A imigração judaica para a Amazônia Dawdson Soares Cangussu* Danilson J. Coelho Cordovil** Maurício S. Silva*** Estudar o povo judeu é, acima de tudo, estudar o processo migratório desse povo. Este processo se dá desde a Antigüidade, tendo início com a fuga do cativeiro do Egito, seguindo, posteriormente, por toda a Idade Média e chegando até o período contemporâneo. A imigração de judeus para o Brasil se dá desde os primeiros tempos da conquista, pois foram os judeus os encarregados principais, a serviço da Coroa portuguesa, pelo comércio de pau-brasil. Destaca-se também a presença judaica no Brasil Colônia quando do governo de Maurício de Nassau em Pernambuco, uma vez que este decretou a liberdade de culto nesta área. Em última análise, encontramos a imigração deste povo em larga escala no momento do governo de D. João VI, pois este, mesmo considerando o Cristianismo como religião oficial, decretou liberdade de culto no Brasil; tal como também no momento da Segunda Guerra Mundial, devido as perseguições dos judeus na Europa pelos nazistas, mesmo tendo conhecimento das políticas restritivas de Getúlio Vargas. Contudo, segundo Wagner Lins, a imigração judaica para a Amazônia adquire um papel peculiar, pois os judeus que vieram para cá foram, sobretudo, os provenientes do Marrocos. Isso significa pensar, como infere o mesmo estudioso do assunto, que a imigração de judeus para essa região não foi motivada pelo holocausto promovido pelo Nazismo. Os emigrados judeus tiveram motivações variadas para chegarem nesta região, dentre as quais mais se destacam: a crise econômica em Marrocos, tal como a perseguição por parte dos islâmicos fundamentalistas que passaram a promover perseguições aos judeus neste país tentando convertê-los à base da força; pode ser também pensado como causa da migração judaica para a Amazônia o “Boom” da borracha na transição do século XIX para o XX. * Mestrando em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará. Graduado em História pela Universidade Federal do Pará. *** Especializando em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará. ** Tendo conhecimento desses precedentes, passaremos a analisar a partir de agora como se dá o processo de constituição da identidade judaica, dando destaque ao povo judeu que chegou à Amazônia. O sentimento judaico está fundamentado no livro de Gênesis, uma espécie de “mito” de origem, onde Deus firmou aliança com o povo de Israel, ungindo esses como o povo escolhido, na promessa de que a descendência de Abraão e Sarah seriam “numerosos como as estrelas do céu”. Daí deriva esse sentimento de “pertencimento”. Sendo assim, o livro Gênesis forma a idéia da constituição de um povo, de um sentimento judaico. Outros fatores comportamentais servem para demarcar a identidade judaica. Estes fatores são modelos a ser seguidos, formando a chamada “judeidade” (essa define a conduta, forma de viver de acordo com os preceitos do judaísmo). Estes modelos estão registrados nos cinco livros do Pantateuco – são as leis judaicas que correspondem ao antigo testamento. É através desse livro que podemos perceber os tabus alimentares, de pureza e impureza e os tabus de sangue, de acordo com as regras recebidas pelo líder Moisés. É através da dualidade, como regra que os judeus devem evitar a exogamia, outros povos, o politeísmo e os animais considerados híbridos. O monoteísmo é um princípio da religião judaica, pois para a ortodoxia tradicional o monoteísmo era justificado na origem. Isso também irá caracterizar um judeu. Outro ponto que caracteriza os judeus fica por conta da busca de uma terra prometida (Jerusalém). Outro ponto a ser notado é o da ancestralidade comum, pois é um elemento na constituição de uma “comunidade étnica”. Este ponto da ancestralidade levanta mais um elemento que é a questão do “laço de sangue”, esse é uma forma de estabelecer a integração do indivíduo ao grupo, através do parentesco, além de os judeus atribuírem ao sangue a transmissão de qualidades hereditárias. Além disso, deve ser notado na caracterização de uma identidade judaica, no caso dos homens, o ritual da circuncisão, como forma de marcar a identidade étnica do indivíduo. Ao longo do século XIX e XX judeus principalmente de origem marroquina migraram para a Amazônia. Ao se instalarem nesta nova terra, “reinventaram” sua língua, sua culinária, e até o próprio judaísmo, construindo o judaísmo amazônida. Mas ao contrário do que está escrito no site Henrique Voltman, os judeus não foram se tornando aos poucos indistinguíveis, apesar de Ter havido uma enorme mescla de costumes. Mas somente pelo simples fato serem denominados “hebraicos” já se constitui um sinal de diferenciação do grupo perante a comunidade local. Podemos constatar nesta mescla de costumes, neste processo de assimilação e integração, a construção da identidade judaica na Amazônia. A culinária, por exemplo, apesar do cumprimento da kasherização, ou seja, dos costumes alimentares e das regras de higiene (questão da pureza), foi adaptada à moda amazônica, colocando como ingredientes produtos locais. “Em Santarém durante a páscoa do Pessach nós raramente tínhamos a MATSÁ, mas mesmo assim não se comia trigo de maneira alguma, minha mãe preparava macaxeira frita ou cozida, cuzcuz e tapioquinha, bolo de tapioca, pupunhas com doce de cupuaçú, nós nunca deixamos de seguir as páscoas.” (Bonina, entrevistada em 19 de abril de 2000.). O jogo de poder e as comparações que moldam a identidade dos grupos sociais é algo constante. Não nos esqueçamos