VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 A filosofia entre o sistema e não-sistema – Friedrich Schlegel e a linguagem da filosofia Thiago das Chagas Santos Mestrado - Universidade Federal de São Carlos CAPES Resumo Schlegel foi contemporâneo do triunfo do sistema como expressão filosófica adequada, e sua contínua negação em construir um para si colocou-o do lado de fora daquilo que comumente chamamos de Idealismo Alemão. Porém, esta questão, que foi por muito tempo tomada como falta de capacidade de Schlegel para a filosofia, nos últimos anos vem sendo pensada como característica de uma preocupação com a exposição da filosofia, uma reflexão em torno da linguagem da filosofia e suas formas de exposição. Partindo desta idéia, procuraremos pensar a questão da forma da filosofia como prática comunicativa, e não apenas como posterior momento de comunicação da idéia, como prática do pensamento-linguagem e de como estas questões levam Schlegel a construir uma exigência sistemática entre a filosofia e a poesia, entre sistema e não-sistema. Palavras chave: linguagem, filosofia, Friedrich Schlegel Friedrich Schlegel é considerado o fundador do movimento conhecido como Primeiro Romantismo Alemão (Frühromantik). A recepção deste movimento foi ambígua, pois se de um lado se recebe positivamente suas realizações poéticas, se despreza sua forte tendência nacionalista e suas incursões no reino da filosofia, e foram descritos, durante muito tempo, como pensadores perdidos em ondas de paixão e orientados por excessos do espírito criativo individual e, desta forma, tendendo ao caminho que leva a destruição da razão e da ciência. Esta imagem, porém, vem sendo modificada, pois além de caracteriza-los como um grupo reunido em torno de uma comunhão de ideais poéticos, é possível vê-los com um compromisso filosófico central, que é descrito por Manfred Frank (2004) como um antifundacionismo epistemológico, ou seja, um ceticismo em relação aos primeiros princípios da filosofia, isto é, um ceticismo quanto à auto-justificação das proposições, enfim, um ceticismo em relação à idéia de um único princípio único. Porém, fica uma questão: o trabalho dos românticos, principalmente Schlegel e Novalis, é preenchido constantemente com recurso à arte e a história, e animado por uma aparentemente enigmática “ânsia para o infinito” ( SCHLEGEL, 1958, p. 418) assim, poderíamos perguntar: como vamos obter respostas para quaisquer questões importantes em relação aos românticos se paracem nos puxar numa direção oposta à argumentação rigorosa e ISSN 2177-0417 - 452 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 sistemática dos filósofos? Para desenvolver uma posição filosófica sobre qualquer coisa é preciso de “sistema“ sério e não uma brincadeira composta de fragmentos e diálogos? São para possíveis respostas à estas questões que queremos chamar a atenção aqui. E, nesta reflexão, vamos tentar compreender um pouco como Schlegel desenvolve um sistema que em nada lembra um sistema rigoroso de um Kant e um Fichte, por exemplo, e de como para este autor a forma de filosofia deve ser uma das questões centrais de uma reflexão filosófica. Schlegel foi contemporâneo do surgimento de Idealismo Alemão e do triunfo do sistema como expressão adequada da filosofia, e em seu diagnóstico a questão da forma não era um problema fundamental para a maioria dos filósofos, e isto leva Schlegel a pensar sobre a textualidade da filosofia. Talvez, esta preocupação tenha levado muitos comentadores, como Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy (1978), a pensar o pensamento de Schlegel como absolutização da literatura, uma literatura absoluta, mas é preciso lembrar que para Schlegel os dois registros, filosofia e poesia, possuíam uma distinção: a filosofia pode apenas negativamente e indiretamente apresentar o absoluto, já a poesia ofereceria uma apresentação positiva. A questão, então, da forma da filosofia reside precisamente no ajuste destes dois modos de apresentação do absoluto, o filosófico e o poético. Neste sentido, é preciso distinguir o nível da prática filosófica, a questão da forma e da transmissão de uma doutrina de um lado, e do outro a descrição e reflexão sobre esta necessidade. Schlegel quer chamar a atenção para o fato da filosofia ser uma prática comunicativa, e tributária da