REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO Um legado interrompido: a trajetória de Valério Brittos na pesquisa em Políticas de Comunicação Elen Geraldes1 Resumo: Neste ensaio, mostraremos as relações entre um pesquisador, o cenário e a obra, por meio do resgate da trajetória do professor e jornalista Valério Brittos, falecido em 2012. A tentativa de consolidar um campo do conhecimento, a escolha da televisão como tema de suas pesquisas e a filiação à Economia Política da Comunicação relacionam-se ao fim da Ditadura, aos movimentos de luta pela democratização da Comunicação e à expansão dos cursos de Comunicação. Palavras-chave: Valério Brittos, Políticas de Comunicação; Economia Política da Comunicação; televisão. Como surge um pesquisador? Como uma trajetória individual se relaciona a um cenário político e social? Como é construído um legado científico? Julho de 2012. Morre aos 48 anos o professor universitário e jornalista gaúcho Valério Brittos. As redes sociais foram rápidas em divulgar a informação. Brittos, professor titular do Programa de Pós-graduação da Unisinos, era um importante pesquisador de Políticas de Comunicação e um defensor da democratização da área. Os estudantes e colegas lamentaram o legado interrompido. 1 Jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade de São Paulo e doutora em Sociologia pela UnB. Professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília desde 2010, tem longa experiência em reportagem, redação, edição e assessoria de Comunicação. Atualmente, é coordenadora do Lapcom/UnB.. Pesquisa as políticas públicas de Comunicação e as políticas de Comunicação em organizações públicas. REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO Um pesquisador nasce com o primeiro porquê, a primeira dúvida.Parece que aos três ou quatro anos de idade torna-se aguda a necessidade de compreender o mundo. As perguntas irrompem umas atrás das outras, sobre o céu, as estrelas e o funcionamento das torneiras, sobre bichos-papão e cartões de crédito, sobre os motores dos carros, os nascimentos dos bebês e as regras do futebol. No entanto, essa curiosidade pode se extinguir ou ser extinta precocemente, e lá se foi o pesquisador, e lá se vai (ou ficou interrompido) o ser crítico, radicalmente pensante. Para um dos mais férteis pensadores da educação brasileira, o pedagogo Paulo Freire, o não cerceamento da dúvida infantil pode gerar uma conquista: o sentido de inconclusão: [...] Inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência da sua inconclusão é que gerou a sua educabilidade. É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a esperança (Freire, 2002: 64). Mas não basta questionar, se sentir inconcluído ou ter esperança. Um pesquisador se faz em um cenário adequado, fruto da subjetividade, mas também da interação com os pares, diante de circunstâncias, limites e possibilidades de um momento histórico. Valério Brittos concluiu o curso de Jornalismo na Universidade Católica de Pelotas em 1987. Um ano antes, terminou Direito na federal pelotense. O final da Ditadura Militar; a realização da Assembléia Nacional Constituinte; a concentração de renda; a violência; o crescimento do ensino superior privado; a globalização; as lutas pelos direitos humanos: os tempos eram de perplexidade, crise e esperança. E, no meio de tudo isso, os meios de comunicação de massa, com sua imensa audiência. Um pesquisador só existe quando encontra um tema e daí faz nascer um objeto. Na Comunicação, esse encontro parece particularmente difícil. Trata-se de uma ciência muito jovem, transdisciplinar, atravessada por muitos saberes, um ponto de convergência onde Sociologia, Antropologia, Economia, Filosofia e outras, muitas outras ciências se encontram. Tudo parece Comunicação. E o que é tudo, é nada. Qual a especificidade dos objetos de Comunicação? REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO Valério Brittos iniciou uma intensa carreira como jornalista no fim dos anos 80, no Rio Grande do Sul. Foi repórter, redator, editor. Em uma época em que os jornalistas escolhiam o seu meio favorito, discriminando os outros, trabalhou em jornal impresso, rádio, agência de comunicação e televisão. Transitou por várias editorias, mas fincou pé na Política. Há atores que defendem que os objetos da Comunicação são todos aqueles permeáveis à Comunicação. Ou seja: tudo. Os limites são apenas camisas de força. Mas há os que apontam a necessidade de endurecer o recorte para consolidar o campo. Os objetos de estudo da Comunicação seriam, por excelência, os meios de comunicação. No entanto, o que dizer da comunicação organizacional e da comunicação interpessoal, por exemplo? E se além dos meios de comunicação fosse considerada, como objeto potencial, a Comunicação como meio, como processo? Nos anos 90, a pesquisa em Comunicação no pais se ampliava. Os cursos de mestrado e de doutorado passaram