que fatos passados são demarcadores identitários e espaciais. Inúmeras são as características identitárias: a homogeneidade de uma maioria marroquina, moldando dessa forma a maneira de rezar e os rituais; a arquitetura das sinagogas, o dialeto, o hakita quase extinto. Hoje outras influências se confrontam com essa identidade construída ao longo da vivência judaica na Amazônica. Cultos judaicos distintos, casamentos exogâmicos, a educação laica, até mesmo a constituição de um Estado judeu, são fatores que alteram uma estrutura já consolidada. A diferenciação ou a simples assimilação são observáveis na construção de qualquer identidade. O mesmo ocorre com o judeu e o cigano que podem também percorrer todo o caminho da aculturação, mas que são mantidos à margem porque eles próprios se apegam a uma lealdade étnica singular. Para pensarmos a identidade temos que ter em mente que este é um conceito em constante construção, visto que o “o homem não pensa isoladamente, mas através de categorias engendradas pela vida social” (oliveira). Um outro ponto importante para se discutir é a questão da democracia racial e liberdade de credo no Brasil e na Amazônia. Em Cametá, por exemplo, esses ideais não foram levados muito em consideração em relação aos judeus que não abriam suas lojas aos sábados, mas abriam aos domingos, contrariando antigos moradores. Este fato despertou uma onda de anti-semitismo, mas não aos moldes hitleristas, de raça inferior ou coisa do gênero, mas argumentos iguais aos que expulsaram as gerações anteriores para Marrocos: o de serem hereges que mataram cristo, de não respeitarem os dias santos. Isso tudo apoiado pelos párocos locais. Com isso e com o declínio da borracha, os judeus deixaram de vez o local que foi o primeiro núcleo constituído da imigração judaica no Pará. As festas são, na sua grande maioria, um fator importante na construção e afirmação desta identidade judaica que tanto tentamos entender. São nas reuniões familiares, semanais para a celebração do shabah, ou nas comemorações religiosas, que se consolidam os fatores identitários do viver judaico, tanto em Belém como também em todas as comunidades judaicas. Um fato que ocorre freqüentemente com as festas judaicas é o confronto de temporalidades. O calendário judaico vez por outra esbarra suas comemorações com as comemorações do calendário oficial e cristão. É comum que festas como a Resh háshaná (cabeça do ano) coincidam com a semana da independência do Brasil, ou o Iom Kipur ( dia do perdão) coincida com as comemorações do Círio de Nazaré, que a Chanuká (festa que simboliza a vitória do povo judeu contra os assírios ), coincida com o Natal, gerando dessa forma, um conflito entre as temporalidades. A partir dos rituais, pode-se tentar ilustrar uma estrutura maior que é o judaísmo e como as alterações ocorreram e ocorrem dentro dessa estrutura formando uma nova ritualística, uma identidade em construção. Os rituais judaicos são: a afirmação de uma religiosidade, de uma cultura, de uma nacionalidade, no caso a marroquina e a israelense. São a afirmação de uma cultura que se confronta e ao mesmo tempo se funde ao viver amazônico. Mas a identidade judaica só pode ser um fato se reconhecida pelo meio onde está inserida, isto é, é necessário que exista um consenso social para que o grupo possa ser reconhecido como algo distinto, que marca o seu espaço social e identitário. Ora totalmente integrados a cultura amazônida, ora afastando-se do meio onde estão inseridos, ora assumindo a chamada identidade combinada ou complementar. O sentimento de pertença é outro ponto fundamental na discussão de identidade. A ocorrência de casamentos exogâmicos é uma questão interessante. Podemos citar o exemplo da família Serruya de Santarém, onde José Serruya casou-se com Fleurice Matos, com a qual teve 12 filhos. O irmão de José, David, após separar-se da também marroquina Sultana Serruya com quem teve três meninos, casou-se com Bárbara, cristã, com a qual teve seis filhos. Bárbara, depois tornou-se Léa Serruya, dentre os seus seis filhos, todos cinco, visto que um veio a falecer, foram criados dentro do judaísmo. Bárbara/Léa Serruya, assim como Fleurice tornaram-se verdadeiras mulheres virtuosas, verdadeiras mães judias, que não deixaram que a tradição judaico-marroquina morresse dentro do lar por conta do casamento misto. Neste caso, os casamentos mistos de forma alguma representaram problema na manutenção da identidade, isto não significa que uniões exógenas não venham a abalar a estrutura do grupo. A homogeneidade da comunidade judaica de Belém e da Amazônia como um todo, visto que a imigração marroquina chegou até Iquitos na Amazônia peruana, faz dos judeus de Belém uma comunidade diferente a começar pela sua imigração, salvo poucas famílias, a comunidade não carrega consigo as marcas do nazismo. Mas, apesar das diferenças, a comunidade judaica belemense faz parte de um sentimento maior, este sentimento de pertencimento é, ao nosso entender, uma construção social que legitima o judaísmo, que impulsiona as pessoas para o viver judaico, que por conseqüência é um diferenciador entre o judaísmo e os outros povos, onde quer que os judeus se encontrem. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA BARNAVI, Élie. História Universal dos Judeus: da gênese ao fim do século XX. Editora CEJUP. Belém, 1995. LINS, Wagner. Particular Identidade dos Judeus da Amazônia: um olhar sobre a Sinagoga Eshel Abraham – Belém-Pará. TCC entregue ao Departamento de Antropologia. CFCH/ UFPA, 2002.