PATOLOGIA GERAL - DB-301, UNIDADE V, FOP/UNICAMP ÁREAS DE SEMIOLOGIA E PATOLOGIA 56 RECONHECENDO E CONTROLANDO OS EFEITOS COLATERAIS DA RADIOTERAPIA SINOPSE O câncer bucal é um dos tumores malignos mais comuns e é tratado preferencialmente por cirurgia e/ou radioterapia. Neste artigo, apresentamos os principais efeitos colaterais da radioterapia e as formas de preveni-los e controlá-los. UNITERMOS Câncer bucal - Radioterapia Efeitos colaterais. INTRODUÇÃO A cavidade bucal é um importante local de ocorrência de tumores malignos, e o carcinoma espinocelular (CEC) é o tumor mais freqüente, correspondendo a aproximadamente 95% dos casos (WINGO et al., 1995). O Ministério da Saúde divulgou, em 1991, o levantamento de câncer no Brasil referente ao período de 1981 a 1985. Do total de 530.910 casos diagnosticados, 25.630 (4,8%) eram da região oral e perioral (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1991). Estima-se que, no Brasil, 5.000 casos novos de CEC são diagnosticados anualmente. Em outro levantamento, realizado pelo Ministério da Saúde em 1996, foi relatado que o câncer de boca está entre os dez tumores mais freqüentes em ambos os sexos. Analisando somente o sexo masculino, essa neoplasia figura, no Brasil, entre os seis tumores mais incidentes. Em algumas regiões, como observado no Hospital Aristide Maltez, na Bahia, foi o tumor mais freqüente no sexo masculino, correspondendo a 16,5% dos diagnósticos registrados em 1990 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1996). Em alguns países como índia, Paquistão e Bangladesh, e em algumas regiões da França, o câncer de boca é o principal tumor (LINE et al. 1995). O tratamento desse tumor depende, de um modo geral, da localização, do grau histológico, do estadiamento clínico e das condições físicas do paciente, e é realizado principalmente por meio de cirurgia, radioterapia (RXT) e quimioterapia (QT). A cirurgia é o tratamento de escolha, e a RXT pode ser utilizada associada à cirurgia ou exclusivamente nos casos em que esta não é indicada. Geralmente, a QT é usada de forma paliativa nos casos avançados. Apesar dos benefícios do tratamento do câncer bucal, a radioterapia provoca efeitos secundários nos locais irradiados. Com relação à cavidade bucal, as principais alterações ocorrem em pele, mucosa, ossos, glândulas salivares e dentes (VMITMYER 1997). Sendo assim, o cirurgião-dentista deve fazer parte da equipe multidisciplinar que aborda o câncer bucal, tendo papel importante no diagnóstico, no planejamento e no manejo das complicações oriundas do tratamento. DERMATITE A pele localizada no campo de irradiação pode sofrer alterações como eritema, formação de bolhas, descamação e necrose. A intensidade dos efeitos é variada, e os pacientes podem queixar-se de ardência ou até mesmo de dor nos casos mais severos. Para minimizar esse quadro, são prescritos cremes hidratantes e cicatrizantes. A regressão total dessas alterações ocorre logo após o término da radioterapia. Entretanto, atrofia da pele, mudanças na pigmentação, alopecia e telangiectasia podem ser observadas após o tratamento (FITZPATRICK et al. 1993, AUGUST et al. 1996). MUCOSITE As alterações que ocorrem na pele também podem aparecer na mucosa e variam desde áreas eritematosas, até ulcerações recobertas por membranas fibrino-purulentas extremamente doloridas, que são vias potenciais para infecção (BLOZIS; ROBINSON 1968). A mucosite desenvolve-se, em geral, após a segunda semana de tratamento e ocorre sobretudo em mucosa jugal, assoalho bucal, PATOLOGIA GERAL - DB-301, UNIDADE V, FOP/UNICAMP ÁREAS DE SEMIOLOGIA E PATOLOGIA 57 palato mole e borda lateral de língua. Pensava-se anteriormente que fungos do gênero Candida tivessem papel importante na etiologia da mucosite. No entanto, recentes estudos sugerem que a severidade da mucosite está associada às bactérias Gram-negativas (RICE; GILL 1979, BERNHOFR, SKAUG 1985, VAN SAENE, MARTIN 1990, SPIJKERVET et al. 1991). O tratamento é principalmente paliativo e consiste no uso de analgésicos tópicos ou sistêmicos, dependendo da