expressão individual, sendo que o discurso filosófico se faz a partir de diferentes escolhas feitas pelos filósofos. Estas questões, que são formalmente tratadas pela retórica, não pode, pensa Schlegel, ser colocada em segundo plano, pois dela depende aquilo que chamamos de forma da filosofia. Resumidamente, Schlegel está chamando a atenção para o fato de que a forma da filosofia não se desprende de sua expressão material, se é que podemos dizer assim. Para Schlegel seus contemporâneos estão separando sistema de exposição do sistema, textualidade de reflexão, e se há um imperativo de tornar a filosofia popular, de se buscar a emancipação iluminista, ou seja, de tornar a filosofia um discurso legível, seja 380 O termo brincadeira pode parecer um pouco pesado aqui, mas para seus primeiros leitores (inclui-se aqui Fichte, Schelling e Hegel) suas tentativas de filosofar não passavam de brincadeira. ISSN 2177-0417 - 453 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 para eruditos ou iniciantes, ou para o público geral, a forma de exposição deve ser o elemento central. Para Schlegel, tanto em Kant como em Fichte, a questão da textualidade da filosofia é ainda analisada em termos de comunicação, ou seja, retórica, mesmo que em sua prática o que se busca seja mais além. Este modo de pensar a questão da textualidade da filosofia é radicalmente transformada por Schlegel. Schlegel, e não podemos esquecer de Schelling e Hegel, passa de uma reflexão da linguagem como instrumento de comunicação de idéias para uma teoria e prática do que poderíamos chamar de pensamento-linguagem. Pensamento e linguagem como atividades que se interpenetram. Esta mudança no tratamento da questão leva Schlegel a criticar àquilo que ele acredita ser a não-historicidade do transcendental, defendendo que a filosofia não pode mais ver a história como um objeto entre outros, mas como uma dimensão essencial de sua atividade, reconhecendo que a própria filosofia tem história, e este reconhecimento nos leva a pensar que a filosofia deve cuidar de seus modos de textualização. Deixar de lado a história é tomar a atividade filosófica como uma prática fora do tempo, desenvolvida independentemente, um espaço separado da vida. Schlegel procura fazer, assim, uma crítica filológica da filosofia, ao tentar recordar a condição lingüística e histórica da filosofia, colocando num mesmo registro filosofia e poesia, Goethe e Fichte, ao dizer: Somente o filósofo crítico pode conhecer corretamente a si mesmo no todo e por partes. Somente ele pode reunir em si mais espírito de ciência [Wissenchaftsgeist] que Fichte e mais sentido artístico [Kunstsinn] que Goethe. Do filósofo crítico se pode dizer tudo o que os estóicos afirmavam do sábio (Apud. Suzuki, 1998,p. 189. ). Reunir estes dois registros, parece ser o caminho encontrado por Schlegel para dar conta da textualidade da filosofia, bem como de sua forma. A intima ligação entre filosofia e história381, entre filósofo e homem, nos dá uma medida exata da idéia de formação em Schlegel, de unidade do homem numa época estilhaçada, pois a formação (a história), não é produto de causas exteriores, mas lugar de manifestação da liberdade humana, de um formar-se, de um construir-se, assim, a filosofia, vista como formação 381 Sobre esta questão há um artigo de Izabela M. F. Kestler, intitulado História e filosofia da história na obra do jovem Friedrich Schlegel, Kriterion, n.117, p. 79-93. ISSN 2177-0417 - 454 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 de um indivíduo, pode ser compreendida ao mesmo tempo como formação humana e formação universal, como atividade de um filósofo e de um não filósofo. A filosofia de um povo é a história, um tornar-se, da progressão de seu espírito, progressiva formação e desenvolvimento de suas idéias...Se o filósofo tem uma determinada quantidade de verdades a transmitir, ela sempre pode assumir a forma de um sistema fechado, um ensaio sistemático, escolher um método sistemático (apud. Behler, 1958,p. XII). Schlegel pensa a história como obra da humanidade, e não como um plano divino ou de uma providência, neste sentido, a forma ganha uma ligação direta com a história, como auto-formação, produto da liberdade humana. A forma da filosofia, as tentativas individuais de filosofar, não deve ser confundida com a Filosofia, mas