caso concreto, sob a 172 STEIN, Ernildo. Racionalidade e existência: o ambiente hermenêutico e as ciências humanas. Ijuí: Unijuí, 2008. p.21. 176 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho luz de todo o ordenamento jurídico173, devendo ser este o fundamento e limite para as decisões, de modo que estas não sejam consequência de um processo arbitrário no qual o juiz é o autor. Tomando a hermenêutica filosófica como base teórica de sustentação, deve-se ter em conta que no ato de interpretar já se dá a aplicação, precedida pela compreensão, que tem como condição de possibilidade a pré-compreensão. O ato de interpretar, que é uno, é realizado sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, devendo, portanto, ter como locus hermenêutico a constituição. A pré-compreensão já nos é dada pelo fato de sermos no mundo, o que faz com que antecipadamente já nos antecipamos a condição de possibilidade para podermos compreender, pois nossa faticidade já, antes de compreender o caso concreto que demanda interpretação, nos antecipa uma idéia de constituição e de direito por exemplo, condições básicas para que possamos compreender o caso, e que simplesmente acontece, não nos perguntamos por que já compreendemos tais coisas, pelo simples fato de que já as compreendemos174. Sabemos da diferença entre texto e norma, uma diferença ontológica. É a partir desta diferença, que podemos atribuir um sentido ao texto sob análise no caso concreto, mas não qualquer sentido, posto que o texto já carrega ‘em si’ um limite para esta atribuição. Este limite nos é dado quando confrontamos o texto com a faticidade, pois aí temos a chance de descobrir o que ficou encoberto pela linguagem, fazendo a ‘correção’ de nossa pré-compreensão. A compreensão se evidencia no momento em que analisamos a pré-compreensão verdadeira dentro da situação hermenêutica, o que caracteriza a integração do direito, propiciada pelo círculo hermenêutico, 173 Nas palavras de Rafael Tomaz de Oliveira: Do direito identificado com a lei, passa-se ao direito enquanto direito. Isto quer dizer: ultrapassa-se a simples interpretação textual da lei em direção à interpretação do direito. In OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão Judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.121. 174 Cf. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão Judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 177 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho que nos transfere do todo, que nós antecipamos, para as partes, que nos é dada pela tradição. É nesse momento em que se observa o caráter temporal do sentido, pois a compreensão leva em consideração a tradição, analisada à luz do presente. Em qualquer momento que se aborde a tradição o presente sempre será diferente, portanto, sempre será único o sentido, e que cada caso terá somente uma resposta. O resultado desta compreensão, pois, o resultado dessa análise histórica feita sobre o objeto compreendido pelo modo de ser no mundo, à luz da situação hermenêutica que a tradição nos coloca, é já a interpretação, ou seja, esta é a aplicação, explicitação do compreendido. A fundamentação da resposta encontrada, quer dizer, da aplicação do compreendido deve se dar tanto no nível apofântico como no nível hermenêutico. A fundamentação no nível apofântico se limita a utilização de métodos argumentativos, que justifiquem o modo como se deu essa explicitação. Já no nível hermenêutico, deve-se fundamentar a condição de possibilidade para se chegar à compreensão, ou seja, deve-se explicitar a imersão histórica, o mergulho na tradição, onde se deu o desvelamento do sentido do ser, isto é, mostrar quais os fatos, as conquistas, as lutas que propiciaram o compreender da regra sob análise, o que sua linguagem encobriu no momento que passou do plano da compreensão para a explicitação dessa regra. Isto que se subjaz ‘por trás’ de toda regra, é um principio constitucional, o qual possibilita por um lado o choque, ou melhor, o relacionar entre as duas ficções que são o direito e a realidade regulada por ele; e por outro lado, proporciona, na singularidade do caso a se decidir, uma solução correta que decorre de uma compreensão autêntica do direito e do próprio intérprete. Este, a partir da consciência histórica, reconhece-se como ser no mundo e pode construir uma resposta a partir de seu lugar no mundo, e não a partir de si, de sua subjetividade. 178 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Conclusão É a partir de tudo o que foi explicitado que se deve olhar para o princípio da proporcionalidade, do modo como foi desenvolvido pelo professor Willis Santiago Guerra Filho, de modo que este princípio não seja encarado como uma técnica interpretativa, mas que, a partir de uma hermenêutica que se insere no paradigma da Filosofia da Linguagem, tal princípio possa ser encarado de um modo próprio, em que se traga à luz sua condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito. Isto porque, como aduz o citado professor, o Estado Democrático de Direito já carrega em si uma contradição, que consiste em uma busca constante de harmonia entre direitos individuais, subjetivos e direitos sociais, sendo necessário superar dialeticamente os modelos de Estado Liberal e Estado Social, em que os direitos fundamentais, providos tanto das características privadas como públicas, possam ser efetivados: Para que o Estado, em sua atividade, atenda aos interesses da maioria, consignados em direitos coletivos e difusos, igualmente respeitando, os direitos individuais fundamentais, faz-se necessária não só a existência de normas para pautar essa atividade que, em certos casos, nem mesmo a vontade de uma maioria pode derrogar (Estado de direito), como também há de se reconhecer e lançar mão de um princípio regulativo para ponderar até que ponto vai-se dar preferência ao todo ou às partes (princípio da proporcionalidade), o que também não pode ir além de certo limite, para não retirar o mínimo necessário a uma existência humana digna de ser chamada assim175. O princípio da proporcionalidade, considerado por Willis 175 GUERRA FILHO, Willis Santiago. A Filosofia do Direito: aplicada ao direito processual e à teoria da constituição. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 87. 179 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Santiago Guerra Filho como o princípio dos princípios, assim o é devido a essa característica que possui de possibilitar, no âmbito do Estado Democrático de Direito, emergir, no momento de concretização do Direito, seu tempo, no sentido de sua temporaneidade, o que possibilita, de modo correlato, que o indivíduo possa se posicionar de modo próprio frente a este fenômeno. Isto quer dizer que este princípio é, num paradigma da Filosofia da Linguagem, uma norma essencial ao nosso modelo de Estado, que só poderá ser efetivado caso seja levado em conta, de maneira autêntica. O princípio da proporcionalidade não está a serviço do intérprete para que, através dele, possa escolher qual a melhor solução dentre as vislumbradas para o caso. É muito mais complexo que isto, nem mesmo podendo ser esta uma função a ele atribuída, pois assim não seria superado o subjetivismo. E deve ser justamente esse o modo de olhar para o princípio, para que este possa desvelar todos os pré-conceitos do intérprete, fazendo ‘visível’ a ele o seu tempo e assim, possibilitando-o posicionar-se de um modo correto, e não em um lugar correto, ou seja, superando um modo de ser estático encobridor de mundo e abrindo-se para o mundo, já no mundo. Um modo em que o intérprete consegue se desvencilhar de concepções em que o(s) direito(s) são coisas, estáticas, à sua disposição, como se possuíssem ‘vida própria’, atreladas aos modelos científicosubjetivistas, como aduz o Autor: Pode-se, então, afirmar que o mesmo significado que a techné possui para a ciência tem a poiesis para a filosofia, o que ajuda a entender o valor gnosiológico tanto da filosofia como da arte. Ambas podem ser associadas ao esforço humano para compreender a si e ao mundo, enquanto a ciência se ocupa com a explicação da realidade fenomênica, o que ajuda a alcançar aquela compreensão, mas não é suficiente. O caráter racional 180 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho e objetivo de uma explicação científica para determinado fenômeno (digamos, a Morte) no contexto global de nossa existência, do estar no mundo. A compreensão permanece sempre pessoal, e não faz sequer sentido pretender que ela seja verdadeira, definitiva. À medida que se procura comunicála, porém, ingressa-se naquela dimensão intermediária entre subjetividade e objetividade, a dimensão da intersubjetividade, na qual se estabelece uma ligação entre o que se vivencia individualmente e a experiência compartilhada com os demais, o que é possível pela existência de “formas de vida”, no sentido wittgensteiniano de Lebensformen, do que é comum a toda uma série e pessoas, como a linguagem176. Somente desta maneira podemos ver o problema ao qual devese dar uma solução desde uma perspectiva autêntica, e assim ter-se-á uma solução correta, que não será a aplicação de uma resposta que já se tem, mas a construção de uma resposta para o caso concreto, mas uma resposta que coloque o caso e, portanto, as pessoas e interesses envolvidos, no tempo do direito, que tem pretensão de legitimidade e universalidade, o que somente pode ser alcançado desde este comprometimento propiciado pelo princípio da proporcionalidade, que ‘liberta’ o intérprete de suas visões de mundo impróprias, correspondentes a um modo de ser impróprio, no qual pensa poder decidir a partir de si, unicamente. Podemos concluir, portanto, que o princípio da proporcionalidade não é uma técnica interpretativa, mas é inerente ao Estado Democrático de Direito e que, somente poderá servir à sua finalidade desde que encarado sob a ótica de uma hermenêutica ligada à Filosofia da Linguagem, para que não se configure como um instrumento à disposição do intérprete, que o usa como um álibi teórico. É a norma que ‘traz’ os indivíduos para 176 GUERRA FILHO, Willis Santiago. A filosofia do direito: aplicada ao direito processual e à teoria da constituição. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 19. 181 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho dentro do mundo (do Direito), para que não se vejam ou se coloquem como separados deste, construindo-o desde fora. Este modo de se colocar no mundo, e não diante dele, é condição de possibilidade de decisões corretas, no sentido de serem decisões em que um intérprete não se valha de suas visões ou interesses, e até mesmo que os interesses em causa não sejam passíveis de universalidade num ordenamento jurídico. Assim é que as pretensões e as decisões são conformadas dentro de um espaço comum e devem, portanto, manter esta característica, que é a ‘essência’ do Direito. Pois, se não assim fosse, se pudéssemos admitir pretensões e decisões que não se pautem por um raciocínio comum, não há como falar em segurança jurídica e paz. Não existe uma decisão antes do caso, mas também não existe uma decisão fora do caso, ou seja, fora do mundo em que se desenvolve o caso, e a abertura, a explicitação deste mundo é o que nos proporciona o princípio da proporcionalidade. Suas características precípuas177, como sua dupla dimensionalidade, de proibição de excesso e proibição de proteção insuficiente, assim como seu desdobramento em adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito, somente podem ser compreendidas de modo autêntico a partir da Filosofia da Linguagem, posto que tais conceitos ou definições já trazem em si uma carga significativa que deve ser explicitada, que só fazem sentido se entendidas desde um modo 177 “O princípio da proporcionalidade (...) tem um conteúdo que se reparte em três “princípios parciais” (Teilgrundsätze): “princípio da proporcionalidade em sentido estrito” ou “máxima do sopesamento” (Abwägunsgebot), “princípio da adequação” e “princípio da exigibilidade” ou “máxima do meio mais suave” (Gebot des mildesten Mittles). O “princípio da proporcionalidade em sentido estrito” determina que se estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição normativa e o meio empregado, que seja juridicamente a melhor possível. (...) Os subprincípios da adequação e da exigibilidade, por seu turno, determinam que, dentro do faticamente possível, o meio escolhido se preste para atingir o fim estabelecido, mostrando-se, assim, “adequado”. Além disso, esse meio deve se mostrar “exigível”, o que significa não haver outro, igualmente eficaz, e menos danoso a direitos fundamentais.” GUERRA FILHO, Willis Santiago. Noções Fundamentais sobre o Princípio Constitucional da Proporcionalidade. In: Leituras Complementares de Direito Constitucional: controle de constitucionalidade e hermenêutica constitucional. Marcelo Novelino Camargo (Org.). Salvador: JusPodivm, 2008. pp. 52-53. 182 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho de ser no mundo que mostre, e não vele, a tensão, o relacionar em que estamos expostos. Não é possível superar o positivismo apropriando-se de conceitos e aplicando-os, quer dizer, os conceitos, tal como o princípio da proporcionalidade, não contêm em si a verdade ou a condição de superar um paradigma. E também não são vazios, como se devessem seu conteúdo ao intérprete, desde um grau zero de sentido. É necessário assumir um novo modo de ser, o qual vai propiciar dar efetividade ao princípio em questão, de modo que o princípio da proporcionalidade seja ‘ele mesmo’, e não que esteja à disposição do indivíduo que pode determinar-lhe um sentido. Importante ressaltar que o princípio da proporcionalidade, tanto não está à disposição do sujeito-intérprete, que ao mesmo é inerente à ideia de se satisfazer, efetivar, garantir direitos fundamentais. Sendo que estes são a condição de possibilidade de garantir um espaço de convivência entre interesses subjetivos e sociais, e que, portanto, já trazem encobertos os problemas desta relação a que o Estado Democrático de Direito pretende dar uma resposta.178 Deve ser este o lócus em que o indivíduo tem o direito a um mínimo existencial, que vai muito além da garantia de sua vida física, mas que compreende também uma blindagem tanto aos interesses e visões de mundo particulares, subjetivistas, como as concepções sociais, em que se pretende desvalorizar sua individualidade. O princípio da proporcionalidade não é uma técnica interpretativa, como um instrumento de que se vale o sujeito, mas é um topos argumentativos, através do qual se explicita o sujeito em seu modo-de-ser-no-mundo, o que é condição de possibilidade de se efetivar direitos fundamentais. 178 “A exata compreensão desse objeto de estudo, os direitos fundamentais, implica na abordagem de temas compartilhados com a filosofia jurídica e política, como são aquelas dos direitos humanos, numa perspectiva pragmática, que busca menos a ênfase na sua importância – já evidenciada por dois séculos de discursos a respeito –, do que os meios de sua realização, valendo-se também dos resultados de estudos recentes que revigoraram a discussão, no campo da filosofia prática, sobre teoria da justiça, argumentação e ética do discurso, a partir de obras como as de Viehweg, Gadamer, Rawls, Habermas, Alexy, Höffe, Perelman e Ricoeur”. (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 6. ed. São Paulo: SRS, 2009. p. 29.) 183 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. GADAMER, Hans-Georg. O Problema da Consciência Histórica. 3. ed. Trad. Pulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro: FGV, 2006. GUERRA FILHO, Willis Santiago. A filosofia do direito: aplicada ao direito processual e à teoria da constituição. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. _________________. Por uma poética do direito: introdução a uma teoria imaginária do direito (e da totalidade). ano 3, n. 19. Revista Panóptica, Julho-Outubro 2010. _________________. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 6. ed. São Paulo: SRS, 2009. GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini. Teoria da Ciência Jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 188. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. vol.1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. 3. ed. São Paulo: Calouste Gulbenkian, 2009. LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. 184 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão Judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. STEIN, Ernildo. Aproximações Sobre Hermenêutica. Porto Alegre: Edpucrs, 2004. _________________. Uma breve introdução à filosofia. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2005. _________________. Racionalidade e existência: hermenêutico e as ciências humanas. Ijuí: Unijuí, 2008. o ambiente 185 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 9 Princípios fundamentais dos direitos humanos Keilla Ellen Borges Graduação em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2008). Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Escola Paulista de Direito - EPD (2010). Mestranda em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogada da Fundação Criança de São Bernardo do Campo. 186 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Introdução A consolidação do direito internacional dos direitos humanos, pautado no período do pós 2º Guerra Mundial e Pós Revolução, sobretudo na Revolução Francesa constitui uma trilogia pautada na proteção dos direitos humanos, respeito da dignidade da pessoa humana e exercício da cidadania. Esses três direitos estão intrinsecamente relacionados, sendo que a existência de um pressupõe a existência do outro. Os direitos humanos, em meio ao caos do pós-guerra, momento em que o mundo se achou devastado pelo sentimento da guerra surgem com o intuito de estabelecer a paz entre os povos e a proteção dos direitos referentes à dignidade da pessoa humana. O que determina a titularidade desses direitos é a condição humana e não a nacionalidade, tal preceito está consolidado no preâmbulo da Convenção Americana e em diversos tratados de direitos humanos. No nosso ordenamento jurídico vem consolidado na Constituição Federal e é com base nessa fundamentação de internacionalização do direito internacional dos direitos humanos que a dignidade da pessoa humana, dentre outros princípios, é o princípio fundamental dos direitos humanos. Nesse sentido vale destacar o Preâmbulo da Convenção Americana de Direitos Humanos, segundo o qual: os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de ser ela nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão porque justificam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos estados americanos. Após a 2º Guerra Mundial os países europeus precisavam reconstruir seus sistemas jurídicos diante das vivências de total 187 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho banalização dos Direitos Humanos dada como decorrência do período da guerra. Após esse período, as constituições de perfil democrático passaram a acentuar a preocupação com a proteção dos direitos humanos. As Constituições passaram a ter o papel de construir regimes democráticos de direitos, garantindo a proteção dos direitos humanos no âmbito nacional e internacional. Importante salientar que somente os regimes democráticos podem viabilizar a efetivação dos direitos humanos, visto que os regimes totalitários não promovem, em absoluto, essa efetivação. Essa é a ideia que fundamenta o direito internacional dos direitos humanos. A busca pela ampla proteção jurídica desses direitos tem como resultado a criação de uma Teoria Geral dos Direitos Humanos, com ferramentas jurídicas para a proteção, interpretação e aplicação desses direitos, nos sistemas jurídicos que os consagram. Os Estados que se consolidaram com regimes democráticos, assim, se pautaram na proteção, interpretação e aplicação dos direitos humanos, por meio de constituições que preveem um catálogo de direitos humanos, com direitos destinados a todos. Importante salientar que ao mesmo tempo em que os direitos humanos são destinados a todos, por meio dos textos constitucionais, o ser humano está inserido em uma sociedade e, por vezes, a aquisição dos direitos humanos a todos se coaduna com a restrição de alguns direitos fundamentais. O direito buscará equalizar essa dualidade, de fato, verificada em Estados Democráticos, os quais se preocupam com a internalização dos direitos humanos. Segundo a percepção de cidadania mencionada pela autora Hanna Arendt, esta (cidadania) significa o direito a ter direitos, se destina a noção do indivíduo como sujeito de direitos no âmbito nacional e internacional e esses direitos a que os indivíduos fazem jus se referem ao direito internacional dos direitos humanos. 188 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Os direitos humanos são universais, indivisíveis e possui como princípio basilar a dignidade da pessoa humana que mais do que um princípio é, no ordenamento jurídico pátrio, o próprio fundamento da República Federativa Brasileira. Seu nascedouro é a Europa e está em grande parte ligado à filosofia cristã, porém, apesar disso, a história da humanidade vem revelando constante desrespeito à dignidade humana, nas mais variadas formas de ofensa aos direitos humanos. Em decorrência dessas constantes e abusivas violações à dignidade, muitos Estados Democráticos vêm consolidando expressamente em seus ordenamentos jurídicos o respeito à dignidade da pessoa humana. Isto porque, apesar da ideia de dignidade ser imanente à natureza humana, ela somente tem possibilidade de se concretizar na vida em sociedade quando há a determinação legal pela sua tutela, tanto no âmbito nacional quanto internacional. Essa é uma vertente da tentativa positivista de fundamentar a existência do direito internacional dos direitos humanos como válido e exigível dentro de determinada categoria de norma positivada em direito, portanto, somente após um regular processo de validação das normas, conforme será explicado neste trabalho. O conceito de princípios encontra diversas significações que começam com a exploração da palavra pelo pensamento filosófico até a exploração de seu significado pelos estudiosos e doutrinadores de direito da contemporaneidade. O objetivo deste trabalho é o de demonstrar em que consiste a expressão Princípios Fundamentais dos Direitos Humanos, qual a real significação da palavra princípio e da palavra fundamento e de que formas elas presumem os direitos humanos. Nesse sentido, as contribuições de Aristóteles e de Immanuel Kant se mostram de grande valia, sendo que o corte metodológico adotado se restringe à compreensão de princípio sob a ótica de fundamento, ou seja, daquilo que se caracteriza como razão justificativa dos direitos humanos. 189 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho O trabalho em si aborda em supremacia o posicionamento, bem como as considerações do Professor Fábio Konder Comparato, acerca dos princípios de direitos humanos, sendo, dessa forma, demonstrados quais são os fundamentos dos direitos humanos. Enfim, como os princípios fundamentais de direitos humanos estruturam tanto o sistema nacional quanto o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, com vistas a possibilitar maior proteção desses direitos e realização da justiça, seu estudo se mostra extremamente viável e importante à compreensão dos direitos humanos como um todo e à sua incorporação nos ordenamentos jurídicos da maior totalidade possível de nações como premissa básica, também do maior número possível, das Cartas Constitucionais dos Estados Democráticos de Direitos. 1. Conceito de direitos humanos Por direitos humanos entende-se o complexo de direitos inerentes ao ser humano e decorrente, como tal, de sua própria existência, ou seja, são direitos atribuídos ao homem em razão da própria condição humana. Esses direitos atribuídos ao homem se resumem àqueles capazes de proporcionar uma vida digna ao ser humano e foram elencados inicialmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, documento que segundo o Professor Alceu Amoroso Lima (1974, p. 01) é uma: [...] obra coletiva, sucessiva e experimental, não apenas individual, dedutiva e ideológica [...] fruto de uma longa e dolorosa experiência de várias tentativas como a Carta das Nações Unidas e as conclusões de Dumberton Oaks (1945, 1944). A Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento que 190 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho compila de forma genérica os ideais de direitos capazes de garantir uma vida digna à humanidade e que possui o anseio, ou mesmo o desejo em seu corpo de ser incorporada ao maior número de legislações possível nos países, surgiu em um cenário marcado por guerras e também por um fim de século que, segundo o Professor Alceu Amoroso Lima (1974, p. 02) também representou um fim de civilização. Vejamos: Tudo indica que está em vias de perecer um tipo de civilização que nos eximimos de qualificar para não nos deixarmos envolver, pela ambiguidade da terminologia, das paixões partidárias tão típicas de uma era, como a nossa, de instabilidade e de imprevisibilidade, tipo esse de civilização iniciado com a Revolução política francesa, do século XVIII, e com a Revolução industrial inglesa do século XVII, e que dominou o século XIX e nosso século XX. Essa era está em vias de perecer, como perecem as civilizações, isto é, transformando-se substancialmente e dando lugar a um novo tipo de civilização. Assim é que o papel maior da Declaração Universal dos Direitos Humanos é ressaltar os direitos inerentes à pessoa humana, sem os quais é praticamente impossível garantir a dignidade do homem, enquanto pessoa. Nesse sentido, vale lembrar as palavras do Professor Wagner Balera (2011, p. 05) sobre o assunto: a dignidade inerente à pessoa humana, que perpassa o documento qual valor dos valores, não é outorgada por nenhum título, nem muito menos pela Declaração, que só faz reconhecêla e respeitá-la como preexistente a toda e qualquer ordenação normativa. 191 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Dessa forma, conclui-se que a dignidade da pessoa humana não é conferida por nenhum documento jurídico, porque inerente ao ser humano, de tal sorte que a Declaração apenas respeita essa dignidade e a reconhecesse, desejando também que todas as nações procedam da mesma forma em suas cartas constitucionais. Nesse sentido, vale destacar a citação de Aristóteles – feita por MARITAIN, em sua obra “Humanismo Integral”, quando se indaga sobre o fato de Aristóteles ser um humanista ou um anti-humanista segundo a qual “propor somente o humano ao homem é trair o homem e desejar sua infelicidade, porquanto pela sua principal, que é o espírito, o homem é solicitado para melhor do que uma vida puramente humana”. (1962, p.03). 1.1 Requisitos para concessão de direitos humanos A expressão direitos humanos ou direitos do homem comporta a exigência de comportamento fundada essencialmente na participação de todos os indivíduos sem distinção na ordem individual ou social, inerentes a cada homem. Nesse sentido é que o art. 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) assim preleciona: Art. II 1. Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 2. Não será feita também nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território a que 192 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem Governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania. Dessa forma, conclui-se que a única exigência jurídica para a concessão de direitos humanos à pessoa é a de que ela possua a condição humana e tão somente essa. E é essa a razão de ser comum a concepção de que os direitos humanos são direitos conferidos a todos os homens, por isso são universais e não diferenciais. 1.2 Conceito de princípios ou fundamentos: a contribuição de Aristóteles Atualmente os conceitos de princípio e fundamentos vêm sendo empregados com a mesma conotação. No entanto, a linguagem filosófica clássica opta pelo emprego da palavra “princípios” e não fundamentos de direitos humanos. Assim, mister se faz a destacar no presente trabalho o significado da palavra em tela por aquele que é considerado para muitos “o grande filósofo”: Aristóteles. Na proposta analítica de Aristóteles a palavra “princípio” ou “arquê” possuía mais de um significado. Poderia ser entendido como o começo de uma linha de uma estrada, um ponto de partida de um movimento físico ou intelectual, como exemplo, menciona o autor o ponto de partida de uma ciência, portanto, o início de algo, ou sua fonte originária. Entende o filósofo também o significado da palavra princípio como o elemento primeiro e imanente do futuro ou de algo que evolui ou se desenvolve, como exemplo cita a cabeça e o coração dos animais, já que são eles os responsáveis pela sua evolução ou a fundação de uma casa, pois é ela o elemento primeiro que proporcionará a existência de um lar no futuro, quando concluído. 193 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Ainda menciona Aristóteles um terceiro significado para a palavra em epígrafe, constituindo-se por princípio a causa primitiva e não imanente da geração ou de uma ação e como exemplo traz as figuras dos pais com relação aos filhos e, ainda do insulto com relação ao combate. Por fim, estabelece o filósofo a ideia de princípio como apta a designar a pessoa cuja vontade racional é causa de movimento ou de transformação, citando como exemplos os governantes no Estado, ou o regime político de uma forma geral. Percebe-se de todos os conceitos acima descritos para a palavra princípio a ideia de premissas básicas direcionadas a determinadas conclusões. Assim, para Aristóteles princípio é a “fonte de onde deriva o ser, a geração ou o conhecimento” (apud Comparato, 2000, p. 52). 1.3 Princípio e ética: a contribuição de Kant Como se vê em Aristóteles a noção de arque (ou princípio) não mantém relação alguma com a ideia de ética. Referida concepção surge com no pensamento kantiano, ou seja, com a contribuição de Immanuel Kant para o assunto. Segundo a filosofia kantiana a ideia de princípio está ligada à de ética, uma vez que há uma razão justificativa para as nossas ações e essas razões devem pautar-se no conceito de ética e moral. Utiliza Kant como exemplo a situação dos juristas diante de um caso concreto em que há autorização ou pretensão de agir, segundo o autor, esses juristas distinguem cada um desses casos concretos em duas partes: questão jurídica (quid iuris) e questão de fato (quid facti). Explica Kant que nas questões jurídicas o operador do direito busca encontrar e demonstrar, em matéria de direito, as razões justificativas que formam a legitimidade de determinada conclusão, enquanto nas questões de fato busca ele pelas provas. 194 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Para Kant a dedução ética é a base da razão justificativa e visa encontrar o que o autor chama de “supremo princípio da moralidade”, ou seja, uma lei prática incondicional ou absoluta que serve de fundamento para todas as ações humanas. Dessa forma, o que Kant busca é uma razão justificativa para a lei moral e entende que o fundamento último dessa moralidade só pode ser a liberdade179. Entende o autor que princípio ou fundamento é a razão justificativa de algo, a qual, em primeiro momento era traduzida pela ideia de ética. Enfim, apenas na conclusão da reconstrução que fez acerva da sua filosofia ética é que Kant substituiu a ideia de princípio ético pela ideia de fundamento, desenvolvendo essa passagem do princípio para o fundamento dos direitos. Segundo Kant, em resposta a sua constante indagação acerca da bondade ou maldade da natureza humana, explica que há um “primeiro fundamento” da aceitação do homem pelo bem ou pelo mal e esse primeiro fundamento é inato e antecedente a todo o uso da liberdade. Entende-se, assim, que o fundamento é essencial para a compreensão do homem, bem como de sua natureza, dos direitos que a ele são conferidos e das escolhas que ele faz com o uso direto ou indireto da liberdade que possui. Isso porque constituem-se os fundamentos ou princípios em razões justificativas de todos os esses elemento supracitados, que repercutem na vida do homem. 1.4. Distinção entre princípio e fundamento Em primeiro lugar importante destacar que as palavras princípio e fundamento trazem em si a mesma ideia, não havendo distinção entre elas, portanto, possuem o mesmo significado. Contudo, da análise das contribuições aristotélica e kantiana 179 Em que pese à relevância em mencionar a conclusão kantiana sobre o fundamento último da lei moral em epígrafe, referido aspecto não será abordado por este trabalho, uma vez que não mantém relação direta com o objeto de estudo proposto pelo tema. 195 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho percebe-se que a compreensão dessas palavras, ambas tratadas como sinônimos, é que apresentam significados distintos de acordo com uma ou outra concepção. Assim é que a palavra princípio ou fundamento em Aristóteles significa a fonte ou a origem de algo, enquanto em Kant significa uma razão justificativa para algo. Em que pese a época remota a que se referem esses dois significados da palavra princípio (ou fundamento), nota-se que o direito positivo moderno adota ambas as concepções filosóficas em sua abordagem e aplicabilidade, conforme será visto em capítulo oportuno deste trabalho. Por ora, mister observar que a noção de princípio ou fundamento de direitos humanos nos remeterá às explicações, ou fundamentações que justificam a aceitação dos direitos humanos enquanto ciência jurídica ou até mesmo norma de direito positivo, a qual deve ser incorporada às legislações nacionais e, portanto, cumpridas, sob pena de severas implicações legais, assim como no que se refere aos demais direitos do ordenamento positivo ocidental. Este trabalho terá como foco demonstrar se a legislação internacional de direitos humanos é pacificamente empregada aos ordenamentos jurídicos pátrios e de que forma se dá essa abstração às normas de direito positivo das nações, bem como as questões relativas à sua fundamentação, demonstrando, por fim, quais são os princípios fundamentais de direitos humanos. 2. A necessidade de fundamentação dos direitos humanos Segundo o Professor Fábio Konder Comparato (2000, p.57): “Somos o único ser que sabe que vai morrer e que, almejando incansavelmente a imortalidade, não cessa de se dar explicações sobre esse seu destino inexorável”. 196 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho De uma forma geral denota-se por meio da frase acima que o homem busca incessantemente, justificativas, fundamentos ou até mesmo explicações para todos os fatos da vida, mesmo tendo como incontestável certeza a de que não somos seres eternos e que a morte será inevitável. Segundo o Professor Comparato, essas tentativas exacerbadas e inesgotáveis de se explicar todos os fenômenos humanos ou da natureza pelo homem é na verdade um subterfugio para explicar ou, quem sabe, contornar a sua inevitável mortalidade. De todo modo, a ilustre frase acima explicita também a preocupação dos estudiosos no tema de direitos humanos em encontrar um fundamento que justifique a efetividade ou mesmo a existência de tais direitos. Nesse sentido, a Professora Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva (2002, p. 100) destaca a importância dos direitos humanos: A importância dos direitos humanos evidencia-se na sua própria vocação para proteção e continuidade da vida humana que funcionam como um escudo de proteção da vulnerabilidade humana às intempéries ínsitas da existência humana ou produzidas pelos próprios seres humanos. É fato que a quase totalidade dos sistemas políticos existentes na atualidade consideram como válida a doutrina dos direitos humanos, prova disso é a incorporação nas constituições e documentos oficiais dos países, direta ou indiretamente, de preceitos (direitos e garantias) que encontram como fundamento, única e exclusivamente, a pessoa humana. No entanto, não podemos desconsiderar o pano de fundo de incertezas, dúvidas, contradições e ambiguidades no qual está inserida a tentativa de fundamentação dos direitos humanos. Há quem afirme, como Norberto Bobbio (1992, p.24 e 25) que os direitos humanos já se encontram devidamente fundamentados em 197 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho razão de seu amplo reconhecimento. Vejamos: O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justifica-los, mas o de protegê-los. Tratase de um problema não filosófico, mas político [...] Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados. E há quem se indigne com a insistência de alguns estudiosos do direito na incessante busca pela fundamentação dos direitos humanos, como a autora Victória Camps (apud Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva, 2002, p.107), que, em desabafo, assim expôs: “[...] insisto em que a fundamentação não faz nenhuma falta. Os valores éticos básicos são tão óbvios que pertencem à semântica da própria ética”. Contudo, há outra corrente que ainda sustenta a necessidade de se estabelecer essa fundamentação, já que ela (fundamentação) e, geralmente aquela fundada na concepção ético-filosófica, pode lhe conferir uma abordagem mais adequada. Segundo Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva (2002, p. 109): É certo que se chegou a considerar a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU como manifestação da ‘única prova de que um sistema de valores pode ser humanamente fundamentado, e, portanto, reconhecido: esta prova é o consenso geral acerca de sua validade’. Mas esse argumento que pode explicar como se chegou a um acordo sobre os direitos 198 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho e liberdades básicas deixa na penumbra outro dos problemas centrais da fundamentação de tais direitos: seu porquê, isto é, sua razão de ser. Dessa forma é que a busca pelos princípios e fundamentos de direitos humanos é, em outras palavras a busca pela sua razão de ser, pelas razões que o legitimam e que motivam o seu reconhecimento. Nesse sentido, vale lembrar a contribuição kantiana, já que a busca pela fundamentação dos direitos humanos consiste no alcance das justificativas racionais que ensejam a sua positivação, ou seja, nas razões que levariam a ordem jurídica a acolher e positivar esses direitos, conforme já mencionado em capítulo anterior deste trabalho. 2.1 Noção de princípios ou fundamentos no direito positivo brasileiro Se analisarmos o direito positivo brasileiro verificaremos que há nele a junção das concepções de princípios, tanto em Kant quanto em Aristóteles. Isso porque por princípio ou fundamento tem-se ora a concepção das razões de decidir algo, ora da origem dos institutos de direito positivo, respectivamente. Nesse sentido, importante destacar a contribuição de Fábio Konder Comparato (2000, p.53): Pois bem, se analisarmos, ainda que superficialmente, o Direito Positivo brasileiro, verificaremos que a noção de fundamento é usada com essas duas acepções principais, desenvolvidas pelo pensamento filosófico. No sentido de razão justificativa, fala-se, por exemplo, em fundamentos da sentença (Código de Processo Civil, art. 458, II), para designar as razões de decidir. No sentido de fonte, título ou base, a noção de fundamento indica a origem 199 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho da posse (Código Civil, arts. 490, parágrafo único, e 507, parágrafo único: “justo título”), da propriedade (Código Civil, art. 530: aquisição da propriedade imóvel pela transcrição do título no Registro Público), ou do processo de execução (Código de Processo Civil, art. 538: ‘toda execução tem por base título executivo judicial e extrajudicial). No campo da teoria geral do direito, fundamento está relacionado à noção de validade das normas, ou seja, a razão justificativa última, o porquê de a norma ser válida e o porquê de devermos observála e cumpri-la. É fato que, na atualidade, ninguém discute a hierarquia criada pelo ordenamento jurídico segundo a qual as normas se apresentam no direito, hierarquia esta que emerge todas as normas à Constituição Federal e esta, por sua vez, ao poder constituinte. Entretanto, conforme leciona o autor supracitado (Fábio Konder Comparato), se indagarmos a origem de tudo até o fim, será difícil de chegar ao fundamento último do poder constituinte originário sem sair do plano do direito. Vejamos: Não parece haver dúvida que o poder constituinte encontra seu fundamento último, ou num fato – isto é, a força dominadora de um indivíduo, de uma família, de um testamento, de um partido político, ou de uma classe social – ou, então num princípio ético, isto é, numa razão justificativa de conduta, que transcende a autoridade dos constituintes. Ora, como bem observaram os pensadores políticos, a organização social baseada exclusivamente na força não tem condições de subsistir, pois carece de uma justificativa ética, que tranquilize a consciência social. Na frase lapidar de Rousseau, ‘o forte não é nunca bastante forte para ser sempre o senhor, se não faz da sua 200 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho força um direito e da obediência um dever’. Resta, portanto, o princípio ético. O que o Professor Comparato assinala é que o princípio como razão justificadora de determinada conduta, pautado na ética, é fundamental à essência do próprio direito, razão pela qual não há que se falar em direito fundado, tão somente, em normas, uma vez que o princípio ético está para além e é anterior à norma em si. Importante, nesse contexto, salientar o enquadramento dos direitos humanos, segundo a concepção positivista brasileira: são direitos humanos os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Entretanto referida classificação não possui solidez, uma vez que os direitos humanos não se resumem aos direitos fundamentais, estando eles dentro e fora do texto constitucional. Dentro, no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais, esparsos pela Constituição Federal e fora enquanto a mola propulsora na qual ela está fundada. Dessa forma, vale destacar o preâmbulo da Carta Constitucional, uma vez que ele invoca os direitos humanos, ressaltando-os mesmo antes das disposições legais contidas no bojo do egrégio documento legal, de tal sorte que os direitos humanos se apresentam como a essência da própria carta constitucional. Vejamos: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição Da República Federativa Do Brasil. 201 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Conclui-se, portanto, que a Constituição Federal foi fundada para, além da efetivação dos direitos fundamentais, tais como a segurança, a igualdade, os direitos sociais e individuais, também garantir “valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, valores esses pautados nos direitos humanos. Ainda no tocante aos direitos humanos, vale mencionar a contribuição de Amartya Sen quanto à abordagem feita sobre o tema em obra na qual analisa o desenvolvimento como uma forma de liberdade. Segundo o autor (Sen, 2012, pag. 292) “os direitos humanos também se tornaram uma parte importante da literatura do desenvolvimento [...], entretanto, essa aparente vitória da ideia e do uso dos direitos humanos coexiste com um certo ceticismo real”. O autor elenca as principais formas de ceticismo à ideia e uso dos direitos humanos, correlacionando-os em três críticas, as quais denominam como crítica da legitimidade, crítica da coerência e crítica cultural. Vejamos: [...] O receio de que os direitos humanos confundam consequências de sistemas legais, que conferem às pessoas direitos bem definidos, com princípios pré-legais que não podem realmente dar a uma pessoa um direito juridicamente exigível [...]