severidade da alteração (WHITMYER 1997). O uso de bochechos com clorexidina é importante para reduzir o risco de infecção; no entanto, devem ser observadas a aceitação e a tolerância do paciente. Os efeitos regridem após o término da irradiação, não deixando seqüelas. CANDIDOSE As alterações da microflora bucal favorecem o desenvolvimento de fungos, principalmente do gênero Candida. O aumento na contagem de Candida, que pode persistir por vários meses, propicia maior suscetibilidade para candidose. Essas lesões geralmente são do tipo pseudomembranosa, caracterizando-se pela formação de placas brancas removíveis à raspagem (BROWN et al. 1975). O tratamento é realizado com antifúngicos tópicos (nistatina) ou sistêmicos (azole), dependendo da gravidade da infecção (YAP, BODE 1979, MARTIN et al. 1998, GOODMAN et al. 1992). XEROSTOMIA A RXT danifica severamente as glândulas salivares, provocando alterações importantes como atrofia, degeneração e substituição por tecido hialino, reduzindo a capacidade de produzir saliva. Quando todas as glândulas salivares complicações persistem após o tratamento radioterápico, sendo a xerostomia relatada em 68% dos pacientes. Para minimizar o desconforto da xerostomia, pode ser utilizada saliva artificial, a qual deve ter características semelhantes à saliva natural, como íons de cálcio, fosfato, sódio, magnésio e potássio, componentes contendo mucina, além de pH entre 6 e 7. Os pacientes também devem ser orientados para consumir maior quantidade de água. Quando as glândulas salivares maiores são afetadas pela radiação, o fluxo salivar pode diminuir em até 90%. A saliva residual toma-se viscosa, com menor poder de lubrificação e proteção. Há também uma acentuada diminuição do pH, o que faz com que ela fique mais ácida devido a uma alteração nas concentrações de cálcio, sódio e bicarbonatos (DREMEN et al. 1976; CARL 1977). Boca seca, ou xerostornia, é um dos sintomas mais desagradáveis que ocorrem durante a radioterapia, iniciando-se geralmente após 1.000 a 2.000 cGy, o que corresponde a segunda semana de tratamento (AUGUST et al. 1976). O grau de hipossalivação e o retorno do fluxo salivar dependem da dose total de radiação e da quantidade de glândulas salivares localizadas no campo irradiado (LIU et al. 1990). A função salivar tende a retomar em 2 meses após a radioterapia; entretanto, quando particularmente as glândulas parótidas estiverem envolvidas, essa função poderá retomar em 1 ou 2 anos, ou até mesmo nunca retomar ao nível normal (JOYSTON-BECHAL, LONDON 1992). CÁRIE DE RADIAÇÃO A radioterapia provoca efeitos diretamente nos dentes, principalmente sobre os odontoblastos, diminuindo a capacidade de produção de dentina reacional. O esmalte também sofre alterações, tomando-se mais vulnerável à cárie. Além dos efeitos diretos sobre os dentes, a RXT atua indiretamente, aumentando a suscetibilidade de cárie por meio de diminuição do fluxo salivar, modificação das características da saliva e desenvolvimento de microorganismos cariogênicos. O processo carioso que se desenvolve após o tratamento radioterápico é conhecido como cárie de radiação e caracteriza-se por ser de progressão rápida e iniciar-se geralmente na região do colo dental (JOYSTON-BECHAL, LONDON 1992). PATOLOGIA GERAL - DB-301, UNIDADE V, FOP/UNICAMP ÁREAS DE SEMIOLOGIA E PATOLOGIA 58 Para evitar o desenvolvimento da cárie de radiação, é preciso utilizar saliva artificial, bochechos diários com fluoreto de sódio 1,0% e bochechos com clorexidina 0,2%, até que o fluxo salivar seja restabelecido. Tem sido proposto também o uso de fluoreto de sódio gel (5.000 ppm) diariamente. Além do uso dessas substâncias, é de fundamental importância orientar os pacientes para utilizar uma dieta não cariogênica, reforçar a higienização bucal e realizar profilaxias constantemente (DREZEN et al 1977, EMEIN et al 1996, WHITMYER 1997). Aos pacientes mais resistentes ao seguimento do protocolo pode ser administrada clorexidina gel, que deve ser aplicada por um período de 5 minutos durante 14 dias. Esse procedimento deve ser repetido