■ ANO 18 ■ TIRAGEM: ■ MAIO/2010 ■ 20 000 EXEMPLARES ISRAEL E OS ENIGMAS DO ORIENTE MÉDIO O s partidos nacionalistas e religiosos são minoritários, mas definem pela negativa as políticas de Israel. Nenhuma coalizão de governo israelense pode subsistir sem esses partidos, que pressionam pela continuidade da construção de assentamentos judaicos nos territórios palestinos ocupados. A sabotagem persistente das negociações de paz abre uma encruzilhada na história de Israel. A solução de dois Estados, apontada pela ONU em 1947 e sancionada pelos Acordos de Oslo em 1993, exige um compromisso de duas mãos. Os palestinos parecem prestes a renunciar à miragem de seu Estado, que se esfuma como uma promessa nunca cumprida. Quando isso acontecer, Israel enfrentará seu maior desafio existencial, pois é impossível conservar simultaneamente um sistema político baseado nos princípios democráticos e a soberania sobre toda a Palestina histórica, habiIsrael inicia a construção de novas casas em Beitar Illit, tada por uma maioria demográfica de árabes-palestinos. na Cisjordânia ocupada O fracasso do “processo de paz” de Oslo tem repercussões mais amplas, regionais e mundiais. Os Estados Unidos, principais aliados de Israel, não podem sustentar sua política para o “Grande Oriente Médio” sem uma solução para a Questão Palestina. Barack Obama precisa da cooperação árabe-muçulmana para cumprir três missões improváveis, mas cruciais: a contenção do programa nuclear do Irã, a estabilização de um Iraque que logo não contará com as forças americanas e a reversão do cenário militar desfavorável no Afeganistão. A intransigência de Israel ameaça toda a estratégia americana para a região. O tempo não para. Até o final do ano devem se realizar eleições para a renovação da Autoridade Palestina (AP). Se Mahmoud Abbas desistir da reeleição, a AP tende a dar lugar a novas lideranças, sem compromissos com Washington e com a solução dos dois Estados. Vejas as matérias nas págs. 6 a 9 O peronismo se desfigura enquanto a Argentina declina A Revolução de Maio, que deflagrou a independência da Argentina, completa dois séculos exatos. A história do país pode ser contada em dois capítulos, com durações quase idênticas. O primeiro capítulo é o da ascensão econômica. A Argentina do início do século XX enxergava-se como uma porção da Europa grudada geograficamente à América Latina. O segundo capítulo é o do declínio que conduz a Argentina a enxergar-se como uma porção da América Latina nostálgica de seu passado “europeu”. O peronismo, principal fenômeno populista da história, acompanha todo o percurso do declínio. Perón, Menem e Kirchner são frutos do peronismo. Mas representam momentos diferentes na trajetória pouco invejável do país vizinho. Págs. 4 e 5 MARACANÃ, 60 ANOS © Arthur Boppré ● O filme Lawrence da Arábia conta a história do agente britânico que moldou a geopolítica contemporânea do Oriente Médio. Pág. 2 ● Editorial – O STF julgará proximamente a ação contra o vestibular racial da UnB. No fundo, decidirá se vale mesmo a letra da Constituição, que não admite a divisão dos cidadãos segundo critérios raciais. Pág. 3 ● Há 80 anos, a Tarifa Smoot-Hawley pavimentou a estrada que conduziu o mundo à Grande Depressão. Pág. 3 ● A Rússia de Putin e os Estados Unidos de Obama encontraram uma plataforma de cooperação estratégica. Os atentados terroristas em Moscou reforçam a aproximação entre as duas potências. Pág. 10 ● Diário de Viagem – Da cosmopolita Xangai às cidades interiores do vale do rio Li, a China está impregnada pela globalização. Mas Taiwan ainda é um universo à parte. Pág. 11 ● O Meio e o Homem – No Oceano Índico situam-se os estreitos por onde circula a maior parte do comércio entre a Ásia e a Europa. A esfera estratégica do Índico conhece hoje a expansão da influência chinesa. Pág. 12 © AFP PHOTO/Menahem Kahana E mais... Nº 3 MUNDO NO CINEMA E X P E D I E N T E LAWRENCE DA ARÁBIA E A PARTILHA DO ORIENTE MÉDIO homas Edward Lawrence (1888-1935) era tenente do serviço secreto militar britânico, em 1914, quando foi enviado ao Oriente Médio, com a missão de articular uma aliança entre tribos e grupos árabes contra o Império Otomano. Foi escolhido por seus conhecimentos do idioma e por sua admiração pela cultura árabe, cultivada durante trabalhos como arqueólogo a serviço do Museu Britânico em Carquemish, às margens do rio Eufrates, em 1911. Sua missão era vital para Grã-Bretanha, França e Rússia, que se uniram contra a Alemanha, aliada ao Império Otomano durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Lawrence escreveu um volumoso livro contando sua experiência, Os sete pilares da sabedoria, que resultou no fantástico filme Lawrence da Arábia (1962), dirigido por David Lean. Lawrence entendeu que a crise do Império Otomano, abalado por lutas internas e pela corrupção generalizada, permitia uma articulação política entre elites regionais árabes que estavam descontentes com o seu papel subordinado no esquema de dominação imperial. Além disso, minorias árabes não islâmicas passaram a ver no ocaso do império uma oportunidade de, ao menos, barganhar posições no jogo do poder. Essa perspectiva estimulou o surgimento de movimentos que procuravam construir a ideia de uma cultura árabe não definida necessariamente pelo Islã. Lawrence tentou estimular o surgimento de uma oposição nacionalista aos otomanos, com promessas de independência e soberania aos futuros Estados nacionais árabes. Todas aquelas promessas seriam posteriormente traídas pelo acordo secreto celebrado, em maio de 1916, entre os ministros britânico Mark Sykes e francês François Georges-Picot. Nos termos do acordo Sykes-Picot, a Grã-Bretanha recebeu o controle dos territórios correspondentes, grosso modo, à Jordânia e ao Iraque, bem como uma pequena área em torno de Haifa. A França ganhou o controle do sudeste da Turquia, da Síria, do Líbano e do norte do Iraque. As duas potências ficaram livres para definir as fronteiras dentro daquelas áreas. A Palestina seria colocada sob administração internacional, aguardando consultas com a Rússia e outras potências. O ajuste seria posteriormente ampliado para incluir a Itália e a Rússia na partilha do butim. A primeira receberia algumas ilhas do Egeu e uma esfera de influência em torno de Izmir, no sudoeste da Anatólia, enquanto que a segunda ficaria com a Armênia e partes do Curdistão. Em 2 de novembro de 1917, o então ministro das relações exteriores britânico, Arthur James Balfour, declarou formalmente, em carta reservada ao barão Walter Rothschild, que o seu governo aprovava a ideia de estabelecer um lar nacional judeu na Palestina. Balfour cedia, assim, às pressões de Chaim Weizmann e Nahum Sokolow, líderes do movimento sionista britânico. A Declaração Balfour apontou o caminho para a futura criação de Israel. Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr., Nelson Bacic Olic (Cartografia) Fotos: Divulgação T PANGEA – Edição e Comercialização de Material Didático LTDA. Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779) Revisão: Jaqueline Ogliari Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise Endereço: Rua Romeu Ferro, 501, São Paulo – SP. CEP 05591-000. Fones: (0XX11) 3726.4069 / 2506.4332 Fax: (0XX11) 3726.4069 – E-mail: [email protected] Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser obtidos no seguinte endereço, em São Paulo: • Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900 Fone: (0XX11) 3283.0340. www.clubemundo.com.br "Infelizmente não foi possível localizar os autores de todas as imagens utilizadas nesta edição. Teremos prazer em creditar os fotógrafos, caso se manifestem." Lawrence da Arábia, David Lean, 1962 Após a Revolução Russa de 1917, Vladimir Ilitch Lênin denunciou as reivindicações da Rússia czarista sobre o Império Otomano e tornou pública uma cópia do Acordo Sykes-Picot (que, até então, permanecia secreto). Os principais termos do acordo foram confirmados pela conferência interaliada de San Remo, em abril de 1920, pelo tratado de Sèvres (que desmembrou o Impé- rio Otomano), em outubro do mesmo ano (quando foi formalizada a presença italiana na Anatólia e a divisão dos territórios árabes) e pelo Conselho da Liga das Nações em 24 de julho de 1922, estabelecendo os mandatos britânico e francês correspondentes às áreas definidas do ajuste de 1916. Na prática, implantava-se um novo império franco-britânico, com efeitos obviamente catastróficos para os povos da região. Monarquias e chefes tribais locais tentaram negociar com os novos imperadores os termos mais vantajosos possíveis para a reacomodação geopolítica. Foi esse processo que desenhou as atuais fronteiras dos estados do Oriente Médio. Lawrence tinha uma personalidade complexa. Vivia atormentado pela angústia e, em momentos de crise, sentia-se traído pelos chefes britânicos e traidor de seus amigos árabes. Em seu livro, escreveu alguns trechos primorosos, que demonstram uma profunda sensibilidade, ainda que contaminada por preconceitos colonialistas, como este: “O homem do deserto não merece crédito por sua fé (…). Ele alcançou essa intensa condensação de si mesmo em Deus porque fechou os olhos ao mundo e a todas as complexas possibilidades latentes nele, que só o contato com a riqueza e as tentações pode trazer à tona. Alcançou uma fé confiável e poderosa, mas em campo tão estreito! Sua experiência estéril roubou-lhe qualquer compaixão e perverteu sua generosidade humana para com a imagem da perda na qual se escondeu (…). Vem daí um gozo na dor, uma crueldade que vale mais para ele que quaisquer bens. (…) Encontrou luxúria na abnegação, na renúncia, na autocontenção. Fez a nudez da mente tão sensual quanto a nudez do corpo. É possível que tenha salvo a própria alma, e sem risco, mas num duro egoísmo.” Para alguns de seus biógrafos e amigos mais íntimos, Lawrence descreve nessa passagem o próprio Lawrence. 2010 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 2 E D I T O R I A L O SUPREMO DIANTE DA RAÇA BRASILEIRA DIZ QUE TODOS COMBINA CRITÉRIOS RACIAIS COM CRITÉRIO SOCIOECONÔMICOS. O BRASIL, AO CONTRÁRIO DOS ESTADOS UNI- SÃO IGUAIS PERANTE A LEI, VEDANDO DISTINÇÕES BA- NA UNB, UM CANDIDATO COM ALTA RENDA FAMILIAR ROTULADO COMO “NEGRO” POR UM TRIBUNAL RACIAL SECRETO, INSTITUÍDO PELA UNIVERSIDADE, PRECISA DE MENOS PONTOS PARA OBTER VAGA QUE UM CANDIDATO DE FAMÍLIA POBRE, MAS ROTULADO COMO “BRANCO”. LOGO MAIS, O STF JULGARÁ A ADPC. SERÁ ENTÃO PROIBIDO O USO DE CRITÉRIOS RACIAIS NO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR? “A CONSTITUIÇÃO É O QUE O SUPREMO DIZ QUE ELA É.” O MANTRA, REPETIDO POR NOVE ENTRE DEZ JURISTAS, SIGNIFICA QUE O TEXTO CONSTITUCIONAL ESTÁ SEMPRE ABERTO À INTERPRETAÇÃO – E QUE A CORTE CONSTITUCIONAL PODE INTERPRETÁ-LO SOBERANAMENTE. O STF TEM, PORTANTO, A PRERROGATIVA DE INSCREVER A RAÇA NO ORDENAMENTO LEGAL DO PAÍS. SE O FIZER, CONTUDO, COMEÇARÁ A REESCREVER A HISTÓRIA DO BRASIL NUM SENTIDO REGRESSIVO. DOS, NÃO PRODUZIU LEIS DE SEGREGAÇÃO RACIAL DE- A CONSTITUIÇÃO SEADAS EM CRITÉRIOS POLÍTICOS, IDEOLÓGICOS, RELIGIOSOS OU RACIAIS. TAMBÉM DIZ QUE O ACESSO AO ENSINO SUPERIOR SE DARÁ SEGUNDO O MÉRITO. A LE- TRA DA CONSTITUIÇÃO VEDA, NITIDAMENTE, INICIATIVAS COMO A RESERVA DE VAGAS NAS UNIVERSIDADES EM FUNÇÃO DA COR DA PELE OU DA “RAÇA” DOS CANDIDATOS. MAS, DESAFIANDO OS PRECEITOS CONSTITUCIO- NAIS, DIVERSAS UNIVERSIDADES FEDERAIS E ESTADUAIS MANTÊM PROGRAMAS DE PREFERÊNCIAS RACIAIS NOS SEUS EXAMES VESTIBULARES. O PARTIDO DEMOCRATAS ENTROU NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF) COM UMA AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO CONSTITUCIONAL (ADPC) CONTRA O MAIS NOTÓRIO DOS VESTIBULARES RACIALIZADOS – O DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UNB), QUE NEM MESMO POIS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO. POR AQUI, OS CI- DADÃOS NUNCA FORAM CLASSIFICADOS EM GRUPOS RACIAIS OFICIAIS, AO CONTRÁRIO DA ÁFRICA DO SUL. O NOSSO PECADO É OUTRO: ELE SE CHAMA DESIGUALDADE SOCIAL E SE MANIFESTA PELA EXCLUSÃO DOS POBRES, DE TODAS AS CORES DE PELE. AS PROPOSTAS DE LEIS DE PREFERÊNCIAS RACIAIS FINGEM OFERECER PERDÃO PARA ESSE PECADO. MAS SÓ FINGEM: COTAS RACIAIS DEIXAM OS POBRES NO LUGAR ONDE SEMPRE ESTIVERAM. NÃO É EXATO DIZER QUE COTAS RACIAIS NÃO SOLUCIONAM O PROBLEMA. A VERDADE É QUE ELAS ADICIONAM UM NOVO PECADO ÀQUELE QUE JÁ TEMOS. COM ELAS, FICARÍAMOS COM O PIOR UNIDOS E COM O PIOR DO BRASIL. DOS ESTADOS HÁ 80 ANOS, “ESTUPIDEZ ECONÔMICA” PRECIPITOU A DEPRESSÃO O Mãe e filhos na miséria, em Elm Grove, Califórnia: um retrato da Depressão de 1929 © Library of Cogress USA s manuais simplificados de história conectam, por um vínculo direto, o crash da Bolsa de Nova York, em 1929, à Grande Depressão que se estendeu pela década de 1930 e só terminou, de fato, com a Segunda Guerra Mundial. Nessas narrativas, tudo se passa como se a depressão global estivesse inscrita em pedra na quebra da bolsa americana. Mais que uma simplificação, trata-se de um erro histórico e metodológico. A história não tem um rumo traçado de antemão, um destino fixado fora do âmbito da ação humana. A depressão era uma possibilidade contida no crash, mas só se tornou realidade em decorrência de uma sucessão de equívocos trágicos de operação das políticas econômicas pelos governos das potências. Um desses