Uma problematização das relações de troca no

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JORNAL DO M.A.U.S.S. IBEROLATINOAMERICANO
OS DESDOBRAMENTOS DA DÁDIVA:
Uma problematização das relações de troca no campo da saúde
Débora Arruda Campos de Andrade Lima
Wilka Barbosa dos Santos
Curso de Ciências Sociais/CCHLA/UFPB
Resumo: Este artigo tem como perspectiva refletir sobre as interfaces entre o espírito da dádiva e o
campo da saúde. A dádiva, segundo Marcel Mauss, é um sistema de organização social de caráter
universal, não apenas com relação ao Estado-Mercado, mas, principalmente, com relação ao sistema
de reciprocidade. Neste sentido, as experiências associativas e voluntárias no campo da saúde,
resgatam os mecanismos participativos, nos quais incentivam o protagonismo do cidadão. Por fim,
espaços que perpassam as ações voluntárias resultam das relações de trocas de medicamentos,
informações, gentilezas, entre outros. Portanto, a dádiva no campo da saúde é capaz de gerar laços e
vínculos sociais que proporcionam aos donatários um respeito por parte dos assistidos, bem como o
reconhecimento simbólico de está cumprido ou exercendo valores morais, defendido por determinada
ideologia social como um ato de generosidade.
Palavras-Chaves: Teoria da dádiva; saúde; solidariedade; associativismo; voluntarismo
Abstract: This paper has the perspective to reflect on the interfaces between the gift spirit and health
field. According to Marcel Mauss, gift is a system of social organization with universal character for
both state-market relations and the system of reciprocity. In this sense, associative and voluntary
experiences in health field rescue participatory mechanisms that encourage the role of the citizen.
Areas linked to voluntary actions are performed from reciprocal exchanges like medicines,
information, kindness, etc. Therefore, gift in the health field is able to forge social ties that offer
respect for the gift-donors came from their beneficiaries and symbolic recognition for the moral values
established in the reciprocal exchange, defended by a social ideology as an act of generosity.
Key words: Theory of Gift; health; solidarity; associativism; volunteerism.
Introdução
Este artigo tem como perspectiva refletir sobre as interfaces entre o espírito da dádiva
e o campo da saúde. Para tanto, utilizaremos como quadro de referencial teórico autores como
Marcel Mauss, Maurice Godelier, Bourdieu entre outros. Esta discussão foi apresentada na
cadeira de Antropologia Econômica que tem o objetivo contrapor as noções de economia
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moral a uma economia mercantil, discutindo os desdobramentos da teoria da dádiva nas
relações sociais na sociedade contemporânea. 1
A partir das discussões feitas na disciplina, observamos o quanto é importante discutir
as dinâmicas de sociabilidades, solidariedades, associativismos e redes sociais existentes na
contemporaneidade. Com base nisso, daremos um recorte que correlacionará às discussões
atuais sobre a teoria da dádiva e suas possibilidades no campo da saúde – as quais aparecem
formalizadas em ONGs, associações de portadores de doenças e nas campanhas solidárias
para doação de sangue e órgãos – uma vez que se sabe que as relações estabelecidas por meio
da dádiva podem ser encontradas em diferentes contextos numa dada sociedade.
Em Simmel (2006) observamos que a sociabilidade na área da saúde e doença pode ser
problematizada através da maneira como as pessoas se reúnem em torno de uma aflição. Para
este autor, sociabilidade significa a interação de pessoas tendo em vista um interesse ou uma
finalidade em comum. Esta interação se daria a partir de determinados impulsos, os quais ele
chama de “impulso de sociabilidade”, que nada mais são do que as potencialidades que certos
problemas sociais têm de agregar pessoas. Isto posto, relacionamos as teses do referido autor
às de Mauss (2003), quando discute como a reciprocidade provoca e cria mecanismo de
interação entre indivíduos.
Na obra “Ensaio sobre a Dádiva”, Marcel Mauss demonstra como sentimentos que
são aparentemente espontâneos se traduzem como parte do processo de interação e
obrigações. Como ocorre em algumas ONGs e associações de doentes, em que laços de
reciprocidade surgem do interesse imediato voltado para a busca de direitos à saúde, tais
como: medicamentos e assistência médica; mas também para compartilhar sentimentos e
experiências com a doença – já que no campo da saúde, a doença se torna apenas a razão
primeira para os indivíduos se reúnam em grupo e se sociabilizem.