a cada 3 ou 4 meses, até o fluxo salivar retomar ao normal, visando controlar os microorganismos cariogênicos, especialmente o Streptococcus mutans (EMILSON 1981). Nos pacientes que desenvolveram cárie de radiação, deve ser realizado tratamento odontológico restaurador convencional. Caso a cárie tenha destruído toda a coroa e comprometido a polpa, deve ser feito tratamento endodôntico com obliteração do conduto, deixando a raiz "sepultada" no alvéolo. As exodontias devem ser evitadas ao máximo, principalmente na mandíbula, para que não ocorra osteorradionecrose (DIB, CURY 1993). OSTEORRADIONECROSE A RXT provoca uma redução da atividade dos osteoblastos e alteração nos vasos sanguíneos, tornando o osso menos irrigado e, conseqüentemente, mais vulnerável a infecção e com menor capacidade de reparação (WHITMYER 1997). O principal fator associado a osteorradionecrose é a exodontia após a radioterapia. No entanto, outros fatores que possam provocar exposição e infecção óssea devem ser considerados. A mandíbula, devido à maior densidade do osso, é mais comumente envolvida, e a manifestação ocorre geralmente dentro de 2 anos após a RXT. Pelo risco de desenvolver osteorradionecrose, deve ser realizada uma avaliação completa antes do início da radioterapia, verificando as condições dos dentes, as condições sócioeconômica e cultural e o prognóstico do paciente. De um modo geral, pacientes com bom prognóstico, com dentes em bom estado e com motivação para seguir o protocolo de higienização devem ter os dentes mantidos na cavidade bucal. Entretanto, os pacientes que não apresentam essas características devem ser submetidos a exodontias, as quais geralmente são feitas por volta de duas semanas, no mínimo, antes do início da RXT (STARKE, SHANNON 1977, MARX, JOHNSON 1987). O risco de desenvolver osteorradionecrose, embora seja maior nos primeiros 4 a 12 meses após a radioterapia, persiste por toda a vida do paciente (BEUMER et al 1984, WHITMYER 1997). Os pacientes que não foram avaliados antes da RXT e que desenvolveram osteorradionecrose necessitam de tratamento, o qual consiste na irrigação local e diária com clorexidina 0,2% e, em casos com infecção aguda, no uso de antibióticos sistêmicos. No entanto, o controle do processo é duradouro e imprevisível. Quando a irrigação local não é satisfatória, ou quando os pacientes apresentam dores intensas, devem ser realizadas intervenções cirúrgicas associadas a oxigenação hiperbárica, a qual consiste na inalação de oxigênio puro através de uma pressão atmosférica aumentada. Dessa forma, a hipóxia crônica melhora por meio da neovascularização e da estimulação de fibroblastos e macrófagos ao retorno de suas funções. Nos casos em que a opção for exodontia após a RXT, deve-se também associar a oxigenação hiperbárica (WONG, MCLEAN 1997, LAMBERT et al 1997). Os pacientes desdentados e portadores de próteses totais devem ser instruídos a não usar as próteses durante a RXT; aproximadamente 2 meses após o término do tratamento, novas próteses devem ser confeccionadas. CONCLUSÃO A radioterapia é uma modalidade terapêutica muito utilizada no tratamento do câncer bucal. Entretanto, provoca efeitos colaterais importantes que devem ser de conhecimento do cirurgiãodentista, para que possam ser prevenidos e controlados. O objetivo deste artigo é ressaltar a importância do cirurgião-dentista na equipe de tratamento do câncer bucal e informar sobre as PATOLOGIA GERAL - DB-301, UNIDADE V, FOP/UNICAMP ÁREAS DE SEMIOLOGIA E PATOLOGIA 59 principais complicações associadas à radioterapia. ABSTRACT Recognizing and controlling the side effects of radiotherapy Oral cancer is one of the most common malignant tumors and is treated by surgery and/or radiotherapy. In this article, we show the main side effects of radiotherapy and how to control and prevent them. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. AUGUST, M. et al. Complications associated with therapeutic rock radiation. J Oral Maxillofac Surg, v. 54, p. 1409-1415, 1996. 2. BERNHOFT, C. 11; SKAUG, N. Oral findings in irradiated edentulous patients. Int J Oral Surg, v. 14, p. 416-427, 1985. 