equívocos, talvez o mais conhecido, foi o apego dos bancos centrais ao padrão ouro. Em nome da “cruz do padrão ouro”, na frase célebre do líder democrata americano William Jennings Bryan, as autoridades monetárias reagiram ao crash elevando os juros, a fim de sustentar o valor das moedas nacionais. Os juros altos travaram os investimentos e o consumo, exatamente quando seria necessário estimular a economia golpeada pela crise financeira. O britânico John Maynard Keynes, um antigo crítico do padrão ouro, converteu-se no mais influ- ente economista do mundo depois que se admitiu o equívoco catastrófico. O grande equívoco seguinte foi a deflagração de uma guerra comercial. A culpa, nesse caso, recai primariamente sobre os Estados Unidos. Há 80 anos, no dia 17 de junho de 1930, o presidente Herbert Hoover assinou a Lei Tarifária Smoot-Hawley, que elevou as tarifas de importação de 20 mil produtos até níveis recordistas. A história da mais mal afamada tarifa alfandegária em todos os tempos começa bem antes do crash, em 1922, com a aprovação da Tarifa Fordney-McCumber, destinada a proteger os agricultores americanos da concorrência externa reativada após o fim da Primeira Guerra Mundial. O mentor da iniciativa fora o senador republicano Reed Smoot, de Utah, e ela se inscrevia na orientação geral isolacionista dos Estados Unidos. No início de 1928, reagindo ao esfriamento do mercado de trabalho, o mesmo Smoot preparou uma nova lei tarifária, que seria convertida em bandeira da vitoriosa campanha eleitoral de Hoover. Na sua versão original, a lei aumentava as tarifas sobre produtos agrícolas mas reduzia as incidentes sobre bens industriais. No Congresso, contudo, os debates se prolongaram até o início de 1930 e resultaram numa segunda versão, que atendia aos diversos interesses protecionistas estaduais e elevava todas as tarifas, agrícolas e industriais. Mais de mil economistas americanos assinaram uma petição a Hoover pedindo o veto à lei tarifária. Henry Ford, o comandante da Ford Motor Co., então no seu auge, apoiado por executivos de outras companhias de automóveis, reuniu-se com o presidente para implorar pelo veto do que batizara como “uma estupidez econômica”. Hoover não gostava da lei, e deixou isso mais que claro, porém não pretendia colidir com seu partido e a maioria parlamentar. A Tarifa Smoot-Hawley foi assinada e tornou-se um ícone inigualado da marcha destrutiva do protecionismo. Os impactos diretos da lei tarifária na configuração da Grande Depressão constituem, até hoje, objeto de acesa polêmica. Contudo, seus efeitos geopolíticos evidenciaram-se ainda na etapa final de debates no Senado americano. Um mês antes da assinatura de Hoover, o Canadá retaliou, aumentando tarifas sobre um terço dos produtos importados do vizinho. O passo seguinte na implosão das teias do comércio mundial foi a renúncia da Grã-Bretanha ao padrão ouro e a consequente desvalorização da libra, em setembro de 1931. O gesto britânico foi complementado por uma elevação das tarifas alfandegárias domésticas, o que provocou uma reação protecionista em cadeia na Europa. As muralhas de proteção foram fortificadas por barreiras não tarifárias. A França tomou a dianteira nessa frente da guerra comercial, impondo cotas de importação sobre cinquenta itens em 1931, que se transformaram em 1.100 itens no ano seguinte. Em janeiro de 1929, as importações globais perfaziam cerca de US$ 3 bilhões. Antes da metade de 1933, as importações mensais haviam desabado para menos de US$ 500 milhões. Em 1932, entre um ponto e outro da curva descendente, os eleitores recusaram-se a conceder novos mandatos a Smoot e ao também republicano Willis C. Hawley, coautor da desastrosa lei tarifária. MAIO 2010 3 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O ARGENTINA DA RIQUEZA À POBREZA EM MEIO SÉCULO O Newton Carlos Da Equipe de Colaboradores voto é secreto na Argentina desde 1912. Nada parecido com as nossas eleições baseadas no voto de cabresto, típicas da República Velha. Lá eleitores urbanos, do Partido Radical, tiraram a oligarquia do poder por meio do voto. Instalou-se um quadro de “hegemonia burguesa”, na época único na América Latina. Era a Argentina das décadas de 1910 e 1920, da rebelião universitária de Córdoba, origem de uma nova religião, a da autonomia universitária. O estadista francês Georges Clemenceau visitou-a nessa época e se encantou, entre outras coisas, com o metrô abaixo da linha do Equador. O crash de 1929 bateu forte naquela que fora a quarta economia do mundo, e o presidente Hipólito Yrigoyen, herói da classe média, caiu golpeado. Os anos 1930 foram batizados como a “década infame”, dos quartelaços e das conspirações, até o advento do populismo peronista (veja a matéria na pág. 5). Os “descamisados”, párias da industrialização, sobrepassaram politicamente a classe média. Mas o peronismo esgotou os recursos públicos e perdeu as condições para manter a teatralidade da maior mobilização de massas da América Latina. Sem as reservas financeiras obtidas com a venda de excedentes agrícolas na Segunda Guerra Mundial e no imediato pós-guerra, o regime esgotou-se politicamente. As coisas pioraram velozmente. A partir do golpe de 1955, contra Juan Domingo Perón, as turbulências foram brutais. Os militares deram novos golpes e o peronismo conseguiu se recompor mais de uma vez. Perón retornou ao poder em 1973, morreu no ano seguinte e deixou a presidência com sua terceira esposa, a vice Isabelita. O chamado golpe-mor, o de 1976, contra Isabelita, não tratou só de “segurança nacional”, mas também de redirecionar a economia. Tempos de chumbo, “guerra suja”, 30 mil “desaparecidos” políticos. Os militares golpistas também patrocinaram equipes econômicas com manuais de combate ao “nacional populismo”, contra os estertores do velho peronismo. Pela primeira vez, montou-se na Argentina um projeto antiperonista “consistente”. O ministro da Economia, José Martinez de Hoz, de família oligarca e com profundas raízes no campo conservador, achatou os salários e contraiu uma dívida externa de US$ 43 bilhões, um recorde para a época. Nesse afã, terminou produzindo o que o Centro de Pesquisas Sociais, de Buenos Aires, chamou de “fratura na evolução da sociedade argentina”. É um modo acadêmico de falar de ampliação da pobreza. O primeiro governo da “redemocratização”, o de Raúl Alfonsín, já nasceu colocado contra a parede, com a dívida e a pobreza em acelerada ascensão. É a “tragédia das democracias pobres”, disse Alfonsín, já a caminho do FMI. Ou do patíbulo. Sequer teve fôlego para completar o mandato. Afogou-se na hiperinflação e no caos social. “A dor, a violência, o