Para dar início a determinada discussão, faz-se necessário o entendimento de alguns
conceitos como: a dádiva, o contradom, associativismo entre outros; para assim,
compreendermos o que acontece com os indivíduos no âmbito da saúde e doença, que decide
muitas vezes se socializar e dar luz a espaços de doações e retribuições.
1
Ministrada pela Profª Drª Alicia Ferreira Gonçalves corresponde ao semestre de 2011.1 do Bacharelado de
Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba.
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Segundo Mauss (1974), a dádiva produz alianças políticas, econômicas, religiosas,
jurídicas e diplomáticas. No “Ensaio sobre a Dádiva” ele busca compreender a constituição e
coesão da vida social através das relações de reciprocidade – dar, receber e retribuir. De
acordo com Lanna (2000), a dádiva aproxima os indivíduos, tornando-os semelhantes e, isto
nós podemos observar nos espaços de sociabilidade entre os acometidos por doenças; que ao
buscar um local para se socializar geralmente buscam espaços constituídos por semelhantes
com as mesmas finalidades, tais como: facilidade de medicamentos, consultas de médicos,
troca de experiências, entre outros.
Dessa maneira, assim como o ato de dar algo é o ato de se associar voluntariamente
em defesa de alguma causa; uma vez que em ambos os processos se estabelece uma relação
de dádiva aparentemente desinteressada. Essa “dádiva desinteressada” aparece sobre a forma
de caridade/filantropia, devido à existência de fortes ideologias sociais – principalmente no
campo da religião – que empreendem a necessidade de solidariedades, generosidades e
gratuidade na constituição das relações sociais.
Essa característica de desinteresse e voluntariedade presente nos variados
desdobramentos da teoria da dádiva corresponde até hoje a um das mais importantes atributos
do “sistema de prestações totais” que as relações da dádiva desencadeiam. No entanto,
embora o ato de dar algo a alguém seja aparentemente um exemplo de altruísmo, acredita-se
que existe uma regra que de certa forma cria no doador uma expectativa retribuição; mesmo
sabendo-se que o contra-dom não é imediato e é fixado numa zona de incerteza (Godbout,
1998).
Já para Godelier (2001), que nos apresenta uma abordagem recente das sociedades ao
discutir o enigma do dom, argumenta que a existência social dos indivíduos na sociedade de
mercado capitalista depende da economia; esta muitas vezes excluindo os sujeitos da
sociedade. Percebemos um exemplo desta afirmativa no caso do associativismo de doentes,
que muitas vezes não têm um plano de saúde e passam a buscar maneiras de poder conviver
com as doenças freqüentando hospitais públicos – que nem sempre correspondem suas
expectativas – ou procurando ONGs e Associações nas quais possam facilitar seu tratamento
e manter-se informado sobre sua nova condição, como dos acometidos pelo HIV/Aids e o
Diabetes.
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Assim, de acordo com o referido autor, o dom nas sociedades modernas vem sendo
vivido como um gesto de generosidade, de solidariedade dos seres humanos – como o caso
dos voluntários que trabalham nessas associações de doentes – e não mais como uma virtude
teologal que possuía como condicionalidade à absolvição divina.
Em consonância com Bourdieu (1996), o caráter fundamental da experiência do dom é
sua ambigüidade, já que por um lado a experiência é vivida com rejeição ao interesse e por
outro não exclui a consciência lógica da troca. Assim sendo, a partir de tais reflexões,
apontaremos elementos que corroboram para compreensão da experiência contemporânea do
associativismo dos doentes e de voluntários, observando até que ponto tais comportamentos
podem ser generosos e desinteressados e/ou interessados em retribuições.
Trajetória do Sistema de Prestações Totais
O sistema de prestações totais vem sendo processado de diferentes formas ao longo da
história, se adaptando as variadas etapas de desenvolvimento das sociedades e sendo
abordado de maneira distinta pelos teóricos contemporâneos; os quais discutirão de maneiras
diversas o caráter voluntário ou não das dádivas. 2
Partindo das contribuições de Mauss (1974), é válido ressaltar que ele teve uma
relevante contribuição para o campo da Sociologia a partir de sua sistematização a respeito da
teoria da dádiva. Ele tinha como objetivo demonstrar que nas sociedades arcaicas o valor das
coisas não são superiores ao valor das relações, mas que a construção da vida social se dava
por relações de troca; as quais eram problematizadas por Mauss como responsáveis por
fundar a coesão do tecido social das “sociedades primitivas”. Desta forma, o autor define o
sistema de prestações totais presente nas sociedades como um “fato social total”, uma vez
que, de acordo com tal autor, este é um fenômeno que se faz presente em toda e qualquer
sociedade e, está envolvido em todas as suas esferas. Neste processo, os bens produzidos não
são apenas matérias, mas também símbolos que exprimem diversas instituições religiosas,
jurídicas e morais.