3. BEUMER, J. et al. Osteoradionecrosis: Predisposing factors and outcomes of therapy. Head Neck Surg, v. 6, p. 819, 1984. 4. BLOZIS, G. G.; ROBINSON, J. E. Oral tissues changes caused by radiation therapy and their management. Dent Clin North Ant, p. 643-656, 1968. 5. BROWN, L. R. et al. Effect of radiation-induced xerostomia on human oral microflora. J Dent Res, v. 54, p. 740, 1975. 6. CARL, W. Managing the oral manifestation of cancer therapy. Postgrad Med, v. 6 1, p. 85-92, 1977. 7. DIB,L.L.;CURI,M.M.A odontologia na Oncologia.Âmbito Hospitalar, v. 4, p. 39-44, 1993. 8. DREIZEN,S.A. et al. Radiation-induced xerostomia in cancer patients. Cancer, v. 38, p. 273, 1976. 9. DREIZEN, S. et al. Prevention of xerostomia-related dental caries in irradiated cancer patients. J Dent Res, v. 56, p. 99104, 1977. 10.EMILSON, C. G. Effect of chlorhexidine gel treatment on Streptococcus mutans population in human saliva and dental plaque. Scand J Dent Res, v. 89, p. 239-246, 198 1. 11.EPSTEIN, J. B. et al. Effects of compliance with fluoride gel application on caries and caries risk in patients after radiation therapy for head and neck cancer. Oral Surg Oral Med Oral Pathol, v. 82, p. 268-275, 1996. 12. FITZPATRICK, T. et al. Dematology in General Medicine. 4. cd. New York: McGraw-Hill, 1993. p. 1598-1608. 13.GOODMAN, J. L. et al. A controlled trial of fluconazole to prevent fungal infections in patients undergoing bone marrow transplantation. N Eng] J Med, v. 326, p. 845-851, 1992. 14.JOYSTON-BECHAL, S.; LONDON, U. K. Prevention of dental diseases following radiotherapy and chemotherapy. Dent J, v. 42, p. 47-53, 1992. 15.LAMBERT, P. M. et al. Management of dental extractions in irradiated jaws: a protocol with hyperbaric oxygen therapy. J Oral Maxillofac Surg, v. 55, p. 268-274, 1997. 16.LINE, S. et al. As alterações genéticas e o desenvolvimento do câncer bucal. Rev Assoc Paul Cir Dent, v. 49, p. 51-56, 1995. 17.LIU, R. P. et al. Salivary flow rates in patients with head and neck cancer 0.5 to 25 years after radiotherapy. Oral Surg Oral Med Oral Pathol, v. 70, p. 724-729, 1990. 18.MANUAL DE DETECÇAO DE LESõES SUSPEITAS. Câncer de boca. Ministério da Saúde. Brasil, 1996. 19.MARTIN, M.V. et al. Yeast flora of the mouth and skin during and after irradiation for oral and laryngeal cancer. J Med Mic-biol, v. 14, p. 457-467, 198 1. 20.MARX, R. E.; JOHNSON, R. P. Studies in the radiobiology osteoradionecrosis and their clinical significance. Oral Surg Oral Med Oral Pathol, v. 64, p. 379-390, 1987. PATOLOGIA GERAL - DB-301, UNIDADE V, FOP/UNICAMP ÁREAS DE SEMIOLOGIA E PATOLOGIA 60 21. REGISTRO NACIONAL DE PATOLOGIA TUMORAL. Diagnóstico de Câncer. Ministério da Saúde. Brasil, 1991. 22.RICE, D. 11; GILL, G. The effect of irradiation upon the bacterial flora in patients with head and neck cancer. Laryngoscope, v. 84, p. 1839-1841, 1979. 23. SPIJKERVET,F.K.L. et al. Effect of selective elimination of the oral flora on mucositis in irradiated head and neck cancer patients. J Surg Oncol, v. 46, n. 3, p. 167-173, 1991. 24.STARKE, E. N.; SHANNON, 1. L. How critical is the interval between extraction and irradiation in patients with head and neck malignancy? Oral Surg Oral Med Oral Pathol, v. 43, p. 333-337, 1977. 25.VAN SAENE, H. K.; MARTIN, M. V. Do microorganisms play a role in irradiation mucositis? Eur. Clin Microbial Infect Dis, v. 9, p. 861-863, 1990. 26.WHITMYER, C. C. Radiotherapy for head and neck neoplasm. Gen Dent, v. 45, p. 363-370, 1997. 27.WINGO, P. A. et al. Cancer statistics. Cancer, v. 45, p. 8-30, 1995. 28.WONG, J. K.; McLEAN, M. Conservative management of osteoradionecrosis. Oral Surg Oral Med Oral Pathol, v. 84, p. 16-21, 1997. 29. YAP, B. S.; BODEY, G. P. Oropharyngeal candidiasis treated with a troche tom of clotrimazole. Arch Intern Med, v. 139, p. 656-657, 1979. Trabalho realizado por Márcio Ajudarte Lopes, Ricardo Della Coletta, Fábio de Abreu Alves, Nelson Abbade, Aristides Rossi Jr. e publicado em REVISTA DA APCD V. 52, N. 3, MAI./JUN. 1998.