analfabetismo e a marginalidade golpeiam nove © AFP A Argentina celebra os 200 anos da Revolução de Maio, que iniciou a marcha rumo à independência. Mas o país tem pouco a comemorar na sua história recente Buenos Aires, dezembro de 2001: a crise leva ao fundo do poço um país que, no início do século XX, era a quarta economia mais forte do mundo milhões de argentinos”, declarou o sucessor, o peronista ultraliberal Carlos Menem, que assumiu em 1989. Um terço da população na miséria? Menem convocou para o “nascimento de novos tempos, novas oportunidades, talvez as últimas”. Em seu primeiro quinquênio, a pobreza duplicou na Argentina. No final de dois mandatos, num total de dez anos na Casa Rosada, de cada 1.760 pessoas que baixavam a graus dramáticos de empobrecimento, mil provinham da classe média. As estimativas indicam que já são mais de 15 milhões de pobres, numa população de 40 milhões. Um escândalo no país que, ao lado do Uruguai, imaginava-se como uma porção desgarrada da Europa na América Latina. A antes dominante classe média continuou em queda livre. Quanto ao peronismo “sem Perón”, perdeu a identidade, deslizando entre o populismo, o ultraliberalismo e agora, com a dinastia dos Kirchner, em fortes pitadas de autoritarismo. Nas eleições de 1999 os argentinos apostaram entusiasticamente em mudanças – e perderam a aposta. As coisas só pioraram e o governo do presidente Fernando de la Rúa, do velho Partido Radical, naufragou em desgraças e sangue, o povo nas ruas saqueando e sendo violentamente reprimido. Foi aberto o caminho por onde transitou Néstor Kirchner, e em seguida Cristina Kirchner, em seu assalto eleitoral ao poder. Do golpe de 1976 até 1982, ano da Guerra das Malvinas, tiro de misericórdia na ditadura, a produção industrial retrocedeu 27%. Mais de 1,5 milhão de argentinos com qualificações profissionais se expatriaram. Alfonsín teve de pagar, em 1984, US$ 9,6 bilhões a título de juros e serviços da dívida externa, equivalentes ao total das exportações em 1982. Em uma das raras entrevistas concedidas depois de proclamado presidente da Argentina, Néstor Kirchner, além de dizer que não seria empregado dos bancos, tocou no ponto talvez mais sensível da tragédia de seu país. “Vou reconciliar os argentinos com suas instituições”, prometeu. As chagas são muitas, e todas doloridas: anos de recessão, desemprego alto, pobreza por todos os lados, desmonte de uma classe média que esteve entre as mais pujantes do mundo e até fome no que foi considerado celeiro do mundo. Mas a questão política precisa de atenção especial. O tratamento dispensado ao ex-presidente Fernando de la Rúa, agredido fisicamente quando foi votar, deu a medida da raiva que os políticos provocam nos argentinos. Ele personificou esperanças de redenção, como sucessor de um Menem corrupto, e caiu com uma Argentina quebrada e em meio a desgraças e sangue. “Não se aceitam políticos” – cartazes com esses dizeres foram colocados em restaurantes em Buenos Aires. Parlamentares tiveram de pedir proteção à polícia. Até o ex-presidente Raúl Alfonsín, figura venerada por seu papel na redemocratização, sofreu constrangimentos físicos nas ruas. Os argentinos ainda não se reconciliaram com suas instituições. 2010 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 4 ARGENTINA PERONISMO SEM PERÓN TORNOU-SE MERO OBJETO ELEITORAL Newton Carlos Da Equipe de Colaboradores O espectro de Perón acompanhou a vida argentina durante meio século, chegando a configurar o maior movimento de massas da América Latina, antes de se esgotar politicamente Nos anos 1940, Juan Domingo Perón e sua mulher Evita recriaram o breve sonho de uma Argentina próspera e dedicada aos pobres Reprodução uma biografia de Juan Domingo Perón, a uruguaia Marisa Navarro diz que ele era “excessivamente personalista”, traço que o colocava num mesmo saco com outros ditadores latino-americanos. Construiu monumentos em sua homenagem, trocou nomes de ruas, substituídos pelo seu, adorava ouvir discursos de exaltação a ele próprio. Tampouco suportava um mínimo de oposição. Mas teve apoio popular, algo que nem mesmo seus mais ferozes inimigos se dispunham a questionar. O peronismo foi o maior movimento de massas da América Latina, no qual se confundiam as cabeças de Perón e de sua segunda esposa, Evita, que comandou o ministério do Trabalho entre 1946 e 1952, na primeira presidência do caudilho. O argentino Jorge Abelardo Ramos, um nacionalista de esquerda, foi às origens. De modo sucinto, a crônica é a seguinte. Perón “percebeu” que a industrialização criara um enorme proletariado sem tradição de militância sindical e política, sem relações com as esquerdas tradicionais, uma “nova classe social que se constituía em enorme fator de poder”. Por isso, numa das tantas crises políticas que se seguiram à derrubada do presidente Hipólito Yrigoyen em 1930, após o crash de Wall Street e da falência do “projeto de hegemonia burguesa” na velha Argentina da classe média, instalou-se no ministério do Trabalho, mobilizou os trabalhadores pobres (os “descamisados”) e assumiu o poder em 1946. A influência do fascismo ficou clara na adoção de uma “terceira posição”, entre o comunismo e o capitalismo. Aliança de classes em vez de luta de classes e divisão da renda nacional, de modo igual, entre capital e trabalho. Não só a elite conservadora se opunha ao peronismo. Também comunistas e socialistas, cujos espaços o peronismo © AFP N invadiu. O inglês H. S. Ferris lembra o que ele fez em matéria de salários e previdência, razão mais forte pela qual a “revolução libertadora”, que o derrubou em 1955, não conseguiu desmontá-lo. Voltou ao poder em 1973, por meio de um preposto, Héctor Cámpora, e após a renúncia dele, retomou a presidência em eleições extraordinárias. Perón obteve 62% dos votos totais. Como vice, a terceira esposa, Isabelita, prenúncio do caos, já que se consu- Populismo, abusos de um conceito O populismo, como todo o conceito político, só tem sentido quando inscrito num chão histórico e num contexto geopolítico. Perón, na Argentina, constitui a melhor ilustração do fenômeno. Ele chegou ao poder empurrado pela industrialização e a formação de uma classe de trabalhadores urbanos pobres (os “descamisados”), carente de direitos sociais. Governou em nome da ordem, afastando o espectro da revolução, com o apoio dos “de baixo”, a quem concedeu direitos trabalhistas e previdenciários. Seu esquema de poder articulou um partido populista (o Partido Justicialista) à nova burocracia sindical dependente do Estado. O fenômeno populista na América Latina abrange, entre outros, o México de Lázaro Cárdenas, que governou entre 1934 e 