2
Entendido como um sistema que implica em três atos: dar, receber e retribuir.
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Isto ocorre porque dar, receber e retribuir implica não só uma
troca material, mas também uma troca espiritual, uma
comunicação entre almas. É neste sentido que a Antropologia
de Mauss é uma sociologia de símbolos, da comunicação; é
ainda nesse sentido ontológico que toda troca pressupõe certa
alienabilidade. (Lanna, 2000: 176).
Com base nessas noções de Mauss (1974), compreende-se que a vida social se dá por
meio de prestações e contra-prestações, que de certa maneira, envolve todos os membros de
uma determinada comunidade, obrigatoriamente ou não. Percebe-se também que a dádiva é
um sistema de organização social de caráter universalizante, não apenas com relação ao
Estado-Mercado, mas, principalmente, com relação ao sistema de reciprocidade.
Assim, o sistema de troca existente nas sociedades arcaicas permite um distanciamento
com o modelo dicotômico presente na modernidade. No entanto, o fato do Mauss tratar
apenas do sistema de trocas simbólicas baseado nas relações de reciprocidade presente nas
sociedades primitivas, não significa dizer que tal sociedade não tenha economia; mas sim, que
nas sociedades arcaicas, diferentemente das capitalistas, o mercado é apenas um momento e
não a dimensão englobante.
Em todos os capítulos do “Ensaio sobre a dádiva” Mauss procura entender como a
economia das trocas simbólicas se realizam nas diferentes sociedades a partir de um método
comparativo; acreditando que tais sociedades poderiam nos ensinar muitas coisas – já que,
para ele, a dádiva tem o papel de estabelecer uma aliança entre pessoas morais, tornando esta
relação à responsável pela sobrevivência das sociedades arcaicas.
Mauss já definia a dádiva de modo amplo. Ela inclui não só
presentes como também visitas, festas, comunhões, esmolas,
heranças, um sem número de prestações enfim – prestações que
podem ser totais ou agonísticas. (Lanna, 2000: 175).
Não obstante, muitas pesquisas hoje em dia procuram – com base na teoria da dádiva –
estudar fenômenos contemporâneos. Como no nosso caso, uma vez que pretendemos discutir
a questão do associativismo voluntário no âmbito da saúde e compreender como o sistema de
prestações totais (dar/receber/retribuir) acaba acontecendo nas Associações de doentes e nas
ONGs.
Partindo desse ponto, notamos que a dádiva é um elemento presente na constituição
dos espaços de sociabilidade contemporâneos, passando a ser exercida tanto com base numa
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gratuidade quanto num interesse; ou em outras palavras, sendo incondicionalmente realizada
em algumas situações, bem como condicionalmente realizada em outros casos.
Nas sociedades contemporâneas o dom e o mercado convivem de formas diferentes;
neste momento o capitalismo estabelece a troca entre indivíduos, pois estas são consideradas
as pessoas morais de um sistema fundamentado no individualismo moderno.
Convém ressaltar que Godelier (2001), antropólogo francês que inicia seu estudo a
partir da obra “O enigma do dom”, aborda as sociedades ocidentais para depois debater a
questão da dádiva existente nelas; argumentando que na contemporaneidade vem se
multiplicando os excluídos, dando vez a um permanente espaço dinâmico e de
competitividade.
No que se refere aos quadros de uma economia de mercado, os sujeitos sociais ficam
desempregados, pois na sociedade moderna apresentada por Godelier (2001), fazer parte de
um grupo não nos dá as mesmas condições de existência que nas sociedades arcaicas – onde é
preciso apenas pertencer a um grupo para conseguir sobreviver –, sendo necessário ter
dinheiro para conseguir viver.
Nota-se que nas sociedades capitalistas, a existência social de cada indivíduo depende
da economia de mercado, sendo a principal fonte de exclusão dos sujeitos sociais não só da
economia como dá sociedade. O referido autor, diante desta discussão, aborda o paradoxo
existente nas sociedades modernas, pois ao mesmo tempo em que a economia cria uma massa
de excluídos, ela também confia à sociedade a tarefa de reinclui-los.