pensadas em seus horizontes históricos, ainda mais, não se trata apenas de um reflexão em torno da produção individual, mas compreender a filosofia como uma forma individual, e não apenas idiossincrasias de expressão, mas entender a expressão não como momento segundo, mas como momento onde acontece a filosofia. Para Schlegel é preciso deixar de lado aquilo que ele chama de excesso de pensamento e falta de textualidade, que muitas vezes resulta numa falta de clareza, que de modo algum representam as dificuldades de um sistema, mas somente falta de capacidade de comunica-lo claramente. Por outro lado, não se trata de reduzir a escuridão e a complexidade de uma obra, mas de lê-la a partir de sua textualidade, e conseguir encontrar num certo obscurantismo os movimentos do sistema. Não de deve confundir esta exigência como uma busca da total clareza ou da facilitação do discurso filosófico, o que Schlegel quer chamar a atenção é para o fato de que a filosofia não se pensar como uma atividade fora do tempo e desligada das expressões individuais. Schlegel compreende que a substância do ser é sempre um infinito indescritível, absurdo e ilimitado, sendo assim, a incompreensão deixa de ser um defeito, e se torna inerente ao homem, impossível de ser contornado. Agora, a forma que procuramos para exprimir este incompreensível é a verdadeira questão, e para Schlegel está neste jogo entre filosofia e poesia. Tornar um escrito filosófico mais compreensível, encontrar uma forma mais popular, é conceder a este escrito uma individualidade estética, sem comprometer sua complexidade. É compreender a filosofia como sendo formada por um infinito número de formatos possíveis, um número infinito de modos de filosofia. É entender a filosofia como arte, como produção, onde sua popularidade deve ser sua maior meta. ISSN 2177-0417 - 455 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 Entender a filosofia ligada a história é compreender que o requisito essencial de um sistema é que seja original, isto é, de um indivíduo, pois somente este é um homem, e somente este pode encontrar a diagonal que liga céu e terra, a vida do homem é a unificação das duas esferas inconciliáveis, mas sintetizadas na existência do indivíduo. Liga-se a isto a idéia de que a expressão adequada do absoluto, embora nunca completa, deve oscilar entre a sua apresentação positiva e negativa, entre filosofia e poesia, entre sistema e não sistema, como que para equilibrar, pois não há acesso a uma totalidade sem se levar em conta todas as esferas. Todas estas questões estão presentes naquilo que chamamos de textualidade da filosofia, pois sua condição histórica e individual, bem com a idéia de linguagem não como expressão segunda do pensamento, mas já como pensamento, levam Schlegel a questionar aquilo que comumente em sua época era o sentido de sistema e o sentido da forma da filosofia. O absoluto é incompreensível e infinito para que se busque apenas um sistema, ou apenas uma forma de expressão, mas todas as formas de expressão concorrem para que a filosofia se torne completa e rume em direção ao infinito, e o sistema deve comportar isto, ser um sistema e também não ser, ter ordem e caos convivendo lado a lado. Isto permite a Schlegel experimentar uma linguagem própria no seio da filosofia, uma forma fragmentária, com romances, ensaios, poesia, teatro, cartas e etc., mas para isto foi necessário que ele modificasse a compreensão do que seria um sistema, ou a forma da filosofia. Referências bibliograficas BEHLER, E. Frühromantik. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1992. FRANK, Manfred. The philosophical foundations of early german romanticism, trad. Elizabeth Millán-Zaibert, New York: State University of New York Press, 2004. _______________. Einführung in die frühromantische Ästhetik. Vorlesungen. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1989. LACOUE-LABARTHE, P. E NANCY, J-L. . L’absolu littéraire. Théorie de la littérature du romantisme allemand.Paris: Éditions du Seuil, 1978. SCHLEGEL, Friedrich. Kritische Ausgabe.Ernst Behler, Jean-Jacques Anstett e Hans Eichner (org.) München/Paderborn/Wien: Ferdiand Schöningh, 1958 ss. SUZUKI, Márcio. O gênio romântico, Crítica e História da Filosofia em Friedrich Schlegel. São Paulo: Fapesp/Iluminuras, 1998. ISSN 2177-0417 - 456 - PPG-Fil - UFSCar