1940 e azeitou a máquina eleitoral do Partido Revolucionário Institucional, e o Brasil de Getúlio Vargas, com seu PTB e a estrutura dos sindicatos atrelados ao Estado. Como na Argentina, os populismos mexicano e brasileiro refletiram a entrada em cena das massas urbanas, na etapa de expansão industrial posterior ao crash da Bolsa de Nova York que se estendeu pelo pós-guerra. Os regimes populistas não se explicam pela tradicional dicotomia entre direita e esquerda – e, tipicamente, abrangem correntes situadas nos dois polos do espectro político. O “tempo” do populismo passou, junto com o esgotamento do modelo de substituição de importações e industrialização nacional. Jornais costumam taxar de populistas governos como o de Hugo Chávez, na Venezuela, Evo Morales, na Bolívia, Rafael Correa, no Equador, e mesmo Cristina Kirchner, na Argentina. É uma impropriedade histórica que evidencia a preguiça intelectual dos analistas. O pior é quando colocam um “neo” na frente da qualificação, como em “neopopulistas”. Trata-se de estratagema para disfarçar a pobreza de uma análise que é impotente para revelar a singularidade das coisas. miam as resistências físicas do caudilho. Com sua morte explodiram as “contradições” entre guerrilheiros da extrema esquerda peronista, os Montoneros, sindicalistas de todos os tipos e gângsters como José Lopez Rega, El Brujo (“O Bruxo”), que se instalou em palácio em parceria com Isabelita, a herdeira e sucessora de Perón, deposta no golpe militar de 1976. O peronismo precisou de 18 anos, entre 1955 e 1971, para deixar claro que a Argentina não podia ser governada sem ele e menos de dois – o curto período de Isabelita – para mostrar como se leva um país à ruína. Foram abertas as comportas para uma ditadura brutal e as crises que resultaram numa tragédia nacional. O que chegou a ser o maior movimento de massas da América Latina tornou-se mero objeto eleitoral. Não só isso. O peronismo sempre teve personalidade ditatorial, mas com Isabelita e Lopez Rega adotou o banditismo. Os militares que sobrevieram aos dois aumentaram a dose de crueldade. Com a redemocratização, o peronismo tornou-se mero objeto eleitoral, sem feições definidas. Hoje, abriga o confronto entre manipuladores dos chamados “movimentos sociais” e os chamados “dissidentes”, acobertados por um empresário milionário com a disposição de mobilizar eleitoralmente a classe média. A Argentina talvez seja o único país latino-americano com uma história na qual se inclui presença marcante da classe média nos embates políticos. Ela foi dominante no pré-peronismo. Há quem queira que volte a ser, agora sob o rótulo do peronismo. MAIO 2010 5 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O ISRAEL/PALESTINA coisa está começando a ficar muito perigosa para nós. O que vocês estão fazendo aqui cria novas ameaças à segurança dos nossos soldados que combatem no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão. Criam-se riscos novos para nós e para a paz regional”, disse o vice-presidente americano Joseph Biden ao primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, durante uma visita a Israel, em março, segundo o jornal Yediot Aharanoth, um dos mais influentes em Israel. A advertência de Biden ganha maior relevância quando se recorda que ele é um dos mais fervorosos defensores de Israel nos Estados Unidos. Em outubro de 2006, o então senador pelo Partido Democrata, chegou a afirmar que o apoio dos democratas a Israel “vem de nossas vísceras, atinge o coração e vai até o cérebro. É quase genético.” Biden criticava a política de implantação de novos assentamentos israelenses nos territórios palestinos ocupados, em especial o setor oriental (árabe) de Jerusalém. No mesmo momento em que o vice-presidente iniciava sua visita a Israel, o governo Netanyahu anunciava a instalação de 1.600 novas casas para judeus ultraortodoxos no bairro de Ramat Shlomo, em Jerusalém Oriental, além da construção de 112 novos apartamentos em Beitar Illit, na Cisjordânia. Irritado, Biden afirmou que “dado que muitos, no mundo muçulmano, veem uma clara conexão entre as ações de Israel e a política dos Estados Unidos na região, qualquer decisão que agrida direitos de palestinos em Jerusalém Oriental terá impacto direto na segurança pessoal dos soldados americanos que combatem o terrorismo islâmico”. Em outros termos, do ponto de vista da Casa Branca, a intransigência de Netanyahu começa a custar vidas de soldados americanos. As advertências de Biden estão muito longe de serem mera retórica. Ao contrário, elas refletem as conclusões de um relatório de 45 minutos, apresentado no final de 2009 pelo general americano David Petraeus ao almirante Mike Mullen, presidente do Comando Unificado das Forças Armadas dos Estados Unidos. Segundo o relatório, “cresce entre os líderes árabes a percepção de que os Estados Unidos não conseguirão enfrentar Israel, que os países cobertos pelo Centcom – quase todos árabes – começam a perder a fé nas promessas dos Estados Unidos; que a intransigência do governo de Israel no conflito Israel-Pa- TAL COMO IMAGINADO PELO PARTIDO DA PAZ EM ISRAEL (...), O PROCESSO DE OSLO DESTINAVA-SE A CONSTRUIR CONFIANÇA E (...) EVENTUALMENTE, DOIS ESTADOS – UM JUDEU, UM PALESTINO – VIVERIAM EM ESTÁVEL PROXIMIDADE, COM A SEGURANÇA DE AMBOS SUBSCRITA PELA COMUNIDADE INTERNACIONAL. (...) MAS A COISA TODA ERA PROFUNDAMENTE IMPERFEITA. (...) NADA TENDO A CONCEDER, OS PALESTINOS NADA TINHAM PARA NEGOCIAR. (...) SE OS ISRAELENSES PRECISAVAM DE ALGO DOS PALESTINOS (...), ENTÃO AQUILO QUE OS PALESTINOS QUERIAM – SOBERANIA COMPLETA, O RETORNO ÀS FRONTEIRAS DE 1967, O “DIREITO AO RETORNO”, UMA PARTE DE JERUSALÉM – DEVERIAM ESTAR NA MESA DE NEGOCIAÇÕES DESDE O INÍCIO, NÃO NUM INDETERMINADO ESTÁGIO FINAL. OBRIGAÇÕES ENTRE OS DOIS LADOS. (TONY JUDT, REAPPRAISALS, NOVA YORK, PENGUIN, 2008, P. 168-169) © AFP PHOTO/Abbas Momani A “ WASHINGTON TEME REGION lestina está pondo em risco a autoridade dos Estados Unidos na região.” Centcom é o Comando Central, uma instância de controle das Forças Armadas americanas, criada em 1983, para monitorar uma vasta área que compreende o Oriente Médio e a Ásia central. “A mensagem é muito clara”, afirmou à revista Foreign Policy um “alto funcionário do Pentágono” que conhece bem os termos do relatório: “Não só os Estados Unidos estão sendo vistos como fracos como, também, a postura militar dos Estados Unidos perde prestígio na região.” Após o fiasco da ocupação do Iraque pelos Estados Unidos, e com o recrudescimento da guerra no Afeganistão e Paquistão, que levanta novamente o espectro da derrota no Vietnã, a Casa Branca teme a regionalização de