Em outras palavras, a economia capitalista delega ao Estado a tarefa de recompor o
tecido social; no entanto, este não é suficiente para realizar tal empreendimento com êxito,
tendo que apelar para o dom a fim de solucionar as deficiências geradas por esta economia de
mercado excludente. Com isso, tem-se que a sociedade moderna passa a laicizar e politizar os
gestos de solidariedades a fim de se suprir as demandas cotidianas dos inúmeros indivíduos
excluídos do meio social e econômico necessário a sua sobrevivência.
A demanda de dom se fez pelo apelo à oferta, de depois pôs-se
a organizá-la. Deu-se o aparecimento de inúmeras organizações
caritativas, desde os restaurantes do coração até as solicitações
nos supermercados. (Godelier, 2001: 09).
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É com base neste apelo ao dom que abordaremos mais a frente a questão do
associativismo e das ONGs, que buscam a priori ajudar o outro, mas que depois acaba
acumulando uma espécie de mana, seja através de dinheiro ou de capital social. Muitas vezes,
para que haja uma relevante demanda, é necessário fazer os que não participam conhecer
determinado espaço, tornando o dom neste caso um processo que precisa ser publicizado.
Segundo Godelier (2001), a mídia muitas vezes é utilizada para sensibilizar a opinião
pública, emocionando e fazendo um apelo a generosidade3. Nesse sentido, é o sofrimento do
próximo que nos toca – nos fazendo, por exemplo, sermos capazes de doar alimentos e/ou
roupas para pessoas que nem conhecemos, mas que pelo fato de estarem passando por
momentos difíceis nos faz sentir a necessidade de ajudar o próximo.
O dom na modernidade, segundo Godelier, está espremido entre o Estado (relações
interpessoais) e o Mercado (relações de interesses), contudo para Mauss (1974), a dádiva
também é comércio e, não exclusivamente comércio. Para este último, a modernidade está
fundamentada em relações de compra e venda e não paralela ou independente delas.
Apesar disso é necessário ressaltar que, para Mauss (1974), o mercado não está
excluído da dádiva – se tornando uma questão ambígua – já que em determinado momento ele
pode enfraquecer o dom e em outro carregar a lógica da dádiva. Assim, podemos evidenciar a
presença da dádiva nas sociedades capitalistas.
Bourdieu (1996) também tem sua contribuição na teoria da dádiva, a qual considera o
sistema de dádiva como uma economia de troca de bens simbólicos, buscando explicar o dom
com base no seu conceito de “Habitus”. Para o autor, os indivíduos ao passar pelo processo de
dar/receber/retribuir, eles acabam acumulando capital simbólico. Assim sendo, a economia
das trocas, para o autor, é um tipo de dominação na qual as relações de dádiva podem causar
relações de dependência, podendo ser duráveis ou não.
Nota-se nas discussões de Bourdieu (1996) que sua analise sobre o dom se afasta das
teorias fenomenológicas e estruturalistas.
Introduz uma teoria do agente e da ação que considera, como
principio da pratica, as disposições constitutivas do Habitus, e
não a consciência ou a intenção; e remete a troca de dons a uma
3
Temos vários exemplos, entre eles o programa criança esperança que conta com ajuda de artistas para que seus
fãs possam se sensibilizar e ajudar determinadas pessoas.
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lógica muito particular, a da economia dos bens simbólicos e da
crença especifica (p.07).
O autor acredita que a essência do dom é sua ambigüidade, já que ao mesmo tempo
em que a experiência gerada pelo dom é vivida com rejeição do interesse – calculo egoísta –
também não exclui a consciência lógica de troca. Para Bourdieu, é no intervalo temporal entre
o dom e o contradom que podemos ocultar o paradoxo entre a verdade vivida e a verdade que
o modelo revela, no qual o primeiro se refere ao dom como ato generoso e o segundo com
relação ao dom como um momento de uma relação de troca.
Percebe-se que a economia dos bens simbólicos possibilita o lucro, ou como Mauss
argumentava, um conjunto de expectativas coletivas. Então, como também acreditava Mauss
(1974), a priori, o dom não tem uma intenção consciente. No caso de uma Associação e de
uma ONG em que trabalham voluntários e participam doentes, muitas vezes o ato generoso
resulta num reconhecimento simbólico dos voluntários e numa espera de recompensa dos
acometidos por medicamentos e tratamento.