a ser ainda mais procurados, os periódicos científicos ganhavam consistência. Enquanto as redações até diminuíam o número de vagas, em decorrência da crise, as assessorias de comunicação tornavam-se grandes empregadoras. O mercado para os docentes da área crescia em decorrência do surgimento dos cursos de Comunicação no país, principalmente no ensino superior privado. A figura do professor horista se expandia – geralmente um profissional experiente, com carisma em sala de aula e alguma titulação acadêmica. Apenas quatro anos depois de concluir à graduação, Brittos retornou à Universidade Católica de Pelotas, como professor, mas não deixou o jornalismo. Foi uma época marcada por muito cansaço, muito trabalho – entre universidade e redações, as cargas horárias semanais ultrapassavam frequentemente as 50 horas. Mas a cada semestre o apelo da academia parecia mais tentador, as disciplinas se multiplicavam, e ele novamente quebrava paradigmas, ao lecionar matérias teóricas e práticas. Em 1993, conclui uma especialização em Ciência Política pela Federal de Pelotas e no ano seguinte ingressou no mestrado em Comunicação na PUC do Rio Grande do Sul. Quando defendeu a dissertação sobre recepção e TV a cabo, em 1996, já era professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, a Unisinos. O magistério venceu. REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO A escolha de um objeto depende de vários fatores. Há os interesses do pesquisador, mas também os interesses dos pares, que podem acolher e legitimar um objeto, ou rejeitá-lo como banal ou não-acadêmico. Há a sincronia da temática com discussões mais amplas. Brittos ingressou em1998 no doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea, da Universidade Federal da Bahia, para novamente estudar televisão, um meio que ele conhecia de dentro. Mas qual enfoque tomar? As Teorias do Discurso gracejavam no país, a Semiótica fazia sucesso, os estudos sobre Pós Modernidade se multiplicavam. No entanto, um outro movimento ganhava corpo: a ampliação dos estudos de Politicas de Comunicação. A constituição da pesquisa em Políticas de Comunicação no país foi intensificada pelo fim da Ditadura Militar e a Assembleia Constituinte. Vários setores da sociedade uniram-se para pensar a democratização da mídia. A Universidade marcou presença ao resgatar as experiências de outras países e de outros sistemas midiáticos. Os organismos internacionais discutem o Direito à Comunicação, que vai além do direito de expressão das empresas jornalísticas. Os estudos de Comunicação Política, que versavam principalmente sobre a influência da mídia nas liturgias do poder e na construção de uma cultura política, foram atravessados por novas temáticas de Políticas de Comunicação, como o papel do Estados, a concentração da propriedade dos meios e a existência de poucos mecanismos de controle social. Em contínuo relacionamento com a militância e os militantes, esses estudos necessitavam da legitimidade científica de teorias e métodos fortes. Valério Brittos encontrou na Economia Política da Comunicação (EPC) uma perspectiva teórico-metodológica fértil para estudar a televisão e suas transformações advindas das novas tecnologias e do capitalismo global. O encontro com o pesquisaador de EPC, Cesar Bolano, da Universidade Federal de Sergipe, antes do início do doutorado, rendeu artigos, livros e uma amizade sólida. A parceria também estimulou a participação intensa de Brittos em instituições e associações científicas nacionais e internacionais de EPC, colocando o Brasil no mapa das discussões da linha. REVISTA BRASILEIRA DE POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO A EPC não é unívoca: tem vertentes, correntes, divergências, detratores. Onde outras linhas veem produtos, a EPC vê condições de produção, buscando entender o papel dos meios de comunicação na reprodução do capital. Discute com intensidade conceitos como Estado, Sociedade Civil, Concentração, Oligopólio, Tecnologias. Um pesquisador pertence a um momento histórico, mesmo que seu olhar esteja voltado para outras épocas e lugares. Valério Brittos estava imerso neste tempo de transformações e partiu muito cedo, com várias pautas pendentes. Entre elas, o futuro da tevê aberta diante das novas tecnologias, dos desafios da comunicação pública e da pressão por uma comunicação comunitária. Referências: BOLAÑO, César. Valério Brittos e o campo da Economia Política da Comunicação brasileira: contribuição teórica e a pauta pendente. Revista do Instituo Humanitas Unisinos. São Leopoldo, ano 12, n. 399, 2012. Disponível em<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id =4577&secao=399>.Acesso em: 25 de setembro de 2012. FOX, Elizabeth (org). Medios de comunicación y política en America Latina. Mexico: Glustavo Gili, 1989. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia (24ª edição). São Paulo: Paz e Terra,2002.