um conflito que, potencialmente, agitaria centenas de milhões de islâmicos, levando à desestabilização dos governos árabes aliados. Seria o pior cenário possível, ainda mais levando-se em conta as tensões com o Irã e a existência de movimentos separatistas no Cáucaso (veja a matéria na pág. 10). A percepção de uma Casa Branca politicamente frágil, refém de Israel, abre uma avenida para a catástrofe. Em Ramallah (Cisjordânia ocupada), garotos palestinos jogam pedras contra soldados e tanques israelenses, no começo do ano, em protesto contra a construção ilegal de novos assentamentos anunciada por Israel Não por acaso, em encontro mantido com o presidente francês Nicolas Sarkozy, no começo de abril, em Washington, o próprio Barack Obama declarou que vai manter a pressão sobre Israel, ainda que isso custe um alto preço político nas eleições que serão realizadas em novembro, nos Estados Unidos. Obama declarou não ter opções. As tensões entre os governos americano e israelense atingiram, nas últimas semanas, um nível sem precedentes desde 1956, quando Israel resolveu atacar o Egito, em operação conjunta com a Inglaterra e a França, sem prévio conhecimento da Casa Branca, para tomar o controle do Canal de Suez (veja a matéria na pág. 8). E já afetam as relações entre a facção mais “dura” da cúpula das Forças Armadas americanas (ligada aos neoconservadores, favoráveis a um ataque ao Irã, se necessário com armas nucleares) e os apoiadores da linha mais cautelosa adotada por Obama. Para complicar um pouco mais o xadrez regional, cresce entre os palestinos a rejeição ao atual presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, líder do grupo moderado Fatah, com o fortalecimento do grupo islâmico radical Hamas, que controla a Faixa de Gaza desde 2007. Em outubro passado, Abbas aceitou o adiamento de ações punitivas contra Israel, previstas por um relatório da ONU que condenava o Estado judeu por “crimes de guerra” praticados durante ataques à Faixa de Gaza, entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009. O relatório, apresentado pelo juiz sul-africano Richard Goldstone, foi aprovado por 25 países contra seis (incluindo Estados Unidos e Israel) no âmbito da Comissão de Direitos Humanos da ONU. A leniência de Abbas foi interpretada como traição por uma grande parcela de palestinos, incluído os habitantes da Cisjordânia, onde o Fatah tem o apoio da maioria. Esse fato, mais a impotência de Autoridade Palestina diante de Israel, fazem com que o destino político de Abbas seja incerto. Ele mesmo fala em não mais disputar as eleições previstas para o final de 2010, tornando ainda mais densas as nuvens de incerteza que pairam sobre a Palestina. Uma nova vitória eleitoral do Hamas, repetindo o feito de 2006, certamente colocaria mais lenha na grande fogueira regional. 2010 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 6 ONALIZAÇÃO DO CONFLITO PALESTINO ESGOTOU-SE A SOLUÇÃO DOS DOIS ESTADOS? H á quase duas décadas, em 1993, Israel e os palestinos assinaram os Acordos de Oslo, que deveriam levar a paz à região. A solução de Oslo, no fim de um longo processo, seria a criação de um Estado Palestino, que viveria em paz com Israel. Desse modo, retomava-se o conceito da partilha da Palestina adotado pela ONU em 1947. Oslo fracassou em tudo. No lugar de construir paulatinamente a confiança entre os dois lados, gerou frustração, violências e ódio. Sabotagens dos dois lados podem ser apontadas. Mas não há nada mais destrutivo que a persistência de Israel na colonização judaica dos territórios palestinos ocupados. Quando foi assinada a Declaração de Oslo, existiam 32.750 unidades habitacionais judaicas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Em oito anos, até outubro de 2001, o número de habitações cresceu 62%, para 53.121. Nos quatro primeiros anos do “processo de paz”, a população das implantações israelenses nos territórios ocupados cresceu 61%. A cláusula 7 do artigo 31 da Declaração de Oslo dizia: “Nenhum dos lados deve tomar iniciativas ou adotar qualquer passo que conduzam à mudança no estatuto da Cisjordânia a da Faixa de Gaza, pendentes dos resultados das negociações sobre o estatuto definitivo.” A colonização judaica já criou um bolsão quase contínuo de assentamentos entre Jerusalém e Belém, principal corredor econômico da Cisjordânia e núcleo de um futuro Estado Palestino (veja o mapa). Assentamentos em Jerusalém Leste e Cisjordânia 4 km Zona industrial LÍBANO E1: Área de expansão de assentamentos judaicos ISRAEL Limites municipais MAR MEDITERRÂNEO Linha Verde: Fronteira de Israel até 1967 0 Ramalah Cidade Velha Tel Aviv CISJORDÂNIA Jerusalém Jerusalém Setor Ocidental Rota do muro Pontos de passagem ISRAEL Setor Oriental Áreas de construções palestinas Belém Áreas de construções judaicas além da Linha Verde EGITO JORDÂNIA C I S J O R D Â N I A FONTE: Jornal Folha de S. Paulo, 22/04/2010, página A14 Evolução demográfica em Israel/Palestina 6000 5000 milhões 4000 3000 2000 1000 0 1948 1999 Judeus 2009 Árabes-palestinos FONTE: Sergio DellaPergola, Demography in Israel/Palestine, IUSSP XXIV General Population Conference, 2001; World Factbook, 2010 Israel não foi levado à mesa de Oslo apenas pelas pressões americanas, nem mesmo unicamente pela força da Intifada (revolta) palestina. A decisão decorreu essencialmente de um cálculo político de fundo demográfico. Naquele ponto, já estava evidente que, em pouco tempo, a população árabe-palestina ultrapassaria a população judaica no conjunto Israel/Palestina. O crescimento vegetativo dos árabes-palestinos sempre foi maior que o dos judeus, mas as ondas imigratórias para Israel compensavam com folga a diferença e produziram uma maioria judaica no conjunto Israel/Palestina. Contudo, a última dessas ondas imigratórias foi o fluxo de judeus russos, na primeira metade da década de 1990. Depois dele, o resultado seria determinado pelo diferencial de crescimento vegetativo. Em 1999, os judeus eram 55,2% da população total do conjunto, e os palestinos, 44,8%. Em 2009, a população árabe-palestina ultrapassara a judaica, perfazendo 50,7% do total, uma parcela que inclui 23% da população de Israel propriamente dita, que são os árabes-palestinos com cidadania israelense (veja o gráfico). A “bomba demográfica” continua a explodir. Num futuro próximo, os árabes-palestinos serão uma ampla maioria no conjunto Israel/Palestina. O problema demográfico, que empurrou os líderes israelenses para Oslo, recoloca-se agora como realidade inescapável. No fim das contas, o futuro de Israel depende da solução que será encontrada. A demografia indica, inapelavelmente, que Israel não pode ter