. Nessa concepção os seres humanos nascem sem direitos humanos tanto quanto nascem sem roupa, os direitos teriam de ser adquiridos por meio da legislação, como as roupas são adquiridas de alguém que as faz. As roupas não existem antes de serem feitas, do mesmo modo como não existem direitos prélegislação. A essa primeira crítica ao uso dos direitos humanos o autor denomina de crítica da legitimidade e a rebate com a seguinte argumentação (Sen, pag. 295): 202 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho De fato os direitos humanos podem ultrapassar a esfera dos direitos legais potenciais, em oposição aos direitos reais. [...] O direito moral de uma esposa participar plenamente, como igual, das decisões familiares importantes independentemente do quanto seu marido seja machista pode ser reconhecido por muitos que, não obstante, não desejam que essa exigência seja legalizada e imposta pela polícia. O direito ao respeito é outro exemplo no qual a legalização e a tentativa de imposição seriam problemáticas, e até mesmo desconcertantes. [...] Mas essa interpretação a normativa não precisa anular a utilidade da ideia de direitos humanos no tipo de contexto no qual eles são comumente invocados. Sobre a crítica que o autor denomina como crítica da coerência, depara-se com a seguinte argumentação (Sen, 2012, pag. 293): A segunda linha crítica relaciona-se à forma assumida pela ética e pela política dos direitos humanos. [...] Nessa concepção direitos são pretensões que requerem deveres correlatos. [...] Pode ser muito bonito, diz esse argumento, afirmar que todo ser humano tem direito a alimento ou a serviços médicos, mas, se não houver sido caracterizado nenhum dever específico de um agente, esses direitos não podem realmente “significar” grande coisa. O autor rebate essa argumentação da seguinte forma (Sen, 2012, pag. 296): Na verdade há quem não veja sentido nenhum em um direito se este não for associado ao que Immanuel Kant denominou uma “obrigação perfeita” - um dever específico de um agente 203 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho específico de realizar esse direito. [...] Os direitos humanos são vistos como direitos que são comuns a todos, independentemente de cidadania, ou seja, os benefícios que todos deveriam ter. Embora não seja dever específico de nenhum indivíduo assegurar que a pessoa usufrua seus direitos, as pretensões podem ser dirigidas de modo geral a todos os que estiverem em condições de ajudar. Immanuel Kant já caracterizara essas reivindicações gerais como “obrigações imperfeitas”, discutindo a seguir sua relevância para a vida social. Por fim, demonstra o autor um terceiro argumento contrário à ideia e uso dos direitos humanos, o qual apresenta-se da seguinte forma (Sen, 2012, pag. 294): A terceira linha de ceticismo não assume exatamente uma forma legal e institucional, mas vê os direitos humanos como pertencentes ao domínio da ética social. A autoridade moral dos direitos humanos, por essa perspectiva, depende da natureza de éticas aceitáveis. Contudo, essas éticas são realmente universais? E se algumas culturas não consideram os direitos particularmente valiosos em comparação com outras virtudes ou qualidades preponderantes? Dessa forma defende o autor que (Sen, 2012, pag. 297): a ideia dos direitos humanos é realmente tão universal? Não existem éticas, como as do mundo das culturas confucianas, que tendem a ressaltar a disciplina em vez dos direitos, a lealdade em vez das pretensões? Na medida em que os direitos humanos incluem pretensões à liberdade política e aos direitos civis, alguns teóricos asiáticos em particular identificaram supostas 204 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho tensões. De todo modo, reconhecer diversas culturas em todo o mundo é muito importante no mundo contemporâneo e uma forma de assegurar os direitos humanos a determinados grupos. Percebe-se que há uma tentativa constante do positivismo em desconsiderar a ideia de direitos humanos e, consequentemente, o seu uso, entretanto, os direitos humanos independem de formalidades legais e são intrínsecos ao homem, dada a sua própria condição humana. Noutra senda, todas as argumentações contrárias à ideia dos direitos humanos são facilmente rebatidas, conforme se demonstrou, inclusive, fazendo uso do posicionamento de Amartya Sen. 2.1.1 Breve contexto histórico do positivismo jurídico No século XII em razão das guerras de religião (catolicismo versus protestantismo) a Europa Ocidental passou a pesquisar o fundamento exclusivamente terreno para a validade do direito. Essa pesquisa tinha como “pano de fundo” duas situações vividas pela sociedade naquela época: a ressurreição da moral naturalista estoica (também denominada jusnaturalismo) e o antinaturalismo. A ressurreição da moral naturalista estoica ou jusnaturalismo defendia a ideia de que as leis positivas em todos os países têm suas raízes e a sua validade fundada no direito natural. Já para o movimento antinaturalista que teve como principais adeptos Hobbes, Locke e Rousseau, a crença no “estado da natureza” gerava uma insegurança máxima para a sociedade política e por essa razão o homem deveria ser protegido contra essa concepção de validade do direito. O positivismo jurídico foi fundado no antinaturalismo defendido por Hobbes, Locke e Rousseau. Vale Lembrar o entendimento do Professor Fábio Comparato 205 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho (2000, p. 54) sobre a teoria positivista: Segundo a teoria positivista, o fundamento do direito não é transcendental ao homem e à sociedade, mas se encontra no pressuposto lógico (o ‘contrato social’ ou a norma fundamental) de que as leis são válidas e devem ser obedecidas, quando forem editadas segundo um processo regular (isto é, organizado por regras aceitas pela comunidade) e pela autoridade competente, legitimada de acordo com princípios também anteriormente estabelecidos e aceitos. Assim, concluímos que de acordo com a teoria positivista o direito se funda em um pressuposto lógico, não podendo ser aceita a tese de que o direito surge antes mesmo do homem e da sociedade humana, isso porque as leis só são consideradas válidas após a sua edição, por meio de um procedimento regular que implica na aceitação das regras pela comunidade, por meio da autoridade competente, portanto, há um extremo formalismo: o de que só é aceita a norma decorrente deste procedimento regular. Entretanto, exacerbado formalismo pode ser extremamente perigoso, conforme se demonstrará a seguir, razão pela qual, nesse sentido, entende-se que há uma grande falha na doutrina positivista. 2.1.2 A falha do positivismo jurídico A falha no positivismo jurídico consiste no fato de o fundamento ou princípio da norma ser considerada em si mesma, ou seja, o fundamento do direito positivo é a norma que está no próprio direito positivo e que obriga todos a observá-la. No entanto sabemos que o princípio ou o fundamento de algo esta sempre fora dele. 206 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho É exatamente aí que se coloca a questão dos direitos humanos, pois a sua validade deve assentar-se em algo mais profundo que a organização estatal, ainda que essa organização se baseie na Constituição Federal. Importante destacar que a concepção positivista do direito é incompatível com a afirmação de autênticos direitos humanos, pois os direitos humanos não se contentam com uma validade formal de normas, como no positivismo jurídico, mas sim no valor ético do direito. Vale ressaltar o art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil como exemplo, segundo a qual são admitidos os tratados internacionais. Vejamos: Art. 5º. ... omissis ... §2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Percebe-se que o Brasil aceita os tratados de direitos humanos porque no ordenamento jurídico brasileiro está previsto o princípio da prevalência desses direitos como um dos alicerces da Carta Constitucional, nesse caso, naquilo que se refere às relações internacionais. Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: II – prevalência dos direitos humanos. Prevalência significa a validade anterior, ou seja, aquilo que tem valor e qualidade antes de algo, nesse caso, antes mesmo da própria norma, traduzida pela Constituição Federal. Da leitura do dispositivo legal supracitado pode-se concluir que 207 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho os direitos humanos valem antes e “sobre tudo” (acima de tudo), têm prevalência prévia, antecedente, primitiva, ou seja, os direitos humanos valem antes da própria norma constitucional. Dessa forma, em um conflito de normas no qual esteja presente aquela que protege os direitos humanos, de acordo com a normativa legal pautada na Constituição Federal, será obedecida a norma de direitos humanos. Importante esclarecer no contexto aqui empregado que o conceito de normas abrange também os princípios180. Contudo, segundo o direito positivo só terá validade a norma ou a regra que tenha se fundado num regular procedimento de normatividade jurídica, passando por todo o processo legislativo, de tal sorte que seja lançada no ordenamento jurídico sob a forma de direito posto, razão pela qual, segundo essa lógica os direitos humanos não estão incluídos no conceito de norma. Esse formalismo, no entanto, é extremamente perigoso porque, ao aceitar somente aquilo que está “posto” no ordenamento jurídico sob a forma de norma regular, cria uma espécie de arma contra a efetividade dos direitos humanos, direitos humanos esses que, conforme supracitados, sequer necessitam de leis para ter validade, dada a sua prevalência. Nesse sentido, é que correto afirmar que a fonte primária de todos os direitos, e não apenas dos direitos fundamentais181, é o ser humano, ou a pessoa humana, sendo o fundamento ou princípio dos direitos humanos o próprio homem. 2.2 Noção de princípios ou fundamentos nos direitos humanos Segundo Noberto Bobbio (1992, p.15): “O problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate 180 Sendo assim, o conceito de norma empregado no parágrafo anterior se refere aos princípios, portanto, aos direitos humanos. 181 O direito positivo costuma admitir a existência dos direitos humanos com maior pacifismo somente naquilo que se refere aos direitos fundamentais. 208 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter”. Os direitos humanos são direitos desejáveis aos homens, se tratam de direitos dos quais os seres humanos vivem em busca constante e incessante de ter e efetivar, mas que, apesar da sua desejabilidade, ainda não foram totalmente reconhecidos. Daí o esforço para alguns em estabelecer de forma sólida os seus fundamentos. Dessa forma é que duas possíveis fundamentações para os direitos humanos seriam a fundamentação jusnaturalista e a fundamentação ética, conforme será exposto a seguir. 2.2.1 Fundamentação jusnaturalista Segundo a fundamentação jusnaturalista os direitos humanos são admitidos como direitos naturais e como derivação direta da crença no Direito Natural convém destacar três características relevantes defendidas por autores renomados. Vejamos: Segundo Maritan (apud Duarte, 2002, p. 126) os direitos naturais são inerentes ao ser humano, isso porque são: [...] anteriores e superiores às legislações críticas e aos acordos entre governos, direitos aos quais não incumbe à comunidade civil outorgar, mas sim reconhecer e sancionar como universalmente válidos, e que nenhuma consideração de utilidade social poderia, nem sequer momentaneamente, abolir ou autorizar sua infração. Para Galiano (apud Duarte, 2002, p.127): se entende por direitos naturais aqueles direitos que tem por titular o homem, não por graciosa concessão das normas 209 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho positivas, mas independentemente delas e pelo mero fato de ser o homem, de participar da natureza humana. Para o mesmo autor (apud Duarte, p.127) “os direitos humanos existem e o sujeito os possui independentemente de que sejam reconhecidos ou não pelo Direito positivo”. Dessa forma, conclui-se que os direitos humanos segundo a concepção jusnaturalista são derivados do Direito Natural e superiores a qualquer ordem jurídica, posto que inerentes à própria condição humana. 2.2.2 Fundamentação ética Segundo a fundamentação ética, os direitos humanos são admitidos como direitos morais. Sendo assim, empregariam os direitos humanos o conceito dos direitos morais fundados na tradição anglo-saxã, ou seja, o direito se definiria de acordo com os bens e necessidades do ser humano e por isso seriam dignos de serem protegidos e exigidos do resto da sociedade. Esses direitos são opostos aos direitos jurídico-positivos. Segundo Añón (apud Duarte, 2002, p.130): [...] os direitos humanos como direitos morais seriam aquelas exigências éticas, bens, valores, razões ou princípios morais de especial importância gozados por todos os seres humanos, pelo simples fato de serem seres humanos. Para o autor supracitado, os direitos humanos na acepção de direitos morais permitem uma exigência ou demanda frente à sociedade e possuem a pretensão de ser incorporados ao ordenamento jurídico como direito positivo. Já para Fernández (apud Duarte, 2002, p.131): 210 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho [...] a fundamentação ética ou axiológica dos direitos humanos fundamentais parte da tese de que a origem e fundamento destes direitos nunca pode ser jurídica, mas sim prévia ao jurídico. O direito [...] não cria os direitos humanos. Por fim, ainda segundo o autor supracitado quando partimos da ideia de que toda norma pressupõe valores aceitamos ainda mais a justificativa racional dos direitos humanos fundamentais. Da afirmação acima, conclui-se que se toda norma admite um juízo valorativo, visto que quando da sua criação houve o emprego de valores daquele que a editou, e mesmo assim são elas consideradas normas e, portanto, direito positivo, então os direitos humanos encontram aí o seu fundamento enquanto direito positivo, pois é da sua essência o valor do homem em si. 3. Princípios e fundamentos dos direitos humanos Os princípios e fundamentos dos direitos humanos delineados neste item consideram como corte metodológico aquele realizado pelo Professor Fábio Comparato, ou seja, dentre as características que são consideradas fundamentos dos direitos humanos, foram consideradas aquelas traçadas pelo ilustre professor. Dessa forma, os princípios e fundamentos dos direitos humanos são as características inerentes ao homem e que conferem a ele, desde que observados, a sua dignidade enquanto pessoa humana, consistindo eles na liberdade, na autoconsciência, na socialidade, na historicidade e na unicidade existencial. Entretanto, não há como falar em princípio ou fundamento dos direitos humanos sem ressaltar a ideia de dignidade da pessoa humana. Dessa forma, percebe-se que há uma tendência moderna de se vincular a ideia de que o fundamento do direito é algo que já não deve mais ser 211 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho procurado na esfera sobrenatural da revelação religiosa. Isso porque se o direito e, nesse caso, os direitos humanos, é uma criação do homem, ele (direito) só pode ter seu fundamento no próprio homem, considerado em sua dignidade de pessoa. Nesse sentido, analisemos alguns dos textos normativos constitucionais ou egrégios de ordenamentos jurídicos pelo mundo posteriores à Segunda Guerra Mundial, a começar pela citação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (apud Comparato, 2000, p. 55), segundo a qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos” (art. I). No mesmo sentido é a Constituição da República Italiana (apud Comparato, 2000, p. 55) “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social” (art. 3º). Para a Constituição da República Federal Alemã (apud Comparato, 2000, p. 55) “A dignidade do homem é inviolável. Respeitála e protegê-la é dever de todos os Poderes do Estado” (art. 1º). Em Portugal a Constituição menciona a dignidade humana em seu preâmbulo, conforme destaca o Professor Comparato (2000, p. 55): “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Na Constituição Espanhola a dignidade humana aparece da seguinte forma (apud Comparato, 2000, p.55) “a dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos alheios são o fundamento da ordem política e da paz social” (art. 10). No Brasil, a Constituição Federal menciona em seu artigo 1º como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana (Brasil, 1988). Conclui-se, assim, que muitos são os preceitos nas legislações esparsas pelo mundo que atentam para a defesa e efetivação do princípio 212 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho da dignidade humana. Dessa forma necessário se faz compreender o significado da expressão dignidade humana, conforme se propõe explicar no próximo item do presente trabalho. 3.1 A dignidade humana O pensamento ocidental é herdeiro de duas tradições antagônicas parcialmente entre si: a tradição judaica e a grega. Na tradição judaica há a ideia de uma certa participação do homem na essência divina, de tal sorte que o próprio Gênesis na Bíblia (Capítulo 1, versículo 26) ressalta a proposição de que “Deus disse – façamos o homem à nossa imagem e semelhança”. Na tradição grega, por sua vez, o homem possui uma dignidade própria e independente, não advém de um deus e tampouco de qualquer outra criatura, prova dessa afirmação a proposição de Sófocles em Antígona (apud Comparato, 2000, p. 56): “há muitas maravilhas no mundo, mas a maior é o homem”. Segundo Fábio Comparato (2000, p.58), um dos elementos componentes da dignidade humana é o fato de o homem ser “um ser essencialmente moral, ou seja, que todo o seu comportamento consciente e racional é sempre sujeito a um juízo sobre o bem e o mal”. No entanto, é com o estabelecimento de alguns conceitos sobre as características próprias do homem, que nesse momento denominamos de princípios ou fundamentos dos direitos humanos, que o conceito de dignidade da pessoa humana adquire forma, encontrando seu real significado. Importante, reiterar que os direitos humanos são decorrentes da própria condição humana, entretanto, quando se adquire essa condição humana? Geralmente a condição humana é adquirida com a vida e em alguns ordenamentos jurídicos como o brasileiro essa condição humana 213 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho é conferida antes mesmo do nascimento. O delinear deste momento que se entende como de origem da condição humana é importante justamente para compreender quando são conferidos ao homem os direitos decorrentes dessa condição. No direito civil brasileiro há previsão de aquisição da personalidade mesmo antes do nascimento com vida, visto que a lei resguarda os direitos do nascituro. Nesse sentido, dispõe o Código Civil Brasileiro: Art. 1º. Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Dessa forma, resta cristalino que a pessoa adquire direitos desde o seu nascimento com vida ou, segundo alguns ordenamentos jurídicos como o brasileiro, antes mesmo desse nascimento, ou seja, desde a sua concepção. Em interpretação estrita à Declaração Universal dos Direitos Humanos, encontramos entendimento semelhante no sentido de que a dignidade é anterior ao homem. Vejamos: Art. I. Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. Sendo a dignidade um atributo de extrema importância à pessoa humana e até mesmo anterior a ela, conclui-se que, além de os direitos humanos encontrarem o seu principal fundamento e até mesmo o seu princípio, enquanto origem, nela é importante também analisar de que forma e por quais meios se dá a sua efetivação. 214 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 3.2 A liberdade A liberdade é o primeiro dos fundamentos de direitos humanos. Segundo o Professor Fábio Konder Comparato (2000, p. 58): “É a liberdade que faz do homem um ser dotado de autonomia, vale dizer, de capacidade para ditar suas próprias normas de conduta”. Uma vez violado o direito à liberdade da pessoa restará lesada a sua condição de sujeito de direitos e restarão, também, violados os seus direitos humanos. Nesse sentido é que a Declaração Universal dos Direitos Humanos logo no seu art. I resguardou a liberdade, assegurando que ela, ao lado da dignidade, é anterior ao próprio homem, ou seja, o homem já nasce livre. Vejamos: Art. I. Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. A liberdade é que confere ao homem a autonomia para ditar as suas regras de conduta, segundo o bem ou o mal. O homem faz suas escolhas e é “sobre o fundamento último da liberdade que se assenta todo o universo axiológico”, quer dizer, é sobre a liberdade que se assentam as preferências valorativas das quais o homem pode e deve utilizar quanto à sua conduta (Comparato, p. 58). Nesse sentido, vale destacar o entendimento do Professor Fábio Konder Comparato (p. 58): A liberdade é a fonte da consciência moral, da faculdade de julgar as ações humanas segundo a polaridade entre bem e mal. Vem a propósito assinalar que no mito bíblico do paraíso terrestre (Gênesis 3,5) a verdadeira vida humana – na alegria e na dor, no amor e no ódio – só principiou a partir do momento em que 215 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho o primeiro casal provou do fruto proibido da árvore da ciência do bem e do mal. A partir de então, como disse o tentador, os homens passaram a ser “como deuses”, isto é, a viver em plano superior ao de todas as demais criaturas. Dessa forma, pode-se concluir que a liberdade, além de fundamental ao exercício de direitos inerentes à própria natureza humana, é a fonte da consciência moral e da faculdade de julgar as ações humanas segundo o bem e o mal. 3.3 A autoconsciência O homem possui a consciência de sua própria subjetividade, o que significa dizer que diferentemente dos demais animais (irracionais) que se regem por seus instintos, o homem é um conhecedor da sua condição de ser vivente e mortal, de tal sorte que a sua acumulação histórica não apaga nunca. Segundo o Professor Fábio Comparato (2000, p.59): “O homem é, portanto, essencialmente, um animal reflexivo, capaz de enxergar como sujeito no mundo ‘o eu e sua circunstância’ segundo fórmula célere de Ortega y Gasset”. Ainda de acordo com o Professor Fábio Konder Comparato (p. 59): A autoconsciência opõe-se ao estado de alienação, que é negativa da especificidade humana, como enfatizou Feuerbach. Alienado diz-se o homem que é incapaz de exercer sua liberdade e que vive, portanto, em situação de permanente heteronomia. Marx explicou tal conceito, como sabido, à sociedade de classes e à classe operária em particular. Entendeu que, a partir do momento em que a classe operária lograsse adquirir autoconsciência e 216 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho superar dialeticamente seu estado de objetiva alienação, toda a sociedade seria enfim humanizada. Dessa forma é que a autoconsciência é um dos fundamentos dos direitos humanos, pois ela é uma característica peculiar ao ser humano, na medida em que somente o homem é capaz de ter a dimensão da sua subjetividade, não se deixando mover, apenas, por instintos, ou seja, o ser humano é dotado de um poder de abstração que o torna consciente daquilo que ele é e das circunstâncias sob as quais vive no tempo e no espaço. 3.4 A sociabilidade Foi na política de Aristóteles que o caráter essencialmente sociável do ser humano ganhou ênfase, segundo o grande filósofo (apud Comparato, 2000, p.59) “o homem era parte de um todo social, sendo esse todo precedente sempre às partes que o compõem. Assim, a pólis é por natureza anterior ao indivíduo”. Vale esclarecer que polis significa sociedade. Modernamente, referida concepção de que o homem é parte de um todo social não é bem aceita. Isso porque essa teoria pressupõe uma supremacia ética da sociedade em relação ao indivíduo, razão essa que justifica o autoritarismo, portanto, descabida. Segundo o Professor Fábio Comparato (2000, p. 59): “o que se deve entender é que o indivíduo humano somente desenvolve as suas virtualidades de pessoa, isto é, de homem capaz de cultura e autoaperfeiçoamento, quando vive em sociedade.” Dessa forma, a sociabilidade é um fundamento dos direitos humanos na medida em que o homem não vive só, está ele cercado de demais seres humanos com interesses idênticos ou diversos e todos dotados de direitos decorrentes dessa condição humana. 217 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Os direitos humanos devem compreender o indivíduo na sua concepção de pessoa, respeitando a sua individualidade, mas também considerando esse fato importante de estar o indivíduo inserido numa coletividade, onde os seus interesses individuais não podem se sobrepor aos interesses dos demais indivíduos. 3.5 A historicidade O ser humano, conforme já mencionado, é um ser autoconsciente e essa autoconsciência significa também dizer que é ele (homem) resultado de uma acumulação histórica inacabada. Dessa forma, conforme o permanente inacabamento de que falou Heidegger em sua literatura do existencialismo (apud Comparato, 2000, p. 59), o homem é um ser inacabado o que significa que é ele um ente cujo ser não se completa nem se consuma jamais, mas ao longo da história vai ele se modificando pela experiência acumulada e pelo projeto de novos ensaios de vida. Importante destacar também a breve passagem que Carlos Santiago Nino (2011, p.153) faz sobre o tema ao discutir sobre a concepção liberal da pessoa em sua obra “Ética e Direitos Humanos”, segundo o qual: Se, no final das contas, pessoas são coletâneas de memórias, desejos e etc., que têm relações de continuidade e conectividade entre elas, por que seria algo tão importante situar um desejo nesse ou naquele sistema (decidir, por exemplo, satisfazê-lo ou não, de acordo com o quanto os demais desejos dos sistemas estão satisfeitos)? As coletividades também são universalmente vistas como detentoras de interesses e fins independentemente e às vezes anteriores aos interesses e fins das pessoas que fazem parte delas. 218 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Importante destacar que, em que pese o fato de autor estar diante de uma crítica à concepção de pessoa somente no tocante à sua individualidade e na defesa da identificação de pessoa como membro de uma coletividade que também possui desejos, os quais merecem ser satisfeitos; o que se pode absorver da passagem supramencionada é que as pessoas são “coletâneas de memórias”, ou seja, também para Nino a pessoa possui esse aspecto da historicidade. Sendo assim, a historicidade é também um dos fundamentos dos direitos humanos que deve compreender o homem na sua essência, a qual, conforme demonstrado, é, sobretudo, uma essência histórica. 2.6 A unicidade existencial Outra característica própria da condição humana é o fato de sermos todos insubstituíveis e, por isso, seres únicos. A ciência demonstrou isso com a descoberta do código genético, pois a partir dele houve o reconhecimento de que cada indivíduo possui um genótipo único, invariável e irreprodutível, fato este que nos torna únicos. Nesse sentido vale lembrar as palavras do Professor Fábio Comparato (2000, p. 60): O homem como espécie, e cada homem em sua individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma. Mais ainda: o homem é não só o único ser capaz de orientar suas ações em função de finalidades racionalmente percebidas e livremente desejadas, como é, sobretudo, o único ser cuja existência, em si mesma, constitui um valor absoluto, isto é, um fim em si e nunca um meio para a consecução de outros fins. É nisto que reside, em última análise, a dignidade humana. 219 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Nesse sentido, cabe destacar o art. II da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Art. II. 1. Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania. Interessante observar que nas relações humanas, constantemente, verificamos situações de intolerância de pessoas umas para com as outras, em virtude da não aceitação dos desejos e escolhas dou outro. O ser humano está condicionado a aceitar somente aquilo que é compatível com os seus desejos e que, dentro dos parâmetros intrínsecos à sua subjetividade, são tidos como corretos, aceitáveis e compreensíveis. No entanto, as pessoas não são iguais e a própria ciência já demonstrou que cada ser humano possui um código genético que o torna insubstituível, conforme demonstrado acima. Não sendo os seres humanos iguais em desejos e escolhas, não é possível conceber a essa exigência de que os seres humanos sejam todos compatíveis em desejos e escolhas. A Declaração Universal de Direitos Humanos, identificando a distinção existente entre as pessoas, visa promover a igualdade, pelo emprego da não-discriminação de qualquer gênero. Esse preceito foi acolhido por diversos textos constitucionais espalhados pelo mundo, incluindo o Brasil, de tal sorte que se apresenta como uma disposição de direitos humanos. 220 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Conclusão Conforme amplamente demonstrado neste trabalho todas as características, ora denominadas fundamentos, próprias do homem denotam a dignidade da pessoa humana, dignidade essa que se caracteriza como o principal fundamento dos direitos humanos. A dignidade transcendente é um atributo essencial do homem enquanto pessoa, isto é, do homem em sua essência, independentemente das qualificações específicas de sexo, raça, religião, nacionalidade, posição social, ou qualquer outra, conforme bem salientou o Professor Fábio Konder Comparato (2000, p.60). Dessa forma é que os princípios ou fundamentos dos direitos humanos são atributos inerentes ao homem, dada a sua condição humana, que servem de pressuposto para a real medida de uma vida digna em um Estado Democrático de Direitos. Isso porque somente os Estados Democráticos de Direitos fazem comportam a validação dos direitos humanos, visto que em Estados Totalitários não há lugar para sua aceitação. O direito internacional dos direitos humanos como uma provocação internacional decorrente dos horrores da guerra possui a ambição de ser incorporado a todos os ordenamentos jurídicos, uma vez que, em que pese toda a discussão positivista acerca de sua validade, é o direito positivo um importante instrumento de eficácia desses direitos. Apesar da exaustão de alguns estudiosos em tentar fundamentar os direitos humanos como uma tentativa de validá-lo, o problema central da matéria não está relacionado à suposta dúvida que paira quanto à sua existência, visto que eles existem, de fato, uma vez que o único requisito que se impõe é a condição humana, condição esta que se dá com o nascimento com vida e, em algumas legislações existentes pelo mundo até mesmo antes do nascimento, resguardando-se esses direitos desde a concepção, como é o caso do Brasil. 221 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho A questão que se verifica é a de que sejam os direitos humanos efetivados e garantidos pelo maior número de legislações positivas das nações possíveis em todo o mundo, de modo que o homem seja considerado como elemento essencial nos ordenamentos jurídicos de toda a humanidade, sendo respeitada a sua dignidade enquanto pessoa, de modo que dele, e dessa condição humana essencial, decorram todos os demais direitos. É essa a razão da Declaração Universal de Direitos Humanos mencionar a proibição de torturas, do trabalho escravo, da discriminação, dentre outras, em respeito à igualdade e dignidade que todos os homens, sem distinção possuem (art. 1º). E uma suposta forma de se conquistar a efetivação dos direitos humanos é a aceitação dessas normas de direito internacional nos ordenamentos jurídicos de direito positivo, da mesma forma como a sua incorporação vem avançando nas cartas constitucionais dos Estados Democráticos de Direitos, sobretudo nos países de cultura ocidental. 222 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências ARENDT, Hanna. A condição humana. 10. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2004. BALERA, Wagner. et al. Comentários à Declaração Universal dos Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo: Conceito, 2011. BRASIL. Código Civil. 2002. ____________. Constituição Federal. 1988. BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. COMPARATO, Fábio Konder. Fundamento dos Direitos Humanos. A Noção Jurídica de Fundamento e sua Importância em Matéria de Direitos Humanos. In: Revista Consulex, 2000. LIMA, Alceu Amoroso. Os Direitos do Homem e o Homem sem Direitos. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1974. NINO, Carlos Santiago. Ética e Direitos Humanos. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2011. MARITAIN, J. Humanismo Integral. São Paulo: Dominus, 1962. SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. SILVA, Fernanda Duarte L. Lucas da. Fundamentando os Direitos Humanos: Um breve Inventário. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 223 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 10 “Édipo rei” de Sófocles e a verdade segundo Heidegger Márcia Regina Pitta Lopes Aquino Doutoranda em Filosofia do Direito na PUC-SP. Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Especialista em Filosofia (UEL). Advogada. E-mail: [email protected] “A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores e poetas são os guardas desta habitação”. Heidegger (1973, p. 347) 224 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Introdução A epígrafe talvez já pudesse iniciar e encerrar o texto que se apresenta numa publicação em homenagem ao professor Willis Santiago Guerra Filho. Não porque ele não mereça muitas palavras de carinho e consideração, mas pela limitação de quem as escreve. Melhor fazer uso das palavras de Heidegger. Os pensadores e poetas são os vigias da linguagem, da morada do homem. Ao professor Willis – pensador e poeta – a minha eterna gratidão. Em meio à extrema dor, diante do vazio sem fim, dele vieram palavras de resgate. E não foi o resgate para uma vida sem sentido, o que não seria resgate propriamente, mas para o sentido da vida. Será sempre necessário agradecer, e a forma de agradecer será sempre precária. Aqui a opção foi tratar do que também nos remete a um sempre: uma das três peças de Sófocles que compõem a Trilogia Tebana: Édipo Rei. Entre outras, essas peças foram objeto de estudo nas aulas do professor Willis na disciplina “Direito e Poética” que ele, há algum tempo, vem ministrando na PUC-SP. O presente trabalho só de maneira diminuta consegue demostrar a riqueza desses encontros. Para quem já teve a oportunidade ímpar de assistir as “teatraulas” com o professor Willis este estudo é apenas uma humilde lembrança do que já foi visto; e quem ainda não assistiu, espera-se que aqui esteja um estímulo para que as veja. As tragédias gregas são obras que parecem eternas. Aos que nasceram, viveram e vivem no Ocidente elas são eternas. Ter esses versos em mãos, poder lê-los e tentar interpretá-los parece que nos insere nesse tempo tão longínquo capaz de conferir também a nós um pouco de eternidade. A Trilogia Tebana de Sófocles, como se sabe, compõese de Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Contrariamente a essa que seria uma sequência previsível, Sófocles compôs primeiramente Antígona, depois Édipo Rei e, por último, Édipo em Colono. A hipótese que apresenta mais defensores afirma que a data de Antígona, a primeira, 225 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho portanto, é 441 a. C. Édipo Rei foi composta por volta de 425 a. C. e Édipo em Colono em 406 a. C. Esta última foi encenada postumamente. Com Antígona, Sófocles, em concurso tradicional em Atenas, ganhou o primeiro prêmio (Pereira, 2010, pp. 9-10). Já com Édipo Rei ele ficou em segundo lugar. O período entre Antígona e Édipo em Colono é extremamente importante para Atenas. Em 431 a. C. começa a Guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta que terminaria em 404 a. C. com a capitulação de Atenas. 1. O autor Sófocles nasceu provavelmente no ano de 496 a.C. Era filho de rico ateniense e sua vida acompanha exatamente a ascensão e grandeza de Atenas após as vitórias contra os persas. Ocupou cargos administrativos importantes como Administrador do Tesouro e Comissário do Conselho. Lutou em diferentes expedições militares ao lado de Péricles e Nícias e viu – ao final de sua vida – a decadência da democracia. Morreu em 406 a. C. Foi vinte e quatro vezes vencedor nos concursos trágicos. Para se ter uma noção de sua grandeza basta dizer que Ésquilo foi vencedor treze vezes e Eurípedes, cinco. “As honrarias acumulam-se ao longo de sua vida e não o abandonam nem na morte [...]. Conta-se que até os sitiantes de Atenas (a destruição da cidade era iminente) abriram fileiras para deixar seu cortejo passar” (Rosendield, 2002, pp. 7-9). De todas as suas peças, conservaram-se apenas sete e destas apenas duas possuem data certa: Filoctetes (409 a. C.) e Édipo em Colono que, como se disse, foi representada postumamente em 405 a. C. As outras cinco são: Ajax, Traquínias, Antígona, Édipo Rei e Electra. A discussão sobre a maior antiguidade centra-se em Antígona, Ajax e Traquínias. “Entre a primeira e a segunda há um pormenor técnico que tem sido considerado, por muitos, indício de composição mais tardia – o uso de antilabê, ou seja, divisão de um verso entre dois atores. Por outro 226 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho lado, a estrutura do párodo de Ajax está mais próxima do modelo de Ésquilo” (Pereira, 2010, pp. 9-10). Há, de acordo com Eudoro de Sousa, dois traços originais na dramaturgia de Sófocles: a nova esticomitia e a “ironia trágica”. Esticomitia ‘é o termo técnico para designar o diálogo verso a verso ou, por vezes, aquele em que interpelações e réplicas se sucedem de meio em meio verso, i. é, de hemistíquio em hemistíquio, ou de dois em dois versos”. É o que se pode ver em Antígona no Prólogo (diálogo entre Antígona e Ismena), na querela entre Hémon e Creon e no quinto episódio (a fatal disputa entre Creon e Tirésias). A novidade está em que “o diálogo abrindo com a perfeita consonância ou concordância dos contendores, acaba rapidamente em completa dissonância e discordância”. É para isso que Sófocles usa a esticomitia. Nas peças anteriores - as de Ésquilo e ‘Ajax’ e Traquínias – amigos continuam amigos, inimigos continuam inimigos a não ser que ocorra a intervenção de um outro personagem. Eudoro de Sousa refere-se a Aristóteles para afirmar que – quanto à evolução da tragédia – Sófocles faz verdadeiramente do “diálogo, protagonista” (Sousa, 1978, p. 6). De fato, em Aristóteles (1973, p. 446), é possível ler que foi Ésquilo quem primeiro elevou de um a dois o número dos atores, diminuindo a importância do coro e fazendo “o diálogo protagonista”; quem teria introduzido três atores e a cenografia foi Sófocles justificando assim o advérbio ‘verdadeiramente’ utilizado por Eudoro de Sousa. Diferentemente do que ocorre em Ésquilo, o coro de Sófocles, como se vê em Antígona, erra na sua interpretação até próximo do final, e sua deficiência é atenuada através do recurso à “ironia trágica”. A ‘ironia trágica’ “dá-se de cada vez que o juízo do coro sobre os acontecimentos, que manifestamente faz incidir desfavoravelmente sobre Antígona, é parte da ilusão em que se apresenta e que representa: na realidade, tal juízo recai com muito mais acerto em Creonte 182. 182 SOUSA, Eudoro. Uma leitura da Antígona. p. 7 ; Sobre a “ironia trágica” também se pode ler: “A ironia trágica poderá consistir em mostrar como, no decurso do drama, o herói cai na armadilha da própria palavra, uma palavra que volta contra ele trazendo-lhe a experiência amarga 227 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 2. O mito Aristóteles afirma na Poética que “o mito é o princípio e como que a alma da tragédia” e que as melhores tragédias versam sobre poucas famílias e entre as quais está a de Édipo (Aristóteles, 1973, p. 449 e 454). A trágica história da família dos Labdácidas é uma das mais conhecidas de toda a mitologia grega, sendo já esboçada nos poemas homéricos. Os dados essenciais do mito são: “proibição divina de descendência a Laio; nascimento e exposição do filho deste, Édipo; entrega da criança, por um pastor, ao rei de Corinto; viagem de Édipo, já adulto, a Delfos; encontro com um desconhecido, a quem mata; decifração do enigma da esfinge e consequente subida, por casamento com Jocasta, ao trono de Tebas; nascimento de quatro filhos (Etéocles, Polinices, Antígona e Ismena); descoberta do parricídio e incesto involuntários; suicídio de Jocasta e cegueira de Édipo; maldição deste sobre os filhos varões, que perecerão às mãos um do outro, no cerco de Tebas, levado a efeito por Polinices com mais seis aliados; vingança posterior, ganha pelos filhos destes” (Pereira, 2010, p. 11). Ao mito, Ésquilo dedicou uma tetralogia da qual só restou a terceira tragédia: Os sete contra Tebas representada em 467 a. C. Salientese que – diferentemente do que ocorre com os modernos – a originalidade de um tema, para os antigos, tinha importância secundária. “O grande mérito residia na forma de tratá-lo.” (Pereira, 2010, pp. 12-13). A tragédia é imitação. “O imitar é congênito no homem” afirmou Aristóteles na Poética e na tragédia o que ocorre é a imitação de homens superiores, mas “melhores do que eles ordinariamente são” (Aristóteles, 1973, pp. 444-445). Aristóteles define a tragédia como a imitação de uma de um sentido que ele obstinava em não reconhecer. O coro, no mais das vezes, hesita e oscila, lançado sucessivamente para um sentido e para outro, às vezes pressentindo obscuramente uma significação que ainda permanece secreta, às vezes formulando sem saber, com um jogo de palavras, uma expressão de duplo sentido”. VERNANT, Jean-Pierre. Tensões e ambiguidades na Tragédia Grega. In: Vernant, Jean-Pierre; Vidal-Naquet, Mito e tragédia na Grécia Antiga. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2008. pp.07 - 24. 228 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho “ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes (do drama), (imitação que se efetua) não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o ‘terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções” (Aristóteles, 1973, p. 447). O elemento mais importante da tragédia, afirma Aristóteles é a trama dos fatos. Porque a tragédia não é imitação de homens, mas de ações e de vida, de felicidade ou infelicidade. E as ações é que determinam que o homem seja ou não bem-aventurado. “Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efetuar certas ações; por isso as ações e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa”. (Aristóteles, 1973, p. 448). Pois bem, o que se pretende nessa breve análise do Édipo Rei de Sófocles é apresentar o que, neste momento, julgou-se importante ressaltar para poder pensar a verdade e a vida que vivemos. 3. Édipo rei. A peça. Os acontecimentos narrados na peça183 ocorrem durante a peste que assolava Atenas por conta da qual pereceu inclusive Péricles. Logo no início, o sacerdote pede a Édipo que reerga a pólis – Tebas - e ele afirma que um só remédio lhe ocorreu: enviar Creon, seu cunhado, irmão de Jocasta, a Delfos. Ao retornar, Creon, após algumas palavras que nem tranquilizam nem atemorizam, indaga pela preferência de Édipo em ouvir o que tinha a dizer na frente dos demais ou “no interior do paço”. Tal indagação parece demonstrar que Creon sabia mais do que vai dizer em seguida. Se não fosse assim, por que perguntaria sobre a possibilidade de transmitir o que ouviu do deus, não na frente de todos, mas na intimidade 183 Nesse estudo será utilizada basicamente a tradução da peça feita por Trajano Vieira: SÓFOCLES. Édipo Rei. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2007. 229 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho do paço? Édipo, com sua altivez, opta pela informação diante de todos os presentes. Era preciso, segundo Creon, expulsar o miasma, “caçar o réu, pagar com morte o morto” (v. 100). A referência é ao assassino de Laio. O deus recomenda punir o assassino não importando quem fosse. Mas Édipo reconhece que, para um delito antigo, não será fácil encontrar o autor. Então vem uma fala de Creon que é importante ressaltar nesse trabalho: “só se acha o que se caça; o que negligenciamos nos escapa”. (v. 110-1). Édipo inicia, então, sua caçada. Interroga Creon sobre o ocorrido. Laio saiu e não voltou. De seu grupo só um sobreviveu. Depois das invocações e lamentações do coro, Édipo proclama seu edito. Determina que, se alguém souber quem matou Laio que se apresente e diga tudo. Se falar contra si mesmo, será condenado ao exílio, se o assassino foi outro, receberá a recompensa. Mas, se aquele que sabe do assassino se calar e for descoberto, será punido. E Édipo a ele mesmo condena com a fala: “se acaso em meu palácio, consciente, acontecer de recebê-lo, recaia em mim a imprecação que faço”. Para solucionar o problema o coro sugere a presença de Tirésias, o profeta. Édipo já o tinha feito. Tirésias, que está cego, insiste para que tudo fique como está: “Deixa que eu volte. Cada qual sopese o próprio fardo. Crê: será melhor”. (320-1). Porém, Édipo está firme no propósito de descobrir o assassino de Laio e se irrita com o silêncio de Tirésias e o provoca até que ela diga: “Afirmo que és o matador buscado” (v.362). Édipo acusa Tirésias de um complô com Creon. As falas que se seguem de Tirésias a Édipo são fundamentais para o objetivo da análise aqui proposta: “Reclamo o meu poder! Não sou teu servo, sirvo a Apolo, e independo de Creon. Falo, pois meu olhar opaco humilhas: dotado de visão, não vês teu mal, com quem moras, em que lugar habitas. [...] Ninguém conhecerá um desmoronamento pior que o teu. [...] Somos quem somos: te pareço tolo, mas a teus pais alguém bem ponderado”. (v. 410-436). Tirésias expõe o destino de Édipo: Cegueira, 230 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho miséria, morador de terra estrangeira, incestuoso, pai e irmão de seus filhos, marido da mãe, algoz do próprio pai de quem sucedeu no trono. Édipo discute com Creon e a discussão só é interrompida com a chegada de Jocasta que, após ouvir seu marido, tenta tranquilizá-lo. Todavia, as explicações de Jocasta vão desvelando para Édipo o ocorrido. Laio recebeu no passado um oráculo segundo o qual seria morto pela mão de seu filho com Jocasta. Ela conta ainda: “Mas forasteiros – dizem – o mataram, ladrões na tripla interseção de estradas. Quanto ao menino, em seu terceiro dia, Laio amarrou-lhe os pés pelos artelhos, mandou alguém lançá-lo a um monte virgem. Assim frustrou-se Apolo: nem o filho assassinou o pai, nem padeceu o rei – temor maior! – nas mãos do filho, tal qual fixara o vozerio profético. Não te ocupes do nada. Quando um deus tem um desígnio, ele o evidencia” (v. 708- 725). Nesse momento, a fala de Tirésias começa a fazer sentido. Édipo interroga Jocasta e, a cada resposta, tudo se vai desvelando. Onde ocorreu o crime, há quanto tempo, qual o aspecto físico de Laio, com quem viajava. Viajava com cinco e só um se salvou dos ataques do grupo que matou Laio. Édipo fica aterrorizado e pede a presença desse que restou. Antes de sua chegada, Édipo conta sua história a Jocasta. Ele, filho de Políbio de Corinto e de Mérope, dória, um dia foi chamado por um homem de filho putativo. Atormentado procurou Delfos em sigilo. Saiu de lá com a previsão de miséria, dor e desastre, pois faria sexo com sua própria mãe, gerando prole horrível de se ver e ainda seria o algoz do próprio pai. Assustado, Édipo fugiu de Corinto e no caminho chegou ao ponto onde morreu Laio conforme lhe contou Jocasta. Agressões trocadas e Édipo mata o grupo. Só um restou. Era preciso agora que esse que se salvou confirmasse o plural dos assassinos de Laio. Entretanto, quem chega é um mensageiro trazendo a notícia da morte de Políbio de quem Édipo se julgava filho. Édipo, então, é levado pela fala de Jocasta a pensar que teria mesmo matado o próprio pai pela falta que lhe fez. Mas ainda havia a profecia que dizia que dormiria com a mãe e com ela teria 231 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho filhos. O melhor era nunca voltar a Corinto. O mensageiro tenta tranquilizar Édipo ao dizer que ele não era filho de Políbio nem de Mérope, pois o mensageiro havia recebido Édipo de um outro pastor servidor de Laio e o entregara a Políbio que o aceitou porque não podia ter filhos. Édipo pergunta ao mensageiro se havia nele alguma dor, marca talvez, no momento em que foi encontrado. O mensageiro responde: “teus pés dão por si sós, um testemunho”. [...] Livrei teus pés, furados nos extremos”. (v. 1032 e 1035) Apesar dos apelos de Jocasta e do servo de Laio, Édipo insiste na investigação. Descobre quem sempre foi: assassino e incestuoso. A profecia se cumpriu. Jocasta se mata e Édipo diante do corpo de sua mãe e esposa cega os próprio olhos com o fecho das vestes dela. Roga a Creon que cuide de suas filhas – Antígona e Ismena - e que seja ele, Édipo, encaminhado ao exílio para que volte ao monte onde deveria ter sido abandonado, monte que deveria ter sido seu sepulcro para que se cumpra agora, com os pais mortos, o que quiseram em vida. É o coro que termina a peça: “(...) Atento ao dia final, homem nenhum afirme: eu sou feliz!, até transpor – sem nunca ter sofrido – o umbral da morte”. (v. 1528-1530). 4. A verdade Édipo queria saber sobre sua identidade. Inqueriu os que poderiam revelar-lhe, não obstante os apelos para que parasse com a investigação e esquecesse o mal que o incomodava. Não havia mais como voltar. Édipo queria saber sua origem, queria saber quem era. Acaba por descobrir. É interessante observar que a descoberta vem após um inquérito. Porém, ao defrontar-se com sua identidade, Édipo vai dizer: “sou triplo equívoco”. Todavia, Édipo não foi um equivoco, Édipo foi o assassino de Laio e o incestuoso que se deitou com a mãe e dela teve quatro filhos. Viveu um equívoco, viveu uma farsa, um engodo. Entretanto, sua história não é a história de um equívoco, mas de uma fuga, de uma negação. Decifrador 232 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho do enigma da Esfinge, não decifrou seu próprio enigma. Fugiu para encontrar-se. É que o que tememos já sempre habita em nós. Só fugimos para encontrar, mais à frente, o que nos assusta. Melhor não fugir e não despender energias na fuga, mas no enfrentamento. As marcas nos pés de Édipo, seu próprio nome já lhe diziam quem era. Há sempre em nós algo que nos diz quem somos mesmo que não queiramos ver. Um dia pode ficar insuportável manter-se no engodo, na farsa e, então, o que sempre esteve ali se mostra. Surpresos, percebemos nossa cegueira. Édipo que se manteve cego para sua identidade, ao encará-la diante do corpo morto de Jocasta que se suicidara, prefere se manter na cegueira ferindo os próprios olhos como se a escuridão da cegueira física pudesse mantê-lo na escuridão que viveu até ali. “Ele arrancou das vestes de Jocasta os fechos de ouro com que se adornava, e, erguendo as mãos, o circulo dos olhos golpeou” (v. 1268 – 1271). Queria também trancar os ouvidos, se soubesse como. Queria, talvez, voltar ao escuro e ao silêncio. Impossível. O que era se desvelou. Para o processo de desencobrimento, afirma Heidegger, “os gregos possuíam a palavra aletheia. Os romanos a traduziram por veritas. Nós dizemos ‘verdade’ e a entendemos geralmente como o correto de uma representação”. E Heidegger questiona: “Onde nos perdemos”? O texto no qual se encontra essa afirmação e questionamento de Heidegger trata da questão da técnica moderna (Heidegger, 2009, p. 16). Porém, um outro texto que é resultado de conferências, diversas vezes proferidas por Heidegger desde 1930 e cuja primeira edição data de 1943, trata justamente da “essência da verdade” e será a base para o estudo aqui proposto184. A tentativa agora não é expor a interpretação heideggeriana de 184 Para o estudo desse texto de Heidegger será utilizada a tradução de Ernildo Stein que consta na Coleção Os Pensadores de 1973: HEIDEGGER. Martin. Sobre a essência da verdade. In: Coleção Os Pensadores. vl. XLV Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril, 1973. pp. 325 – 343. Algumas vezes recorreu-se à tradução para o espanhol: MARTIN, Heidegger. De la esencia de la verdad. Versión de Helena Cortés y Arturo Leyte. En: Hitos. Madrid: Alianza, 2000. p. 151-171. Disponível em: www.heideggeriana.com.ar. Acessado em: 20.06.2012. 233 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Édipo, mas tentar apresentar as ideias de Heidegger contidas nesse texto sobre a essência da verdade para buscar compreender a verdade de Édipo na peça de Sófocles. E Heidegger inicia o texto afirmando que a essência da verdade não se preocupa com as “várias verdades” como a verdade da experiência da vida, da ação, de uma reflexão técnica, da pesquisa científica ou mesmo a verdade da criação artística, da filosofia e da fé. Heidegger não vai tratar das evidências do senso comum que até nos dão certa medida e segurança em meio à confusão. “Trata-se da essência da verdade” (Heidegger, 1973, p. 331), daquilo que unicamente caracteriza toda verdade. De acordo com o conceito ordinário de verdade, explica Heidegger, são verdadeiros tanto a alegria quanto o ouro e – ainda e antes de tudo – nossas enunciações. A alegria verdadeira é pura, real. Também o ouro verdadeiro é o ouro real. Distinguimos o ouro falso do verdadeiro. Entretanto, ambos são algo real, mas o ouro falso só é ouro na ‘aparência’. O ouro verdadeiro é ouro ‘autêntico’, “é aquele ouro real, cuja realidade consiste na concordância com aquilo que ‘propriamente’, prévia e constantemente entendemos como ouro”. A noção prevalente aqui é a de concordância, da mesma forma ocorre com as enunciações verdadeiras ou falsas, porém, neste caso, que neste caso o que está de acordo é a proposição. “Uma enunciação é verdadeira quando aquilo que ela designa e exprime está conforme com a coisa sobre a qual se pronuncia” (Heidegger, 1973, p. 331). Há, portanto, no conceito corrente de verdade um duplo caráter de concordância: entre uma coisa e o que dela previamente se presume e entre o que é significado pela enunciação e a coisa. O primeiro remete à definição: Veritas est adaequatio rei et intellectus (verdade é a adequação da coisa com o conhecimento). O segundo, à outra: Veritas est adaequatio intellectus ad rem (verdade é a adequação do conhecimento à coisa). Ambas são definições tradicionais do conceito de verdade como conformidade e não resultam apenas da conversão de uma à outra, pois 234 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho em cada uma delas ‘intellectus’ e ‘res’ são pensados de maneira diferente. (Heidegger, 1973, p. 332). É preciso, explica Heidegger, conduzir a expressão corrente do conceito de verdade a sua origem medieval, portanto, um retorno anterior a Kant cujo pensamento só será possível a partir da essência humana enquanto subjetividade. A verdade como adaequatio rei ad intellectum – adequação da coisa ao intelecto - decorre da fé cristã e da teologia. As coisas, como criaturas singulares (ens creatum), em sua essência e existência correspondem à ideia previamente concebida pelo intellectus divinus, ou seja, pelo espírito de Deus. Em outras palavras, a coisa singularmente considerada em sua essência e existência é previamente concebida por Deus e, dessa forma, adequa-se a essa ideia divina e por isso é verdadeira. É verdadeira porque está de acordo com o espírito divino. Entretanto, o intelecto humano como faculdade concedida por Deus também é por Ele criado, também é ens creatum e deve adequar-se à ideia divina. E como isso se dá? O intelecto humano está conforme o espírito divino “porque realiza a adequação do que pensa com a coisa” a qual, por ser criada por Deus, está conforme sua ideia. É possível compreender, agora, porque Heidegger afirma que numa e outra definição tradicional da verdade res e intellectus são pensados diferentemente. A veritas enquanto adaequatio rei (creandae) ad intellectum (divinum) garante a veritas enquanto adaequatio intllectus (humani) ad rem (creatam) Veritas significa por toda parte e essencialmente a convenientia e a concordância dos entes entre si que, por sua vez, se fundam sobre a concordância das criaturas com o criador, ‘harmonia’ determinada pela ordem da criação (Heidegger, 1973, p. 332). A ordem, entretanto, também pode ser representada de modo geral e indeterminado, explica Heidegger, como ordem do mundo. Trata235 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho se da ordem de todas as coisas pelo espírito, pelo intelecto que, afastada a noção de criação, é razão universal. O intelecto dá a si mesmo sua lei e postula a inteligibilidade imediata das articulações de seu processo. Agora é o homem o portador e realizador do intellectus, já que foi afastada a noção teológica. “Paralelamente, a verdade da coisa significa sempre o acordo da coisa dada com seu conceito essencial (sua essência), tal como o ‘espírito’ (a razão) o concebe”. Essa forma de conceber a essência da verdade admite que a verdade tenha um contrário, ou seja, que há a não verdade. Não verdade, portanto, não é verdade e fica excluída da essência da verdade e “pode ser negligenciada quando se trata de apreender a pura essência da verdade” (Heidegger, 1973, p. 332). Pois bem, o conceito ordinário de verdade está ligado à noção de concordância de uma enunciação com seu objeto. Todavia, concordância se diz em diversos sentidos. Heidegger exemplifica. Há concordância entre duas moedas de cinco marcos porque elas são iguais por um aspecto, entretanto também há concordância quando se diz de uma delas: a moeda é redonda. No primeiro caso, trata-se de concordância entre uma coisa e outra, no segundo, entre uma enunciação e uma coisa. Neste último caso os dois elementos da relação são diferentes pelo aspecto. A moeda é um metal e a enunciação de maneira alguma é um material. Diz-se ainda a respeito da moeda que ela permite comprar um objeto e a enunciação novamente concorda com a coisa (moeda), mas a enunciação não é meio de pagamento. Tanto a enunciação, ‘a moeda é redonda’, quanto a outra, ‘a moeda pode comprar um objeto’, adequam-se à moeda de cinco marcos. E o que significa essa adequação? A essência da adequação, afirma Heidegger, se determina “pela natureza da relação que reina entre a enunciação e a coisa” (Heidegger, 1973, p. 333). É preciso determinar a natureza e o grau dessa adequação. “A enunciação sobre a moeda se relaciona com a moeda enquanto a apresenta (grifo da articulista) e diz dela o que ela é sob o ponto de vista principal” (Heidegger, 1973, p. 333), ou seja, exprime a moeda assim como ela é. “O ‘assim como’ se refere à apresentação e ao que é 236 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho apresentado. Apresentar significa “o fato de deixar surgir a coisa diante de nós enquanto objeto” (Heidegger, 1973, p. 333). O objeto se opõe a nós e, assim se opondo, deve cobrir um âmbito aberto para nosso encontro, mas, ao mesmo tempo, permanecer a coisa em si mesma e manifestada em sua estabilidade. A aparição da coisa ocorre nesse âmbito aberto. Essa abertura não foi criada pela enunciação apresentativa, mas é assumida pelo apresentar como campo de relação. A relação da enunciação apresentativa com a coisa apresentada é a consumação dessa referência, dessa conexão que se realiza originariamente e cada vez, como o desencadear de um comportamento. “Todo comportamento, porém, se caracteriza pelo fato de, estabelecido no seio do aberto, manter-se referido àquilo que é manifesto enquanto tal”185. No pensamento ocidental o que está manifesto foi desde cedo ‘aquilo que está presente’ e há muito tempo chamado “ente” (Heidegger, 1973, p. 334). E continua Heidegger: Toda a relação de abertura, pela qual se instaura a abertura para algo, é um comportamento. A abertura que o homem mantém se diferencia conforme a natureza do ente e o modo do comportamento. Todo trabalho e toda realização, toda ação e toda previsão, se mantém na abertura de um âmbito aberto no seio do qual o ente se põe propriamente e se torna suscetível de ser expresso naquilo que é e como é. Isso somente acontece quando o ente mesmo se propõe, na enunciação que o apresenta, de tal maneira que esta enunciação se submete à ordem de exprimir o ente assim como é. Na medida em que a enunciação obedece a tal ordem, ela se conforma ao ente. O dizer que se submete a tal ordem é conforme (verdadeiro). O que assim é dito é conforme (verdadeiro). (Heidegger, 1973, p. 334). 185 Na obra em traduzida para o espanhol já citada se pode ler: comportarse es detenerse, mantenerse en el claro de la presencia de lo que está presente”. MARTIN, Heidegger. De la esencia de la verdad. p. 6 237 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Então, na enunciação que apresenta algo é este algo que se propõe e ela, a enunciação, se submete à ordem de exprimir o ente assim como é. Obedecendo a tal ordem, a enunciação se conforma ao ente. Submetido a tal ordem o dizer é conforme, é verdadeiro. É da abertura do comportamento que a enunciação recebe sua conformidade. Somente através da abertura do comportamento é que “o que é manifesto pode tornar-se, de maneira geral, a medida diretora de uma apresentação adequada”. Em outras palavras: o que torna possível a conformidade é a abertura que o comportamento mantém e por isso deve ser considerada a essência da verdade. Isso faz cair por terra a tradicional atribuição da verdade à enunciação. Porém, explica Heidegger, isso ainda não resolve plenamente a questão da essência da verdade, pois restam outras indagações sobre o fundamento da abertura do comportamento, de onde vem a ordem para que a enunciação representativa se oriente para o objeto e se ponha de acordo com ele, o motivo desse acordo ser co-determinante da essência da verdade. O objeto se opõe a nós e, assim, cobre um âmbito aberto no qual se dá o nosso encontro, mas precisamos nos ter instaurado como livres dentro desse aberto para aquilo que nele se manifesta e que vincula toda apresentação. Liberar-se para uma medida que vincula somente é possível se se está livre para aquilo que está manifesto no seio do aberto. Maneira semelhante de ser livre se refere à essência até agora incompreendida da liberdade. A abertura que mantém o comportamento, aquilo que torna intrinsecamente possível a conformidade, se funda na liberdade. A essência da verdade é a liberdade (Heidegger, 1973, pp. 334-335). Afirmar que a essência da verdade é a liberdade pode levar a diversas objeções até mesmo porque poderia entregar a verdade ao 238 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho arbítrio humano. De fato, afirma Heidegger, ao homem estão atribuídas todas as formas de não verdade como a falsidade, a hipocrisia, o logro e a simulação, o que poderia levar à aceitação da verdade como algo “fora e acima” do homem. A hostilidade contra a tese formulada por Heidegger está, segundo ele, apoiada em diversos preconceitos, entre os quais, a afirmação de que a liberdade é uma propriedade do homem. Todavia, se estivermos disposto à transformação do pensamento, esses preconceitos precisarão ser revistos e revirados. “A reflexão sobre o laço essencial entre a verdade e a liberdade nos leva a perseguir o problema da essência do homem [...]” (Heidegger, 1973, p. 335). Reafirme-se: a liberdade é a essência da verdade. É “liberdade daquilo que é manifesto no seio do aberto”, liberdad em face do que se revela no seio do aberto. Liberdade é o que “deixa que cada ente seja o ente que é”. Dessa forma, a liberdade se revela então como o “deixar ser o ente”. Esse “deixar-ser” do ente não significa deixar no sentido de omissão (como abster-se de algo) nem indiferença (não se incomodar com algo). O que Heidegger quer dizer com “deixar-ser o ente” tem o sentido de entregar-se ao ente, “entregar-se ao aberto e à sua abertura, na qual todo ente entra e permanece, e que cada ente traz, por assim dizer, consigo. Este aberto foi concebido pelo pensamento ocidental, desde o seu começo, como tà aléthea, o desvelado” (Heidegger, 1973, p. 336). Esse é um momento fundamental do texto para que se possa penetrar no pensamento de Heidegger e tentar compreender o que ele expõe como verdade. Heidegger refere-se à tradução de alethéia como desvelamento não apenas em razão da literalidade, diz ele, mas porque ela nos leva a repensar a noção de verdade como conformidade da enunciação que é a forma corrente de verdade. Nos leva a pensar a verdade no sentido, “ainda incompreendido, do caráter de ser desvelado e do desvelamento do ente”. E continua Heidegger: O entregar-se ao caráter de ser desvelado não quer dizer perderse nele, mas se desdobra (grifo da articulista) num recuo diante 239 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho do ente a fim de que este se manifeste naquilo que é e como é, de tal maneira que a adequação apresentativa dele receba a medida. Semelhante deixar-se significa que nós nos expomos ao ente enquanto tal e que transferimos para o aberto todo o nosso comportamento. O deixar-se, isto é, a liberdade, é em si mesmo, exposição ao ente, isto é, ek-sistente. A essência da liberdade, entrevista à luz da essência da verdade, aparece como ex-posição ao ente enquanto ele tem o caráter de desvelado (Heidegger, 1973, p. 336). Dessa forma, as ideias expostas estão em desacordo com alguns preconceitos relativos à noção de liberdade. A liberdade não é aqui o que o senso comum constantemente diz. A liberdade não é podermos oscilar em nossas escolhas optando ora por um extremo, ora por outro. Não é ausência de constrangimento relativa às nossas ações ou inações, não é também disponibilidade para uma exigência ou uma necessidade. Em outras palavras a liberdade, como essência da verdade, não significa fazer opções sem constrangimentos. Antes da “liberdade negativa” ou “liberdade positiva”, “a liberdade é o abandono ao desvelamento do ente como tal”. O liberar-se, o entregar-se à abertura do ente sem se perder é o estar livre para aquilo que está manifesto no seio do aberto desdobrandose, ao mesmo tempo, num recuo diante do ente para que ele se manifeste naquilo que é e como é de tal forma que a apresentação possa receber do ente a adequação, ou seja, o ente torna-se a medida diretora de uma apresentação adequada (Heidegger, 1973, p. 336). Parece possível compreender a seguinte afirmação de Heidegger: “no ser-aí se conserva para o homem o fundamento essencial, tão longamente não fundado que lhe permite ek-sistir” (Heidegger, 1973, p. 336). No aberto para o ente e no aberto do ente o homem ek-siste. O homem ek-siste na abertura. Não se trata de existência como subsistência, como esforço existencial – moral, por exemplo. “A ek-sistência enraizada na 240 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho verdade como liberdade é a ex-posição ao caráter desvelado do ente como tal” (Heidegger, 1973, pp. 336-337). A ek-sistência do homem historial começa quando um pensador é tocado pelo desvelamento e pergunta o que é o ente. “Nessa pergunta o ente é pela primeira vez experimentado em seu desvelamento”. O começo da história do Ocidente entende Heidegger, e essa primeira pergunta, em outras palavras, o desvelamento inicial do ente em sua totalidade, são uma e mesma coisa. O que Heidegger expõe no texto ora analisado, não é a verdade como a conformidade de uma proposição enunciada por um sujeito em relação a determinado objeto e que vale não se sabe bem em que âmbito (ou por quê). Como se disse no início desse capítulo com as palavras do próprio Heidegger, o que ele está expondo não é a verdade disso ou daquilo, mas “a verdade como desvelamento do ente graças ao qual se realiza uma abertura”. Em seu âmbito (da abertura) se desenvolve, expondo-se, todo o comportamento, toda tomada de posição do homem. É por isso que o homem é ao modo da ek-sistência”. (Heidegger, 1973, p. 337). Todavia, como a essência da verdade é a liberdade, “o homem historial pode também, deixando que o ente seja, (grifo da articulista) não deixá-lo-ser naquilo que ele é e assim como é. O ente, então, é encoberto e dissimulado”. Nesse caso, então, o que domina é a aparência e o que surge é a não-essência da verdade. O homem só ek-siste enquanto possuído pela liberdade ek-sistente como essência da verdade. A liberdade, então, não é uma propriedade do homem, mas é o homem que é possuído pela liberdade. A não-essência da verdade não surge, portanto, da incapacidade ou negligência do homem, pois verdade e não-verdade se co-pertencem o que torna possível refletir sobre a nãoessência na essência da verdade. Como o texto de Heidegger ora em análise demonstra, é infundada a concepção tradicional de verdade como conformidade e, portanto, a “não-verdade também não pode ser igualada com a não-conformidade do juízo” (Heidegger, 1973, pp. 334-338). 241 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Afirma Heidegger já como uma retomada do que foi dito: A essência da verdade se desvelou como liberdade”. Esta é o deixar-se ek-sistente que desvela o ente. Todo comportamento aberto se movimenta no deixar-se do ente e se relaciona com este ou aquele ente em particular. A liberdade já colocou previamente o comportamento em harmonia com o ente em sua totalidade , na medida em que ela (diga-se: a liberdade) é o abandono ao desvelamento do ente em sua totalidade e enquanto tal (Heidegger, 1973, p. 338). Todavia, a liberdade como “abandono ao desvelamento do ente em sua totalidade” não é uma disposição de humor ou um estado de alma, porquanto o homem está sempre abandonado a essa disposição afetiva. O homem, como já foi dito, só ek-siste enquanto possuído pela liberdade ek-sistente como essência da verdade. Quanto ao grau de conhecimento do ente em sua totalidade, explica Heidegger, não coincide com a soma dos entes já realmente conhecidos e nem mesmo o que diz a ciência significa a revelação do ente em sua totalidade. O nivelamento simplista do tudo já conhecido é que torna superficial a revelação do ente, que faz a revelação do ente desaparecer “na aparente nulidade daquilo que nem mesmo é mais indiferente, mas está apenas esquecido” (Heidegger, 1973, p. 338). A essência da verdade e a não-essência da verdade se copertencem. “A mais própria e mais autêntica não-verdade pertence à essência da verdade”. E o que isso significa? Pensada a verdade como desvelamento do ente em sua totalidade, a não-verdade é o velamento do ente em sua totalidade, mas não como uma consequência secundária do conhecimento sempre parcelado do ente. A não-verdade é dissimulação. Repita-se: a essência da verdade é a liberdade, é o deixar-se ek-sistente que desvela o ente, é o abandono ao desvelamento do ente em sua totalidade 242 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho e enquanto tal. Pois bem, no deixar-se desvelador o que está velado aparece primeiro. “A não-essência original da verdade é o mistério”. Ela “visa aqui à essência pré-existente” (Heidegger, 1973, p. 339). Todo comportamento se funda na liberdade enquanto deixar-ser do ente, porém desvelando o ente já o dissimula. É assim que se mantém a relação da liberdade como essência da verdade com a não-verdade, com a dissimulação, com o mistério. Entretanto, o que ocorre é que “esta relação com a dissimulação se esconde a si mesma nessa relação enquanto dá primazia a um esquecimento do mistério” e nele – no esquecimento – desaparece. O homem, então, em seu relacionamento com o ente, limitase ao seu caráter já revelado, limita-se à realidade corrente. E, mesmo se o homem decide transformar essa situação, permanece no esquecimento, já que procura os parâmetros para tal transformação nos “estreitos limites de seus projetos e necessidades correntes. Instalar-se na vida corrente é, entretanto, em si mesmo o não deixar imperar a dissimulação do que está velado” (Heidegger, 1973, p. 340). É o esquecimento do mistério. O homem perde-se no que Heidegger chama de vida corrente. Esquece-se do mistério ao se limitar ao relacionamento apenas com o revelado desse ou daquele ente. Não que, na vida corrente, não haja obscuridades, enigmas, questões não resolvidas e coisas duvidosas, afirma Heidegger. “Mas todas essas questões, que não surgem de nenhuma inquietude e estão seguras de si mesmas, são apenas transições e situações intermediárias nos movimentos da vida corrente e, portanto, inessenciais” (Heidegger, 1973, p. 340). O esquecimento do mistério permite que o homem permaneça distraído com suas criações. O homem toma a si mesmo como medida de todos os entes, e assim a humanidade, através daquilo que lhe é acessível na vida corrente, na ilusão de seu conhecimento, insiste em estar segura. Entretanto, apesar do esquecimento, o mistério reina como essência esquecida. O insistente dirigir-se ao que é corrente afasta o homem do mistério e resulta da agitação inquieta do ser-aí, do vaivém do 243 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho homem entre um objeto da vida cotidiana e outro. Esse vaivém é o errar. “A errância participa da constituição íntima do ser-aí à qual o homem historial está abandonado. [...] A errância é a anti-essência fundamental que se opõe à essência da verdade” (Heidegger, 1973, p. 340). Novamente: o objeto se opõe a nós e, assim, cobre um âmbito aberto no qual se dá o nosso encontro, mas precisamos nos ter instaurado como livres dentro desse aberto para aquilo que nele se manifesta e que vincula toda apresentação. A errância é o espaço de jogo daquele vaivém, do vaivém do homem entre um objeto da vida cotidiana e outro. Na errância o homem permanece no desvelado do ente, no esquecimento do mistério. É assim que “a errância é o cenário e fundamento do erro. [...] Todo o comportamento possui sua maneira de errar, correspondente à abertura que mantém e a sua relação com o ente em sua totalidade” (Heidegger, 1973, p. 341). A não conformidade do juízo e a falsidade do conhecimento são apenas uma das maneiras de errar. O erro é tanto o mais comum engano como até o desgarramento e o perder-se de nossas atitudes e decisões. A errância domina o homem enquanto o leva a se desgarrar. Mas pelo desgarramento a errância contribui também para fazer nascer esta possibilidade que o homem pode tirar da ek-sistência e que consiste em não se deixar levar pelo desgarramento. O homem não sucumbe no desgarramento se for capaz de provar a errância enquanto tal e não desconhecer o mistério do ser-aí (Heidegger, 1973, p. 341). A errância sempre ameaça o homem de alguma maneira. 244 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Conclusão Perdido na vida corrente, no esquecimento do mistério limitando-se ao relacionamento apenas com o que é revelado, distraído com suas criações, no nivelamento do já conhecido, na ilusão do conhecimento o homem perde-se, mas está seguro de si mesmo. Em outras palavras o homem vive um simulacro186, vive na indigência. E não foi isso que fez Édipo? Sua fuga de Corinto não foi à insistência do esquecimento do mistério? Porém, ao se abrir para o aberto, ao inquerir sobre sua identidade ela se desvelou. Édipo não foi um joguete dos deuses e nós, se somos joguetes, somos de nossa própria ilusão que nos mantém seguros no esquecimento do mistério, no corre-corre diário que nos leva a lugar nenhum. Todavia, vez por outra um oráculo, como um relâmpago que faz claridade por alguns instantes, vem nos dar uma pista do caminho para a saída do engodo, do simulacro. Se não aproveitarmos, ficaremos mais tempo na escuridão. Enfim, vivemos uma vida interina como no poema de Anna Akhmátova. Alguém ocupa o nosso lugar, usa o nosso nome e nós vivemos apenas com nosso apelido com o qual fazemos tudo. “Mas, às vezes, o vento brincalhão da primavera, ou certas combinações de palavras em um livro, ou o sorriso de alguém suscita em mim, de repente, essa vida que nunca aconteceu” (Akhmátova, 2009, p. 126). 186 Para a compreensão do simulacro que vivemos remete-se o leitor para outro texto em vias de publicação: Matrix como a essência da técnica segundo Heidegger. GUERRA FILHO, Willis Santiago. AQUINO, Márcia Regina Pitta. 245 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências AKHMÁTOVA, Anna. Antologia poética. Trad. Lauro Machado Coelho. Porto Alegre: L&PM, 2009. ARISTÓTELES. Poética. In: Trad. de Eudoro de Sousa. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1973. HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In: Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Maria Sá Cavalcante Schuback. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. In: Coleção Os pensadores. Trad. Ernildo Stein. 1. ed. São Paulo: Abril, 1973. _______________. Sobre a essência da verdade. In: Coleção Os pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril, 1973. _______________. De la esencia de la verdad. Versión de Helena Cortés y Arturo Leyte. En: Hitos. Madrid: Alianza, 2000. Disponível em: www. heideggeriana.com.ar. Acessado em: 20.06.2012. PEREIRA, Maria Helena da Rosa. Introdução e Notas. In: Sófocles, Antígona. Trad. Maria Helena da rosa Pereira. 9. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian. ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Sófocles e Antígona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. SÓFOCLES. Antígona. Introdução, versão do grego e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010. 246 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho _______________. Perspectiva, 2007. Édipo Rei. Trad. Trajano Vieira. São Paulo; SOUSA, Eudoro. Uma leitura da Antígona. Brasília: Universidade de Brasília, 1978. VERNANT, Jean-Pierre. Tensões e ambiguidades na Tragédia Grega. In: Vernant, Jean-Pierre; Vidal-Naquet, Mito e tragédia na Grécia Antiga. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2008. 247 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 11 Divindade no bbb: mito ou realidade? Roberta Lopes da Cruz Antonio Mestranda em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E apesar da cibernética Ser irreversível O homem regride ao seu mais baixo nível (Canção “Máquina de Fazer Doido” - Accioly Neto) 248 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Introdução Arte imita vida. Vida imita arte187. Ceticismos à parte, o mundo vive um momento de confusão mental entre o significados de fantasia e realidade. Diversos dos rituais praticados inconscientemente na atualidade encontram amparo em ritos mitológicos. Entretanto, o automatismo empregado em tais atitudes rompe seus laços com o simbolismo originário, acarretando sua utilização deformada188. Há de se avaliar a qualidade dos prazeres disponibilizados pelos meios de comunicação de massa à população. Para tanto, direcionase mencionada análise ao conteúdo disponibilizado na televisão, especificamente àquele exibido no reality show Big Brother Brasil, traçando um paralelo entre seus rituais, sobretudo festivos, e o mito grego relacionado ao deus Dioniso (expresso na Obra “As bacantes”), dada a incrível semelhança, por vezes proposital, observada entre ambos. A mensagem trazida pelo programa retrata, de forma explícita, o retorno aos primórdios da vida em comunidades organizadas, dentro de um espaço geograficamente delimitado, criando um universo paralelo imbuído na dificuldade humana de interação e de organização. Para tanto, apoia-se em um discurso extremamente publicitário que se encaixa perfeitamente aos padrões do modelo capitalista. Utiliza imagens que “vendem” (dada a abrangência de sua repercussão social) e abdica da 187 “Após o surgimento da filosofia – pelo menos, com essa denominação - na Grécia antiga, ela iria se mesclar com o senso prático, político-jurídico mais eficiente, do antigos romanos e, posteriormente, com uma versão (ou versões) muito particular(es) da religião monoteísta judaica, como é o cristianismo, resultando na afirmação da capacidade humana de se impor ao mundo, mais do que apenas contemplá-lo e, por diversas formas, ‘imitá-lo’” (GUERRA FILHO, 2010. p.63). Embora seja da essência da filosofia a imitação da realidade, no caso ora analisado encontraremos situação equivalente, porém inversamente proporcional, quando a realidade resolve imitar a filosofia. 188 Nessa linha de raciocínio, Joseph Campbell: “As virtudes do passado são os vícios de hoje. E muito do que se julgava serem os vícios do passado são as necessidades de hoje. A ordem moral tem de se harmonizar com as necessidades morais da vida real, no tempo, aqui e agora. Eis aí o que não estamos fazendo [...] Voltando atrás, você abre mão de sua sincronia com a história” (2011, p.13). 249 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho observância de preceitos éticos básicos amplamente difundidos no Estado de Direito, abalando sua organização e, consequentemente, a própria estruturação da sociedade. O debate proposto extrapola a discussão do conteúdo educativo do programa, que, aliás, inexiste (afinal se fosse esta a consideração, boa parte da programação televisiva ensejaria profunda análise crítica), e repousa na gradativa afronta a valores éticos e morais que representa, nos moldes em que é exibido. 1. A presença do mito na “realidade” imagética do “bbb” Na cidade de Tebas, na Grécia Antiga, parcela da população, sob o crivo do rei Penteu, repudiava o culto ao deus Dioniso, famoso por mobilizar diversas mulheres até as florestas em busca do quase sagrado “sulco da vinha”. Dioniso (ou Baco, na tradição romana) era o deus do vinho, da vinicultura e do frenesi místico. De seus rituais participavam, inicialmente, apenas mulheres; posteriormente, homens juntaram-se às celebrações189. Neste estudo Dioniso representa o dinheiro e a fama. O “deusridente” que era cultuado pelas Mênades na Grécia Antiga, no mundo teocêntrico, dá lugar, hoje, ao saboroso poder proporcionado pela fama e pelo dinheiro, na realidade capitalista. Tais prazeres, entretanto, podem provocar consequências extremamente indigestas190. Na ambiciosa perseguição destas conquistas, muitos se perdem e ficam pelo caminho. Isto porque, quando o assunto é religião, poder ou dinheiro há tênue linha que separa a dedicação do fanatismo. Comportamentalmente as distinções são mais evidentes, pois a conduta dedicada, persistente, requer consciência e esclarecimento; ao 189 190 Como foi o caso de Cadmo e Tirésias. “Aprenderá assim que o filho de Zeus, Dioniso, sendo para os homens o mais benigno dos deuses, também é o mais terrível” (EURÍPIDES, 2011. p.48). 250 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho passo que, quando as atitudes atingem o nível da fixação, do fanatismo, os atos praticados decorrem do acionamento de impulsos inconscientes, eivados de irracionalidade191. Evidencia-se, assim, o comportamento alucinado de participantes em busca de um prêmio, comparando-o à insanidade experimentada pelas Mênades durante os rituais báquicos. Destaca-se o raciocínio de Jean Pierre Vernant, aposto à tradução de “As Bacantes”: “Dioniso está presente quando o mundo estável dos objetos familiares, das figuras tranquilizadoras, oscila para se tornar um mundo de fantasmagorias onde o ilusório, o impossível, o absurdo tornam-se realidade” (2010, p.4). O vinho, elemento-chave, era utilizado para estimular o “encontro com o divino”, a imersão em uma espécie de transe essencial à prática do ritual. Nas festas do BBB vale tudo: toda a sorte de bebidas pode ser encontrada, variando conforme o tema “da festa”. Isto porque o foco é a deturpação da mente, a perda da capacidade de julgamento, o comprometimento da racionalidade. Não há espaço para questionamentos, de modo que, talvez, mal saibam os brothers o motivo pelo qual consomem altas doses de bebidas alcoólicas: o que importa é a fuga da realidade e o ganho da confiança necessária para admitir tal exposição da intimidade. Diante do despreparo emocional para a experiência, utiliza-se de artifício mecânico192 que auxilia o ser na capacidade de desmascararse e apresentar sua essência, para si e para o mundo, manifestando suas vontades legítimas193. Joseph Campbell, acerca da presença das drogas 191 Nos comentários tecidos por Eudoro de Sousa, ao final da obra traduzida, este faz menção a Ruth Benedict e transcreve trechos de sua obra “Patterns of Culture”: “todos nós, vezes sem conta, procedemos em completa contradição com desejos e impulsos que emergem do organismo biológico, e que, ‘sendo os valores imagens formulando compromissos de ação, positivos ou negativos, um conjunto de prescrições ou proscrições ordenadas hierarquicamente’, sem eles, mas só sem eles, é que a vida humana se poderia tornar numa ‘sequência de reações a estímulos inconfigurados’ (p.47). Valores culturais ‘restringem ou canalizam impulsos, em termos daquilo que um grupo definiu como bens mais latos e duradouros’(ibid)” (EURÍPIDES, 2011. p.131). 192 “E sem vinho amor não existe; prazer algum aos homens resta” (EURÍPIDES, 2011. p.45). 193 Ousa-se, neste ponto, ampliar a interpretação a toda a sociedade: cada vez mais cedo jovens iniciam o consumo de bebidas alcoólicas a fim de adquirir a necessária coragem de relacionarem-se, uns com os outros, em consequência do individualismo provocado pela globalizada sociedade de consumo. 251 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho (lato sensu) nos processos de imersão, desordenadamente ingeridas, esclarece que: A experiência mística mecanicamente induzida é o que temos aí. Tenho assistido a muitos congressos de psicologia que lidam com a grande questão da diferença entre a experiência mística e o colapso psicológico. A diferença é que aquele que entra em colapso imerge nas águas em que o místico nada. Você precisa estar preparado para essa experiência (2011, p.14). As práticas ritualísticas exploradas pelo programa agradam aos telespectadores e confundem o juízo dos participantes, que veem-se obrigados a absorver tais rituais. Agem os telespectadores como voyeurs, sedentos de experiências intensas e selvagens, cada vez mais incomuns na sociedade de massa. O jornalista André Rittes, a respeito dos espetáculos televisivos argumenta: Esses são os prazeres dos homens pós-modernos, embalados pelas ondas da tevê que mostram a felicidade, o amor, o próprio prazer e o sexo, além de muitas outras coisas essenciais, embrulhadas na embalagem brilhante do capitalismo selvagem, que cumpre o seu destino traduzido nas imagens daquilo que todos gostaríamos de ser, mas que ainda estamos muito longe de conseguir. (2000, p.24). O consumo de drogas em cerimônias ritualísticas é milenar, mas a busca deste artifício no “simulacro de realidade” experimentado pelos participantes – desesperados na busca de um signo e um caminho – ao invés de auxiliar-lhes, torna-se um grande desastre. A verdade é que não há verdades nem respostas. O realityshow, de real, nada tem. Aproxima-se mais do mito do que da realidade, 252 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho afinal os participantes são denominados “heróis”; líderes são eleitos semanalmente; um “oráculo-virtual” (consequências da era digital) questiona-lhes atitudes e dá as regras do jogo, indicando as regras de sobrevivência e anunciando as mortes (eliminações) no desenrolar da trama; participantes simbolicamente “devoram-se” uns aos outros, em uma inescrupulosa carnificina imagética em busca da fama e do dinheiro194. Tal é a irracionalidade proposta pelo programa que valores éticos são destruídos, deturpados, sutilmente transmutados em outros absolutamente estranhos à nossa comunidade. Enquanto “espiamos” nos são entubados novos princípios e práticas sociais e, a cada episódio, digerimos lentamente a assimilação de uma perspectiva de sociedade do caos, completamente desorganizada e violadora de regras ditas invioláveis195. A repercussão é imensa, dada a veiculação do programa no horário nobre de uma das maiores emissoras de rede aberta do país196. A questão que se coloca não se destina à aferição da moralidade do Big Brother Brasil, porquanto em uma sociedade democrática primase pela livre manifestação do pensamento e pela liberdade de imprensa. O que preocupa é o impacto e a influência dos meios de comunicação de massa nos direitos e garantias constitucionalmente protegidos, isto é, até que ponto os preceitos instituídos pelo programa afetam e comprometem nosso Estado. A título de exemplificação, menciona-se a hipótese de estupro, aventada na última edição do reality show. Por 194 Anuncia Eudoro de Sousa, na tradução de “As bacantes”, que “a moral das Bacantes consiste em evidenciar o alto preço que pagamos por desdenhar das exigências que a diacosmese dionisíaca impõe ao espírito humano [...]” (EURÍPIDES, 2011. p.13). 