Diferentemente da lógica capitalista que vê o dom como parte de lucros, com
interesses materiais; a economia do dom apresentada por Bourdieu (1996) remete a noção de
acumulação de capital simbólico a partir das relações de trocas. Para Mauss (1974), isto seria
possível numa época antieconômica, pois é difícil pensar o dom numa economia calculista
sem associá-lo aos possíveis lucros obtidos em tal processo.
Para Bourdieu (1996), na sociedade moderna os indivíduos não estão desprovidos das
obrigações morais presentes no sistema de prestações totais; mesmo se tendo a racionalidade
ele vive preso a este universo. Ou seja, as relações que envolvem a dádiva não são fundadas
apenas nos interesses pessoais, mas também em regras, valores e normas que estão submersas
no tecido social; e são justamente esses aspectos que criam o caráter de coerção e obrigação
da dádiva.
Contudo, a partir dessa breve explanação sobre algumas das principais discussões
sobre o sistema de prestações totais, pudemos observar o quão complexo e ambíguo são os
processos que envolvem a teoria da dádiva na contemporaneidade, tendo em vista todas as
conseqüências causadas pela economia capitalista no meio social.
A dádiva no âmbito da Saúde
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Neste tópico buscaremos discutir a questão das ações voluntárias que vêm ocorrendo
através das Associações de doentes, das ONGs e dos movimentos sociais; ações que acabam
nos dando margem para questões como: sociabilidade, solidariedade e redes sociais, nos
fazendo refletir como ocorre a questão do dom nestas relações modernas.
No âmbito da saúde, necessariamente, nos ambientes de sociabilidade entre doente, os
indivíduos tem como interesse buscar apoio psicológico, direitos sociais, participação política,
entre tantas outras coisas. Estas ações trazem para seus integrantes mais informações e
experiências sobre a doença, de modo que os sentimentos aparentemente espontâneos entre os
voluntários e entre os portadores de doenças neste espaço de solidariedade acarretam formas
de interação às vezes permeadas por obrigações; pois como dito anteriormente, uma das
facetas da reciprocidade está voltada para a busca ao direito a saúde.
Segundo Moreira (2010), as experiências associativas e voluntárias no campo da saúde
surgem na década de 90, em que o mecanismo participativo é resgatado com o incentivo ao
protagonismo dos cidadãos. De acordo com a autora, essa tendência resultou da crise de um
Estado que não consegue efetivamente realizar sua tarefa de suprir as demandas da população.
Por sua vez, essa mesma tendência nos remete aos estudos de Godelier (2001) no que
diz respeito à perspectiva de que o dom seria uma espécie de resposta – quando o Estado está
fraco – para que os indivíduos pudessem sobreviver nele a parir das ações voluntárias; o
exemplo dos impostos solidários.
Moreira (2010) afirma que na ação das associações, ganha destaque a voluntariedade e
a solidariedade como expressões políticas e organizadas do circuito de dádiva em nossa
sociedade. Uma vez que, de acordo com ela, no cenário brasileiro, as situações de pobreza em
segmentos da sociedade mobilizam formas alternativas de ação social baseadas no discurso da
solidariedade.
Para Moreira (2010), o circuito de dádivas institui as relações entre os homens e, está
no cerne da análise dos processos associativos voluntários no campo da saúde. Na perspectiva
dela, essas formalizações resgatam um circuito de dádivas que tem em sua base o resgate de
valores fundamentais, que não só retornam materialmente aos assistidos – na forma de
doações, auxílios, etc. – mas oferecem aos voluntários e aos próprios assistidos uma série de
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atributos fundamentais ao engajamento em relações de amizade e apoio; o chamado status,
prestígio e reconhecimento que correspondem à aquisição de capital social.
Ao abordar o estudo de Andrade e Vaitsman, Moreira discute que tanto os vínculos
sociais como as ações voluntárias, demonstram que a sociedade civil está cada vez mais se
redescobrindo pelas redes de solidariedades. Para Andrade e Vaitsman, o voluntário que está
sendo discutido é aquele capaz de unir indivíduos em volta de um só objetivo; este tipo de
união acontece muito no caso do associativismo, no qual cada indivíduo com suas finalidades
específicas acabam por formar uma unidade.
Com relação ao estudo de Magalhães, também abordado por Moreira (2010), é
debatida a questão da ação da cidadania que tem uma característica mais ampliada e por conta
disto é necessária uma aproximação dos voluntários e dos assistidos para que se possa falar
num circuito de dádivas; uma vez que a tríade dar/receber/retribuir gera obrigações recíprocas
que não são efetivadas quando se estabelece situações de caridade e filantropia nas quais o
dom é direcionado a indivíduos desconhecidos.