três coisas simultaneamente: 1) um Estado judeu; 2) um Estado democrático; 3) um Estado que exerce soberania sobre toda a Palestina histórica. Só é possível ter duas dessas coisas, em qualquer combinação. A primeira hipótese, um Estado judeu e democrático, convivendo lado a lado com um Estado palestino, é a meta professada por todos os governos israelenses e também pela Autoridade Palestina desde 1993. Entretanto, a continuidade dos assentamentos evidencia a distância entre o discurso oficial e a vontade real de alcançar uma paz baseada na partilha, que depende de um acordo aceitável para os palestinos. A segunda hipótese, um Estado judeu que exerce soberania sobre toda a Palestina histórica, é a meta mais ou menos explícita do polo minoritário de partidos nacionalistas e religiosos que atualmente desempenha o papel de fiel da balança nas coalizões governistas israelenses. A possibilidade existe, mas implica a renúncia à democracia, além de uma guerra de ocupação permanente. O Estado judeu em todo o conjunto Israel/Palestina configuraria uma ditadura imposta à maioria de seus habitantes e um regime de tipo apartheid, que condena a maioria a viver sob o estatuto de não cidadãos. No fundo, implicaria o abandono dos valores políticos professados por Israel desde a fundação do Estado judeu (veja a matéria na pág. 9). A terceira hipótese, um Estado democrático no território integral de Israel/Palestina, é a meta almejada por correntes de esquerda minoritárias tanto entre os israelenses quanto entre os palestinos. Tal solução redundaria na renúncia à natureza judaica de Israel, pois geraria um Estado binacional, com direitos iguais para todos os seus habitantes. Nesse horizonte, extinguiria-se historicamente o sionismo, doutrina na qual se condensou o moderno nacionalismo judaico. Sob o impacto do fracasso do “processo de Oslo”, desmancha-se a legitimidade da Autoridade Palestina (AP). O presidente da AP, Mahmoud Abbas, fraco sucessor do líder histórico Yasser Arafat, declara que não tentará a reeleição. Uma hipótese é o fortalecimento do Hamas, o partido fundamentalista islâmico que já controla a Faixa de Gaza. Do ponto de vista de Israel, há uma hipótese mais temível: a desistência palestina da solução dos dois Estados. Entre os palestinos, inclusive entre os árabes com cidadania israelense, difunde-se a ideia de substituir a reivindicação nacionalista de um Estado Palestino pela reivindicação democrática de um Estado com direitos iguais para todos no conjunto Israel/ Palestina. Israel tem os meios militares para enfrentar e derrotar o Hamas. Não tem os meios políticos para responder a uma reivindicação desse tipo, que seria acompanhada pela dissolução da AP e do arremedo de administração autônoma palestina nos territórios ocupados. MAIO 2010 7 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O ISRAEL/PALESTINA ALIANÇA ESTRATÉGICA EUA-ISRAEL RESISTE ÀS DIVERGÊNCIAS A decisão do governo de Benjamin Netanyahu de construir mais 1.600 casas para colonos judeus em Jerusalém Leste – área de maioria árabe ocupada pelos israelenses desde 1967 – abriu uma das mais sérias crises na aliança estratégica entre Estados Unidos e Israel. Numa dura conversa telefônica mantida com o premiê israelense, em março, a secretária de Estado americana, Hillary Clinton, classificou o anúncio como “um sinal profundamente negativo de Israel a respeito das relações bilaterais”. Autoridades israelenses se exasperaram e, na visita que fez a Washington, dias depois, Netanyahu foi obrigado a atuar como bombeiro, desautorizando um colaborador que teria dito que o governo Obama “é o maior desastre para Israel” e reiterando que “as relações entre os Estados Unidos e Israel são relações entre aliados e amigos, baseadas na tradição de há muitos anos”. O fato é que elas estão estremecidas porque a atual linha de confronto das autoridades israelenses ameaça a política externa de Obama para o chamado Grande Oriente Médio, que inclui o Irã, o Iraque, o Paquistão e o Afeganistão, passando pela costura de um acordo entre Israel e os palestinos. Não é a primeira vez que americanos e israelenses se estranham por causa de atitudes adotadas pelo Estado judeu em relação aos palestinos ou a países árabes vizinhos. Em 1981, quando o ditador sírio Hafez al-Assad declarou que não faria a paz com Israel “nem mesmo em cem anos”, o premiê israelense Menachem Begin reagiu anexando as colinas de Golã, ocupadas militarmente por Israel na Guerra dos Seis Dias (1967). A decisão israelense irritou o então presidente Ronald Reagan, um notório entusiasta de Israel. Em resposta, Reagan suspendeu um acordo de cooperação estratégica bilateral que havia sido assinado dias antes. No dia seguinte, Begin chamou o embaixador americano em Tel Aviv e passou-lhe uma descompostura. Aquela foi, talvez, a mais dura reprimenda de Israel às tentativas de Washington de manter seu parceiro na linha com “corretivos”. Mas Tio Sam engoliu a seco, pois Israel era uma peça estratégica fundamental no tabuleiro do Oriente Médio. Não foi sempre assim. Na hora da fundação do Estado de Israel, em 1948, fruto da partilha da Palestina elaborada pela ONU, o governo americano estava dividido sobre a questão. Clark Clifford, assessor do presidente Harry Truman, defendia o imediato reconhecimento de Israel, enquanto o secretário de Estado, George Marshall, se opunha tenazmente a isso, por temer uma reação adversa dos países árabes. Na última hora, o presidente optou por reconhecer Israel mas, depois que estourou a guerra da independência, impôs um embargo sobre a venda de armas a qualquer país no Oriente Médio – o que obrigou Israel a recorrer à Tchecoslováquia para se defender do ataque dos países árabes que tentaram impedir pela força a criação do Estado judeu. No início, Washington oscilou entre Israel e os árabes. Mas, com o aumento da influência soviética no mundo árabe, o Estado judeu converteu-se em aliado crucial dos Estados Unidos © Pete Souza Cláudio Camargo Especial para Mundo Apesar dos apelos do presidente Barack Obama pela interrupção da construção de novos assentamentos israelenses na Palestina, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu mostra-se intransigente e cria tensão entre os dois governos As tensões irromperam de novo em 1956, quando britânicos, franceses e israelenses ocuparam o Canal de Suez nacionalizado pelo Egito. Então, o governo de Dwight Eisenhower forçou seus aliados a uma retirada incondicional. Na época, Washington jogava todas as cartas na região, com preferência pelos árabes, e o grande aliado de Israel era a França. Com a aliança, os franceses puniam o Egito liderado por