195 Ora, no dia seguinte, o assunto mais comentado em escolas, universidades e empresas não será a prevalência dos direitos fundamentais no Estado de Direito, mas o “porre” que determinado participante tomou na festa e os absurdos por ele cometidos em consequência dessa situação (que, ao menos, deveria ser vista como) vexatória. 196 Cumulado ao fato de que, no Brasil, 97,1% das residências possuem televisão. Os dados são do Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel), da Eletrobrás, em pesquisa realizada no ano de 2007 sobre posse de equipamentos e hábitos de consumo de energia, publicada no sítio G1. (AGÊNCIA, 2007). 253 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho mais livre que seja uma nação e seus indivíduos certas condutas são simplesmente inadmissíveis, e assistir a cenas de tal natureza vulnera direitos fundamentais de qualquer cidadão submetido à Constituição da República Federativa do Brasil. Isso é diagnosticado pela análise do comportamento-tipo do homem médio que vive sob determinado sistema. De modo que não interessa se a situação deixou de constranger determinada parcela da população, ou se até agradou-lhe assistir a referido conteúdo: importa esclarecer o que é considerado razoável e admissível pelo grupo, o que se pode verificar pela análise do ordenamento jurídico vigente, quando se trata de uma democracia, cuja legislação reflete os valores do povo197. Retoma-se o passado quando valores básicos são suprimidos por pessoas completamente inebriadas com o desejo da conquista de fama e dinheiro. Em “As Bacantes”, o ritual visava ao culto de uma divindade que se apresentava uma figura bela e carismática. Com a sutileza própria de um cavalheiro, dominava o juízo suas seguidoras, apossava-se de suas atitudes e pensamentos, tal qual ocorre com o fascínio provocado pelo sonho com a fortuna. Participantes são capazes de declinar de parcela da dignidade na tentativa de obterem destaque diante dos demais e a simpatia do público, para o que recorrem constantemente ao auxílio do álcool. Quando se retoma a consciência, há espaço para o arrependimento, que frequentemente ocorre, embora tardiamente, tal qual a tragédia em comento (quando Ágave compreende que empunhava a cabeça de seu próprio filho, morto pelos golpes das bacantes, sob a liderança da própria genitora198). 197 Matéria publicada no sítio do Jornal Folha de São Paulo, em 25 de abril p.p., anunciava o ajuizamento, na véspera, pelo Ministério Público Federal em São Paulo, de Ação Civil Pública, com vistas à submissão do conteúdo exibido em futuras edições do Big Brother Brasil a um “filtro ético-moral”. De acordo com o Procurador Jefferson Dias Aparecido, a Rede Globo deve vetar determinadas cenas, inclusive no pay-per-view, ao passo que cabe à União, por meio do Ministério das Comunicações, a fiscalização do programa (BALLOUSSIER, 2012). 198 “Primeira sacrificadora, a mãe, a defronte dele se achega. Arremessando fora a mitra, para que a inditosa Ágave enfim o reconheça, Penteu o rosto da mãe acarinha, e lhe fala: “Mãe, de mim te apieda; teu filho, por erros seus, não queiras imolar”. Mas não o escuta ela, Ágave, de lábios 254 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 2. “Evoé”199! Intencionalidade da equiparação dos heróis da “nave louca”200 às bacantes A pista de dança está totalmente tomada pelos brothers, todos curtindo ao máximo a música tão desejada durante o dia. [Dois participantes, um homem e uma mulher] não param de dançar um só segundo. Ele ajoelha para ela e ela rebola ao som da música eletrônica com bastante gingado. [...] Flores e frutas decoram todo o jardim. A pista de dança e as mesas estão adornadas com parreiras. É uma festa regada com pães, queijos, frios, pernil, vinhos, como uma verdadeira festa do deus Baco. Os pufes são brancos, mas tudo leva um toque romano. [...] Nas vestes dos brothers, tecidos esvoaçantes, sandálias, saias (inclusive para os brothers) e muitos adornos. Para se aprontar para a festa, os BBBs levaram cerca de uma hora; [...] (A festa, 2008). Qualquer semelhança do trecho em destaque com a tragédia ora examinada não é mera coincidência. Na oitava edição do Big Brother Brasil, que foi ao ar no início do ano de 2008, o tema do primeiro espetáculo protagonizado pelos participantes foi: “Festa Baco”. A nomenclatura justificava-se pelo ambiente montado pela produção do programa, que rememorava, com detalhes, os rituais ocorridos em homenagem à divindade do vinho. Para Eudoro de Sousa, O problema das Bacantes é Dioniso. Mas Dioniso não é só escumantes e de olhos revoltos, desprovida de senso, de Baco possessa. De ambas as mãos lhe segura o braço esquerdo, e com seu corpo em arco tendido, pés fincados no flanco do mísero, lho arranca da espádua, não com a própria força apenas, mas com aquela que em suas mãos um deus depôs” (EURÍPIDES, 2011. p.59). 199 Exclamando “Evoé” floresta afora, as Mênades invocavam Baco, com alegria e entusiasmo. 200 Termo empregado pelo apresentador, o jornalista Pedro Bial, quando se refere à casa do Big Brother Brasil. 255 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho uma obscura potência da alma; não é só uma fermentação periódica de forças abissais que ameaçam a tranquila vigência de normas instituídas pelo sufrágio da pólis soberana; não é só a repetida irrupção de refreadas subculturas de marginais e oprimidos. Em suma, não é caso de médico ou de polícia. O que as Bacantes nos apresentam na cena trágica é Dioniso, como problema, como problema de Eurípides, problema de sua época, problema da Grécia Clássica, que à hora crepuscular, revolvendo os olhos para dentro de si, estremece de espanto ao descobrir que o espírito – vontade disciplinadora e inteligência ordenadora –, não poderia aniquilar toda a irracionalidade elementar, sem que, no mesmo ato, destruísse a sua própria razão de ser” (Eurípides, 2011, p.14). Entretanto, as semelhanças começam e terminam na estrutura criada e na reação dos participantes ao efeito da bebida. Isto porque a motivação por trás do “espetáculo” nada teve de divino; talvez mundano, mas não divino, definitivamente. Especulou-se, na época, que a festa regada a vinho e champanhe pretendia promover a aproximação entre os brothers (leia-se aumentar a audiência), tendo em vista que, até então, não se verificava sintonia na casa. A citada festa rendeu o efeito esperado: o primeiro beijo entre participantes, embriaguez, tombos, vexames, uvas oferecidas na boca de um brother por outras duas, tudo exatamente conforme o planejado. É inconteste a assertiva de que o conteúdo publicitário inserto nos meios de comunicação “transmite valores sociais e pessoais impondo, numa sutil coerção, modelos a serem seguidos” (Gonzalez, 2011. p.21). Por esta razão, havemos de concordar que na era da comunicação o cuidado com o material exibido deve ser redobrado, uma vez que bastam segundos para que os efeitos de determinada notícia fujam completamente do controle de seus autores. 256 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho O programa cria um protótipo de sociedade, na qual reproduz as mais diversas experiências extraídas da vida real: amor, competição, fofocas, alegrias, raiva, medo etc. Cria-se forte identidade entre personagens e o público, que se projeta naqueles e passa a compactuar de seus ideais. A fim de manter uma ordem mínima no grupo, um conjunto de normas é estabelecido, ao qual todos deverão se submeter, sob pena de sanção. A harmonia é abalada constantemente pela disputa entre grupos que se formam, conforme a identidade que surge entre uns e outros. Quando ocorrem as festividades, toda a pressão acumulada, todos os sentimentos somatizados (ao longo da semana) são extravasados. É hora de esquecer as regras e relaxar. Contribuem para essa “limpeza” a dança, o álcool, o ambiente escuro e a céu aberto, trajes especiais. Monta-se um clima propício ao acesso do inconsciente, pois não é fácil expor-se conscientemente: gritos, risos, choros e todo o tipo de excesso é cabível quando chega o momento de descontrolar-se. E ninguém consegue viver plenamente sob controle, caso contrário não haveria necessidade de sistema jurídico, uma vez que todos cumpririam a lei integral e voluntariamente. Tal qual ocorria na Grécia Antiga, em uma época em que apenas os talentos varonis eram exaltados e eram submetidas as mulheres, que representavam minorias, àqueles. Penteu expressa seu inconformismo diante da situação: “E vós outros, ide, correi à cidade, e achei a pista desse forasteiro efeminado que introduziu nova moléstia entre nossas mulheres e corrompeu nossos leitos” (Eurípides, 2010, p.29). Era a manifestação do descontrole das mulheres de Tebas, e, posteriormente de homens que a elas se uniram, em reação às regras, à razão, à probidade. Buscavam a intensidade proporcionada pelo encontro inconsciente com a divindade, viabilizado pelo consumo do vinho, em um ambiente fantástico, irreal. Cumpre esclarecer que o termo Big Brother remete à obra “1984”, de Eric Arthur Blair (assinada com o pseudônimo George Orwell), em que delineava o modus vivendi de uma sociedade futurista (no “futuro” ano 257 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho de 1984). O livro, escrito em 1949, trazia a figura de um Big Brother, figura que governava o Ocidente servindo-se de câmeras instaladas por todos os lugares, o que demonstrava forte capacidade de controle, controle este típico de regimes totalitários. A partir das conclusões que obtinha nos registros verificados no sistema de monitoramento, o governante orientava a população, manipulando seu pensamento. Baseado nesta literatura, o empresário holandês John Hendrikus Hubert de Mol (sócio da produtora Endemol), ao produzir no ano de 1999 o primeiro reality show da televisão, batizou-o com o nome de um dos personagens centrais do livro de Blair. Sob o manto de refletir os momentos vividos pela sociedade brasileira no perfil do ganhador de cada uma das edições, o Big Brother Brasil se volta tão somente à seleção de moças e rapazes altamente sarados e com níveis intelectuais sofríveis, indicando à população a garantia de sucesso na adoção desta fórmula. Tampouco se preocupa com as lutas das minorias sociais. O interesse, ao reverso, repousa nas polêmicas que cada um será capaz de provocar, fato que desperta interesse do público, aumenta a audiência e valoriza o espaço publicitário no horário. Logo, se a intenção é a de manter estável o atual padrão social, reflexões críticas com vistas à reestruturação do material disponibilizado por programas televisos devem ser feitas. Nunca é demais recordar que a televisão ainda é o principal meio de comunicação de massa no Brasil. Louvável é a inserção de questões filosóficas nos debates corriqueiros, ressaltando a atemporalidade de determinados textos, como é o caso das tragédias gregas. Entretanto, bom senso e cautela são necessários nesta compressão, sob pena de subversão de sentidos ante a interpretação equivocada do sentido da obra. É profana a utilização da Filosofia a serviço de uma audiência acultural que contribui significativamente para a formação de um público intelectualmente alienado. Filosofia, então, estaria bem se não servisse para nada, como postulava já Aristóteles, no início de sua “Metafísica”, mas ela 258 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho terminou sendo empregada para os mais diversos fins, e agora parece estar a serviço do nada que nos assola, individual e coletivamente. A pulsão auto-destruidora que se manifesta na filosofia também se mostra, por todo lado, nessa Civilização Ocidental, que se tornou mundial - e, logo, não apenas ocidental -, e traz já em seu próprio nome o occido, étimo latino da queda, da ruína, da morte, do assassínio, da chacina. A “Civilização da Razão” é a “Civilização da Destruição”, destruição que pode atingir todas as outras civilizações e, até, o próprio mundo, físico (Guerra Filho, 2010, p.65). Conclusão Inobstante a indiferença com que são tratados ideais relativos ao bem comum da sociedade frente às ilimitadas liberdades individuais, urge a necessidade de a sociedade resgatar preceitos constitucionais nucleares, ante a temeridade da inconsciente introjeção de valores ilegítimos, disseminados por um dos programas mais assistidos da televisão brasileira. O modelo representa afronta à “dignidade do telespectador”, que é “pessoa humana”, sujeito detentor de direitos e obrigações. Ora, os direitos fundamentais são indisponíveis por excelência, de modo que se admite a cessão de imagens, jamais de dignidade (que, mais do que um princípio, representa um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme inc. III do art. 1º da CF). Exige-se empenho na cautelosa missão pela defesa da não relativização do núcleo essencial previsto na Carta Maior de 1988. Daí porque não se hesita em classificar o programa – frisese, em seu atual formato – antiético, eis que contrário à natureza dos juízos moralmente relevantes, numa análise metaética do assunto. Hodiernamente, o descomedimento (húbris) das emissoras revela o 259 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho desprezo dispensado aos seus telespectadores, que não passam de números indispensáveis à valorização das cotas de patrocínio comercializadas. Fato é que o ritual praticado na Grécia antiga, famoso por atrair diversos interessados, ainda atrai multidões, ora representadas por ingênuos telespectadores. Daí concluir-se que, embora passados tantos anos, a essência do homem permanece a mesma. É hora de refletirmos acerca do legado cultural que pretendemos deixar para as gerações futuras. 260 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências A FESTA da Uva está bombando. Globo.com, Rio de Janeiro, 09.01.2008. Disponível em: http://bbb.globo.com/BBB8/Noticias/0,,MUL2536069 451,00+FESTA+DA+UVA+ESTA+BOMBANDO.html. Acessado em: 02.06..2012. AGÊNCIA Estado. Brasil tem mais TV do que geladeira, diz estudo. G1.globo.com, São Paulo, 18 abr. 2007. Disponível em: http://g1.globo. com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL23738-9356,00.html. Acessado em: 06 jun. 2012. BALLOUSSIER, Anna Virginia. Procuradoria pede censura ética nas próximas edições do “BBB”. Folha.com, São Paulo, 25 abr. 2012. Caderno Ilustrada. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ ilustrada/1080979-procuradoria-pede-censura-etica-nas-proximasedicoes-do-bbb.shtml. Acessado em: 10.06.2012. BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim. 34. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. 28. ed. São Paulo: Palas Athena, 2011. EURÍPIDES. As bacantes. Trad. Eudoro de Sousa. São Paulo: Hedra, 2010. GONZALEZ, Luciana Schlindwein. A universalidade dos Direitos Fundamentais e o meio ambiente cultural na sociedade da informação. Monografia (Pós-Graduação em Direitos Fundamentais) – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais-IBCCrim em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. São Paulo: IBCCrim, 2011. 261 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho GUERRA FILHO, Willis Santiago. Por uma Poética do Direito: introdução a uma teoria imaginária do Direito. Panóptica, Vitória, ano 3, n.19, jul/out. 2010. Disponível em: http://br.vlex.com/vid/poeticateoria-imaginaria-totalidade-222852157. Acessado em: 09.06.2012. IMPELLUSO, Lucia. Myths: tales of the Greek and Roman gods. Nova Iorque: Abrams, 2008. LAW, Stephen. Guia ilustrado Zahar: filosofia. Trad. Maria Luiza X. De A. Borges. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. RITTES, André. Máquina de fazer doido: Reflexões sobre a Televisão na Era da Absolutização da Imagem. Santos: Editora Iporanga, 2000. 262 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 12 A sociedade do risco na perspectiva de Niklas Luhmann Marcelo Luis Roland Zovico Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sob a orientação de Willis Santiago Guerra Filho. Conclusão do doutorado com a pesquisa realizada na Itália (2010-2011), Programa CAPES, PDEE - “Doutorado Sanduich” na “Università del Salento” sob a co-orientação de Raffaele Di Giorgi, co-autor de “Teoria della Società” com Niklas Luhmann escrito em 1986 em Lecce. E-mail do autor: [email protected]. 263 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 1. Sociedade de risco de Niklas Luhmann Para Luhmann, as sociedades contemporâneas atingiram um nível de prosperidade nunca antes conhecida, a duração média da vida humana é alongada e a mortalidade infantil tem sido reduzida consideravelmente, porém, ao invés de aumentar a confiança no futuro, ocorre o inverso, com o aumento da consciência, multiplica-se a incerteza, numa mesma progressão do constante aumento científico/tecnológico, que também nos levam a incontestáveis benefícios para a vida. Especialmente na Europa, Zygmunt Bauman201, observa que o medo e as obsessões pela insegurança têm evoluído nos últimos anos de forma surpreendente. Os europeus ainda se sentem privilegiados por viverem em “países desenvolvidos”, mas, mesmo assim, nunca se viu tantas expressivas manifestações de descontentamento e inseguranças, somatizando-se, sobretudo, no reflexo de um sentimento de ameaça mais propenso a pânico e mais interessado em tudo relacionado com a segurança. Não há dúvida de que a sociedade contemporânea atingiu um nível de segurança mais elevado do que no passado e, ainda assim, é considerada como sendo uma “Sociedade de Risco” para grande parte de sociólogos e cientistas de todo mundo. Por quê? O termo Sociedade de Risco tornou-se comumente usado mesmo fora do círculo de sociólogos, mas sua origem vem determinada no pensamento de Ulrich Beck. A Sociedade Moderna se desenvolveu a um ponto em que a distribuição dos produtos escassos – que era a principal preocupação do século XIX e da primeira metade do XX – não é mais o principal problema social. Atualmente, o principal problema passou a ser a necessidade de limitar os riscos produzidos pela sociedade, principalmente, o uso da tecnologia, que são ameaças 201 BAUMAN, Zygmunt. Modus vivendi. Inferno e utopia del mondo liquido.. Italia, Bari: Laterza, 2007. p.74. 264 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho globais relacionadas à sua própria existência202. Além da reconstrução apocalíptica de Ulrich Beck, que descreve uma sociedade em termos de um “risco planetário”203, uma sociedade catastrófica de autodestruição, alguns sociólogos indicam que a mudança na percepção do risco e de sua comunicação (certamente não em sua existência comum de todos os tempos e em cada lugar) fazem parte de uma característica da sociedade contemporânea. O principal ensaio de Niklas Luhmann sobre o tema do risco, explica que a sociologia crítica não pode simplesmente descrever as regularidades que são encontradas em uma dada sociedade, mas deve refletir sobre como a sociedade diante das mesmas características pode explicar os fatos que se desviam da normalidade, tais como acidentes, surpresas e infortúnios, ou seja, aqueles eventos que, por outras palavras, constituem uma “ruptura da forma normal” de sociedade204. De acordo com Luhmann, o fato da sociedade de hoje falar tanto de risco, traz uma nova luz para explicar sua “forma normal”, não porque os riscos pertencem à vida cotidiana, a coisa real de hoje é como a de ontem, mas, mais profundamente, no sentido de que a sociedade diz que o risco é um infortúnio, diferentemente, como já fora dito, que seria fruto de magia, bruxaria ou castigo divino. A questão do risco é muito importante porque coloca “a questão do conceito de racionalidade” na medida em que a tomada de decisão se torna algo técnico ou, simplesmente, o futuro do tempo é assumido quando se trata de arriscar. Faz parte de uma mudança de paradigma muito grande. Historicamente, “o risco foi concebido em nossa sociedade como um evento ligado à sorte, sendo registrado por muitas teorias, quando relacionado aos marinheiros, aos catadores de cogumelos e, geralmente, 202 BECH, Ulrich. Tradução para o Italiano da obra: La società del rischio. Verso una seconda modernità. Roma, Itália: 2000. 203 Obra citada, p. 29. 204 LUHMANN, Niklas. Soziologie des Risikos. Berlin, 1991. Traduzido em italiano para Sociologia del rischio. Milano, Itália. p. 3. 265 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho a quem fora exposto a perigos, visto como um problema que não se podia evitar ou contornar”205. O próprio Luhmann destaca a dificuldade de encontrar uma definição clara do conceito de risco, um termo usado em diferentes contextos e muitas vezes com diferentes significados. Especialmente no campo das ciências econômicas é bem-vinda a definição de risco como produto do dano e a probabilidade de ocorrência é considerada quase uma distinção de dogmas entre risco e incerteza. Esta definição certamente no contexto econômico é mais útil, mas não é assim para a Sociologia. Se o risco era simplesmente uma medida, o resultado de um cálculo preciso não será explicado dessa forma, é necessária uma maior amplitude no debate atual206. É nessa atmosfera mais complexa em que a Teoria do Risco irá se desenvolver no contexto da Sociedade do Risco, com toda necessária compreensão para que, com a redução da complexidade das escolhas, o conceito possa ser em sua totalidade compreendido. 1.1 A sociedade global de risco e suas perspectivas A “sociedade do risco”, termo recentemente adquirido e amadurecido, nasce de uma inspiração acadêmica sociológica, como já fora amplamente debatida, podendo ser trabalhada em vários aspectos. Qualquer discussão sobre o tema, exige um discurso preliminar sobre o que já nos anos setenta, Jean François Lyotard chamou de “condição pós-moderna”207, para indicar a situação da cultura nas sociedades industriais avançadas, definido, diferentemente, por Alain Touraine e Daniel Bell de “pós-industrial”208. 205 Obra citada, 1991, p. 4. 206 Conforme obra citada, 1991. p. 14. 207 LYOTARD, J. F.. La condizione postmoderna, 1977. p. 76. 208 D. BELL. L`arrivo della società post industriale, 1976; Alain Touraine. La ricerca di sè, 2003. 266 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho De acordo com Alain Touraine e Daniel Bell, essa sociedade é caracterizada pelo desenvolvimento da tecnologia da informação e telecomunicações, o setor de serviços, serviços terceirizados e o próprio consumo, além do fato da sociedade acomodar-se com mais facilidade, tendo inúmeros conflitos ao redor, talvez, devido ao fato do bombardeio de informações que mal conseguimos processar– o que é e o que não é importante –, numa pluralidade de valores que tornam a análise difícil e sua unificação estrutural quase impossível. Por um lado Lyotard209 pergunta o que no conhecimento é legítimo em uma época caracterizada pela crise das duas grandes narrativas, que dos dois grandes cenários ideológicos, idealismo e do iluminismo, dentro dos quais o conhecimento foi inserido. Com o livro “A condição pós-moderna na Itália”, publicado em 1981, no país a que se destinou a pesquisa do livro, o francês Lyotard abriu uma categoria real interpretativa da sociedade contemporânea – a sociedade, de fato, “pós-moderna”–, cuja principal característica é o desaparecimento das grandes narrativas metafísicas (iluminação, idealismo, marxismo) que justificava ideologicamente a coesão social e, inspirado, na modernidade, as utopias revolucionárias. Por outro lado, reconhece a redução da verdade da eficiência tecnológica e admite a perda de uma validade universal cognitiva em favor de “paradigmas”. A condição pós-moderna, então, pode ser atravessada pela nostalgia da história perdida, da desconfiança do conhecimento científico e dos sistemas de valores contemporâneos. A tese “romântica” do filósofo francês Lyotard é contrastada pelo alemão Jürgen Habermas, com o posicionamento crítico de que para 209 Jean-François Lyotard é filósofo francês (Versalhes, 1924 – Paris, 1998). Seu trabalho é associado com o pós-estruturalismo e é conhecido por sua teoria da pós-modernidade. Estudou e foi assistente na Universidade Sorbonne, professor da Universidade de Paris-Vincennes, além de ter lecionado em algumas universidades americanas. Em 1979 publicou o livro “A condição pósmoderna na Itália”, traduzido por Carlo Formenti e publicado pela Editora Feltrinelli em 1981, caracterizando o fim da modernidade como uma crítica das grandes narrativas sobre o mundo e a realidade. 267 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho a modernidade esse “é um projeto inacabado emancipatório” que teve origem no Iluminismo e cresceu de forma contraditória (em parte autodestrutiva) na racionalização técnico-burocrática nas várias áreas da vida. Em outras palavras, o alemão acredita que esse modelo pósmoderno fora “traído” pelo próprio processo de modernização, entendido como um excesso de racionalidade, eficiência, produção e consumo. Assim, entende-se ser este um projeto inacabado que é retomado por fazer a ligação entre modernidade, razão e emancipação, ao invés de rejeitá-lo com rótulos de definição. A ideia de um crescimento exponencial do conhecimento cada vez mais especializado, através de sistemas especializados que substituem o tradicional, resultando em efeitos cada vez mais globalizados, é partilhado por Anthony Giddens210, bem como a crença de que tal conhecimento é constantemente aberto para ser revisto e inseridas novas correções e melhorias. Assim, o sociólogo inglês é muito confiante e nada “apocalíptico” em sua análise, indicando uma resposta para Lyotard sobre a possibilidade de poder encontrar um cruzamento entre as mudanças e o dinamismo, numa epistemologia consistente no conhecimento generalizável à vida e aos modelos sociais. Ao invés de falar em pós-modernidade, ele prefere pensar, em termos de “modernidade radical”, de acordo com um desenvolvimento (não evolutivo), mas de descontínuo social, o que não significa necessariamente o caos. Qualquer rótulo que for atribuído à sociedade contemporânea, os cientistas sociais concordam com a dimensão de incerteza que envolve, 210 GIDDENS, Anthony. Le conseguenze della modernità. Fiducia e rischio, sicurezza e pericolo. 2. ed., Itália Bologna: Mulino, 1994. Giddens nasceu na Inglaterra, doutorou-se na “London School of Economics”, especializou-se em Cambridge. É considerado um dos críticos mais importantes e de destaque da sociologia contemporânea, alcançando reconhecimento internacional em 1976 com a publicação do livro Método Sociológico, com a clara intenção de mencionar a famosa obra de Durkheim, objetivando dar uma nova interpretação à metodologia sociológica. Do ponto de vista da ciência política, é o principal criador da “terceira via”. 268 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho em primeiro lugar, o sistema de conhecimento e, também, a esfera da vida cotidiana é cada vez mais caracterizada pela diversidade de situações, pela complexidade e, portanto, pelas ações de contingência. A existência, em toda a pós-modernidade é cada vez menos previsível e programável e os relacionamentos se tornam perceptíveis. Nas palavras de Zygmunt Bauman211, é fácil de construir, mas também fácil de cortar o resultado de um acordo difícil, provisório e constantemente aberto à renegociação. Sua ideia é a de que vivemos numa sociedade contingente, provisória e sempre em alguma coisa deve ser mudada, sejam as regras, as leis, enfim, tudo passa a ter um valor relativo. É a extensão em que diferentes atores sociais concordam em continuar a considerá-los ou não. O relativismo ora demonstrado e a complexidade de contingência da pós-modernidade estão intimamente relacionados no processo de globalização – entendida como o encurtamento das distâncias, os mercados interligados, a dependência mútua dos setores produtivos, economia, restando apenas fatores culturais como únicos fenômenos díspares e contraditórios. Em uma perspectiva de visão de mundo, a ciência, que já foi o principal instrumento para a emancipação do homem da tradição e da religião, apoiada pela tecnologia, torna-se cada vez mais poderosa e complexa, mas juntos eles já não podem calcular os efeitos de suas atividades e o discurso científico não consegue mais provar suas regras fielmente de validação e verificação, mas podem prever algo muito pior em comparação com a modernidade, que não é mais capaz de compartilhar conhecimento e comportamento com a comunidade. A ciência pós-moderna, com base na eficiência da racionalidade instrumental, é percebida pelos grupos sociais como um dogma, 211 BAUMAN, Zygmunt. Diritto alla sicurezza o sicurezza dei diritti. In: La bilancia e la misura. PALMA, Anastasia (Org.). Itália, Milano: Angeli: 2001. p. 26. Zygmunt Bauman é nascido na Polônia, em 1925, com formação em Sociologia e Filosofia. De 1971 a 1990, foi professor de Sociologia na Universidade de Leeds e no final dos anos oitenta, ficou conhecido por seus estudos na ligação entre a cultura da modernidade e o totalitarismo, principalmente, o nazismo e o Holocausto. 269 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho como a religião tradicional. Parece ser um mecanismo que funciona perfeitamente, mas é ignorado o seu custo para a humanidade. A Ciência e a Tecnologia tornam-se positivas e negativas ao mesmo tempo, dado que se conclui quando, para qualquer benefício que possamos ter, a sensação é de termos de pagar um “custo” alto que termina com algum lado da sociedade, que tem de suportar a perspectiva do cumprimento permanente de novas necessidades e oportunidades. A globalização parece ser exclusivamente de incertezas e contradições, removendo e juntando os obstáculos, fortalecendo a confiança, mas também criando confusão. Sem dúvida, neste ponto, que a economia pós-moderna, globalizada, é caracterizada intrinsecamente por incerta. O léxico indica que, mesmo com a fórmula do cotidiano, essa é a sociedade global de riscos. Apresentado os principais pontos relativos à questão do risco, importante ressaltar que para Luhmann, o tempo permeia o aspecto da teoria ao sugerir claramente que um sistêmico-teórico terminológico, em determinado ambiente, existe sempre simultaneamente, nunca antes ou depois. Por isso, nunca ocorrerá que o ambiente permaneça preso ao passado e do atual sistema para se tornar o futuro do meio ambiente, ou vice-versa. Consequentemente, assim como operação, o tempo não desempenha papel algum212. 2. A teoria do risco Analisando o risco, seja na vertente da Sociologia do Risco de Luhmann213, mais completa e complexa, ou mesmo nas representações mais simples, há ideia de um perigo inconveniente, mas em qual sentido? No senso que, se nós refletimos sobre o risco, então poderemos observar que no nosso comportamento, se existem alternativas, existe o risco. 212 Conforme LUHMMAN, 1991. p. 81. 213 Ibiden, p. 270. 270 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Conforme Luhmann (1996, pp. 31-32): “Per venire a capo di entrambi gli ordine di osservazioni, diamo al concetto di rischio un’altra forma e lo facciamo con aiuto della distinzioni tra rischio e pericolo. La distinzione pressupone (distinguendosi così da altre distinzioni) che sussista incertezza in riferimento a dei danni futuro. Ci sono allora due possibilità: o l’eventuale danno vieni visto come conseguenza della decisione, cioè viene attribuito ad essa, e parliamo allora di rischio, per la precisione di rischio della decisione; oppure si pensa che l’eventuale danno sia dovuto a fattori esterni e vieni quindi attribuito all’ambiente: parliamo allora di pericolo.” Onde não existem alternativas de comportamento, não há risco. Não podemos fazer nada se num determinado local que há três mil anos nunca teve um terremoto ocorre esse evento inesperado e improvável de ocorrer. Por outro lado, se sabemos que é possível ocorrer um terremoto em determinada área, então eu tenho o evento risco de morrer pelo terremoto, porque, sabendo que é possível o terremoto, teria a faculdade de construir a casa neste local, ou mesmo a mil quilômetros de distância. O Risco, em outros termos, não é a ameaça do terremoto, mas a consequência pelo fato que eu tenho a informação que é possível o terremoto. É claro que a decisão possui Risco quando há uma preferência para uma alternativa, para uma parte da alternativa, isto é, eu posso ser proprietário de um terreno num local de terremoto, porém, existe o risco do terremoto, logo, antes de construir, o que posso fazer? Perco o terreno e corro o risco para não ter mais dinheiro para construir a casa em outro local mais seguro, ou mesmo construo a casa nesse terreno e corro o risco do terremoto. Então o risco a todos não é uma ameaça inconveniente, mas é o 271 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho resultado de uma decisão que poderia ser escolhida de maneira diversa. De forma simplificada, uma pessoa que é só corre o Risco de se deprimir, ou porque à noite ou durante o dia não sabe o que se fazer, ou porque gostaria de amar uma pessoa, mas não consegue amar a ninguém, correse o risco de estar depressivo. O que se pode fazer diante dessa situação? Encontro uma pessoa e vivo com ela. A esse ponto é claro que se corre o risco dessa pessoa não ser a pessoa que procurava, corro o risco de estar junto e surgir o interesse estar sozinho, etc., ou seja, era infeliz só e agora corro o risco de ser infeliz de outra maneira. Nesse ponto de vista, existe uma alternativa entre um risco e outro. Naturalmente se deve saber que uma pessoa que vive só poderá ter depressão porque sabemos o risco de uma depressão, assim, se advir uma depressão, não faremos a ligação com a pressão atmosférica ou mesmo à relação de valorização do Euro em relação ao Dólar. Assim, sabendo que é possível, então corro o risco, significando que a Ação, quando se encontra diante de uma alternativa, se torna uma ação excludente. Então o Risco é ligado à possibilidade de agir e, portanto, à alternativa, que por sua vez, está ligado à escolha. Consequentemente, quando não há alternativa, não existindo possibilidade, e onde não há escolha, não há Risco. Eu não corro o risco de morrer, porque é certo que devo morrer. Corremos o risco de morrer através de acidente de trânsito, ou mesmo com um terremoto, mas aquilo depende do fato de estar em casa ou no carro, portanto, posso decidir a maneira, mas concordamos que morrer não é uma escolha, mas uma certeza. Assim como, se eu me jogo do terceiro andar, não corro o risco de morrer, é certo que morrerei, mas se eu caio caminhando, corro o risco de morrer, porque posso apenas me ferir, posso me machucar, nesses dois casos me salvo, ou ainda, corro o risco de me machucar a ponto de morrer. 272 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Assim, o risco é ligado ao saber, poder, poder escolher e possuir alternativa, e essas são todas no mesmo sentido, características da modernidade e da sociedade moderna. Só na Sociedade Moderna a Ação é livre, no sentido de que pode ser realizado de outra maneira. Neste sentido a ação que segue uma direção pode ou deve se dar de outro modo, ou mesmo em outra forma, não sendo determinada. Temos, portanto, em primeiro lugar a escolha, em segundo a alternativa e em terceiro o futuro, porque a ação é voltada para o futuro. Desse ponto de vista, o Risco se transforma em um modo de caminhar no senso futuro, se transforma em um modo para construir o futuro, se torna um vínculo com o tempo, congelando-o, bloqueando-o em certa direção. Sob esse ponto de vista, o risco é uma técnica como o Direito voltado para o futuro. Assim, risco possui um caráter estrutural de ação na sociedade moderna. Exemplo: Fulano corre o risco do divórcio não porque o divórcio possui um caráter ontológico do matrimônio, ou porque as mulheres se tornam menos belas com o tempo, mas o risco é porque o Fulano pode escolher com quem casaria, e já sabia das consequências. Se o Direito pode ser considerado como técnica de construir o Futuro, o Risco também é outra técnica com a mesma função. O Direito bloqueia a ação no senso em que foi escolhida uma das alternativas. O risco abre as possibilidades e depois de feita a escolha a bloqueia em uma outra forma. A alternativa ao risco não é a segurança, mas o perigo. Morar em uma casa protegida com uma construção antissísmica, num local onde jamais ocorreram terremotos, e um avião descontrolado me atinge, não é risco, mas perigo, algo que não se pôde escolher como alternativa possível. 273 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências BAUMAN, Zygmunt. Globalization. The Human Consequences. Cambridge-Oxford: Polity Press-Blakwell Publishers Ltd., 1998, no original, traduzido para o italiano: Dentro la globalizzazione. Le conseguenze sulle persone. Bari, Itália: Laterza, 2001. _________________. Modus Vivendi. Inferno e utopia del mondo liquido. Bari, Itália: Laterza, 2007. _________________. Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. _________________. La società dei rischio. Verso una seconda modernità. Bari, Itália: Cacucci, 2000. _________________. La società globale dei rischio. Trieste, Itália: Asterios, 2001. D. BELL. L`arrivo della società post industriale. 1976. Alain Touraine, La ricerca di sé, 2003. DE GIORGI, Raffaele. Azione e imputazione: semântica e critica di un principio nel diritto penale. Lecce, Itália: Milella, 1984. __________________. Teoria della Società. Lecce. Itália: Pensa, 2005. 274 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho __________________. Temi di filosofia dei diritto. Lecce, Itália: Pensa Multimedia, 2006. GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1989. ________________. Le conseguenze della modernità. Fiducia e rischio, sicurezza e pericolo. 2. ed., Itália, Bologna: Mulino, 1994. ________________. Novas Regras do Método Sociológico. Uma Crítica Positiva às Sociologias Interpretativas. Lisboa: Gradiva, 1996. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna. Porto Alegre: Livraria do Advogado. ________________. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001. LYOTARD, J. F. La condizione postmoderna. 1977. LUHMANN, Niklas. Sociologia del Rischio. Título original: Soziologie des Risikos. Edizioni Scolastiche Bruno Mondadori. Milano, 1996. 275 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 13 (Neo)Constitucionalismo e princípio da proporcionalidade: algumas reflexões de relevo Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Doutora e Mestre pela PUC-SP. Professora do Centro de Pesquisa em Direito da UNINOVE e do Programa de Mestrado em Direito da mesma Instituição. Coordenadora da Unidade Vergueiro - UNINOVE. Advogada. Mônica Bonetti Couto Doutora e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Professora do Centro de Pesquisa em Direito da UNINOVE e do Programa de Mestrado em Direito da mesma Instituição. Pós-Doutoranda pela UFSC. Advogada. 276 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Introdução A Constituição Federal de 1988 representou a volta da democracia ao País e em seu bojo assegurou um amplo rol de direitos e garantias fundamentais, bem como a necessidade de desenvolvimento do Estado Democrático de Direito. Em virtude de assegurar um amplo rol de direitos e garantias fundamentais, e prever uma democracia participativa é denominada de “Constituição Cidadã”. Os direitos e garantias fundamentais, na maioria das vezes, se apresentam na forma de princípios. As normas constitucionais se dividem em normas regras e normas princípios. As normas regras descrevem um estado de coisas e incidem diretamente no caso concreto. Já os princípios são aquelas normas que veiculam valores, são mais abstratos e genéricos do que as regras. Constituem-se nas vigas mestras do ordenamento jurídico e permeiam todo o Texto Constitucional. A natureza principiológica dos direitos e garantias fundamentais, como afirma Willis Santiago Guerra Filho os coloca numa verdadeira rota de colisão. Nesse sentido tem-se que no plano fático a aplicação de um direito fundamental de forma absoluta leva a negação de outro direito fundamental. Todavia, por estarem assegurados no Texto da Constituição não se pode negar aplicação a um direito fundamental em detrimento de outro. De igual modo em caso de conflito entre princípios não se pode aplicar um em detrimento de outro.Nesse cenário surge o princípio da proporcionalidade, denominado de “princípio dos princípios”. O princípio da proporcionalidade tem sua origem relacionada ao direito alemão e apesar de não estar expressamente previsto na Constituição Brasileira, tem sido amplamente aplicado com fundamento no Estado Democrático de Direito, no princípio da isonomia ou no § 2.º do art. 5 da Constituição. 277 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Ele impõe a necessidade de se sopesar os valores em conflito de maneira que a encontrar uma decisão que menos agrida ao outro princípio. É dividido em três subprincípios: necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito (razoabilidade). Nesse sentido, também se impõe a necessidade de se criar um novo modo de se interpretar a Constituição, é nesse contexto que se desenvolve o neoconstitucionalismo. Será estudado aqui o princípio da proporcionalidade em face do neoconstitucionalismo com vistas a compreender toda a amplitude e abrangência desse princípio. 1. Os princípios e sua evolução teórico-dogmática Tendo por objeto o estudo das mais destacadas nuances e dimensões do princípio da proporcionalidade, este trabalho não pode prescindir do estudo introdutório – ainda que de maneira deveras sucinta, dado o recorte metodológico e os limites propostos para esta pesquisa – em torno da principiologia jurídica e de seu papel. O sistema normativo pode ser definido como o conjunto unitário e ordenado de normas, em função de princípios coordenados em torno de um fundamento comum. Contudo, não se trata de uma mera soma de elementos isolados, pois há uma conjugação harmônica entre eles, é dizer, uma interação. Dentro do sistema normativo também são reconhecíveis diversos sistemas parciais, ou melhor, subsistemas, a partir de perspectivas materiais diversas. Assim, o conjunto de todas as normas jurídicas forma o sistema jurídico do Direito e o conjunto de normas de Direito Constitucional formam o sistema parcial (ou subsistema). De acordo com as lições de Joaquim José Gomes Canotilho, a Constituição é um sistema aberto de regras e princípios.1 Diz-se aberto porque sofre as ingerências da sociedade e diversos fatores externos 1 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1991. pp.171-186. 