Em outras palavras, nas relações com desconhecidos fica cada vez mais difícil o
estabelecimento de um circuito da dádiva, já que este é permeado por mecanismos de
reciprocidade que fundam os vínculos sociais. Desta forma, se há uma distância entre quem
dá e quem recebe, há também a impossibilidade se de constituir circuito da dádiva.
A partir desta discussão, percebe-se que quem se dedica como voluntário – como nas
Associações e ONGs – acaba tendo um papel fundamental no circuito da dádiva, pois na
medida em que ele doa, ele também receber como bens de troca os progressos das famílias
que são acompanhadas; ou seja, é como se houvesse certa condicionalidade em suas ações que
é justamente a possibilidade de empoderar aqueles que necessitam de ajuda.
O voluntário presente na associação dedica-se a um cotidiano
que lhe permite esse incremento de sociabilidade, tanto com
pessoas com que compartilha sua condição social e status,
quanto com aquele tão diferente de si próprio. O voluntário
oferece gratuitamente à associação algo que vai ser percebido
como extremamente valioso e que é valorizado, retornando para
ele na forma de um reconhecimento simbólico (Moreira, 2010:
921).
Nos espaços onde perpassam as ações voluntárias não é o dinheiro que é oferecido
como dom, mas doações e auxílios que supram as necessidades dos assistidos em questão. A
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dádiva, portanto, passa a funcionar como um operador do laço social, tendo como interesse
agregar valores e conteúdos.
Tomando como referência a ADJP (Associação dos Diabéticos de João Pessoa) - na
qual a presidente acaba tendo este papel de voluntária, pois não recebe nada para está com o
grupo – percebemos que a relação de troca acontece quando os membros, em razão de um
interesse comum, acabam se reunindo. Assim, as formas de sociação estão vinculadas a
sentimentos e satisfações de estar socializado; ou seja, a sociação só existe quando os
indivíduos se sentem unidos, se identificam a outros indivíduos motivados por conteúdos e
interesses específicos que se cristalizam em formas de sociação.
Contudo, nota-se que no âmbito da saúde e doença as formas de reciprocidade se dão
com base nas interações entre os agentes sociais, o que também conhecemos como redes
sociais, a qual nos ajuda a compreender certas circunstâncias presentes na sociedade. Tais
redes sociais (Augusto, 1989) diz respeito a uma relação muito próxima, a conhecida “face à
face” no sentido de que pessoas de lugares diferentes acabam se cruzando e falando de coisas
que muitas vezes não comentaram com ninguém da própria família. Desta forma, não se trata
apenas de uma sociabilidade, mas de relações de trocas, na qual o processo de
dar/receber/retribuir produz alianças para trocas de medicamentos, informações, gentilezas,
entre outros.
Considerações Finais
Diante dos argumentos dos diversos autores estudados na disciplina de Antropologia
Econômica, observamos que a dádiva não funcionaria como fio condutor de uma
sociabilidade se não fosse ao mesmo tempo obrigada e livre, ou seja, se não tivesse uma
incondicionalidade condicional (Caillé, 2002).
Percebemos que há, conforme observado por Moreira (2010), uma forte laicização da
solidariedade; não sendo objeto específico de instituições de base filantrópica e de caridade.
Essa tendência é tida como conseqüente da insuficiência de um Estado provedor, no qual se
faz necessário um apelo para a sociedade civil para que essa possa preencher através da
dádiva as lacunas deixadas pelo Estado.
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Uma problematização das relações de troca no campo da saúde
Nesse contexto, consideramos que a dádiva no campo da saúde é capaz de gerar laços
e vínculos sociais que proporcionam aos donatários o reconhecimento por parte dos
assistidos, bem como o reconhecimento simbólico de está cumprindo ou exercendo valores
morais defendidos por uma ideologia social.
Por fim, acreditamos que a razão primeira para se estabelecer uma relação de dádiva
na área da saúde se da por meio de um Habitus que preexiste a qualquer tipo de interesse
individual (Bourdieu, 1996). No entanto, acreditamos também que nada impede que nesse
campo surjam relações de troca fundamentadas num circuito de dádivas no qual o interesse
individual possa aparecer, gerando assim, uma expectativa de retribuição para aquele que se
presta a realizar os serviços voluntários.
O dar/receber/retribuir constitui núcleos de
sociabilidade e solidariedade, impulsionando um circuito de reciprocidade e dádivas.
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