278 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho encontrando-se em constante comunicação com o sistema social.2 As normas constitucionais podem ser dividas em normas/regras e normas/ princípios conforme o seu maior grau de abstratividade e generalidade. As regras trazem “a descrição de estados-de-coisas formados por um fato” 3, já os princípios dizem respeito aos valores. As regras são aquelas normas que mais se aproximam das normas jurídicas de direito comum, na medida em que possuem todos os elementos para incidirem diretamente sobre o caso concreto, bem como para conferir um direito ao seu destinatário. Elas, geralmente, prescrevem uma obrigação, permitem ou vedam uma determinada conduta. Têm a sua aplicação a uma situação fática determinada e específica. As regras são concretas e incidem de maneira direta sobre o caso concreto. Robert Alexy ressalta que a distinção entre regras e princípios revela-se mais claramente nos casos de colisões entre princípios e de conflitos entre regras. Enquanto o conflito de regras resolver-se-ia pelo reconhecimento de uma cláusula de exceção ou pela declaração da invalidade de uma delas, a colisão de princípios significaria apenas que um deles teria precedência sobre o outro. Estar-se-ia diante do fenômeno que Alexy denomina de ‘relação de precedência condicionada’, na qual o conflito seria resolvido pelo sopesamento dos interesses em choque, de molde a definir qual deles deveria ser aplicado no caso em concreto4. É bom deixar claro que, para o autor, tal escolha (ou precedência) de um princípio em detrimento de outro não representa a invalidação de 2 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Publicação do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2001. pp. 54-55. 3 Afirma Willis Santiago Guerra Filho que: “Daí se dizer que as regras se fundamentam nos princípios, os quais não fundamentariam diretamente nenhuma ação, dependendo para isso de uma regra concretizadora.” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Publicação do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2001. p.45). 4 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. pp. 91-92. 279 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho um deles, nem tampouco a introdução da cláusula de exceção, como se passa com as regras, mas apenas e tão somente que um dos princípios tem um peso maior, naquela situação, dadas as circunstâncias daquele caso concreto.5 A este ponto, com a devida atenção, retornaremos no tópico seguinte. É correto dizer que os princípios constituem, portanto, a base estrutural de todo o ordenamento jurídico, funcionando como verdadeiro ponto de referência do sistema. São normas elementares e fundamentos que funcionam como lastro para a aplicação do direito ou, como prefere Celso Antônio Bandeira de Mello: Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo6. Fundamentalmente, os princípios diferenciam-se das regras por serem mais abstratos e genéricos, pois se aplicam a uma infinidade de situações. As regras em contrapartida ganham em termos de concretude, incidindo diretamente sobre as situações fáticas que abarcam. É importante assinalar, seguindo a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, que a violação a “um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica 5 Ibidem, mesmas páginas. 6 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010. pp. 958-959. 280 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra” 7. Os princípios constitucionais, na sua maioria, vêm expressos na Constituição, o que não elide a possibilidade de extraírem-se também princípios implícitos na própria Constituição. Contudo, o Texto Constitucional tem dispositivos específicos que fazem menção aos princípios. Ex.: o art. 4º, que elenca os princípios que regem o Brasil as relações internacionais. Os princípios são “as vigas mestras do texto constitucional”8 que se irradiam por todo o sistema jurídico pátrio, conferindo unidade e coerência ao ordenamento jurídico. Pode-se dizer, sem receio de errar, que os princípios representam a estrutura do sistema constitucional, “são, pois, as vigas mestras do texto constitucional”. A Constituição em razão de veicular um conjunto de regras e princípios coesos e não antagônicos, não admite a existência de uma hierarquia entre as normas constitucionais. Admite-se, na verdade, há existência de uma hierarquia valorativa entre regras e princípios, mas tal raciocínio não conduz, necessariamente, a existência de uma hierarquia normativa, uma vez que todas as normas constitucionais encontram-se no mesmo patamar hierárquico. Os princípios indicam a ideia de começo, ponto de partida e fundamento. Eles são polos informadores que permeiam toda a Constituição, conferindo unidade ao sistema. São abstratos e vagos e em razão dessa qualidade não incidem diretamente sobre um caso concreto específico, eis que encampam um sem número de hipóteses. Portanto, 7 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 959. 8 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos, 2002. p. 75. 281 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho eles também são objeto da interpretação na medida em que necessitam dela para determinar o seu conteúdo. Tratam-se, pois, das normas fundamentais da Constituição que permeiam e informam todo o sistema jurídico, cabendo a eles a difícil tarefa de conferir coerência, sistematicidade e unidade ao sistema. Eles fornecem as diretrizes essenciais da Constituição, de maneira que se tornam indispensáveis para a sua inteligência. Os princípios veiculam os valores fundamentais de uma determinada sociedade, conferindo dinamismo à Constituição, de molde a que esta possa acompanhar as mudanças ocorridas na sociedade. Também funcionam como critério para a edição de futuras regras. Segundo Joaquim José Gomes Canotilho os princípios ao constituírem exigências de optimização permitem o balanceamento de valores e interesses de acordo com o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes9. Os princípios vinculam o legislador e o aplicador do direito, uma vez que não se pode editar uma regra que contrarie um princípio e nem conferir uma interpretação a regra que a coloque em choque com aquele. Também desenvolvem importante papel na atividade interpretativa, servindo como um guia, um instrumento de interpretação. Os princípios constitucionais, no que concerne à atividade interpretativa, são metas, diretrizes, que orientam o intérprete acerca da direção a ser seguida. Isso está a significar que as normas jurídicas devem ser sempre interpretadas em harmonia com os princípios contidos na Constituição. Deste modo, os princípios constitucionais também fazem parte da atividade de interpretação. São limites à interpretação constitucional, uma vez que não é permitido interpretar uma regra de forma a contrariar um princípio. Os princípios constitucionais, no que concerne à atividade interpretativa, são metas, diretrizes, que orientam o intérprete acerca da 9 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1991. p. 174. 282 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho direção a ser seguida. Isso está a significar que as normas constitucionais devem ser sempre interpretadas em harmonia com os princípios contidos na Constituição. Deste modo os princípios constitucionais também fazem parte da atividade de interpretação. Pode-se afirmar que eles funcionam como um limite à interpretação constitucional, uma vez que não é permitido interpretar uma regra de forma a contrariar um princípio. Celso Bastos entende que as normas/princípios trazem em seu bojo valores, enquanto as normas/regras veiculam simples regras que incidem diretamente no caso concreto10. O princípio se ajusta a regra e a preenche com os valores que o próprio princípio encampa. O princípio é por assim dizer um indicador interpretativo. Note-se que ao mesmo tempo que o princípio é objeto da interpretação ele também funciona como critério interpretação. 2. A intensa valorização dos princípios constitucionais: o pós-positivismo, o “neoconstitucionalismo” e o “neoprocessualismo” O reconhecimento da posição de relevo dos princípios implicou em significativa mudança no papel dos juízes, na atualidade. Não se pode mais falar na atuação judicial restrita a veicular a ‘vontade da lei’, pura e simplesmente. Esse novo contexto interpretativo – movimento cunhado, por alguns, de neopositivismo ou neoconstitucionalismo11 - desloca o exame e a discussão da validade normativa, que passa a considerar outros aspectos da realidade social, e não apenas centrado na estrutura normativa lógica-dedutiva. De acordo com Eduardo Cambi, esse movimento é uma consequência filosófica do neoconstitucionalismo e apresenta-se 10 Op. cit. p. 149. 11 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. p. 83. 283 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho “como uma nova forma de interpretação e aplicação do direito. Parte das bases do positivismo jurídico, procurando mostrar uma outra forma de compreensão do fenômeno jurídico”12. Neste modelo, os princípios são reconhecidos como pilares axiológicos do sistema jurídico que passam a assumir força normativa imediata, e não mais apenas meramente secundária fonte de preenchimento de lacunas13. Em face disso se sustenta que o chamado ‘neoconstitucionalismo’ reclama uma “nova teoria da norma, que possibilite a conjugação de regras e de princípios, bem como uma nova teoria da interpretação jurídica que não seja nem puramente mecanicista nem, tampouco absolutamente discricionária, em que os riscos que comportam a exegese da Constituição sejam suportados por um esquema plausível de argumentação jurídica”14. Fundamentalmente, o que se aponta, nessa seara, é que a Constituição brasileira de 1988, alinhando-se a alguns modelos europeus (v.g., Itália e Alemanha), passa a assumir um papel diverso daquelas que lhe antecederam, aqui no Brasil e, pode-se dizer, no mundo. Assim, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 passa a ser significação de um diploma de legalidade superior de lastro constitucional e, além disso, incorpora conteúdos materiais em forma de direitos, 12 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. p. 83. 13 Eduardo de Enterría aduz, com propriedade, que: “ todo ello está conduciendo al pensamiento jurídico occidental a una concepción substancialista y no formal del Derecho, cuyo punto de penetración, más que en una metafísica de la justicia, en una axiomática de la materia legal, se ha encontrado en los principios generales del Derecho, expresión desde luego de una justicia material, pero especificada técnicamente en función de los problemas jurídicos concretos Ahora bien, la ciencia jurídica no tiene otra misión que la de desvelar y descubrir, a través de conexiones de sentido cada vez más profundas y ricas, mediante la construcción de instituciones y la integración respectiva de todas ellas en un conjunto, los principios generales sobre los que se articula y debe, por consiguinte, expresarse el orden jurídico”. (ENTERRÍA, Eduardo de. Reflexiones sobre la ley y los principios generales del derecho. Madrid: Editorial Civital, 1986. p. 34) 14 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. p. 90. 284 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho princípios e valores, recheados por altíssima carga valorativa. No chamado neoconstitucionalismo, reconhece-se que a Constituição é plena de pilares axiológicos de todo o sistema jurídico que, como se aludiu, deixam de servir apenas para o preenchimento de lacunas; antes disso, têm força normativa imediata. Há, neste mesmo passo, a constatação da superação do legalismo, bem como das ideias de distanciamento e neutralidade, tão difundidos pelas correntes positivistas. As ideias defendidas pelos movimentos neoconstitucionalistas têm, evidentemente, um caráter altamente positivo. Conquanto, a rigor, não se possa falar em um verdadeira ‘novidade’, são altamente saudáveis formulações dessa ordem, emprestando-se notável prestigio à força normativa da Constituição e aos princípios, sobretudo os de índole constitucional. Da mesma forma, tem merecido grande destaque, a ênfase e a necessidade de se estabelecer uma leitura constitucional do processo civil ou, como querem alguns, a adoção do chamado modelo constitucional do processo civil, fazendo-se expressa referência ao emprego das garantias e dos princípios constitucionais, na aplicação e interpretação do processo civil15. A esse respeito, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, pontificam: Dentro do Estado Constitucional, um Código de Processo Civil só pode ser compreendido como um esforço do legislador infraconstitucional para densificar o direito de ação como 15 Cf. Cássio Scarpinella Bueno. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2008. pp. 41 a 85. Do mesmo autor, o vol. 1 de seu Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva. pp. 40-242. Igualmente, sob essa mesma ótica, Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil. vol. I. São Paulo: Malheiros, 2001. pp. 180-183 e Hermes Zaneti Júnior, Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 171. 285 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho direito a um processo justo e, muito especialmente, como um direito à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva dos direitos. O mesmo vale para o direito de defesa. Um Código de Processo Civil só pode ser visto, em outras palavras, como uma concretização dos direitos fundamentais processuais previstos na Constituição16. No campo do processo, tal movimento não se pode ser tratado, igualmente, como genuína novidade. A constitucionalização do processo operou-se na segunda metade do século XX, conforme bem observou Calmon de Passos, como decorrência da evolução e maturação da cidadania e da ampliação da cláusula do devido processo legal17. Ada Pellegrini Grinover, em obra publicada em 1975 (Os princípios constitucionais e o Código de Processo Civil), já ressaltava: Hoje, acentua-se a ligação entre constituição e processo, no estudo concreto dos institutos processuais, não mais colhidos na esfera fechada do processo, mas no sistema unitário do ordenamento jurídico: é esse o caminho, ensina Liebman, que transformará o processo, de simples instrumento de justiça, em garantia de liberdade18. De fato. O primeiro – e quiçá mais sobrepujante – valor constitucional que deriva da análise da regulamentação que o processo recebeu a partir da Constituição, é o direito de ação ou o direito à prestação jurisdicional, visto e bem compreendido a partir do princípio 16 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC. Críticas e propostas. São Paulo: RT, 2010. p. 15. 17 CALMON DE PASSOS, J.J. A instrumentalidade do processo e o devido processo legal. In: Revista de Processo 102. São Paulo, abr.-jun 2001. p. 59. 18 GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1975. p. 4. 286 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho da ubiqüidade (art. 5. º, inciso XXXV). Já na Constituição anterior (EC 1/69) constava do art. 153, § 4.º, seguinte garantia: “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual”19. Desse postulado derivavam, segundo a melhor doutrina 20, todos demais princípios processuais constitucionais, para a realização de um justo e devido processo. E desde esse momento, então, haver-se-ia de reconhecer, legitimamente, a constitucionalização do direito de ação e, portanto, de todo o processo. E na medida em que se assegura, como direito fundamental do cidadão, o direito ao justo processo, ou à tutela jurisdicional justa, constitucionaliza-se o direito de ação e, portanto, todos os meios e instrumentos destinados a tal fim. Por isso é que se fala, com total acerto e propriedade, em um processo não mais visto sob o aspecto formal, mas 19 In verbis: “§ 4.º º A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido.” (redação dada pela Emenda Constitucional nº 7, de 1977). A Constituição de 1946 já contemplava garantia equivalente, em seu art 151, § 4º “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual.” 20 Ada Pellegrini destacara que a regra do citado art. 153, § 4º do texto constitucional então em vigor se prendia diretamente à cláusula do devido processo legal do sistema anglo-norte-americano. Ainda a mesma autora, refletindo sobre os dizeres aquele mesmo dispositivo, asseverava: “O art. 153, § 4º, consagra, no plano constitucional, o próprio direito de ação; o direito à prestação jurisdicional. Mas isso não é suficiente. Não basta afirmar a constitucionalização do direito de ação, para que se assegurem ao indivíduo os meios para obter o pronunciamento do juiz sobre a razão do pedido. É necessário, antes de mais nada, que por direito de ação, direito ao processo, não se entenda a simples ordenação de atos, através de qualquer procedimento, mas sim ‘o devido processo legal.” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1975. p. 180). E prossegue, então: “Parece defluir, portanto, do texto constitucional, uma tutela jurídica menos genérica e abstrata do que a mera obrigação de resposta do Estado, perante o pedido do autor; o texto também deve garantir a tutela dos direitos afirmados, mediante a possibilidade de ambas as partes sustentarem suas razões, apresentarem suas provas, influírem sobre a formação do convencimento do juiz, através do contraditório. O princípio da proteção judiciária, assim entendido, substitui, no processo civil, as garantias constitucionais de ampla defesa e do contraditório, explicitadas somente para o processo penal. (Op. cit., pp. 18-19). 287 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho como garantia mínima de meios e resultados. 21 Assim, na formulação de técnicas idôneas, é imprescindível compreender-se, “no contexto dos direitos fundamentais, aqueles de organização e de procedimentos” 22. E prossegue, Eduardo Cambi: “Tais direitos podem ser entendidos tanto como direitos ao estabelecimento de determinados institutos processuais ou a certos procedimentos quanto a uma determinada interpretação ou aplicação concreta das regras e dos princípios processuais. Com efeito, vinculam, simultaneamente, os legisladores e os juízes”23. Aqui também não se pode dizer tratar-se de uma genuína novidade. É certo, porém, que a hermenêutica proposta é de acentuado valor: nenhum instituto de direito processual poderá ser legitimamente aplicado senão que à luz dos postulados constitucionais. 3. Colisão entre princípios e a proporcionalidade Em razão de sua relatividade e abstratividade, os princípios não podem pretender serem empregados de forma absoluta em toda e qualquer hipótese. Isso decorre do fato de que a aplicação absoluta de um princípio que contem em si um valor acaba por infringir um outro valor, quando se trata de possível conflito entre dois princípios. A esse respeito elucida Willis Santiago: “[...] Não há princípio do qual se possa pretender seja acatado de forma absoluta em toda e qualquer hipótese, pois uma tal obediência unilateral e irrestrita a uma determinada pauta valorativa – digamos individual – termina por infringir uma outra – por exemplo, coletiva”24. 21 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. p. 218, fazendo referência às lições de Luigi Paolo Comoglio, Corrado Ferri e Michele Taruffo. 22 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualism. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. p. 219. 23 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. p. 219. 24 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Publicação do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2001. pp. 45-46. 288 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Portanto, um princípio encontra o seu limite em outro princípio. Todavia, não há negar-se que, na maioria das vezes, é de difícil ponderação saber qual o ponto exato a partir do qual aquele princípio não pode mais ser adotado na sua totalidade. Segundo Canotilho no “caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação, de harmonização, pois eles contêm apenas exigências ou standarts que em primeira linha prima facie devem ser realizados; as regras contêm fixações normativas definitivas sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias. Dito de outro modo: a convivência de princípios é sempre conflitual”25. Em sede de princípios a seleção se dará sempre a partir de critérios de conteúdo guiados, principalmente, pelo critério de racionalidade e da razoabilidade adotado no caso específico. É por esta razão que alguns doutrinadores tratam da resolução dos conflitos entre princípios pelo critério do peso. Em caso de conflito entre princípios também se deve fazer uso do princípio da proporcionalidade. Este foi esculpido, inicialmente, na seara do Direito Administrativo, em decorrência da ideia jusnaturalista, com a finalidade de coibir os abusos do poder de polícia, protegendo assim o cidadão de eventuais gravames aos direitos individuais. Nos Estados Unidos é conhecido como razoabilidade e decorre da cláusula “due process of law” em sua feição substantiva26. Nesse sentido, explica Willis Santiago Guerra Filho que: “[...] se preconiza o recurso a um “princípio dos princípios, o princípio da 25 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. 5. ed., Coimbra: Almedina, 1990. p.174. 26 Suzana Toledo de Barros assevera que: “O princípio da proporcionalidade tem dignidade constitucional na ordem jurídica brasileira, pois deriva da força normativa dos direitos fundamentais, garantias materiais objetivas do Estado de Direito. É haurido principalmente da conjunção dos artigos, 1º, III, 3º, I, 5º caput, II, XXXV, LIV e seus parágrafos 1º e 2º; 60, parágrafo 4º, IV. Neste sentido, complementa o princípio da reserva da lei, a ele incorporando-se no princípio da reserva legal proporcional.” (BARROS, Suzana Toledo de. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, pp. 210-211.) 289 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho proporcionalidade, que determina a busca de uma “solução compromisso”, na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo ao(s) outro(s), e jamais lhe(s) faltando minimamente com o respeito, isto é, ferindo-lhe seu ‘núcleo essencial’”27. Na mesma linha é a lição de Paulo Bonavides: Poder-se-á enfim dizer, a esta altura, que o princípio da proporcionalidade é hoje axioma do Direito Constitucional, corolário da constitucionalidade e cânone do Estado de direito, bem como regra que tolhe toda a ação ilimitada do poder do Estado no quadro de juridicidade de cada sistema legítimo de autoridade. A ele não poderia ficar estranho o Direito Constitucional brasileiro. Sendo, como é, princípio que embarga o próprio alargamento dos limites do Estado ao legislar sobre matéria que abrange direita ou indiretamente o exercício da liberdade e dos direitos fundamentais, mister se faz proclamar a força cogente de sua normatividade28. O princípio da proporcionalidade está a impor em caso de aparente conflito entre princípios deve haver uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada um deles. É dizer, um princípio deve renunciar a pretensão de ser aplicado de forma absoluta devendo prevalecer apenas até o ponto a partir do qual, deverá ser aplicado outro princípio que lhe seja aparentemente divergente29. Segundo Willis Santiago: “Em ambas as hipóteses, para 27 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Publicação do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2001. p. 61. 28 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional.. 6.ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1996, p. 397. 29 A esse respeito, nos valemos mais uma vez das palavras de Suzana Toledo de Barros: “Em caso de colisão de direitos fundamentais, a técnica correta para aferição da proporcionalidade em sentido estrito é a ponderação de bens, pela qual se estabelece uma relação de precedência condicionada, que vale como lei para determinado conflito. Esse procedimento é bastante útil para se aferir 290 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho evitar o excesso de obediência a um princípio que destrói o outro, e termina aniquilando os dois, deve-se lançar mão daquele que, por isso mesmo, há de ser considerado o ‘princípio dos princípios’: o da proporcionalidade”. Konrad Hesse entende que a fixação de limites deve responder em cada caso concreto ao princípio da proporcionalidade; não deve ir além do que seja exigido para a realização da concordância entre ambos os bens jurídicos. Deste modo, o autor entende que “proporcionalidade significa, neste contexto, uma relação entre duas magnitudes variáveis, concretamente, aquela que melhor responda a dita tarefa de otimização, não pois uma relação entre um “objetivo” constante e uno ou “meios” variáveis”30. Em sua obra clássica, Canotilho assevera: o campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens31. De acordo com Humberto Ávila, o postulado constitucional da proporcionalidade apenas há de ser aplicado em situações em que houver, efetivamente, uma relação de causalidade entre dois elementos a compatibilidade de uma norma legal restritiva de direito ao princípio em exame não somente quando a finalidade da lei foi a de limitar o âmbito de proteção de um direito, mas quando, a pretexto de regular determinada matéria, por via reflexa se operou a restrição a um outro direito. (BARROS, Suzana Toledo de. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais, Brasília: Ed. Brasília Jurídica, pp. 213-214). 30 HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional, Op. cit., p.46. 31 CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito constitucional. 5. ed., Coimbra: Almedina, p. 228. 291 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho empiricamente discerníveis, é dizer, um meio e um fim, de tal forma que o intérprete do Direito possa proceder ao exame de três parâmetros ou máximas, que integram o próprio conteúdo da regra da proporcionalidade: a) a adequação; b) a necessidade e, por fim, c) a proporcionalidade em sentido estrito32. Nessa linha, Gilmar Mendes, em voto proferido em julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus de n. 93.172/SP, asseverou: “Tal como já sustentei em estudo sobre a proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (‘A proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal’, In Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional. 2. ed. SP: Celso Bastos Editor: IBDC, 1999. p. 72), há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se, em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto).” Ainda, parece oportuno invocar a lição, sempre atual, de Recaséns Siches, sobre a lógica do razoável, ideia que sem dúvida alguma está pressuposta no princípio da razoabilidade.33 O próprio Supremo Tribunal Federal chancelou este entendimento, reconhecendo que “O postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais”34. Contudo, há que se reconhecer que nesse conflito de valores é preciso em cada caso concreto verificar qual o valor proeminente. Todavia, isto não está, de modo algum, a significar que exista uma escala 32 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos.13. ed., revista e ampliada, São Paulo: Malheiros, 2012. p. 187. 33 SICHES, Luis Recaséns. Introducción al Estúdio del Derecho. México: Porrúa, pp. 210 e ss. 34 STF, RE 200.844-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16.08.2002. 292 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho de valores objetiva e previamente definida. Um valor só pode sobreporse a outro na medida em que se examine o caso concreto. O princípio da proporcionalidade, em sentido estrito, está a determinar que se estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição normativa e o meio a ser empregado, que deve ser juridicamente o melhor possível, ou ainda, o menos gravoso35. Conclusões Diante de todo o exposto verifica-se que nem todas as normas da Constituição exercem a mesma função. E em razão disso elas podem ser divididas em normas regras e normas princípios. Os princípios são mais abrangentes e abstratos que as regras, por veicularem valores são dotados de grande subjetividade. Permeiam todo o Texto Constitucional conferindo harmonia e unidade ao sistema. Os princípios exercem função de relevo no Texto Constitucional na medida em que conferem coerência ao sistema, em virtude de sua natureza necessitam de um modo especifico de interpretação. Nesse cenário, como visto, se desenvolveu o neoconstitucionalismo que propugna por uma valorização dos princípios, dos direitos fundamentais e da força normativa da Constituição. No caso de conflito entre princípios eles necessitam da aplicação do principio da proporcionalidade. Esse princípio surge com um meio eficaz para solucionar conflitos entre princípios, pois não se pode negar aplicação a um princípio em detrimento de outro. O princípio da proporcionalidade impõe um sopesamento, um balanceamento entre os valores em conflito, de modo que não se negue aplicação a nenhum deles. A aplicação do princípio da proporcionalidade confere maior eficácia às normas constitucionais e preserva a força normativa da Cons35 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Publicação do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2001. p. 70. 293 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho tituição. Todavia, como exposto, sua aplicação não é tarefa das mais fáceis, pois impõe a necessidade de se aplicar com rigor os seus três subprincípios com vistas a encontrar a solução necessária, adequada e razoável. 294 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13. ed., revista e ampliada, São Paulo: Malheiros, 2012. BARROS, Suzana Toledo de. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 2000. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, 2. ed. revista e atualizada de acordo com a EC 45/2004, São Paulo: Saraiva, 2006. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Celso Bastos, 2002. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1996. BUENO, Cássio Scarpinella Bueno, Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2008. CALMON DE PASSOS, J.J. A instrumentalidade do processo e o devido processo legal. In: Revista de Processo 102, São Paulo, abr.-jun 2001. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo – Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. 295 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1991. COUTO, Mônica Bonetti; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Processo Civil e Constituição: Uma (Re) Aproximação Necessária. Trabalho submetido ao XXI Congresso Nacional do CONPEDI. ENTERRIA, Eduardo. Reflexiones sobre la ley y los principios generales del derech. Madrid: Editorial Civital, 1986. GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: José Bushatsky, 1975. GUERRA, Gustavo Rabay. Estrutura lógica dos princípios constitucionais: Pós-positivismo jurídico e racionalidade argumentativa na reformulação conceitual da normatividade do direito. In: Revista Brasileira de Direito Constitucional. ano 3, n. 7., São Paulo, 2006. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Publicação do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2001. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC – Críticas e propostas. São Paulo: RT, 2010. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010. SICHES, Luis Recaséns. Introducción al Estúdio del Derecho. México: Porrúa. 296 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 14 O direito e o ciberespaço Tiago Janini Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo . 297 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Introdução A rápida expansão da internet originou um novo ambiente social: o ciberespaço. Com uma velocidade espantosa, a cada dia desenvolvem-se, com a evolução tecnológica, aparelhos eletrônicos e formas de conexão que possibilitam aos cidadãos conectarem-se à rede mundial de computadores independente do momento e do lugar em que se encontram. O mundo fica cada vez mais globalizado. Nesse contexto, as relações sociais também se tornam virtuais, realizadas no ciberespaço. Sucede que os comportamentos sociais produzidos em um ambiente eletrônico não ficam livres de conflitos. Decorre outra novidade: os conflitos sociais virtuais. O direito é o meio utilizado para a regulação das condutas sociais, evitando e solucionando os seus embates. O direito, portanto, deve atuar no ciberespaço, regulando as condutas virtuais. O ambiente virtual necessita ser regulamentado. Porém, dúvidas começam a surgir sobre como devem ser geridos os conflitos ocorridos no ciberespaço. O direito pode regulamentar o ciberespaço? Como é feita a intervenção do direito no ciberespaço? O ciberespaço também tem o condão de influenciar o direito? Como os sujeitos do direito devem aplicar as normas jurídicas no ciberespaço? Para chegar ao objetivo proposto, utilizar-se-ão algumas lições da Teoria dos Sistemas de Luhmann e a contribuição de Stockinger acerca dos cibersistemas. Este estudo partirá do conceito de sistema proposto por Niklas Luhmann, visando a distinguir os subsistemas existentes no sistema social, dando principal enfoque ao subsistema do direito. Em seguida, com base em Gottfried Stockinger, buscase dar corpo ao conceito de cibersistema, como um subsistema social autônomo desenvolvido no ciberespaço. Assim, sinteticamente, podese dizer que o ciberespaço é um subsistema composto por operações próprias realizadas em âmbito virtual, que originam novas operações. Diante dessas premissas, analisam-se, em seguida, as possibilidades de 298 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho inter-relações entre o subsistema do direito e o cibersistema, apoiadas na Teoria dos Sistemas. A fim de fundamentar essa aproximação, recorrerse-á à legislação brasileira e a julgados dos tribunais superiores do Brasil, em especial Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ). 1. A teoria dos sistemas de Luhmann: breves considerações A teoria dos sistemas é uma proposta evolutiva da sociedade pós-moderna desenhada por Niklas Luhmann, que “substitui a oposição epistemológica ‘sujeito x objeto’ (abordagem objetivo-teorética) pela diferenciação funcional ‘sistema x meio’ (abordagem diferencialteorética) e considera como seu objeto não o ser humano, mas o intercâmbio de comunicação, consequentemente gerando a arquitetônica conceitual mais adequada para a sociedade informacional da era pósmoderna”36. Um dos principais alicerces da teoria luhmanniana consiste na diferenciação entre sistema e ambiente. O sistema só será delimitado, e, portanto, definido, em razão do ambiente que o circunda. O elemento escolhido por Luhmann para fazer a distinção da sociedade com o seu ambiente foi a comunicação37. Com isso, a delimitação do sistema social perante o seu entorno se dá por meio de operações comunicativas: não existe comunicação fora da sociedade e não há nada na sociedade que não possa ser comunicado. Desse modo, o sistema é definido por uma única operação: a comunicação. Não basta, todavia, a existência dessa operação; é necessária a sua recursividade, ou seja, uma operação deve ser capaz de se conectar em outra operação do mesmo tipo. Caracteriza a diferença entre o sistema e o ambiente a possibilidade de a operação comunicativa 36 Willis Santiago GUERRA FILHO, Teoria da ciência jurídica. p. 210 – grifo do original. 37 Introdução à teoria dos sistemas. p. 90. 299 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho se conectar a operações de seu próprio tipo, excluindo todas as demais. Por isso, a teoria dos sistemas proposta por Luhmann deve ser pensada em um emaranhado de operações fácticas e não em estruturas. As estruturas são úteis para o desenvolvimento das operações sistêmicas, mas não servem para produzir a diferenciação do sistema, uma vez que as operações realizadas no seu interior permitem identificar e segregá-lo do ambiente. Conforme realiza suas operações, o sistema se fecha em relação ao ambiente; essa clausura, porém, não deve ser vista como um isolamento total, em virtude da constante troca de informações que possui com o ambiente. É a dicotomia fechamento operacional e abertura cognitiva disposta na teoria luhmanniana. Um sistema é fechado operacionalmente, isolando-se, já que processa as informações do ambiente de acordo com operações e estruturas próprias do sistema. Apenas existe dentro do sistema a sua própria operação. O sistema é fechado operacionalmente porquanto só se constitui mediante operações internas. O encerramento operativo não impede que o sistema realize contínuas trocas de informações com o ambiente, desde que processadas internamente, podendo ser considerado aberto, mas de forma cognitiva. O que não é possível é o sistema operar no ambiente e nem o ambiente agir no sistema. Assim, as operações realizadas pelo sistema consistem basicamente na seleção e no processamento interno de informações colhidas no ambiente. A partir do axioma do fechamento operativo decorrem a autoorganização e a autopoiesis do sistema. Luhmann alerta que são conceitos distintos, cada um destaca aspectos específicos do encerramento da operação38. Por auto-organização entende-se a construção das estruturas pelo próprio sistema. Já a autopoiesis significa a determinação do estado posterior da operação a partir da limitação anterior. O sistema autopoiético produz elementos para seguir produzindo mais elementos, como uma 38 Introdução à teoria dos sistemas, p. 112. 300 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho história sem final. O sistema autopoiético implica auto-organização, tido como uma rede de produção de componentes e estruturas dentro do próprio sistema. Fora do sistema, isto é, no seu meio, outros fatos surgem, porém só terão significado para o sistema quando conectados à comunicação. Dito de outro modo, os acontecimentos do mundo irão ingressar no sistema social quando revestidos na forma de comunicação, momento em que se tornarão fatos sociais de acordo com as operações do sistema. Desse modo, o sistema social transforma um elemento extrassistêmico em elemento sistêmico. Essa inter-relação denominada de acoplamento estrutural consiste na forma de o sistema realizar distinções para selecionar no ambiente as informações relevantes para as suas operações internas. Os acoplamentos estruturais não produzem operação no sistema, apenas irritações, perturbações. Aquilo que vem de fora entra no sistema via acoplamento estrutural e deve ser transformado em elemento compatível para ser processado no sistema. Verifica-se que o sistema pode reagir às irritações e aos estímulos advindos do ambiente somente se processadas por meio de suas próprias operações. Percebe-se que o acoplamento estrutural é responsável pela troca de informações, gerando uma nova comunicação no interior do sistema. 2. Subsistemas sociais: o direito como autopoiético sistema A distinção entre sistema e ambiente é repetida dentro da sociedade, permitindo a formação de sistemas parciais (ou subsistemas), tais como a economia, a ciência, a política, a religião, o direito, etc. Forma-se a distinção subsistemas/ambiente, sendo que cada subsistema será ambiente para os demais39. A comunicação social se especializa, com 39 Willis Santiago GUERRA FILHO esclarece que a distinção entre sistema e ambiente é levada 301 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho o aparecimento de comunicações específicas, que geram os subsistemas. Assim, apesar de utilizarem a mesma matéria-prima, o que caracteriza cada subsistema é a sua comunicação diferenciada. Atente-se ao subsistema econômico, que além de possuir uma comunicação própria, ser autopoiético e realizar operações internas com suas estruturas, será considerado ambiente desde que observado pelos subsistemas da política, da ciência, da religião, do direito. Isso porque tudo o que não pertence a um sistema deve ser considerado como seu ambiente. É indubitável que cada subsistema troque informações com outros, por meio de sua abertura cognitiva, visando a desempenhar uma função específica. Acontece que cada subsistema observa e processa as prestações oriundas de subsistema diverso com base em operações internas. Essas operações se desenvolvem mediante uma programação e código próprio de cada subsistema, o que garante a sua autopoiesis. Como se viu, para elaborar novos elementos em seu interior, um sistema até pode receber influência de outros, já que é aberto cognitivamente, mas somente os reproduz conforme suas operações próprias. O ambiente não pode operar dentro do sistema, apenas provoca irritações, que serão absorvidas de acordo com as suas estruturas específicas, por meio do acoplamento estrutural. “Em relação ao sistema, atuam as mais diversas determinações do ambiente, mas elas só são inseridas no sistema quando este, de acordo com os seus próprios critérios e código-diferença, atribui-lhes sua forma”40. Dessa feita, o direito, a economia, a política, a religião, a ciência são conjuntos distintos, cada um portador de uma comunicação específica. Entretanto, tais sistemas mantêm uma ampla irritação entre si, trocando informações. Com isso, aspectos do ambiente são processados segundo para dentro do próprio sistema social, sendo que, deste modo, “a sociedade aparece como ‘ambiente’ dos próprios sistemas parciais, que dele (e entre si) se diferenciam por reunirem certos elementos, ligados por relações, formando uma unidade.” Teoria da ciência jurídica. p. 182 – grifo do original. 40 Marcelo NEVES, A constitucionalização simbólica. p. 129. 302 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho as regras específicas de cada sistema. Note-se que os sistemas não vivem isolados, sendo possível adquirir informações de outros sistemas, que neles ingressam por operações próprias. Para Celso Campilongo, “política, economia e direito podem trocar prestações, mas nunca atuar com lógicas intercambiáveis. Dito de outro modo: os sistemas sociais particulares são funcionalmente isolados e, por isso, só podem ser autocontrolados e autoestimulados”41. Assim, cada sistema opera segundo seus próprios padrões, sem que sofra uma sobreposição de funções de outros; melhor dizendo, não há hierarquia entre os subsistemas sociais. Os sistemas executam suas operações de acordo com as suas estruturas e seus elementos, a fim de garantir a função que lhes é inerente. Por isso, o direito, por meio de suas estruturas (normas jurídicas), desempenha a sua função específica de garantir expectativas normativas. Desse modo, o direito pode ser visto como um subsistema autônomo42, autopoiético, com operações, estruturas, função e códigos próprios que o diferenciam dos demais subsistemas, que se tornam ambiente para ele. Isso quer dizer que existe uma comunicação jurídica específica que se diferencia da comunicação produzida por qualquer outro subsistema43. Luhmann ressalta que a comunicação jurídica somente é reconhecida por meio da função e do código do sistema jurídico44. O código binário do subsistema do direito pode ser expresso no binômio direito/não-direito; lícito/ilícito. De acordo com esse código, as comunicações jurídicas serão qualificadas como pertencentes ou não ao direito. Assim sendo, as condutas sociais farão parte do sistema jurídico 41 O direito na sociedade complexa. p. 74. 42 Niklas LUHMANN, El derecho de la sociedad. p 88. 43 Esclarece Willis Santiago GUERRA FILHO que o “sistema jurídico, enquanto autopoiético, é fechado, logo, demarca seu próprio limite, autoreferencialmente, na complexidade própria do meio ambiente, mostrando o que dele faz parte, seus elementos, que ele e só ele, enquanto autônomo, produz, ao conferir-lhes qualidade normativa (= validade) e significado jurídico às comunicações que nele, pela relação entre esses elementos, acontecem”. Teoria da ciência jurídica. p. 189. 44 El derecho de la socieda. p. 116. 303 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho apenas quando introduzidas por meio do programa do direito, que são as normas jurídicas. Em outros termos, somente por meio de estruturas jurídicas conhecidas como normas jurídicas é que as informações do ambiente ingressam no direito, determinando condutas lícitas ou ilícitas. O direito visto como um sistema autopoiético autônomo possui uma comunicação exclusiva. De acordo com Willis Santiago Guerra Filho, a transmissão da regulamentação das condutas ocorre por meio das aplicações das normas do sistema realizadas por juízes quando decidem lides, por particulares ao produzirem um contrato, pelos legisladores ao elaborarem leis45. Ao que parece, todos esses atos de aplicação resultam normas jurídicas em suas mais diversas espécies: individual, geral, concreta e abstrata. Desse modo, a recursividade do sistema jurídico consiste em normas aplicadas pelos sujeitos competentes que resultam em mais normas jurídicas. A evolução do subsistema do direito se dá por meio do acoplamento estrutural com o seu entorno. Os fatos sociais, isto é, as informações dos demais subsistemas, causam uma irritação no sistema jurídico que será por ele processada por meio das normas jurídicas. O acoplamento estrutural entre o sistema jurídico e seu ambiente só é possível em razão de sua abertura cognitiva e requer o uso das estruturas normativas processadas pelo código lícito/ilícito. O direito não só recebe informações dos outros sistemas, como também as transmite-lhes, ou seja, o direito além de ser irritado pelos outros subsistemas também os irrita. Na política, por exemplo, é o direito que estipula a forma de governo, as regras de eleição, quem pode votar, etc. Na economia, o direito cria situações favoráveis ao desenvolvimento de determinados setores, elevando ou diminuindo a carga tributária; estabelece formas de financiamento de imóveis; entre outras relações. Entretanto, repita-se, é a estrutura de cada um desses subsistemas sociais que determina a forma com que essa comunicação jurídica será 45 Teoria da ciência jurídica. p. 195. 304 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho representada internamente, de modo que somente serão fatos políticos, econômicos, religiosos, científicos, se forem constituídos de acordo com a comunicação específica de cada subsistema em virtude do fechamento operativo que possuem. Percebe-se, então, que o direito, por regular condutas humanas (econômicas, políticas, religiosas, etc.), produz informação que age em outros subsistemas sociais, irritando-os. Em vista disso, o direito gera comunicação jurídica a ser processada pelas estruturas dos demais subsistemas sociais na autopoiesis específica de cada um. Em razão do fechamento operativo, o direito não consegue alterar a realidade social diretamente, principalmente porque uma conduta prescrita em uma norma jurídica pode ser desobedecida pelo seu destinatário. O simples fato de uma norma jurídica proibir matar alguém não impede o acontecimento dessa conduta. O direito provoca irritações na sociedade, prescrevendo como deseja que determinadas condutas humanas sejam materializadas. Acontece que essa informação vai ser processada pelo sistema social de acordo com suas próprias estruturas, podendo alterá-lo ou não. 3. Cibersistemas A internet modificou vertiginosamente um dos principais aspectos do comportamento humano: a sua comunicação. Desse impacto, outras relações sociais são atingidas. “Atividades econômicas, sociais, políticas, e culturais essenciais por todo o planeta estão sendo estruturadas pela Internet e em torno dela, como por outras redes de computadores”46. Surge, pois, um ambiente em que pessoas de todos os países, das mais diversas culturas e linguagens, encontram-se trocando informações processadas digitalmente em uma rede de computadores interconectada, sem que tenham uma forma material estável no tempo e 46 CASTALLS, Manuel. A galáxia da internet. p. 08. 305 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho no espaço, e sem respeito a qualquer espécie de fronteira. Com a internet é possível se comunicar, trocar informações, trabalhar, estudar, comprar, vender, negociar, divertir-se, entreter-se, interagir com outras pessoas. Por meio da rede digital pode o homem exercer praticamente todas as tarefas que lhe cabem na sociedade. Percebe-se que a internet revolucionou o tempo e o espaço. As tecnologias da informação com base na eletrônica apresentam uma capacidade de armazenamento de memória e velocidade de combinação e transmissão de bits incomparáveis. Com isso, permite-se dizer que há uma relação espaço/tempo ubíqua e assíncrona. O tempo linear passa a dar lugar a uma estrutura atemporal, com relatos praticamente instantâneos dos acontecimentos. O espaço também perde sua referência tradicional, ficando obsoleta a ideia de espaço físico. Surge, então, um novo ambiente humano e tecnológico, moldado pela rede mundial de computadores que permite o trânsito da informação entre pessoas de todos os países em tempo praticamente real: o ciberespaço. Com a rede mundial de computadores ocorrem fluxos de informação ao redor do mundo, sem qualquer fronteira. E quanto mais se desenvolve a internet, ampliando as formas de acesso, mais o ciberespaço progride, com o aumento das atividades sociais virtuais e o surgimento de novas condutas sociais virtuais. As implicações culturais e sociais do digital se aprofundam a cada evolução dos sistemas telemáticos. Como foi possível perceber, do ponto de vista do ciberespaço, a localização geográfica é irrelevante: toda a informação pode chegar a qualquer lugar. Essa não materialização do ciberespaço permite a sua ampliação, possibilitando mais pessoas ingressarem em seu mundo ao acessarem a internet. Novos computadores são interconectados, novas informações são injetadas na rede, ampliando os limites do ciberespaço. Assim, o ciberespaço, visto como a arquitetura do mundo virtual criado por redes de computadores tem permitido o surgimento de novas maneiras de conviver, de interagir, de organizar-se em comunidades e de 306 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho pensar, implicando desafios ao mundo “real”. As relações econômicas, sociais, políticas, culturais e as jurídicas são transformadas, e precisam ser repensadas. O surgimento e desenvolvimento da internet, com a integração de todos os tipos de mídia em um único suporte, permite uma nova forma de comunicação entre os seus usuários. O ciberespaço passa a influenciar nos comportamentos sociais, rompendo com as estruturas tradicionais. Nesse contexto, pode-se verificar que o ciberespaço passa a influenciar os sistemas sociais. Surgem novas relações econômicas, religiosas, científicas, jurídicas decorrentes desse novo âmbito comunicacional. Gottfried Stockinger atento às inter-relações entre o ciberespaço e o sistema social, apoiado na teoria dos sistemas de Luhmann, verifica que o ciberespaço pode ser visto como um sistema autônomo (sui generis) e não apenas como um novo medium que amplia a comunicação social47. Desse modo é possível pensar em um cibersistema possuidor de uma comunicação própria que conduz ao seu fechamento operativo. Consiste em um conjunto de operações, em que cada estrutura depende de outra desenvolvendo novas relações que possibilitam o surgimento de novas estruturas. Para ingressar no cibersistema, a informação requer a sua tradução pelas estruturas do sistema. É o cibersistema em sua autopoiesis: cibercomunicação produz cibercomunicação por meio de cibercomunicação. Dessa constatação decorre importante conclusão: os usuários da rede formam apenas o seu ambiente. Stockinger afirma que “A estrutura comunicativa da rede não representa, portanto, um dispositivo que regula diretamente o pensamento e as ações humanas. Ela orienta apenas a comunicação que tornará a aceitação de determinadas mensagens e informações mais prováveis do que outras”48. O usuário, ao se conectar com a rede, passa a criar e reproduzir um sistema social, mas sem integrá-lo. 47 A sociedade da comunicação. p. 188. 48 A sociedade da comunicação. p. 185-6. 307 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho É evidente que o ciberespaço gera um aumento de complexidade nos sistemas sociais. Tal informação permite identificar o acoplamento estrutural entre ambos; cada subsistema evolui com outro, sendo, ao mesmo tempo, ambiente para outro subsistema. Uma cibercomunicação, quando é constantemente utilizada pelos sistemas sociais em sua autopoiesis, passa a fazer parte das comunicações sociais. É a irritação que o cibersistema causa no sistema social, que somente será processada por meio de suas próprias comunicações sociais. Nesse sentido, Stockinger ensina que o cibersistema além de ser visto como sistema autônomo49, também é considerado ambiente do sistema social. Como ambiente, o ciberespaço é considerado o medium de interação entre sistemas psíquicos e sociais, por ser o suporte em que as comunicações ocorrem entre os participantes que utilizam a internet. Com isso, constrói-se um quadro em que os subsistemas sociais passam a interagir com o cibersistema. Há uma nítida irritação do ciberespaço no sistema social, porém a cibercomunicação somente será processada nos subsistemas sociais por meio do acoplamento estrutural entre esses sistemas, ou seja, mediante operações e códigos próprios de cada subsistema. 4. A aplicação do direito diante do ciberespaço Ao se visualizar o direito como um subsistema contido no sistema social, surgem possibilidades de desenvolver novas formas de acoplamento estrutural com os demais subsistemas que formam o seu ambiente social. Destacando-se o cibersistema como um sistema autônomo, possuidor de sua própria autopoiesis e auto-organização, pode-se concluir que o acoplamento estrutural permite que as operações do cibersistema produzam eficazes irritações no sistema jurídico, e, também, que as operações jurídicas irritem o cibersistema, sem modificar 49 Ibid., p. 188. 308 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho o fechamento de ambos os sistemas, isso porque o direito é ambiente para o cibersistema e na mesma proporção que o cibersistema é ambiente para o direito. Em outras palavras, a cibercomunicação pode produzir efeitos no sistema jurídico por meio das normas jurídicas, assim como as normas jurídicas podem desencadear operações virtuais no cibersistema. O direito pode ser definido como um conjunto de regras que orientam o homem em sociedade, inclusive, na sociedade em rede. As condutas humanas reguladas pelo direito ingressam no sistema jurídico por meio das normas jurídicas, conforme sua autopoiesis. Os fatos são transformados em fatos jurídicos ao entrar no mundo do direito pelas normas jurídicas. E qual o procedimento para as novas normas entrarem no sistema? É novamente o direito que determina esse fenômeno, prescrevendo as formas de produção dos diplomas normativos50. Leis ordinárias, leis complementares, emendas constitucionais, decretos, regulamentos são produzidos segundo regras jurídicas. Observa-se que o direito tem uma dupla função: regular o homem em sociedade e regular a produção normativa. São duas espécies de normas que se encontram no sistema jurídico: normas de conduta e normas de estrutura ou de competência51. Utilizando-se a teoria luhmanniana, as normas de conduta são o meio que o direito utiliza para irritar os demais subsistemas sociais, isto é, são operações jurídicas que produzem informações que devem ser processadas por outros subsistemas, de acordo com as estruturas próprias de cada um. A título de exemplo, pode-se citar o dispositivo do Código 50 A característica da recursividade do sistema jurídico, em que normas são produzidas de acordo com o conteúdo de outras normas, já fora percebida por Willis Santiago GUERRA FILHO. Afirma o ilustre professor: “Para que haja um ordenamento jurídico regulando condutas, é preciso não só normas para fornecer essa regulamentação, como também condutas que estabeleçam essas normas, e, em sendo esse ordenamento autônomo, as condutas que estabelecem novas normas já são elas próprias reguladas por normas anteriores”. Teoria da ciência jurídica. p. 191. 51 BOBBIO, Norberto. Da norma ao ordenamento jurídico. p. 33 e ss. Deve-se registrar que tal distinção não está protegida de críticas, pois as normas de estrutura também prescrevem um comportamento humano, já que a produção de novas normas requer necessariamente a presença humana em sua elaboração. 309 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Brasileiro de Trânsito que obriga os passageiros de veículo automotor a utilizarem o cinto de segurança. Essa norma será processada internamente e produzirá efeitos jurídicos conforme a regra do jogo do direito. Uma vez descumprida, o sistema jurídico prevê a aplicação de multa. Tudo isso na tentativa de influenciar o sistema social, que absorverá os seus comandos por meio da sua comunicação específica, que são as condutas humanas. A existência de uma norma jurídica cujo conteúdo prescreve que todos devem utilizar o cinto de segurança não é suficiente para que o sistema social processe essa informação. Por sua vez, as normas de estrutura orientam a auto-organização do direito, como o direito irá realizar suas operações internas, produzindo novas normas jurídicas. Uma lei não ingressa facilmente no sistema do direito, é preciso seguir o procedimento adequado, eleito pelo próprio sistema jurídico, para poder fazer uma espécie legislativa. E se essa lei for inserida em desacordo com o sistema? Mais uma vez o direito irá dizer como ela deve ser extirpada do sistema, sendo declarada inconstitucional, por exemplo. Aqui o direito cria as regras do seu jogo, estabelecendo quem pode e como se deve jogar. Sucede que o direito pode utilizar o ciberespaço como um instrumento para melhorar o desenvolvimento de suas tarefas. O que surge é um sistema jurídico interconectado com o sistema eletrônico. Toda a organização judiciária começa adequar-se à tecnologia baseada na internet, configurando novos padrões para a comunicação jurídica. Sob outro aspecto, aparecem condutas sociais que são realizadas no âmbito do ciberespaço, necessitando da regulamentação do direito. São fatos virtuais que originam conflitos em um ambiente inovador. Observe o comércio eletrônico. Se se compra um produto via internet de empresa localizada na França, a quem se deve reclamar? São novos anseios da sociedade que clamam por um posicionamento do sistema jurídico. Percebe-se que o ciberespaço relaciona-se tanto com as normas de estrutura como com as normas de comportamento, provocando 310 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho irritações no sistema jurídico. Aires Rover diferencia o Direito da Informática da Informática Jurídica52. No primeiro caso a informática é o objeto do direito, abrangendo o estudo das normas jurídicas que regulam os sistemas eletrônicos na sociedade e suas consequências. Já a Informática Jurídica, na qualidade de meio, diz respeito ao emprego da tecnologia no âmbito do direito. A conexão entre o cibersistema e o sistema do direito é compreendida por meio do acoplamento estrutural entre eles. O acoplamento estrutural estabelece o contato entre os subsistemas, sendo que as informações advindas do ambiente devem ser processadas por meio das estruturas próprias de cada um. O direito, via acoplamento estrutural, seleciona no ambiente do cibersistema aquilo que irá acarretar efeitos em seu interior e, ao mesmo tempo, deixa de lado o que não lhe convém. Há muita comunicação sendo produzida no cibersistema, porém nem todas essas informações ingressarão no mundo jurídico. Somente aquilo que as normas jurídicas selecionarem é que passarão a integrar o direito. O cibersistema, ao conter novos tipos de comunicação, irrita o direito, fazendo com que esse subsistema evolua, produzindo comunicação jurídica. Aqui são utilizadas normas de condutas, que contêm em seu bojo comportamentos sociais ocorridos no cibersistema. Seria o que foi chamado de Direito da Informática por Aires Rover. Um claro exemplo pode ser dado com a pornografia infantil difundida pela internet. Antes do surgimento do cibersistema esse não era um comportamento existente na sociedade. Com a internet, apareceu a possibilidade de se divulgarem fotografias pornográficas de crianças e adolescentes pela rede. Observe que é uma cibercomunicação que passa a irritar o sistema jurídico, exigindo seu posicionamento sobre a conduta, determinando se a conduta é lícita ou ilícita. 52 ROVER, Aires José. Informática no direito. p. 14. Registra-se que o autor identifica uma terceira relação entre o sistema jurídico e o sistema telemático, que consiste na análise de técnicas de inteligência artificial para a solução de conflitos jurídicos, os chamados sistemas especialistas legais. 311 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Na redação original do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), Lei 8.069/90, não havia qualquer menção ao ciberespaço, de modo que o tipo penal contido no art. 241 prescrevia ser crime fotografar e publicar cenas de sexo explícito de adolescentes. Por não haver expressamente a previsão legal de ser crime a utilização da internet na divulgação do conteúdo pornográfico, usava-se a tese de que essas fotografias postadas no ciberespaço caracterizava uma conduta atípica. Com isso, surgiu um imenso debate jurídico nos tribunais sobre o conteúdo do verbo “publicar”. Instado a se manifestar, o STF posicionou-se no sentido que o fato de divulgar e reproduzir fotos pornográficas de crianças e adolescentes na internet era sim abrangido pelo tipo penal, classificando a conduta como ilícita (ver HC 84561, Rel. Min. Joaquim Barbosa). Verifica-se a existência de uma cibercomunicação que foi a divulgação de material pornográfico de crianças e adolescentes na internet. Em seguida, o direito, diante dessa informação do ambiente, processou-a por meio de operações próprias, produzindo comunicação jurídica com a manifestação do Poder Judiciário, inserindo no sistema jurídico, com a sua decisão, uma norma individual e concreta, cujo conteúdo afirmava ser a conduta ilícita. A irritação não parou por aí. Diante da omissão contida no ordenamento jurídico, o legislador viu necessidade de modificar o ECA, criando um crime específico para o caso de divulgação de fotografias pornográficas de crianças e adolescentes pela internet. O direito foi irritado pelo cibersistema, porém reagiu a essa perturbação por meio de sua autopoiesis, via acoplamento estrutural, e produziu normas jurídicas de conduta conforme a informação que recebeu do ambiente. Normas gerais e abstratas. Dito de outro modo, a cibercomunicação ingressou no sistema do direito, porém, por meio de operações jurídicas, que se reproduziram criando novas operações jurídicas. O direito, ao estatuir normas de condutas cujo conteúdo seja comportamentos cibersociais, também irrita o cibersistema, que deverá 312 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho processar essas informações conforme a sua cibercomunicação. Tomese como exemplo o certificado digital. Caso haja interesse em produzir documentos eletrônicos que contenham a garantia de autenticidade, é necessária a observância das regras contidas na Medida Provisória 2.200-2 de 2001. Agora é a comunicação jurídica que irrita o cibersistema, que deve processar essas informações segundo os padrões cibercomunicacionais. Por sua vez, as normas de competência apropriam-se das novas tecnologias da informação, para auxiliarem-nas no processo de produção normativo. O cibersistema mais uma vez perturba o subsistema do direito. O direito, em sua auto-organização, contém normas jurídicas que dizem como se produz normas jurídicas. Nesse âmbito é possível encontrar a influência da cibercomunicação, que o direito se apropria, por meio de normas jurídicas e que o auxiliam no processo de produzir novas normas jurídicas. Veja-se o processo eletrônico. Há o uso de cibercomunicações pelo direito para fazer com que o processo judicial seja mais eficiente, econômico e justo. O uso do e-mail, os sites dos tribunais, a citação eletrônica, são ferramentas que contribuem com o andamento processual. Porém, tais cibercomunicações só ingressaram no direito por meio de norma jurídica, que foi a Lei 11.419/06. Em que pese serem poucos os exemplos apontados, é fácil perceber a constante perturbação que o cibersistema causa no direito. Sempre se deve ter em mente que tal irritação somente pode processada pelo subsistema jurídico e transformada em comunicação jurídica por meio das suas operações internas. Jamais haverá cibercomunicação no direito. Se não houver normas jurídicas, sejam elas de conduta ou de estrutura, o ciberespaço não irá se relacionar com o direito. Conclusões Com o surgimento da internet, o ciberespaço tornou-se um lugar propício para o surgimento de novas relações sociais. Criou-se o comércio eletrônico, amizades e namoros virtuais, crimes virtuais, 313 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho operações bancárias realizadas pela rede, etc. A grande evolução desse convívio social fez com que fosse possível pensar em um sistema autônomo, portador de uma comunicação própria, como estruturas e operações que o diferenciassem do sistema social tradicional. Origina-se, portanto, o cibersistema, autopoiético, em que cibercomunicação produz cibercomunicação por meio de cibercomunicação. Nesse contexto, o cibersistema passou, constantemente, a irritar o subsistema do direito, requerendo respostas para os emergentes desafios sociais. Essa troca de informações só é possível entre sistemas por meio do acoplamento estrutural. Assim, um subsistema irá selecionar as informações contidas no seu ambiente (outros subsistemas) e as processará internamente de acordo com suas operações, sem ferir o seu fechamento operativo. Desse modo, a relação entre direito e ciberespaço só ocorre com o acoplamento estrutural. O direito recebe informações do ambiente, no caso o cibersistema, em seguida, seleciona aquelas que julga interessantes e as processa conforme a comunicação jurídica. Sem as normas jurídicas a cibercomunicação não irá se transformar em comunicação jurídica. Isto porque a estrutura que o subsistema jurídico escolheu para aplicar o código lícito/ilícito foi a norma jurídica. Hoje em dia é sobremodo importante a relação entre cibersistema e sistema jurídico, já que cada vez mais condutas humanas são realizadas no ciberespaço. Assim, o direito produz normas jurídicas cuja finalidade é regular as condutas humanas virtuais; sem deixar, porém, de observar as regras que determinam o seu fechamento operativo, sob pena da falência do sistema. 314 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências BOBBIO, Norberto. Da norma jurídica ao ordenamento jurídico. 9. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997. CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000. CASTELLS, Manuel. A galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001. LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. 2. ed. Petrópolis/ RJ: Vozes, 2010. _______________. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Universidad Iberoamericana, 2002. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ROVER, Aires José. Informática no direito: inteligência artificial. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2008. STOCKINGER, Gottfried. A sociedade da comunicação: o contributo de Niklas Luhmann. Papel Virtual: Rio de Janeiro, 2003. 315 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 15 Justiça e bem comum* Victor Emanuel Vilela Barbuy Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008). Mestrando em Direito Civil, na subárea História do Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. * O presente artigo se constitui em versão revista e ampliada de trabalho apresentado no segundo semestre do ano de 2011 no curso de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), na disciplina “O Direito e as formas de Justiça”, ministrada pela Professora Doutora Elza Pereira Boiteux. 316 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Introdução No presente artigo, partindo das concepções tomistas de Justiça e de Bem Comum e da divisão aristotélica das formas de Justiça, buscamos demonstrar que não existe Justiça sem respeito ao Bem Comum, que é, ademais, a medida da legitimidade do Estado, da Sociedade, das instituições e das formas de governo. E concluímos sustentando que, imbuídos do mais sadio sentimento de idealismo orgânico, isto é, de um idealismo alicerçado na experiência e orientado pela observação do povo e do meio, devemos defender a tradição do Bem Comum, pugnando pela integral restauração de seu primado, condição vital para a instauração de um autêntico Estado Ético de Justiça, ético por se inspirar na Ética e se mover por um ideal ético e de Justiça por se pautar nas regras da Justiça e ser movido por um ideal de Justiça. Tal Estado, que não se confunde com o Estado Ético totalitário de Hegel ou Gentile, é um Estado a um só tempo antitotalitário e anti-individualista, não sendo, pois, um Estado absorvente, que sacrifica a pessoa humana ao seu poder despótico, nem um Estado fraco, que sacrifica o Bem Comum a um individualismo sem peias. 1. Justiça e bem comum Profunda e sólida é a tradição que a ideia de Bem Comum representa no pensamento jurídico ocidental. Tal tradição tem ocupado, com efeito, lugar de suma importância tanto na teoria quanto na prática jurídica e política de nosso hemisfério (Blázquez Martín, 2008, p. 183), estando presente na obra dos mais diversos autores (Idem, loc. cit.; D’Antrèves, 2001, p. 262). Suas origens remontam à chamada Antiguidade, estando presente, ainda que de forma embrionária, na obra de Platão, que, em A politeia, nos fala dos guardiões da Pólis, dentre os quais sairiam seus governantes, que, educados de maneira virtuosa, fariam o que reputassem ser o Bem da Pólis, jamais aceitando fazer 317 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho aquilo que não o fosse (Platão, 2009, p. 125). Está presente, ademais, e de forma mais clara, na obra de Aristóteles, que preleciona, por exemplo, que o propósito dos legisladores é o Bem da comunidade, e que a Justiça é, por vezes, definida como aquilo que concorre para o Bem de todos (Aristóteles, 2009, p. 251). E está presente, ainda, na História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, obra, aliás, anterior a politeia, de Platão, em passagens como aquela do discurso fúnebre de Péricles, em homenagem aos primeiros mortos atenienses daquele conflito, onde se ressalta que aqueles homens deram suas vidas para o Bem da Pólis (Péricles apud Tucídides, 1986, p. 101). Embora o termo Bem Comum apareça em diversas traduções de obras helênicas, incluindo a última aqui citada, surgiu ele, em verdade, segundo Nicola Abbagnano, apenas na denominada Idade Média (Abbagnano, 2007, p. 124), época em que, ademais, nomeadamente na obra de Santo Tomás de Aquino, se constituiu a doutrina do Bem Comum em sentido estrito, que, baseada na leitura do pensamento aristotélico à luz da Tradição e da Revelação Cristã (Blázquez Martín, 2008, p. 188), se configura, segundo Georges Renard, na grande contribuição do pensamento medieval (Renard. In Michel, 1932, p. 17). Santo Tomás, que fez, com efeito, do Bem Comum elemento central de seu pensamento político e jurídico, definiu a própria lei positiva como a “ordenação da razão para o bem comum”, promulgada por aquele que tem o encargo da comunidade perfeita (Aquino, 1980, p. 1736). Isto posto, faz-se mister salientar que Santo Tomás de Aquino fez a “análise do sentimento de justiça” em “termos nunca depois ultrapassados”, conforme faz salientar Léon Duguit (Duguit, 1927, p. 122), havendo, ademais, conduzido ao apogeu, por meio de sua obra, o Direito Natural Clássico, ou Direito Natural Tradicional, nos legando, com efeito, lições tão válidas hoje quanto no século XIII e que se constituem nas colunas sobre as quais foi possível construir uma ciência jurídica que, na expressão de Rubens Limongi França, “sem perder de 318 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho vista a realidade externa dos fatos, não fizesse abstração dos juízos de valor, propiciando assim a restauração da concepção integral, e, por isso mesmo, realista e verdadeiramente científica do Direito” (França, 1961, pp. 264-265). O Bem Comum, conceito que, na frase de Pablo Lucas Verdú, demonstra, como poucos, “qualidades frutíferas, no campo da filosofia social”, sendo, segundo aquele professor salmantino, “patrimônio de toda construção orgânica e personalista da sociedade” (Verdú, 1951, p. 51), representa “para a teoria do Estado aquilo que o Direito Natural representa para a teoria do Direito” (D’antrèves, 2001, pp. 261-262), posto que, do mesmo modo que não há lei positiva ou ordenamento jurídico justo e legítimo sem respeito ao Direito Natural, não há Estado ou Governo justo e legítimo sem respeito ao Bem Comum. Ademais, sendo a lei humana, ou lei positiva, consoante preleciona Santo Tomás de Aquino, como restou dito, a “ordenação da razão para o bem comum”, promulgada pela autoridade competente (Aquino, 1980, p. 1736), não há que se falar em lei positiva ou em ordenamento jurídico justo e autêntico sem que sejam levados em conta os ditames do Bem Comum. E, da mesma forma, sendo a Justiça, conforme aduz o Doutor Angélico, com base na definição do jurisconsulto romano Ulpiano, “um hábito pelo qual, com vontade constante e perpétua, atribuímos a cada um o que lhe pertence” (Idem, 1937, p. 19. Grifos em itálico no original), e sendo que, ainda segundo ensina o Aquinate, “todos os que fazem parte de uma comunidade estão para esta como a parte está para o todo”, de sorte que “qualquer bem da parte se ordena ao bem do todo” e que, portanto, “o bem de qualquer virtude, quer o da que ordena o homem para consigo mesmo, quer o da que o ordena a qualquer outra pessoa singular, é referível ao bem comum, para o qual a justiça ordena” (Idem, pp. 28-29), é manifesto que não há que se falar em Justiça sem se tomar em consideração o Bem Comum. Esta é, com efeito, também a posição do jusfilósofo patrício Miguel Reale, para quem, objetivamente 319 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho considerada, “a justiça se reduz à realização do bem comum” (Reale, 1953, p. 250). Com efeito, a justiça geral, também denominada legal, que é aquela que vai da pessoa para a Sociedade, se fundamenta na obrigação, que todos têm, de contribuir para o Bem Comum. Enquanto parte da Sociedade, os indivíduos lhe são subordinados, posto que, como vimos, o todo prepondera sobre a parte. Isto há que ser entendido, contudo, sem que se perca de vista a dignidade e a intangibilidade da pessoa humana e seu fim último transcendente, em relação ao qual deve a Sociedade proporcionar condições favoráveis a cada pessoa no cumprimento de sua destinação (Sousa, Garcia, Carvalho, 1998, p. 299). O mesmo, com efeito, vale para o Estado, que não se confunde com a Sociedade, mas que é, como ela, um instrumento da pessoa humana, submetendo-se aos fins transcendentes desta (Telles Junior, 1938, pp. 31-32). Claro exemplo de justiça legal - assim chamada pelo fato de competir à lei ordenar os atos humanos em prol do Bem Comum (Sousa, Garcia, Carvalho, 1998, p. 299), embora as demais formas de Justiça também sejam legais, posto que regidas por leis (Telles Junior, 2008, p. 368) - é o pagamento de impostos, que deve ser de acordo com as faculdades de cada contribuinte, e tem como fundamento o Bem Comum (Defroidmont, 1933, p. 248; Pinto, 1936, p. 14). A justiça particular, por seu turno, se divide em justiça comutativa e justiça distributiva, sendo a justiça comutativa aquela que se dá nas relações interpessoais, como, por exemplo, entre credor e devedor, comprador e vendedor, enquanto a justiça distributiva é aquela que parte da Sociedade para os indivíduos, naquilo que concerne à distribuição de encargos ou de benefícios. Na justiça comutativa há absoluta igualdade na própria coisa devida, enquanto na justiça distributiva há igualdade proporcional, não havendo rigor de igualdade no que diz respeito ao objeto, desde que respeitada a proporcionalidade entre os méritos, as aptidões e as funções de cada indivíduo (Sousa, Garcia, Carvalho, 1998, 320 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho p. 299), sendo, neste sentido, justo aquilo que é proporcional e injusto o que viola a proporção, como aduz o Estagirita (Aristóteles, 2009, p. 153). Tanto a justiça comutativa quanto a justiça distributiva devem, evidentemente, respeitar o Primado do Bem Comum. A esta divisão tradicional, ou clássica, das formas de Justiça, que remonta a Aristóteles, para quem, ademais, a justiça se completa pela equidade, que vem a ser a retificação, a correção da justiça legal (Aristóteles, 2009, p. 172), quando, em virtude de lacuna ou deficiência da lei, a aplicação rigorosa desta puder causar uma injustiça, alguns autores acrescentam outras formas de Justiça, dentre as quais a mais relevante é, sem dúvida alguma, a justiça social, que, segundo Johaness Messner, respeita essencialmente aos grupos sociais, obrigando patrões e empregados no decorrer das negociações de contratos coletivos de trabalho e estabelecendo um conjunto de regras para a ordem sócioeconômica (Messner, s/d, pp. 419-420). Muitos autores, contudo, não veem diferenças entre a justiça geral, ou legal, e a justiça social (Paupério, 1993, pp. 63-64; Sousa, Garcia, Carvalho, 1998, p. 299), sendo que um deles, Arthur Machado Paupério, havendo observado que a “justiça pode ser comutativa, distributiva ou social”, pondera que “a justiça social implica na contribuição de cada um para a realização do bem comum”, correspondendo à “chamada justiça geral ou legal da nomenclatura aristotélico-tomista” (Paupério, 1993, pp. 63-64. Grifos em itálico no original). Já Marcus Claudio Acuava-a considera a justiça social como mais próxima da justiça distributiva, escrevendo que em Aristóteles já se antevê “o moderno significado da justiça social, quando esse notável filósofo enuncia, entre outros, o princípio da justiça distributiva” (Acquaviva, s/d, p. 502. Grifos em itálico no original). A expressão “justiça social”, que se constitui num dos princípios fundamentais da Doutrina Social da Igreja, foi cunhada no século XIX pelo filósofo tomista e sacerdote jesuíta italiano Luigi Tagarele D’Azeglio, que preleciona que ela nasce espontânea da ideia do Direito, 321 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho devendo “igualar de fato todos os homens naquilo que diz respeito aos direitos de humanidade” (Taparelli, 1843, p. 151). Consoante ressalta Pio XI, na Encíclica Quadragesimo anno, de 1931, “cada um deve [...] ter a sua parte nos bens materiais; e deve procurar-se que a sua repartição seja pautada pelas normas do bem comum e da justiça social” (Pio XI, 2004, n. 58, p. 335). Enfim, todas as formas de justiça pressupõem o Bem Comum, que se constitui, ademais, numa das três finalidades essenciais do Direito, ao lado da Justiça e da Segurança (Paupério, 1993, p. 61). Isto posto, cumpre assinalar que, do mesmo modo que a noção de Bem Comum é, assim como o Direito Natural, vital para a teoria do Direito, também é o Direito Natural, a par da ideia de Bem Comum, imprescindível para a teoria do Estado, posto que o autêntico Estado de Direito supõe, inevitavelmente, o Direito Natural, inexistindo sem o respeito e a tutela dos direitos naturais das pessoas, bem como das famílias e demais grupos naturais integrantes da sociedade civil, ou política, cuja autonomia deve ser assegurada (Sousa, 1977, p. 126). Tal Estado de Direito, ou, como diria Del Vecchio, de Justiça, difere do Estado Liberal de Direito por não ter no Direito o seu fim único, sendo Estado de Direito, ou de Justiça, por operar “sobre o fundamento do Direito e na forma do Direito” (Del Vecchio, 1957, p. 103. Grifos em itálico no original). Os direitos naturais, sobre cuja base e em função dos quais deve ser exercida toda a atividade legislativa estatal (Idem, loc. cit.), decorrem da própria essência da pessoa humana, sendo anteriores ao Estado, que não se constitui em princípio e nem em fim, mas sim num meio, num instrumento a serviço da pessoa humana e do Bem Comum53. 53 Dentre os autores que afirmam que o Estado é meio e não fim podemos citar: ACQUAVIVA. Teoria Geral do Estado. 2. ed., revista e aumentada. São Paulo: Saraiva, 2000; ATHAYDE, Tristão de. Política. Rio de Janeiro: Livraria Católica, 1932. p. 77; AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 38. ed. São Paulo: Globo, 1998, p. 122; Sumo bem e suma riqueza. Separata do Anuário da Faculdade de Filosofia “Sedes Sapientiae”, da Universidade Católica de São Paulo, 1953; Idem. A Família e a Sociedade. In Servir, n. 1297, ano XXVII, São Paulo, 20 de setembro de 1957. p. 77; NOGUEIRA, J. . C. Ataliba. O Estado é um meio e não um fim. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1940. p. 113; PAUPÉRIO, A. Machado. Teoria Geral do Estado. 7. ed. Rio de Janeiro: 322 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho De acordo com a tradição formada pelos filósofos helenos, pelos jurisconsultos romanos e pelos teólogos e canonistas da Cristandade, em particular Santo Tomás de Aquino, compreendemos o Direito Natural como um conjunto de normas inatas na natureza humana, pelo qual o ente humano se dirige, com o objetivo de agir retamente. Tendo seu fundamento metafísico último em Deus, o Sumo Bem, ou Bem Supremo, Princípio e Fim de todas as coisas, o Direito Natural é, como salienta Alexandre Corrêa, racional, na medida em que a razão conhece os seus preceitos, intuitivamente, e também experimental, posto que depende, no travejamento de seus princípios, dos dados ministrados pela experiência (Corrêa, 1984, p. 36). Faz-se mister ressaltar, porém, que o Direito Natural por si só não basta como regra de vida, sendo necessária sua complementação pelo Direito Positivo, ao qual cabe a concretização dos princípios do Direito Natural, aplicando as máximas deste às particularidades da vida em Sociedade, o que deve fazer sempre levando em conta as circunstâncias de tempo e de lugar, motivo pelo qual deve possuir caráter eminentemente histórico (Sousa, Garcia, Carvalho, 1998, p. 179). Daí concordarmos com Alexandre Corrêa, quando este ilustre professor e pensador patrício sustenta que as ideias da Escola Histórica, particularmente sob a forma que lhe imprimiu o Conde Joseph De Maistre, “são admissíveis, como complemento à verdadeira teoria do Direito Natural” (Corrêa, 1984, p. 42). O Bem Comum, que é o bem de todos e de cada um dos membros da Sociedade, pode ser definido como o conjunto de condições externas aptas a permitir o integral desenvolvimento do homem, da família e dos demais grupos naturais integrantes da Sociedade. É ele, como preleciona Forense, 1979; SALGADO, Plínio. Estado Totalitário e Estado Integral. In Idem. Madrugada do Espírito. 4. ed. In Idem. Obras Completas. 2. ed., vol. 7. São Paulo: Editora das Américas, 1957. p. 443 (artigo publicado originalmente no jornal A Ofensiva, do Rio de Janeiro, a 01 de novembro de 1936); SOUSA, José Pedro Galvão de. Iniciação à Teoria do Estado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1976. pp.12-13; SOUZA, José Soriano de. Princípios Gerais de Direito Público e Constitucional. Recife: Casa Editora Empresa d’A Província, 1893. p. 63; TELLES JUNIOR, Goffredo. Justiça e Júri no Estado Moderno. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1938. p. 31; Idem. Carta aos Brasileiros, 1977. 1. ed. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira Ltda., 2007. p. 80. 323 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Suzanne Michel, o Bem da Sociedade, das pessoas consideradas não isoladamente, mas em comum; o bem que toca a todos, em bloco, e também a cada um, em particular, sendo, ademais, o bem intermediário entre o bem particular e o Bem Divino, ou Bem Supremo, que é, como vimos, Deus (Michel, 1932, p. 18). “Maior e mais divino que o bem privado” (Aquino, 1954, pp. 98 e 102), o Bem Comum, embora diverso deste (Aquino, 1937, p. 35; Buzaid, 1973, p. 30; Michel, 1932, p. 43; Oliveira, 2008, p. 193; Sousa, Garcia, Carvalho, 1998, p. 60), tem para com ele uma relação não de antagonismo, mas sim de afinidade e harmonia (Michel, 1932, p. 53). Há entre eles, com efeito, contínua interação, isto é, comunhão e dualidade ininterrupta (Buzaid, 1973, p. 30), sendo que, como leciona Santo Tomás, aquele que busca o Bem Comum busca também o seu próprio bem, posto que não pode existir o bem próprio sem o Bem Comum, seja ele da família, da cidade ou da pátria, do mesmo modo que, sendo a pessoa parte de uma casa e de uma cidade, deve buscar o que é bom para ela pelo prudente cuidado do Bem Comum (Aquino, 1990, p. 409). Isto posto, insta salientar que, para o Doutor Comum, o domínio sobre os bens, as coisas exteriores, concedido por Deus ao ente humano, deve estar sempre subordinado a um fim, que impõe a necessidade racional e social do bom uso de tais bens (Arias, 1942, p. 256). Sustenta o Aquinate que, quanto ao uso de tais coisas, não deve a pessoa humana tê-las “como próprias, mas, como comuns, de modo que cada um as comunique facilmente aos outros, quando delas tiverem necessidade” (Aquino, 1937, p. 162), prelecionando, ainda, consoante já restou dito, que “qualquer bem da parte se ordena ao bem do todo” (Idem, p. 28). Segundo Heraldo Barbuy, as instituições medievais, de acordo com o pensamento do Aquinate, afirmavam, por um lado, “o direito natural da propriedade” e, por outro, “a sua instrumentalidade, o fim social do seu uso”, partindo do pressuposto de que “a propriedade, como instrumento de produção de riqueza, deve servir de meio à consecução 324 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho dos fins para os quais a sociedade política se constitui, fins que se resumem no maior benefício da comunidade”, enquanto o seu uso, a fim de “não violar os limites da moral natural, deve ser ordenado a esses fins: Jus utendi, non abutendi” (Barbuy, 1950, pp. 13-14). A concepção tomista dos bens econômicos em geral e da propriedade em particular foi retomada pelo Papa Leão XIII, que, na Encíclica Rerum Novarum, de 1891, sustentou que a propriedade, produto do trabalho humano, é um direito natural, porém subordinado ao Bem Comum, estando, pois, condicionado a um dever do proprietário (Leão XIII, 2004, n. 36, p. 300). Tal ideia tem sido repetida pelos sumos pontífices seguintes em todas as encíclicas e demais pronunciamentos sobre a questão social, sendo a ela associada à expressão “função social” desde a Encíclica Quadragesimo Anno, de Pio XI, dada, conforme já aqui assinalado, em 1931 (Pio XI, 2004, n.s 45 e 57, pp. 331 e 335). Como é sabido, o primeiro a empregar a expressão “função social”, aplicada à propriedade, foi o jurista francês Léon Duguit, no ano de 1911, o que não significa, porém, que haja sido ele o criador da ideia de função social da propriedade, já clara em Santo Tomás de Aquino, em Leão XIII e nos pensadores sociais católicos do século XIX e princípio do século XX, sendo denominada “lei de solidariedade” por Enríque Gil Robles, no Tratado de Derecho Politico según los principios de la Filosofía y el Derecho Cristianos, cuja primeira edição é de 1899 (Gil Robles, 1961, p. 258), e “noção social” pelo Marquês de La Tour-du-Pin, em Vers un ordre social chrétien, livro cuja primeira edição data de 1907 (La-Tour-Du-Pin La Charce, s/d, p. 4). Duguit, que, como vimos, era profundo admirador de Santo Tomás, fundamentou, com efeito, a defesa da função social da propriedade na noção tomista de Bem Comum (Araújo, s/d (a), p. 198). Cumpre enfatizar, todavia, que, para Duguit, “a propriedade não é um direito, é uma função social” (Duguit, 1911, p. 101), ao passo que para a Doutrina Social da Igreja, inspirada nas preleções do Doutor Angélico, a 325 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho propriedade é um direito natural condicionado ao dever do proprietário para com o Bem Comum, tendo e não sendo uma função social. Faz-se mister salientar, ademais, que, caso compreendamos, a exemplo de Telga de Araújo, a ideia de função social da propriedade como um dever do proprietário de atender à sua finalidade econômica e social com vistas ao Bem Comum (Araújo, s/d (b), p. 7), não poderemos deixar de concordar com o jusagrarista patrício quando este sustenta que a “tradicional doutrina católica” já cogitara da função social da propriedade muito antes de Duguit, reconhecendo o elemento social da propriedade, ao lado do particular (Idem, p. 5). Tal é, com efeito, também a posição do jusagrarista espanhol Ballarín Marcial, para quem “a verdadeira concepção tomista e cristã [...] foi sempre a de conceber o direito de propriedade ao serviço dos fins humanos, de funções individuais, familiares e sociais” (Ballarín Marcial, 1965, p. 7). Ademais, cumpre assinalar que mesmo as constituições formais que primeiro consagraram o princípio da função social da propriedade, a saber, a mexicana de 1917 e a denominada Constituição de Weimar, de 1919, bem como as constituições brasileiras de 1934 e 1946, que igualmente o consagraram, não empregaram a referida expressão, que, em nosso País, apareceu pela primeira vez no Estatuto da Terra (Lei 4504/64) e, pouco mais tarde, na Constituição de 1967, estando também consagrada na Constituição de 1988. Havendo feito referência à Constituição de Weimar, reputamos oportuno salientar que o artigo 153 de tal diploma legal afirma que “a propriedade obriga” e que “seu uso constitui, consequentemente, um serviço para o Bem Comum [Gemeine Beste]”, conceito que, como faz notar António Sardinha, está, assim como o conceito de Trabalho adotado por aquela constituição, muito “perto do conceito cristão e tradicionalista”, sendo, segundo o ensaísta e poeta português, uma pena que tal doutrina fosse “diminuída pelo critério materialista do Estado alemão, inteiramente sujeito ao prestígio ideológico do marxismo” (Sardinha, 1928, p. 19). 326 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho A concepção da propriedade à luz da doutrina cristã e tomista foi muito bem sintetizada por Plínio Salgado, na obra Direitos e Deveres do Homem, cuja primeira edição data de 1950 e em que, partindo da divisão tomista da Lei,54 demonstra o escritor e pensador patrício que a propriedade privada, prevista na Lei Divina do Decálogo e de acordo com a natureza humana, havendo sido aceita como “bem necessário” pelo “consenso universal” ao longo dos séculos, “não tem um fim egoístico”, devendo ser “instrumento de benefício social”, encontrando, em tal caráter, “irrecusável fundamento moral” e representando “imperiosa necessidade ao bem comum” (Salgado, 1957, p. 261), salientando, ainda, que o “duplo caráter individual e social” da propriedade, bem assinalado por Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum, e por Pio XI, na Encíclica Quadragesimo Anno, “não destrói, antes fortifica o direito de propriedade” (Idem, p. 259), de que o ente humano “se utiliza para o seu próprio bem, para o bem da sua família e para o bem social, que, em última análise, reflui sobre ele, como um bem de que participa em comum com os seus semelhantes” (Idem, p. 262). Isto posto, cumpre assinalar que o Primado do Bem Comum não implica na absorção dos direitos naturais da pessoa humana pelo Estado, não se confundindo, pois, com o coletivismo ou o totalitarismo, ou, como diria Ricardo Dip, o princípio de totalidade, com a Primazia do Bem Comum, não impõe que os entes humanos, “segundo toda sua pessoa e 54 Para Santo Tomás de Aquino, a Lei se divide em Lei Eterna, Lei Natural, Lei Divina Positiva, ou, simplesmente, Lei Divina, e Lei Humana Positiva, ou, apenas, Lei Humana. A Lei Eterna nada mais é que a razão da divina sabedoria enquanto rege o Universo, dirigindo todos os atos e movimentos. Já a Lei Natural é a participação da Lei Eterna na criatura racional, se constituindo em um conjunto de normas segundo as quais o homem vive enquanto homem, distinguindo por natureza o justo do injusto, a honestidade da torpeza, a virtude do vício. A Lei Divina Positiva, por seu turno, é aquela que o próprio Deus promulga por meio de uma intervenção direta na História, como é o caso do Decálogo, que Deus confiou a Moisés, e da Lei do Evangelho, ou Lei de Cristo. Por fim, a Lei Positiva é a ordenação da razão para o Bem Comum, promulgada por aquele que tem o encargo da comunidade perfeita. A divisão da Lei aparece na Suma Teológica, na questão XCI do denominado Tratado da Lei (AQUINO, Tomás de). Suma Teológica. 1ª parte da 2ª parte, q. XCI. Trad. de Alexandre Corrêa. Org. e dir. de Rovílio Costa e Luís Alberto de Boni. vol. 4. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Livraria Sulina Editora; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980. pp.1736-1745. 327 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho todos seus bens, se submetam plenamente ao todo estatal”, posto que aí já não haveria, em realidade, Primado do Bem Comum, “mas exatamente a negação do conceito de comum” (Dip, 2009, p. 156). Neste sentido, pondera Alexandre Corrêa que a doutrina de Santo Tomás de Aquino, “conjunto de princípios reais e realistas”, não cedendo a nenhum exagero, “nem ao panestatismo, que absorve e aniquila o indivíduo, nas suas mais elevadas e nobres aspirações”, nem permitindo “concentração egoísta num individualismo feroz, completamente descurado da sua finalidade social e das justas exigências do bem comum”, se mantém, pois, num “justo meio, que nem sacrifica o indivíduo ao Estado, nem o bem comum coletivo a um individualismo desenfreado” (Corrêa, 1984, pp. 319-320). Ainda assim, tal primado não foi aceito pelo liberalismo econômico e político, que, caindo no erro do individualismo, rejeitou como salienta Blázquez Martín, tanto o termo quanto o conceito de Bem Comum (Blázquez Martín, 2008, p. 184), inaugurando “a era do Interesse”, preponderantemente particular (Idem, p. 189. Grifos em itálico no original). Bem conhecidos são os erros do liberalismo, que, afastado do Primado do Bem Comum, implantou uma verdadeira tirania do Capital e da propriedade, que concentrou nas mãos de poucos, gerando profunda injustiça social, contra a qual se levantaram tanto os chamados cristãos sociais quanto os socialistas, os primeiros, em nosso sentir, corretos tanto nas críticas ao liberalismo quanto nas alternativas a ele propostas, no sentido de harmonizar as relações entre o Capital e o Trabalho em benefício de todo o tecido social e de fazer com que o direito natural de propriedade fosse exercido com vistas ao Bem Comum e estendido ao maior número possível de famílias, enquanto os socialistas, quase que plenamente certos no que toca à análise dos problemas engendrados pelo liberalismo econômico, erraram, contudo, naquilo que a ele opuseram, pregando a extinção do Capital e do direito de propriedade, sem atentar para o fato de que o mal não estava neles, mas sim na forma pela qual eram geridos sob a égide do liberalismo. 328 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho A partir do final do século XIX, diante do agravamento da questão social provocada pelo liberalismo, a noção tomista de Bem Comum, afirmada pela Doutrina Social da Igreja e pelos denominados neotomistas, recuperou considerável terreno. Mais tarde, já no chamado período “entreguerras”, surgiu o denominado institucionalismo, que, como sublinha Blázquez Martín, igualmente recuperou a ideia de Bem Comum, em clara crítica tanto ao liberalismo quanto ao bolchevismo (Blázquez Martín, 2008, p. 190). Tratando do chamado neotomismo e do institucionalismo, Blázquez Martín salienta que estas doutrinas desempenharam papel relevante na forte reação intelectual que se operou contra as ideias individualistas do liberalismo nas décadas de 1920 e 1930, ressaltando que as ponderações de tais doutrinas obedecem ao intento de estabelecer “uma visão harmônica do sistema social no marco dos importantes conflitos sociais e econômicos do momento”, que decorriam, de um lado, “do sistema econômico capitalista, e de seus fundamentos individualistas e egoístas do interesse privado”, e, de outro, “da visão conflitualista que o marxismo oferecia sobre a base da ideia da luta de classes” (Blázquez Martín, 2008, pp. 190-191). Havendo feito referência, por meio de citação de Blázquez Martín, ao sistema capitalista, reputamos oportuno assinalar que por capitalismo compreendemos o sistema econômico em que o sujeito da Economia é o Capital, cujo acréscimo ilimitado, pela aplicação de pretensas leis econômicas mecânicas, é considerado o objetivo final único de toda a produção. Neste sentido, podemos citar, dentre outros, o sacerdote e pensador argentino Julio Meinvielle, que, na obra Concepción católica de la Economía, de 1936, define o capitalismo como “um sistema econômico que busca o acréscimo ilimitado dos lucros pela aplicação de leis econômicas mecânicas” (Meinvielle, s/d, p. 5), e Miguel Reale, que, em O capitalismo internacional, de 1935, aduz que o “capitalismo é o sistema econômico no qual o sujeito da Economia é o Capital, sendo 329 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho o acréscimo indefinido deste considerado o objetivo final e único de toda a produção” (Reale, 1935, p. 87). Cumpre salientar, ainda, que o capitalismo, que, afastando a instrumentalidade da riqueza material, a vê como um fim em si, trocando a busca do Sumo Bem por aquela da “suma riqueza”, como observa Heraldo Barbuy (Barbuy, 1953, p. 146), e que, como frisa Vázquez de Mella, não percebe que o problema não é a produção da riqueza, mas sim sua distribuição equitativa (Vázquez de Mella, 1903), não é o sistema da propriedade privada e da livre iniciativa, que, com efeito, são naturais, já existindo muito antes de seu surgimento, mas, como pondera Hilaire Belloc, o sistema que “emprega esse direito em benefício de uns poucos privilegiados contra um número muito maior de homens que, ainda que livres e cidadãos em [suposta] igualdade de condições, carecem de toda base econômica própria” (Belloc, 1979, p. 154), isto é, o sistema econômico no qual os meios de produção são controlados por uma minoria e a esmagadora maioria dos cidadãos se encontra excluída e despossuída (Idem, 2002, p. 28). Fazemos nossas, pois, as palavras de Pio XII, que, tratando do “sistema econômico conhecido pelo nome de capitalismo, do qual a Igreja não tem cessado de denunciar as graves consequências”, salienta que a Igreja, com efeito: apontou não somente os abusos do capital e do próprio direito de propriedade que o mesmo sistema promove e defende, mas tem igualmente ensinado que o capital e a propriedade devem ser instrumentos da produção em proveito de toda a sociedade e meios de manutenção e de defesa da liberdade e da dignidade da pessoa humana (Pio XII, 1998, n. 115, p. 499). Assim, voltemos ao institucionalismo. Partindo do pressuposto de que “as instituições representam, no direito como na história, a categoria da duração, da continuidade e do real” e de que “a operação de 330 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho sua fundação constitui o fundamento jurídico da sociedade e do Estado” (Hauriou, 2009, p. 11) e criticando a teoria individualista rousseauniana do “Contrato Social” (Idem, pp. 11-12), inspiradora do liberalismo político, o institucionalismo buscou, conforme salienta Ruiz-Giménez, reintegrar a Filosofia do Bem Comum no lugar ocupado até a época de seu advento pela Filosofia do Contrato Social, fazendo sua uma visão social da pessoa humana que superasse o individualismo, conciliando o Bem Comum e o bem particular e permitindo a realização integral do ente humano (Ruiz-Giménez, 1944, p. 251), tudo isto sob forte influência do pensamento tomista, sendo importante ressaltar que, como aduz Georges Renard, “Santo Tomás está em todas as páginas da Teoria da instituição” (Renard, 1932, p. VIII). E se em Maurice Hauriou, criador da teoria da instituição, a influência de Santo Tomás já é marcante, mais forte é ela, ainda, nos outros dois grandes mestres do institucionalismo, a saber, o próprio Renard e Joseph Delos. Graças à vigorosa ação da Doutrina Social da Igreja, do denominado neotomismo e do institucionalismo, a ideia de Bem Comum, abandonada sob influência do utilitarismo e, sobretudo, do liberalismo individualista, voltou à tona, no século XX, nos campos da Filosofia, da Ciência Política, do Direito e da Sociologia, ainda que, como enfatiza José Pedro Galvão de Sousa, nem sempre empregada “com a significação autêntica e com aquela plenitude de sentido de que se reveste no vocabulário tomista” (Sousa, 1974, p. 124). Neste contexto, consoante assinala Blázquez Martín, tal noção, juntamente com outras sustentadas por aqueles grupos, em reação tanto contra o liberal-capitalismo individualista quanto contra o socialismo estatista e coletivista, se configuraram na origem doutrinária dos fundamentos político-antropológicos do Estado Social de Direito (Blázquez Martín, 2008, p. 191). 331 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Conclusão Encerremos este artigo. Temos consciência de que, conforme salienta Tobias Barreto, “as instituições que não são filhas dos costumes, mas produtos abstratos da razão não aguentam muito tempo a prova da experiência e vão logo quebrar-se contra os fatos” (Barreto, 1962, p. 204), bem como de que, como preleciona Giambattista Vico, na Scienza Nuova, “as coisas fora de seu estado natural não se adequam nem duram” (Vico, 2006, n. 134, p. 246) e de que, consoante preleciona Arlindo Veiga dos Santos, “Tradição é vida, é progresso” e “o pretenso progresso que renega a tradição é eterno recomeço, perpétua imperfeição”, posto que “progresso é acréscimo, não substituição” (Santos, s/d, p. 4), de sorte que não terá futuro o presente que negar o passado (Idem, loc. cit.; Idem, 1962, p. 76). Assim, rejeitamos o idealismo utópico, que não é senão, como faz notar Oliveira Vianna, o idealismo que não leva em consideração os dados da experiência (Vianna, 1939, p. 12), podendo ser definido como “todo e qualquer conjunto de aspirações políticas em íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade que pretende reger e dirigir” (Idem, p. 10), a ele opondo o idealismo orgânico, que, na lição do autor de O idealismo da Constituição, é aquele formado tão somente de realidade, apoiado tão somente na experiência e orientado tão somente pela observação do povo e do meio (Idem, pp. 1213). Corresponde esta última forma de idealismo ao “idealismo fundado na experiência”, de que nos fala o médico, filósofo e sociólogo ítaloargentino José Ingenieros (Ingenieros, 1936, p. 14), nascido Giuseppe Ingegneri em Palermo, na Sicília, e que, conforme escreve Julio Endara, representa “uma força moral inspirada no desejo de melhorar o real” e não uma simples ideologia abstrata (Endara, 1922, p. 94). O idealismo orgânico é, numa palavra, o idealismo consciente de que as instituições devem brotar da Tradição e da História dos povos e não de voos de fantasia de ideólogos engendradores de mitos 332 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho e quimeras, o idealismo que extrai da História uma Tradição sólida e viva, um coeficiente espiritual de edificação moral, social e cívica, um desenvolvimento estável e verdadeiro, transmissor e enriquecedor do patrimônio de pensamento e de costumes herdado de nossos maiores. Imbuídos, pois, de idealismo orgânico, cremos que, sem o devido respeito ao Primado do Bem Comum, carecem de legitimidade e de autenticidade o Estado, a Sociedade e as instituições em geral, do mesmo modo que não há que se falar em Justiça ou em Direito, entendido este como “o direito da justiça” de que nos fala Ignacio Poveda e que é assim denominado por derivar da Justiça, se configurando na “seiva que vivifica a árvore da convivência social” (Poveda Velasco, 2011, p. 11). Assim, afirmamos a tradição do Bem Comum, que, nas palavras de Alfredo Buzaid, não é senão um “capital acumulado de valores humanos e culturais, legados que as gerações transmitem umas às outras” (Buzaid, 1973, p. 30), e proclamamos a necessidade de plena restauração da Primazia do Bem Comum, como pressuposto da instauração de um autêntico Estado Ético de Justiça, ético não por ser a própria encarnação da Ética, como querem Hegel e Gentile (Hegel, 1997, pp. 204-205; Gentile, 1932, pp. 847-84855), mas sim por ser inspirado na Ética, que lhe é anterior e superior, e movido por um ideal ético, como defendem, dentre outros, Gino Arias, Giorgio Del Vecchio e Miguel Reale (Arias, 1937, p. XVIII; Idem, 1942, p. 410; Del Vecchio, 1957, p. 210; Reale, 1934, p. 197), e de Justiça não por ser o criador da Justiça, que igualmente lhe é precedente e superior, mas por se pautar nas regras da Justiça e se mover por um ideal de Justiça, promovendo, de acordo com o princípio de subsidiariedade, o Bem Comum, cuja aquisição, como ensina Leão XIII, deve ter por finalidade o aperfeiçoamento dos entes humanos (Leão XIII, 2004, n. 50, p. 305). 55 O texto citado, que consta do verbete Fascismo da Enciclopedia Italiana di Scienze, Lettere ed Arti, não é assinado e foi muitas vezes atribuído a Benito Mussolini, mas, em verdade, foi escrito a pedido deste por Giovanni Gentile (V. GREGOR, A. James. Phoenix: Fascism in our time. 1. ed., 4. reimpr. New Brunswick: Transaction Books, 2009. p. 940; TURI, Gabriele. Giovanni Gentile: Una biografia. Florença: Giunti Editore, 1995. p. 426). 333 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Rev. e trad. dos novos textos por Ivone Castilho Benedetti. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ACQUAVIVA, Marcus Claudio. Teoria Geral do Estado. 2. ed., revista e aumentada. São Paulo: Editora Saraiva, 2000. _________________. (Org.) Dicionário jurídico Acquaviva. 1. ed. São Paulo: Rideel, s/d. AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica. 1ª parte da 2ª parte, questões 71-114. Trad. de Alexandre Corrêa. Org. e dir. de Rovílio Costa e Luís Alberto de Boni. vol. 4. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Livraria Sulina Editora; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980. ________________. Suma Teológica. II.ª parte da II.ª parte – Q. LVIILXXIX. Trad. de Alexandre Corrêa. 1. ed. vol. 14. São Paulo: Livraria Editora Odeon, 1937. ________________. Suma de Teología. III Parte II-II (a). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), 1990. ________________. Do governo dos príncipes ao Rei de Cipro. In: SANTOS, Arlindo Veiga dos (Org. e trad.). Filosofia política de Santo Tomás de Aquino. 3. ed. melhorada. Prefácio do Prof. Dr. L. Van Acker. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1954. ARAÚJO, Telga de. Direito agrário – II. In FRANÇA, R. Limongi (coord.). 334 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Enciclopédia Saraiva do Direito. vol. 25. São Paulo: Saraiva, s/d. ________________. Função social da propriedade. In FRANÇA, R. Limongi (coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. vol. 39. São Paulo: Saraiva, s/d. ARIAS, Gino. Corso di Economia Politica Corporativa. 2. ed. aumentada e atual. Roma: Società Editrice Del “Foro Italiano”, 1937-XV. ________________. Manual de Economía Política. Buenos Aires: L. Lajouane & Cia. – Editores, 1942. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. e notas de Edson Bini. 3. ed. Bauru: Edipro, 2009. ATHAYDE, Tristão de. Política. Rio de Janeiro: Livraria Católica, 1932. AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 38. ed. São Paulo: Globo, 1998. BALLARÍN MARCIAL, A. Direito agrário. vol. 1. IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária) /PUC, 1965. BARBUY, Heraldo. Sumo bem e suma riqueza. Separata do Anuário da Faculdade de Filosofia “Sedes Sapientiae”, da Universidade Católica de São Paulo, 1953. ________________. A Família e a Sociedade. In Servir, n. 1297, ano 27., São Paulo, 20 de setembro de 1957. _______________. A mobilização do solo e a instabilidade social. In 335 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Revista do Arquivo Municipal. Ano 16, vol. 132, São Paulo, Divisão do Arquivo Histórico do Departamento de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura de São Paulo, março de 1950. BARRETO, Tobias. Estudos de Direito e Política. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962. BELLOC, Hilaire. La crisis de nuestra civilización. Trad. argentina de Carlos María Reyles. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1979. _______________. An Essay on the Restoration of Property. Norfolk: HIS Press, 2002 BLÁZQUEZ MARTÍN, Diego. La recuperación de la idea de “bien común em la teoria jurídica Del siglo XX: El institucionalismo y el neotomismo. In Estudios em Homenaje al Profesor Gregorio PecesBarba. Madrid: Dykinson, 2008. BUZAID, Alfredo. Humanismo político (conferência proferida em 6 de julho de 1973, na Escola Superior de Guerra). Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1973. CORRÊA, Alexandre. Há um Direito Natural? Qual o seu conteúdo? (1914). In Ensaios políticos e filosóficos. Prefácio de Ubiratan Macedo. São Paulo: Editora Convívio/EDUSP, 1984. _______________. S. Tomás e o regime da lei (1962). In Ensaios políticos e filosóficos. Prefácio de Ubiratan Macedo. São Paulo: Editora Convívio/EDUSP, 1984. D’ANTRÈVES, Alessandro Passerin. La noción de Estado: Una 336 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho introdución a la teoria política. Barcelona: Ariel, 2001. DEFROIDMONT, Jean. La Science du Droit Positif. Paris, D. de Brouwer, 1933. DEL VECCHIO, Giorgio. Teoria do Estado. Trad. portuguesa de António Pinto de Carvalho. Prefácio de Miguel Reale. São Paulo: Saraiva, 1957. DIP, Ricardo. Segurança jurídica e crise do Mundo Pós-Moderno. Dissertação apresentada à Faculdade Autônoma de Direito, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Função Social do Direito, sob a orientação do Professor Doutor José Manoel de Arruda Alvim, São Paulo, 2009. DUGUIT, Léon. Manuel de droit constitutionnel. 2. ed. Paris: De Boccarel, 1911. ENDARA, Julio. José Ingenieros y el porvenir de la filosofia. Buenos Aires: General Librería, 1922. FRANÇA, R. Limongi. Direito Natural e Direito Positivo. In Revista da Universidade Católica de São Paulo, vol. 22, fasc. 39, São Paulo, setembro de 1961. GENTILE, Giovanni. Idee fondamentali. In Enciclopedia Italiana do Scienze, Lettere ed Arti. vol. 14. Milão: Treves-Treccani-Tumminelli, 1932. GIL ROBLES, Enrique. Tratado de Derecho Politico según los principios de la Filosofía y el Derecho Cristianos. tomo I. 3. ed. Nota prelimi337 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho nar de José María Gil Robles. Madrid: Afrodisio Aguado, S.A. Editores-Libreros, 1961. GREGOR, A. James. Phoenix: Fascism in our time. 1. ed., 4. reimpr. New Brunswick: Transaction Books, 2009. HAURIOU, Maurice. A teoria da instituição e da fundação: Ensaio de vitalismo social. Trad. de José Ignácio Coelho Mendes Neto. Apresentação de Paulo Perretti Torelly. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2009. INGENIEROS, José. O homem medíocre. São Paulo: Cultura Moderna, 1936. LA TOUR-DU-PIN LA CHARCE, Marquis de. Vers un ordre social chrétien: Jalons de route 1882-1907. 3. ed. Paris: Nouvelle Librairie nationale, s/d. LEÃO XIII. Rerum Novarum: Sobre a condição dos operários. In LESSA, Luiz Carlos. Dicionário de Doutrina Social da Igreja: Doutrina Social da Igreja de A a Z. São Paulo: LTr, 2004. MEINVIELLE, Julio. Concepción Católica de la Economía. Disponível em: http://www.institutosapientia.com.br/site/index.php?option=com_co ntent&view=article&id=1273:obras-raras-de-filosofia&catid=98:geral. Acessado em 12.12.2011. MESSNER, Johaness. Ética Social: O Direito Natural no Mundo Moderno. São Paulo: Quadrante/EDUSP, s/d. MICHEL, Suzanne. La nothion thomiste du Bien Commun: Quelquesunes de sés application juridiques. Prefácio de Georges Renard. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1932. 338 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho NOGUEIRA, J. . C. Ataliba. O Estado é um meio e não um fim. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1940. OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Filosofia da política jurídica. 2. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. PAUPÉRIO, A. Machado. Introdução ao Estudo do Direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. _______________. Teoria Geral do Estado. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. PLATÃO. A República. Trad. de Anna Lia Amaral de Almeida Prado. rev. técnica e introdução de Roberto Bolzani Filho. 1. ed., 2. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2009. PINTO, Manoel Lacerda. O fundamento do imposto. Tese de concurso para Lente Catedrático de Ciência das Finanças da Faculdade de Direito do Paraná. Curitiba: Papelaria Irmãos Guimarães, 1936. PIO XI. Quadragesimo Anno: Sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social em conformidade com a Lei Evangélica. In LESSA, Luiz Carlos. Dicionário de Doutrina Social da Igreja: Doutrina Social da Igreja de A Z. São Paulo: LTr, 2004. PIO XII. Menti Nostrae: Sobre a santidade da vida sacerdotal. In Documentos de Pio XII. Trad. Poliglota Vaticana. São Paulo: Paulus, 1998. POVEDA VELASCO, Ignacio María. Reflexões sobre o Direito. In BEÇAK, Rubens; POVEDA VELASCO, Ignácio Maria (Orgs.). O Direito e o futuro da pessoa: Estudos em homenagem ao professor Antonio Jun339 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho queira de Azevedo. São Paulo: Atlas, 2011. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 1 ed. vol. I, tomo II. São Paulo: Saraiva, 1953. _______________. O capitalismo internacional: Introdução à Economia Nova. 1. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1935. _______________. O Estado Moderno: liberalismo, fascismo, integralismo. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1934. RENARD, Georges. Préface. In MICHEL, Suzanne. La nothion thomiste du Bien Commun: Quelques-unes de sés application juridiques. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1932. RUIZ-GIMÉNEZ, Joaquín. La teoria institucional Del Derecho. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1944. SALGADO, Plínio. Estado Totalitário e Estado Integral. In Madrugada do Espírito. 4. ed. In Obras Completas. 2. ed., vol. 7. São Paulo: Editora das Américas, 1957. (publicado originalmente no jornal A Ofensiva, do Rio de Janeiro, a 01 de novembro de 1936). _______________. Direitos e deveres do Homem. 4. ed. In Obras Completas. 2. ed., vol. 5. São Paulo: Editora das Américas, 1957. SOUSA, José Pedro Galvão de. Direito Natural, Direito Positivo e Estado de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. _______________. Iniciação à Teoria do Estado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1976. 340 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho _______________. Das relações entre o homem e a sociedade segundo Santo Tomás de Aquino. In Hora Presente, ano 6, n° 16, São Paulo, setembro de 1974. SANTOS, Arlindo Veiga dos. Sob o signo da fidelidade: considerações históricas. São Paulo: Pátria-Nova, s/d. _______________. Ideias que marcham no silêncio. São Paulo: Pátria-Nova, 1962. SARDINHA, António. Da hera nas colunas: novos estudos. Coimbra: “Atlântida” Livraria Editora, 1928. SOUZA, José Soriano de. Princípios Gerais de Direito Público e Constitucional. Recife: Casa Editora Empresa d’A Província, 1893. TAPARELLI, Luigi. Saggio teoretico di Dritto Naturale appoggiato sul fatto. Livorno: Vincenzo Mansi Editora, 1843. TELLES JUNIOR, Goffredo. Justiça e Júri no Estado Moderno. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1938. ________________________. Carta aos Brasileiros, 1977. 1. ed. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira Ltda., 2007. ________________________. Iniciação na Ciência do Direito. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Trad. do grego, introd. e notas de Mário da Gama Kury. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1986. 341 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho TURI, Gabriele. Giovanni Gentile: Una biografia. Florença: Giunti Editore, 1995. VV.AA. Le but du droit: bien commun, justice, sécurité. Paris: Recueil Sirey, 1938. VÁZQUEZ DE MELLA, Juan. La cuestión social. Disponível em: http:// hispanismo.org/politica-y-sociedad/2839-ante-el-1-de-mayo-textos-delpensamiento-social-carlista.html. Acessado em 12.12.2011. VERDÚ, Pablo Lucas. Operatividad del Bien Común. In Reconquista (revista bilingüe de cultura publicada trimestralmente), vol. 2, n. 1, São Paulo, 1951. VIANNA, Oliveira. O idealismo da Constituição. 2. ed. Aumentada. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. VICO, Giambattista. Autobiografia, Poesie, Scienza Nuova. 3. ed. Milano: Garzanti, 2006. 342 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho 16 O estado constitucional cooperativo e a prisão do depositário infiel: a evolução jurisprudencial do stf Vladmir Oliveira da Silveira Pós-Doutor em Direito pela UFSC, Doutor em Direito pela PUC/SP, Professor da PUC/SP e da UNINOVE, Diretor do Centro de Pesquisa em Direito da UNINOVE, Presidente do Conselho Nacional de Pós-Graduação em Direito – CONPEDI Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Doutora e Mestre em Direito pela PUC/SP, Coordenadora do Curso de Direito da UNINOVE, membro do Conselho Superior de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio/FECOMERCIO 343 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Introdução O Direito atualmente passa por um processo de internacionalização, na mesma medida em que também constata-se uma constitucionalização do Direito Internacional.56 O fenômeno da internacionalização do Direito verifica-se nas mais diversas áreas, embora de forma mais nítida no Direito Constitucional, no Civil, no Penal e no Ambiental. A internacionalização do Direito faz com que as normas jurídicas que regulam as atividades dos cidadãos não sejam mais unicamente produzidas pelo legislador nacional, mas por documentos normativos internacionais.57 Há uma ampliação da cidadania, que deixa de ser unicamente estatal para ser também regional e universal.58 Nesse sentido, as fontes e a tutela de direitos também ampliamse. Não há como negar que o processo de internacionalização do Direito encontra-se em estágio mais avançado na Europa, com a criação e desenvolvimento da União Europeia, contudo também é identificável na América Latina, não apenas em projetos de integração como o Mercosul, mas em novas doutrinas, legislação e jurisprudência nacionais. A adoção de um tratado por um Estado ou sua inserção em organismos ou comunidades supranacionais e intergovernamentais implica, na maioria dos casos, a necessidade de adaptação do direito 56 Segundo Héléne Tourard: “A internacionalização das Constituições ultrapassa o contexto das relações entre o Estado e o Direito Internacional. Ela se projeta para além da problemática relação entre Direito Internacional e Direito Interno. Trata-se, na verdade, de abordar a questão das relações entre o Direito constitucional e o Direito internacional em uma perspectiva menos abstrata (...) considerada a realidade dos fenômenos políticos e das relações internacionais” (TOURARD, Héléne. L´internationalisation dês Constitutions Nationales. Paris: L.G.D.J., 200, p.11) (tradução livre). 57 Cf. MEYER- PFLUG, Samantha Ribeiro. “A internacionalização do Direito Constitucional” In.: Coletânea de Estudos Jurídicos. ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira; PETERSON, Zilah Maria Callado Fadul. Coordenadoras. MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Organizadora. Brasilia: Superior Tribunal Militar, 2008, p.436 58 Ver, neste sentido: SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos: conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010. 344 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho interno a essa nova realidade. Tal adaptação pode ocorrer por meio de uma revisão constitucional ou pela aplicação da hermenêutica e interpretação levada a efeito pelas Cortes Constitucionais.59 Há uma nítida tendência de harmonização de conceitos – o que é um processo de mão dupla, pois as Constituições nacionais passam considerar as relações do Estado com o Direito Internacional, sofrendo este uma crescente influência dos dispositivos constitucionais relevantes. Assim, pode-se dizer que o Direito Internacional tem um efeito irradiador sobre os sistemas constitucionais internos.60 No Brasil, o processo de internacionalização aprofundou-se com a promulgação da Constituição de 1988, que conferiu especial ênfase à proteção dos direitos humanos, e de outros princípios relativos às relações internacionais – além, é claro, da previsão de integração com a comunidade latino-americana, já iniciada com o Mercosul, dentre outras iniciativas. No entanto, o referido processo esbarra no princípio da supremacia formal e material da Constituição brasileira sobre todas as normas nacionais. A adequação das normas internas em face da legislação supranacional torna-se mais dificultosa diante desse princípio, que pressupõe a existência de um controle de constitucionalidade, via de regra repressivo e jurisdicional, com a presença de uma Corte Constitucional para interpretar e defender o texto constitucional. Nesse sentido, a superação do impasse pode ocorrer por meio da atuação tanto do Poder Judiciário – e principalmente do Supremo Tribunal Federal – como do Poder Legislativo. Neste cenário, objetiva-se demonstrar as consequências 59 Luís Maria Diéz-Picazo anota: “(...) daí que um Estado não pode estar convencionalmente vinculado contra a sua vontade (ex consensu advenit vinculum). Isso é conseqüência da confluência do direito internacional: primeiro, o caráter inorgânico e descentralizado da sociedade internacional, que carece de uma autoridade legislativa central; segundo, o princípio da isonomia dos Estados, pelo qual a vontade de um não é juridicamente superior a vontade do outro” (Constitucionalismo da União Européia, Madrid: Cuadernos Civitas, 2002, p. 88, tradução livre). 60 Segundo Heléné Tourard, “a internacionalização do direito corresponde à influência do Direito Internacional sobre a formação e o conteúdo das espécies normativas de determinado sistema jurídico estatal” (TOURARD, Héléne. Op. cit., p. 6). 345 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho resultantes da evolução do debate sobre a hierarquia dos tratados conferida pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente em relação aos tratados de direitos humanos, com o advento da Constituição Federal de 1988, destacando-se o conteúdo dos §§ 1º e 2º do artigo 5º, como também as consequências provenientes da aprovação da Emenda à Constituição nº 45/04 no tocante ao status normativo desses tratados e à prisão do depositário infiel. Neste particular, o texto pretende analisar questões como a prisão civil por dívidas no Brasil, bem como a nova posição do Supremo Tribunal Federal, adotada no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343, entendendo-se que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil antes da referida Emenda possuem status normativo supralegal, como o Pacto de São José da Costa Rica e sua implicação na interpretação do dispositivo constitucional que autoriza expressamente a prisão civil no caso do depositário infiel. 1. A constituição federal de 1988 e os tratados de direitos humanos A Constituição Federal de 1988 estabeleceu o Estado Social e Democrático de Direito como princípio estruturante da ordem jurídica brasileira, garantiu um amplo rol de direitos e garantias fundamentais, e apresentou-se extremamente sensível à ordem internacional e ao processo de internacionalização. Já no parágrafo único do seu art. 4º a Carta Magna estabelece: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. Trata-se de uma cláusula aberta que possibilita a efetiva integração de uma comunidade latino-americana – na realidade, é uma norma constitucional que permite a influência direta do Direito Internacional no âmbito interno, ao prever a criação de uma comunidade 346 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho supraconstitucional. Soma-se a isso o fato de o próprio art. 4º elencar de maneira explícita os princípios que devem reger o Brasil nas relações internacionais, quais sejam: I - independência nacional; II prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Note-se que o inc. VIII do art. 4º, que versa sobre o repúdio ao terrorismo e ao racismo, é uma clara cláusula de extraterritorialidade. No convívio com os demais sujeitos de Direito Internacional Público, o Brasil deverá priorizar determinados princípios e valores. No tocante à proteção conferida aos direitos humanos, o texto original da Constituição de 1988 dispôs em seu art. 5º, §2º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Da leitura do dispositivo, combinado com o artigo 60, §4º, IV, da CF, depreende-se que, a princípio, os tratados de direitos humanos no Brasil usufruem de um status constitucional. Não foi esse, contudo, o entendimento predominante no Supremo Tribunal Federal, que os equiparou às leis ordinárias, de vez que eram originalmente internalizados pela ritualística igual a dessas leis. Parte da doutrina, todavia, destacando-se autores como Flávia Piovesan61 e Cançado Trindade62, sempre defendeu o reconhecimento da hierarquia constitucional dos tratados que versam sobre direitos humanos – antes da Emenda Constitucional nº 45/04 – com base na interpretação já mencionada, conferida com base no art. 5º, §2º, do texto constitucional, o 61 Cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007. 62 CANÇADO TRINDADE, A. Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos — fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. 347 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho qual estabelece que os direitos fundamentais elencados na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados – na busca de valores comuns entre os Estados –, com o §4º, IV, do artigo 60, que estabelece os direitos fundamentais como cláusulas pétreas na Constituição brasileira. Se não podem, portanto, ser revogados por lei constitucional, muito menos poderão ser revogados por lei ordinária. Para Flávia Piovesan, o direito interno e o direito internacional estão em constante interação na realização do objetivo convergente e comum de proteção dos direitos humanos.63 Com efeito, a referida autora defende a necessidade de se conferir status constitucional aos tratados de direitos humanos, defendendo a criação de um bloco de constitucionalidade composto pela Constituição, pelos tratados de direitos humanos e pelos princípios gerais de Direito, com base na chamada cláusula de abertura brasileira – ou seja, o artigo 5º, §2º, do texto constitucional. Todavia, conforme mencionado, não foi essa a interpretação adotada pela jurisprudência brasileira e em especial pelo Supremo Tribunal Federal, o guardião da Constituição, a despeito de grande parte da doutrina nacional e internacional defender tal posição. Na realidade, a norma constante do §2º do art. 5º é uma cláusula aberta e como tal, por meio da interpretação, poder-se-ia ampliar ou restringir seu sentido e sua aplicação, optando a Corte Suprema por restringi-la. Em 2004 o Congresso Nacional, sensível à realidade da internacionalização do Direito e tendo em vista a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, promulgou a Emenda Constitucional nº 45 (Reforma do Judiciário), que acrescentou dois novos parágrafos ao art. 5º.64 São eles: “3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos 63 Cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007. 64 Nesse sentido, Sylvie Torcol acentua que “a internacionalização das constituições afeta o equilíbrio institucional estatal: o Poder Executivo, em sua qualidade de principal ator em matéria de relações internacionais; o Poder Legislativo, na qualidade de poder normativo e de controle dos órgãos de governo; e o Poder Judiciário, em sua função de aplicação das fontes de direito às situações concretas” (apud Luis Cláudio Coni, op. cit., p. 85). TORCOL, Sylvie. Les mutations du constitucionnalisme à 348 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às Emendas constitucionais” e “§4º. O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.” A introdução destes dois parágrafos representou uma nova fase no processo de internacionalização do Direito Brasileiro. Destarte, há que se considerar que o teor do §3º do art. 5º acabou por restringir definitivamente a aplicação extensiva do §2º do mesmo artigo, na medida em que determina que os tratados de direitos humanos, para equipararemse às Emendas à Constituição, devem ser aprovados com quorum de três quintos e votação em dois turnos. Em cada Casa do Congresso Nacional impede-se que, por meio da interpretação atribuída ao §2º do art. 5º da Constituição, como pretendia Flávia Piovesan65, fosse conferido status constitucional aos tratados de direitos humanos. Importa destacar que o novo parágrafo representou um retrocesso na proteção conferida aos direitos humanos, pois o §3º do art. 5º: 1) dificultou o processo de internalização de direitos humanos; e 2) em tese só é aplicado aos tratados aprovados após a sua promulgação, de vez que se omite em relação aos tratados incorporados antes de sua existência. Assim sendo, não compreende os tratados e convenções que lhe são anteriores e versam sobre aspectos relevantes da proteção dos direitos humanos. Por outro lado, há que se reconhecer que, na prática, acabou por representar um avanço, possibilitando que os tratados de direitos humanos passassem finalmente a usufruir, desde que observadas certas condições, do status constitucional – o que não se apresentava possível até então em face da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca do tema. l´épreuve de la construction européenne. Tese de doutorado defendida em 12/12/2002 na Faculdade de Direito da Universidade de Toulon et du Var, Lylle, A.N.R.T. 65 Cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007. 349 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Passar-se-á agora a analisar detidamente as alterações trazidas pela Emenda à Constituição n º 45/04 ao sistema constitucional pátrio. 1.2. A Constituição Federal de 1988 e a Emenda à Constituição nº 45/04 A Emenda à Constituição nº 45/04 trouxe significativas alterações no tocante ao status normativo dos tratados de direitos humanos no sistema jurídico brasileiro. Note-se, contudo, que a redação do novo §3º do art. 5º da Constituição menciona que os tratados de direitos humanos serão equiparados às Emendas à Constituição, o que significa dizer, num primeiro momento, que serão um gênero diferenciado de norma, pois não serão considerados normas constitucionais na medida em que o texto faz referência à expressão “equivalentes às emendas constitucionais”. Será conferido, portanto, um status constitucional a esses tratados. Nesse contexto, com o advento da Reforma do Judiciário (EC nº 45/04) e a introdução do §3º do art. 5º, parte da doutrina, a exemplo de Flávia Piovesan, entendeu que a reforma foi prejudicial à proteção dos direitos humanos ao incluir a expressão “equivalente à emenda constitucional”, deixando claro, portanto, que os tratados de direitos humanos não são normas constitucionais. Excluiu-se a possibilidade de conferir uma interpretação extensiva ao §2º do art. 5º. Seguindo essa linha de raciocínio, a Emenda à Constituição nº 45/04 representaria um retrocesso na proteção dos direitos humanos, o que a tornaria inclusive inconstitucional. Tendo em vista o teor do §3º do art. 5º, cumpre destacar que ele não estabelece expressamente a quem cabe propor a aprovação dos tratados de direitos humanos como equivalentes às Emendas à Constituição – o que implicaria a necessidade de regulamentação da matéria por leis ordinárias. Isso em virtude de, no Brasil, a alteração da Constituição ocorrer por meio da edição de Emendas que têm seu rito expressamente previsto no art. 60 da Carta Magna. Segundo o disposto 350 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho na Lei Maior, podem apresentar Propostas de Emendas Constitucionais (PEC) o Presidente da República; mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se cada uma delas pela maioria relativa de seus membros; e um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal. A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. A Emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. Nesse contexto surgem alguns pontos suscetíveis de discussão tendo em vista o teor do §3º do art. 5º da Constituição. O processo de internalização de um tratado pelo Brasil dá-se consoante o disposto no texto original da Constituição de 1988: inicia-se com a negociação pelo Executivo ou seus assessores (diplomatas), e termina com a assinatura do tratado pelo Presidente da República (Chefe de Estado). Após a assinatura do Presidente, o texto deve ser encaminhado com uma mensagem ao Congresso Nacional, que a submete à aprovação da Câmara dos Deputados e Senado Federal pelo quórum de maioria simples e votação unicameral. A essa espécie normativa dá-se o nome de decreto legislativo, que é assinado pelo Presidente do Senado (ratificação doméstica). Após sua edição, cabe ao Presidente da República providenciar a ratificação externa (ou depósito) e editar um Decreto com o conteúdo do tratado – e somente após a expedição desse decreto o tratado é internalizado. Na maioria dos casos há um grande lapso temporal entre a edição do Decreto legislativo pelo Congresso Nacional e a expedição do Decreto presidencial. Na hipótese prevista pelo §3º do art. 5º – a aprovação de um tratado de direitos humanos com quórum de três quintos e votação bicameral – cumpre questionar a quem caberá provocar a aprovação do tratado nesta forma ou por intermédio da ritualística menos complexa da lei 351 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho ordinária, portanto, norma infraconstitucional. Poderá ser o Presidente da República, ao encaminhar a mensagem que assinou o tratado, ou aqueles legitimados para apresentar proposta de Emenda à Constituição, dentre os quais o próprio Presidente da República ou qualquer parlamentar, que poderá ao apreciar a matéria – e independentemente do conteúdo da mensagem presidencial enviada ao Congresso Nacional – propor sua aprovação na forma do referido parágrafo? Note-se que nesta última hipótese seria alterada a ritualística da Emenda à Constituição, já que atualmente requer-se um terço dos parlamentares para tais Emendas. De outra parte, na hipótese de o tratado ser apresentado na forma do §3º do art. 5º (ou seja, para ser aprovado com o quórum de três quintos em dois turnos nas duas Casas) mas não conseguir obter esse quórum de votação, poderá ser aprovado apenas com o quórum de maioria simples (que é o quórum necessário para aprovar-se uma lei ordinária) – ou seja, com status de lei ordinária – ou o mesmo deverá ser rejeitado? A nosso ver esse aspecto não se encontra definido e necessita ser regulamentado o quanto antes, pois poderá implicar uma esquizofrenia sistêmica que admite a existência de direitos humanos de primeira classe (hierarquia constitucional), de segunda classe (hierarquia supralegal) e de terceira classe (hierarquia lei ordinária). Outra questão versa sobre a alteração do próprio parâmetro de controle de constitucionalidade brasileiro. Se um tratado é aprovado na forma do §3º do art. 5º, ele passa a integrar a Constituição e será, portanto, incorporado ao seu texto – ou seja, deve ser incluído no corpo da Constituição ou figurar como um apêndice, formando de tal sorte uma espécie de “bloco de constitucionalidade”. Note-se que em ambos os casos se poderá arguir a inconstitucionalidade de qualquer ato normativo interno que venha a contrariar o conteúdo do tratado de direitos humanos equivalente à Emenda à Constituição. A partir da promulgação dos tratados, portanto, passou a existir no Brasil o controle de convencionalidade e não apenas constitucionalidade. 352 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho E no caso de o tratado de direitos humanos ser denunciado pelo Brasil, deixaria ele de ser matéria constitucional? Essa não parece ser a melhor solução, tendo em vista as características do Direito Constitucional brasileiro. Parece-nos que, mesmo existindo a denúncia do tratado, ele continuará a ter validade internamente como norma constitucional, não podendo ser alterado nem por Emenda à Constituição, uma vez que o sistema brasileiro considera os direitos e garantias individuais como cláusula pétrea. Insuscetível, portanto, de alteração pelo poder reformador, como aponta Vladmir Oliveira da Silveira66: Novamente, deve-se repetir que, sendo o princípio da anterioridade uma garantia do cidadão, obviamente está protegido pelas chamadas cláusulas pétreas. Conforme já sustentado, em capítulos anteriores, os direitos e garantias individuais – que se prefere chamar de fundamentais – abrangem não só os alocados no artigo 5º da Constituição, como também outros, dispersos no seu interior. E, certamente, o princípio da anterioridade é uma dessas garantias. Por outro lado, não há a mínima possibilidade de expansão das exceções a esse princípio, tendo em vista que o Poder constituinte assim não permitiu. O rol de exceções é taxativo, não podendo o Poder reformador inovar nesse sentido, sob pena de violação frontal da cláusula pétrea. Nessa linha de raciocínio, consoante o disposto no art. 60, §4º, inc. IV, da Constituição Federal, os direitos e garantias individuais são cláusulas pétreas – ou seja, não podem ser abolidos por Emenda à Constituição. Assim sendo, resta saber se os tratados de direitos humanos aprovados na forma do §3º do art. 5º do texto constitucional são ou não cláusulas pétreas – entendendo-se que sejam. Se assim 66 SILVEIRA, Vladmir Oliveira da. O poder reformador na Constituição brasileira de 1988 e os limites jurídicos às reformas constitucionais. São Paulo: Rcs, 2006. 353 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho forem considerados, os tratados não poderão sofrer qualquer modificação por Emenda à Constituição, de modo que, mesmo sendo denunciado o tratado, o texto aprovado permanecerá como parte integrante da Carta Magna. A despeito de todas essas controvérsias, o Congresso Nacional aprovou em 9 de julho de 2008, e sem que houvesse qualquer regulamentação, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque em 30 de março de 2000, na forma do §3º do art. 5º. Trata-se do Decreto Legislativo nº 186 (ato infraconstitucional), com força de norma constitucional. Nesse viés, o Congresso Nacional acabou por dar efetividade direta ao referido dispositivo constitucional. Todavia, os questionamentos suscitados ainda permanecem em aberto e devem ser enfrentados, valendo destacar que a denominação dada a essa espécie normativa passou a ser “decreto legislativo com força de norma constitucional”. Por fim, ainda, resta saber se será necessária a edição do Decreto do Presidente da República para que o tratado seja internalizado ou se a simples edição do Decreto Legislativo, na forma do §3º do art. 5º, já cumpriria essa função. Registre-se que as Emendas constitucionais, por representarem a manifestação do poder reformador, dispensam a sanção do Presidente da República, sendo promulgadas pelas Mesas da Câmara e do Senado Federal. Destarte, o referido Decreto Legislativo nº 186 foi promulgado pelo Presidente do Senado, na forma do art. 48, inc. XXVIII, do Regimento Interno daquela Casa, que estabelece dentre suas competências a de promulgar as resoluções e os decretos legislativos. Já as Emendas à Constituição são promulgadas pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. Traçando um paralelo com essa nova hipótese, depreende-se que, levando a efeito uma interpretação sistemática, os decretos legislativos aprovados na forma do 354 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho §3º do art. 5º dispensariam a edição do Decreto Presidencial. No entanto, essa questão permanece sem resposta. 2. O pacto de são josé da costa rica e a prisão civil por dívidas O Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica, o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. O item 7 do art. 7º da referida convenção, que trata do direito à liberdade pessoal, dispõe expressamente que: 7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. A redação do dispositivo supratranscrito é clara, vedando a prisão civil por dívidas. Permite-se a prisão penal, mas como regra proíbese a civil. A única exceção é a prisão decorrente do inadimplemento de obrigação alimentar, pois o direito que se está a proteger aqui é do hipossuficiente o direito da criança, do idoso ou ainda do ex-cônjuge que não tenha condições de se auto sustentar. Em outras palavras, na ponderação dos valores em conflito – quais sejam: vedação da prisão civil e o direito ao alimento – prevalece esse último, tendo em vista a proteção da dignidade da pessoa humana (núcleo essencial dos direitos humanos). Nessa hipótese há um conflito aparente entre o direito à liberdade e o direito à solidariedade, diretamente relacionado à sobrevivência do hipossuficiente. Prevalece, na hipótese, o direito à solidariedade. O Pacto de São José da Costa Rica dá nítida prevalência ao direito à liberdade, restringindo, em tal viés, as hipóteses de prisão. Destarte, os países que aderirem ao Pacto devem coadunar suas normas aos preceitos 355 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho nele estabelecidos. Ademais, deve-se aderir aos tratados de direitos humanos sem a imposição de reservas, sob pena de comprometer-se a proteção desses direitos no âmbito interno de cada país. O Brasil ratificou o referido Pacto sem qualquer reserva, o que num primeiro momento levaria à conclusão de que entre nós não seria possível a prisão civil do depositário infiel. De outra parte, há que se considerar igualmente o critério da norma mais favorável à vítima em se tratando da proteção dos direitos humanos. Conforme tal critério, restaria afastada a possibilidade de prisão do depositário infiel em caso de conflito entre uma norma nacional e a do tratado de direitos humanos. No caso, deve-se dar prevalência à norma do tratado. Assim, num primeiro momento, em caso de aparente conflito entre uma norma nacional que permita a prisão do depositário infiel e uma norma internacional que proíba tal prisão, deve-se dar prevalência à última. Trata-se de um conflito aparente entre o direito à liberdade e o direito à propriedade, no qual deve prevalecer, de acordo com o conteúdo do Pacto de São José da Costa Rica, o direito à liberdade. Nesse particular, salienta Flávia Piovesan que se a situação fosse inversa – isto é, se a norma constitucional for mais benéfica que a normatividade internacional – deveria ser aplicada a norma constitucional, inobstante os aludidos tratados tivessem hierarquia constitucional e tivessem sido ratificados após o advento da Constituição. Vale dizer, as próprias regras interpretativas dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos apontam a essa direção, quando afirmam que os tratados internacionais só se aplicam se ampliarem e estenderem o alcance da proteção nacional dos direitos humanos.67 67 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007. 356 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Destarte, é imprescindível considerar que os direitos decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos visam aprimorar e fortalecer os direitos humanos, ampliando sua proteção no âmbito interno dos países. Trata-se da aplicação do princípio da complementaridade. Nesse sentido esclarecem Vladmir Oliveira e da Silveira e Vanessa Toqueiro Ripari: (...) o princípio da soberania compartilhada deve harmonizase com a necessária cooperação internacional no âmbito dos direitos humanos, num eco às reais necessidades da humanidade, por intermédio da relação de complementaridade entre as esferas de proteção, que fundamentam as distintas cidadanias complementares. Assim, ao afirmarmos que cidadania é o direito a ter direitos, é evidente que o ser humano pode ter (como de fato já possui em diversas partes do planeta) direitos nacionais, regionais e universais.68 Importa ressaltar que a Constituição Federal de 1988 dispõe no rol dos seus direitos e garantias individuais – e mais precisamente em seu art. 5º, inc. LXVII – que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Num primeiro momento depreende-se da leitura de ambos os dispositivos que há um conflito, o que exige algumas considerações sobre a prisão civil. 2.1. Os casos de previsão normativa da prisão civil no Brasil Como referido, a Constituição Federal de 1988 dispõe em seu art. 5º, inc. LXVII, que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do 68 SILVEIRA, Vladmir Oliveira. ; RIPARI, Vanessa Toqueiro . A cidadania regional americana e o ordenamento jurídico. Revista da Escola Paulista de Magistratura, v. 5, p. 23-28, 2009. 357 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Permite o texto constitucional a prisão civil em duas hipóteses apenas: a do inadimplemento voluntário e inescusável da pensão alimentícia e a do depositário infiel. É interessante notar que a redação do inc. LXVII do art. 5º não utiliza a expressão “prisão civil por dívidas”, mas o instituto do depositário infiel, diferentemente do que ocorre com o Pacto de São José da Costa Rica, como visto anteriormente. A prisão civil é destinada a compelir alguém a realizar algo e nesse sentido ela é decretada no caso do não-cumprimento de determinada obrigação. A finalidade da prisão não é outra senão a de compelir o indivíduo a realizar determinada obrigação, seja de natureza civil, seja de natureza comercial, sem nenhum caráter apriorístico de punição.69 Não é, portanto, uma pena, mas um instrumento de coercibilidade, pois uma vez cumprida a obrigação ela obstaculiza ou cessa imediatamente a medida. A despeito de o Código Civil brasileiro referir-se, num primeiro momento, à prisão civil como pena, na medida em que implica a restrição da liberdade do devedor mediante coerção, há de se ter em vista que, uma vez cumprida a obrigação, não há que se falar na aplicação da prisão. Não é esse, pois, seu principal objetivo, ou melhor, seu objetivo direto. A prisão dá-se no âmbito do Direito Civil, com vistas ao adimplemento de uma obrigação, e a restrição à liberdade individual só ocorre em razão da não-realização de um comportamento esperado. A prisão civil, portanto, tem caráter indireto, pois é um meio coercitivo que tem por finalidade compelir o devedor/depositário a realizar determinada obrigação. Ela só ocorre em face de uma obrigação não cumprida – a de devolver o bem que está sob sua guarda. Esclareça-se que a prisão civil não possui caráter satisfatório, pois mesmo findo o lapso temporal estabelecido pela decisão para a prisão, 69 MOLITOR, Joaquim. Prisão civil do depositário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p.12. 358 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho não fica o devedor/depositário livre do cumprimento da obrigação. Ela permanece mesmo após a prisão, só sendo satisfeita com a realização da obrigação, ou seja, com a devolução do bem que lhe foi confiado. 2.2. O depositário infiel No caso do depositário infiel, a instrumentalidade do depósito, via de regra, se dá em virtude da guarda do bem que visa assegurar a opção quanto à adjudicação ou hasta pública, e não em razão da obrigação jurídica que decorre do contrato, ou seja, o pagamento da dívida. Para Odete Queiroz, é “aquele que tendo a obrigação de restituir coisa alheia que recebeu para custódia não o fez, não cumpriu sua obrigação. E, ao colocar-se na posição de inadimplência, acaba por trair a confiança que nele depositou quem lhe entregou coisa para guardar, tornando-se com isso um devedor em mora”.70 O Código de Processo Civil, em seus artigos 902, §1º, e 904, expressamente estabelece que, uma vez transitada em julgado a sentença e sendo expedido o mandado para que o réu entregue a coisa em vinte e quatro horas ou o valor equivalente em dinheiro, e no caso dele não tomar nenhuma das providências, o juiz decretará sua prisão, desde que tenha sido expressamente formulada na inicial, não podendo ser decretada ex officio. O art. 666, §3º, do referido Código estabelece ainda: “A prisão de depositário judicial infiel será decretada no próprio processo, independentemente de ação de depósito”. É permitido ao juiz, incidentalmente no processo de execução ou na fase de cumprimento da sentença, decretar a prisão do depositário infiel, desde que tenha sido determinada a entrega do objeto e o devedor permaneça inerte em face da ordem judicial. A justificativa da prisão não reside na dívida, mas na infidelidade – ou seja, na quebra de confiança. 70 QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. Prisão civil e os direitos humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 55. 359 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Ademais, mesmo que o devedor cumpra o prazo de prisão estabelecido pelo juiz, resta-lhe o dever de restituir a coisa ou o equivalente pecuniário ao proprietário, o que confirma a natureza coercitiva da prisão. Essa prisão tem caráter exaustivo, podendo ser aplicada uma única vez. Assim, não restituída a coisa, cabe ao autor ingressar com ação de busca e apreensão ou com ação de execução por quantia certa. Portanto, restaria afastada a aplicação do teor do Pacto de São José da Costa Rica71, já que o depositário infiel não é preso em razão da dívida, mas da recusa em devolver o que lhe foi confiado, fazendo com que passe da condição de depositário fiel à de infiel. Deste modo fica evidente que a prisão civil não é uma pena, mas um “meio de coerção processual destinado a compelir o devedor a cumprir a obrigação não satisfeita”.72 2.3. O depósito em razão dos contratos de alienação fiduciária em garantia A alienação fiduciária pode ser compreendida como um contrato formal e acessório que tem como finalidade precípua assegurar o cumprimento de uma obrigação previamente estabelecida. É realizada entre um credor, denominado fiduciário, e um devedor, denominado fiduciante, em que o credor concede um crédito e o devedor o recebe. Ela está expressamente prevista no art. 1.361 do Código Civil: “Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”. Na verdade, a alienação fiduciária nada mais é do que uma garantia para o credor do recebimento de seu crédito. Trata-se da transferência do domínio, sob uma condição resolutiva, feita pelo devedor do bem adquirido, na maioria das vezes por meio de um financiamento. 71 Supremo Tribunal Federal, 1ª Turma, Recurso em Habeas Corpus n. 90.759, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, decisão de 15/05/2007 e Informativo STF n. 467. 72 Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 76.712, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 24/04/1998, Primeira Turma, DJ de 22/05/1998. 360 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Constata-se uma nítida diferença entre o instituto do depositário infiel e o da alienação fiduciária. No primeiro caso, não pode o depositário infiel, via de regra, fazer uso do objeto que lhe foi confiado – a permanência do bem com o depositário visa preservar o bem. Já na alienação fiduciária, o devedor exerce a posse sobre o objeto e sua restituição é suficiente para garantir o crédito caso o mesmo não seja pago. No caso da alienação fiduciária está-se diante de uma dívida, o que não ocorre na hipótese do depositário infiel. Nesse contexto, o Pacto de São José da Costa Rica, ao vedar a prisão civil por dívidas, está na realidade vedando a prisão no caso da alienação fiduciária em garantia, não abrangendo o depositário infiel. Ao permitir expressamente a prisão do depositário infiel, o texto constitucional de 1988 não pretende assegurar o pagamento de uma dívida, como ocorre no caso da alienação fiduciária como garantia, mas proteger – ou melhor, tutelar – a relação de confiança entre as partes, que foi violada. Nesse sentido não há nenhum conflito entre o teor do Pacto de São José da Costa Rica e a Constituição Federal. Sobre o possível conflito entre o Pacto e a Constituição, o Supremo Tribunal Federal inicialmente, no tocante à prisão do depositário infiel, firmou jurisprudência no sentido de que em “nada interfere na questão do depositário infiel em matéria de alienação fiduciária o disposto no §7º do art. 7º da Convenção de São José da Costa Rica”.73 Entendia ainda que não caracterizava afronta ao inc. LXVII do art. 5º o fato de o devedor ter bens em condições suficientes a satisfazer o débito, desde que ofertados logo que ocorrida a citação no respectivo processo.74 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal era no sentido 73 Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 72.131, Rel. p/ o ac. Min. Moreira Alves, julgamento em 23-11-1995, Plenário, DJ de 1º-8-2003. No mesmo sentido têm-se os seguintes julgados: Agravo de Instrumento n. 403.828-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 5-8-2003, Segunda Turma, DJE de 19-2-2010; Habeas Corpus n. 73.044, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 19-3-1996, Segunda Turma, DJ de 20-9-1996. 74 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 200.475-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 17-11-1997, Segunda Turma, DJ de 6-2-1998. 361 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho de que a conduta cabível ao devedor que “descumpriu o compromisso judicial de depositário e alienou o imóvel penhorado, é a prisão civil”.75 O entendimento predominante consistia na possibilidade de decretação da prisão civil do depositário, no processo de execução, independentemente da propositura da ação de depósito.76 A infidelidade depositária é caracterizada como o “desvio patrimonial dos bens penhorados, praticado pelo depositário judicial ex voluntate própria e sem autorização prévia do juízo da execução”. Com efeito, resta claro que a prisão do depositário infiel não decorre de uma relação contratual, mas do “munus publico assumido pelo depositário”. Ele o assume na condição de órgão auxiliar da Justiça, na exata medida em que “a ele é confiada guarda dos bens que garantirão a efetividade da decisão a ser proferida no processo judicial”.77 É o vínculo funcional entre o Juízo e o depositário que permite, verificada a infidelidade, a decretação da prisão deste último, não se tratando, portanto, de uma prisão contratual.78 O Supremo Tribunal Federal, destarte, permitiu a prisão civil do depositário infiel, a despeito do disposto do Pacto de São José da Costa Rica, conferindo aos tratados de direitos humanos o status normativo de lei infraconstitucional, ou seja, abaixo da Constituição. Portanto, no caso de conflito entre o texto constitucional e o conteúdo de um tratado internacional de direitos humanos, prevalecia a Constituição, muito embora se entenda que exista um erro conceitual na redação originária de nossa Carta Magna, haja vista que o depósito, como mencionado, não é uma espécie do gênero prisão civil por dívida. 75 Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 76.286, Rel. p/ o ac. Min. Nelson Jobim, julgamento em 16-6-1998, Segunda Turma, DJ de 28-3-2003. 76 Supremo Tribunal Federal. Recurso em Habeas Corpus n. 80.035, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 21-11-2000, Segunda Turma, DJ de 17-8-2001. 77 Supremo Tribunal Federal. Recurso em Habeas Corpus n. 80.035, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 21-11-2000, Segunda Turma, DJ de 17-8-2001. 78 Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 84.484, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 30-11-2004, Primeira Turma, DJ de 7-10-2005. 362 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Todavia, o Supremo Tribunal Federal, levando em consideração as modificações trazidas pela Emenda à Constituição nº 45/04, entendeu ter ocorrido uma mudança de paradigma na proteção dos direitos humanos no sistema jurídico pátrio, o que implicou uma nova interpretação do status normativo conferido aos tratados de direitos humanos. Em face das consequências advindas da edição da Emenda à Constituição nº 45/04 e do caráter supralegal dos tratados de direitos humanos, é imperioso analisar mais detidamente a evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nessa seara. 3. O supremo tribunal federal e o caráter supralegal dos tratados de direitos humanos no caso do depositário infiel Analisando o entendimento do Supremo Tribunal Federal ao longo do tempo, pode-se observar que, antes de 1977, a referida Corte posicionava-se pela primazia do tratado internacional quando em conflito com a norma infraconstitucional. Todavia, o notório julgado do Recurso Extraordinário nº 80.004 surgiu como divisor de águas, modificando o ponto de vista da Suprema Corte, que a partir de então passou a adotar o sistema paritário ou o chamado monismo moderado, segundo o qual os tratados e convenções internacionais têm status de lei ordinária, devendo eventuais conflitos com as demais normas infraconstitucionais, nesta condição, ser resolvidos do mesmo modo que conflitos comuns entre leis ordinárias – ou seja, através das regras de conflitos. A posição firmada no Supremo Tribunal Federal, portanto, após 1977 e antes da EC nº 45, foi no sentido de que todos os tratados (de direitos humanos ou não) seriam recebidos como lei ordinária. Por esse motivo, a Suprema Corte entendeu – nos julgados dos Habeas Corpus 72.131-RJ, 73.044-SP e 75.306-RJ, dentre outros – que a prisão civil do depositário infiel em alienação fiduciária é constitucional, uma vez que o Pacto de São José de Costa Rica teria natureza geral em face das normas 363 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho especiais previstas em lei ordinária sobre a prisão civil do depositário infiel, além de ser lei anterior, que é derrogada por lei posterior. Entretanto, o antigo entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o Pacto foi superado na votação do Recurso Extraordinário nº 466.343-SP. A referida Corte, ao analisar a constitucionalidade dos tratados de direitos humanos aprovados antes da EC nº 45/04 – ou seja, dos tratados que não foram aprovados na nova forma prevista do §3º do art. 5º –, firmou entendimento de que os mesmos possuem status normativo supralegal e não mais de simples lei ordinária. Em outras palavras, o Supremo Tribunal Federal alterou sua jurisprudência para conferir aos tratados aprovados antes da EC nº 45/05 caráter supralegal, ou seja, abaixo da Constituição Federal mas acima das leis ordinárias. A supralegalidade é, na verdade, uma norma ordinária com qualidade especial: é metade constitucional (materialmente) e metade ordinária (formalmente). Optou a Corte Suprema por criar uma nova espécie normativa que se encontra abaixo da Constituição e acima da lei ordinária. Note-se que essa espécie normativa não tem previsão expressa no texto da Constituição. O ministro Gilmar Mendes, em voto proferido no Recurso Extraordinário n.º 466.343-1/SP, afirmou: Não se pode negar, por outro lado, que a reforma também acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre os Estados pactuantes, conferindo-lhes um lugar privilegiado no ordenamento jurídico. (...) a mudança constitucional ao menos acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados e convenções internacionais já ratificados pelo Brasil (...). 364 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Ele também reconhece que: é preciso ponderar, no entanto, se, no contexto atual, em que se pode observar a abertura cada vez maior do Estado Constitucional a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos, essa jurisprudência não teria se tornado completamente defasada. Não se pode perder de vista que, hoje, vivemos em um ‘Estado Constitucional Cooperativo’, identificado pelo Professor Peter Häberle como aquele que não mais se apresenta como um Estado Constitucional voltado para si mesmo, mas que se disponibiliza como referência para os outros Estados Constitucionais membros de uma comunidade, e no qual ganha relevo o papel dos direitos humanos e fundamentais. Para Häberle, ainda que, numa perspectiva internacional, muitas vezes a cooperação entre os Estados ocupe o lugar de mera coordenação e de simples ordenamento para a coexistência pacífica (ou seja, de mera delimitação dos âmbitos das soberanias nacionais), no campo do direito constitucional nacional, tal fenômeno, por si só, pode induzir ao menos a tendências que apontem para um enfraquecimento dos limites entre o interno e o externo, gerando uma concepção que faz prevalecer o direito comunitário sobre o direito interno. Nesse contexto, mesmo conscientes de que os motivos que conduzem à concepção de um Estado Constitucional Cooperativo são complexos, é preciso reconhecer os aspectos sociológico-econômico e idealmoral como os mais evidentes. E, no que se refere ao aspecto ideal-moral, não se pode deixar de considerar a proteção aos direitos humanos como a fórmula mais concreta de que dispõe o sistema constitucional, a exigir dos atores da vida sócio-política do Estado uma contribuição positiva para a máxima eficácia das normas das Constituições modernas que protegem a cooperação 365 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho internacional amistosa como princípio vetor das relações entre os Estados Nacionais e a proteção dos direitos humanos como corolário da própria garantia da dignidade da pessoa humana. O Estado Constitucional Cooperativo substitui o conceito tradicional de Estado-Nação, entendido como Estado constitucional democrático internamente, mas não-cooperante e não-aliado no plano internacional. Frise-se que o Estado Constitucional Cooperativo não deixa de ser um Estado nacional, mas agrega à sua estrutura elementos de abertura, cooperação e integração que o descaracterizariam como unidade fechada, centrada na soberania clássica. Este novo conceito defende que, em seu atual estágio de desenvolvimento, o Estado Constitucional não se justifica por si só, mas encontra-se condicionado por circunstâncias externas – ou seja, está condicionado de fora para dentro, e desde o início até o fim. Não por acaso nossa atual Carta Magna contempla temas como o do dualismo constitucional (art. 4º) e o da abertura aos direitos humanos (art. 5º, §2º)79, à semelhança do que ocorre nas Constituições de inúmeros países e principalmente em documentos comunitários, como no preâmbulo da Constituição da União Europeia (Maastricht), quando aborda a “solidariedade entre os povos”. É uma evidência empírica de que não só o Brasil como outras nações valem-se da cooperação em distintos níveis no seu cotidiano.80 A supralegalidade desses tratados possibilita, então, que os mesmos paralisem a eficácia jurídica de qualquer ato normativo 79 Art. 5º, §2º, da CF/1988: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. 80 No caso brasileiro, além da cooperação regional (Mercosul e OEA, por exemplo) e universal (ONU e OMC), ainda existe a cooperação entre os membros da Federação. “Artigo 23. Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”. 366 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho infraconstitucional com eles conflitante, pois nenhum desses atos pode contrariar o disposto no tratado de direitos humanos que lhe é superior em razão de sua supralegalidade. A França, a Holanda, a Rússia (por força da reforma jurídica em 1993) e a Grécia também adotam essa posição de supralegalidade em relação aos tratados de direitos humanos. Ressalte-se que o ministro Celso de Mello, em seu voto-vista proferido no Habeas Corpus nº 87.585-8/TO, conferiu aos tratados de direitos humanos natureza constitucional em face das modificações realizadas pela EC nº 45/04. Esta é, todavia, posição minoritária na Corte Suprema. O Código Tributário Brasileiro de 1966, anterior à Constituição de 1988 e por ela recepcionado, estabelece em seu art. 98 a vigência do princípio da prevalência do direito internacional sobre o direito interno infraconstitucional e o próprio Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência reconhecendo essa prevalência, embora apenas em matéria tributária. Como dito anteriormente, a Constituição Federal, em seu art. 5º, LXVII, autoriza a prisão civil no caso do depositário infiel, enquanto o Pacto de São José da Costa Rica, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Declaração Americana dos Direitos da Pessoa Humana proíbem a prisão civil por dívidas. Há, portanto, em tese, um conflito entre o disposto na Constituição e o conteúdo do tratado. A posição do Supremo Tribunal Federal sempre foi a de dar prevalência à Constituição sobre o tratado de direitos humanos. Com a alteração de sua jurisprudência e a concessão de caráter supralegal a esses tratados, passou-se a proibir a prisão do depositário infiel a despeito da permissão expressa no texto constitucional. Vale observar, todavia, que o Supremo Tribunal Federal entendeu que a Constituição permite tal prisão, mas, como o Pacto de São José da Costa Rica a proíbe e em virtude de sua supralegalidade, fica apenas impedida a regulamentação do dispositivo constitucional, tornando inviável a prisão do depositário infiel. Foi uma posição intermediária 367 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho adotada pelo Supremo Tribunal Federal, que não confere caráter constitucional aos tratados de direitos humanos – salvo àqueles aprovados conforme previsão do art. 5º, §3º, da Constituição Federal. Os efeitos práticos, no entanto, são os mesmos, pois se impede a prisão do depositário infiel. Passou, assim, a firmar entendimento no sentido que “a subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel”.81 Para a Corte Suprema, desde a adesão sem reservas do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica e ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 1992, “não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna”.82 É o que se denomina de status normativo supralegal, que tem o condão de “tornar inaplicável toda a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão”.83 Assim sendo, não se pode mais efetuar a prisão do depositário infiel no Brasil, em qualquer de suas modalidades. Em síntese, o Supremo Tribunal Federal, ao conferir status supralegal aos tratados de direitos humanos não aprovados na forma do §3º do art. 5º da Constituição, estabeleceu a não-subsistência “da prisão civil por infidelidade 81 Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 87.585, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de 26-6-2009. 82 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, voto do Min. Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de 5-6-2009. No mesmo sentido: HC 98.893-MC, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 9-6-2009, DJE de 15-6-2009; RE 349.703, Rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de 5-6-2009. Em sentido contrário: HC 72.131, Rel. p/ o ac. Min. Moreira Alves, julgamento em 23-11-1995, Plenário, DJ de 1º-8-2003. Vide: HC 84.484, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 30-11-2004, Primeira Turma, DJ de 7-10-2005. 83 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, voto do Min. Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de 5-6-2009. 368 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho depositária, independentemente da modalidade de depósito, trate-se de depósito voluntário (convencional) ou cuide-se de depósito necessário, como o é o depósito judicial”.84 Com fundamento em tal jurisprudência, editou o Supremo Tribunal Federal a Súmula Vinculante nº 25, que dispõe: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito” – o que equivale a dizer que a referida Súmula vincula toda a Administração Pública direta e indireta, federal, estadual e municipal, e todos os órgãos do Poder Judiciário federal e estadual. No entanto, a despeito da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o status normativo conferido aos tratados de direitos humanos aprovados anteriormente à edição da Emenda à Constituição nº 45/04, que implicou a impossibilidade da prisão do depositário infiel, entendese que o Pacto de São José da Costa Rica não se aplica à hipótese de prisão do depositário infiel, mas à prisão civil por dívidas. Não há que se falar de conflito entre a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. Nesse sentido, a proibição da prisão civil se aplicaria somente aos contratos de alienação fiduciária em garantia. Essa hipótese, sim, remete à prisão civil por dívidas, como visto, e não ao instituto do depositário infiel. Não foi esse, todavia, o entendimento prevalecente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Conclusão A constante necessidade de conferir-se efetividade à proteção dos direitos humanos, no âmbito interno e no internacional, exige uma alteração no status normativo conferido aos tratados de direitos humanos dentro da ordem jurídica brasileira. Não há negar-se que o §3º do art. 5º trouxe a possibilidade de alguns tratados de direitos humanos serem equivalentes às propostas de emendas à Constituição. No entanto, tal 84 Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 90.450, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-9-2008, Segunda Turma, DJE de 6-2-2009. 369 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho alteração ainda é inócua para conferir aos direitos humanos um status privilegiado dentro do ordenamento jurídico pátrio. É necessário que todos os tratados de direitos humanos tenham status constitucional. De outra parte o Supremo Tribunal Federal conferiu status de norma supralegal aos tratados de direitos humanos não aprovados na forma prevista no §3º do art.5 º da Constituição de 1988. Criouse, assim, uma nova espécie normativa, que tem hierarquia normativa superior às leis ordinárias, mas inferior às normas constitucionais. Essas alterações levadas a efeito tanto no Texto Constitucional, como na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tiveram impacto direto no caso da prisão civil do depositário infiel, pois o Pacto de São José da Costa Rica veda a prisão por dividas e a Constituição Federal de 1988 permite. O Supremo Tribunal Federal em face da alteração de sua jurisprudência fixou entendimento no sentido de que não é permitida a prisão do depositário infiel em face do caráter supralegal do Pacto de São José da Costa Rica, que a despeito de aparentemente conflitar com o teor da Constituição, tem o condão de obstar a aplicação da legislação infraconstitucional que regulamenta a prisão civil do depositário infiel. Contudo, em face de todo o exposto verifica-se que não há conflito entre o texto da Constituição de 1988 e o Pacto de São José da Costa Rica no tocante à prisão civil do depositário infiel. Isso decorre do fato de o depositário infiel não ser preso em razão da existência de uma divida, mas sim em virtude da recusa em devolver o bem que lhe foi confiado. O bem juridicamente protegido aqui é a relação de confiança existente entre as partes. Nesse sentido, tem-se que a prisão civil não é uma pena, mas sim um meio de coerção que visa compelir o devedor a devolver o bem que lhe foi confiado. Já no caso da prisão civil por dividas, precipuamente do depósito em razão dos contratos de alienação fiduciária em garantia a prisão objetiva assegurar o pagamento de uma divida. Tal divida inexiste no caso do depositário infiel. Trata-se de situações distintas. Nesse particular tem-se 370 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho que o Pacto de São José da Costa Rica não conflita com a Constituição de 1988, pois os bens tutelados são distintos. Portanto, permanece válida a prisão civil do depositário infiel constitucionalmente assegurada. Destarte, faz-se imprescindível uma jurisprudência mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas principalmente à proteção da dignidade da pessoa humana e à preservação de valores comuns aos Estados. 371 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho Referências CONI, Luís Cláudio. A internacionalização do poder constituinte. Porto Alegre: Antonio Fabris, 2006. DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. São Paulo: Martins Fontes, 2004. DIÉZ-PICAZO, Luís Maria. Constitucionalismo da União Europeia. Madrid: Cuadernos Civitas, 2002. KOTZUR, Markus; HÄBERLE, Peter. De la soberanía al derecho constitucional común: palabras clave para un diálogo europeo-latinoamericano. Trad. Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autônoma, 2003. MEYER- PFLUG, Samantha Ribeiro. “A internacionalização do Direito Constitucional” In.: Coletânea de Estudos Jurídicos. ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira; PETERSON, Zilah Maria Callado Fadul. Coordenadoras. MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Organizadora. Brasilia: Superior Tribunal Militar, 2008. MOLITOR, Joaquim. Prisão civil do depositário. São Paulo. Juarez de Oliveira, 2000. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007. QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. Prisão civil e os direitos humanos. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2004. RAWLS, John. O direito dos povos. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 372 FILOSOFIA DO DIREITO: estudos em homenagem a willis santiago guerra filho TOURARD, Héléne. L´internationalisation dês Constitutions Nationales. Paris: L.G.D.J., 2000. SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos: conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010. ____________. O poder reformador na Constituição de 1988 e os limites jurídicos das reformas constitucionais. São Paulo: Rcs, 2006. __________ (org). Estudos e debates em direitos humanos. Florianópolis: Conceito, 2010, v.1. __________; RIPARI, Vanessa Toqueiro. A cidadania regional americana e o ordenamento jurídico. Revista da Escola Paulista de Magistratura, v.5, p. 23-28, 2009. 373