Gamal Abdel Nasser, que dava sustentação aos guerrilheiros anticolonialistas da Frente de Libertação Nacional na Argélia. A nova percepção americana sobre o papel estratégico de Israel articulou-se entre o final da década de 1950 e o início da década de 1960, quando os Estados Unidos detectaram o crescimento da influência soviética no mundo árabe. Mas a postura de Washington em relação ao Estado judeu só mudou qualitativamente depois da Guerra dos Seis Dias, na qual Israel, em ação fulminante, humilhou militarmente seus vizinhos árabes e ocupou Gaza, Cisjordânia, Golã e o Sinai – com armas francesas, é preciso lembrar. Os israelenses atacaram unilateralmente o Egito, a Jordânia e a Síria para romper o bloqueio egípcio ao Golfo de Aqaba, algo que Estados Unidos, França e Grã-Bretanha não conseguiram fazer pela diplomacia. “Impressionados com o aparato das forças de dominação de Israel, os Estados Unidos resolveram incorporá-lo como um novo recurso estratégico”, diz o historiador israelense Norman Finkelstein. “A assistência militar e econômica começou a crescer assim que Israel transformou-se em representante do poder os Estados Unidos no Oriente Médio”, completa. A partir daí, a aliança estratégica ganhou consistência. Em 1970, por exemplo, o governo de Richard Nixon solicitou que os israelenses ajudassem o rei Hussein, da Jordânia, a enfrentar os guerrilheiros da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que constituíam um poder paralelo naquele país. Paradoxalmente, o novo papel de Tel Aviv reduziu a margem de manobra israelense. Em 1973, durante a Guerra do Yom Kippur, os americanos garantiram o fornecimento de munição e suprimentos para o Exército de Israel, que sofrera enormes perdas durante a ofensiva egípcia. Em 1991, durante a Guerra do Golfo, o governo de George H. Bush (o pai) pressionou para que Israel não reagisse aos ataques de mísseis Scud do Iraque, porque Washington precisava manter a coalizão anti-iraquiana, que incluía vários países árabes. Os americanos instalaram baterias de antimísseis em Israel e enviaram equipes militares para operá-las. Era uma mudança simbólica importante: pela primeira vez, a orgulhosa defesa de Israel passou a depender de soldados estrangeiros. Apesar das discordâncias pontuais entre os Estados Unidos e Israel depois da ascensão de Barack Obama, os dois parceiros tendem a se acomodar, como já aconteceu várias vezes no passado. Tio Sam sabe que não tem aliado mais confiável no Oriente Médio e Israel precisa do apoio americano para a defesa de seus interesses. Cláudio Camargo é jornalista e sociólogo 2010 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 8 ISRAEL/PALESTINA OCUPAÇÃO ENVENENA A VIDA POLÍTICA DE ISRAEL Bernardo Sorj Especial para Mundo O controle sobre os territórios palestinos e a implantação de assentamentos corroem as instituições israelenses e degradam os valores democráticos sobre os quais se ergueu o país omo consequência da derrota do Império Otomano, na Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações entregou à Grã-Bretanha o mandato para administrar uma região que incluía o atual Estado de Israel e os territórios palestinos. Em novembro de 1947, as Nações Unidas decidiram a partição deste território em dois Estados, um judeu e outro árabe. A decisão foi rechaçada pelos países árabes e pela população árabe-palestina, dando início a uma guerra que culminou, em 1949, com a vitória de Israel e uma nova configuração geopolítica. Israel consolidou um território maior que o decidido pelas Nações Unidas e parte da população árabe foi deslocada para fora de suas fronteiras. A Cisjordânia, incluindo a parte antiga de Jerusalém e a porção leste da cidade, majoritariamente árabes, foi ocupada pela Jordânia. A Faixa de Gaza foi ocupada pelo Egito. Na Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967, o exército de Israel derrotou uma coalizão formada por Egito, Jordânia e Síria, ocupando a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, além das montanhas do Golã, em território sírio, e a Península do Sinai, no Egito. O Sinai retornou à soberania egípcia em 1979, como produto das negociações de paz promovidas pelos Estados Unidos. A ocupação se deu num contexto internacional polarizado pela Guerra Fria, um pano de fundo sobre o qual a maioria dos dirigentes árabes e palestinos pregavam a destruição do Estado de Israel. Naquele contexto, que parecia se prolongar eternamente, sucessivos governos de Israel avançaram uma política de colonização dos territórios ocupados, sob as justificativas de que a estratégia aumentaria o poder de barganha em futuras negociações ou de que os territórios palestinos configurariam, por razões bíblicas, parte inseparável do Estado de Israel. Nos territórios sob ocupação, Israel implantou assentamentos judaicos que abrigam, atualmente, uma população estimada em 300 mil pessoas. Em 2007, os assentamentos na Faixa de Gaza foram desocupados. Mais de quatro décadas depois da Guerra dos Seis Dias, evidenciam-se as múltiplas consequências da ocupação sobre a sociedade e as instituições de Israel. Economicamente, a a estratégia não implicou nenhum ganho relevante. Pelo contrário, os custos militares da manutenção da ocupação, a criação de infraestrutura que liga os assentamentos com o território de Israel e, sobretudo, a construção de casas em assentamentos consumiram dezenas de bilhões de dólares. Politicamente, a opinião pública israelense dividiu-se entre os que se opõem à ocupação e aqueles que, movidos por posições nacionalistas ou religiosas, consideram que o território conquistado deve ser integrado ao do Estado de Israel. Parte considerável da população israelense flutua entre os dois polos – ou seja, entre os temores de que um Estado Palestino coloque problemas de © Paolo Cuttitta/Flickr C Israel mantém e amplia a construção do “Muro da Vergonha”, condenado pela ONU e por cortes internacionais segurança e de que a integração de uma população de milhões de árabes transforme os judeus em minoria (veja a matéria na pág. 7). Militarmente, a ocupação descaracterizou o objetivo das forças armadas de Israel de defesa do território nacional, desviando parte de seus contingentes para tarefas de policiamento e confronto com a população civil palestina. Muitos oficiais e recrutas se recusam a cumprir tais tarefas, que enfraquecem a motivação dos novos conscritos. Institucionalmente, a ocupação fragilizou a democracia israelense. A população dos assentamentos, extremamente ativista e extremista, passou a usufruir de um poder desproporcional, inclusive se negando a acatar as decisões do governo e, muitas vezes, agindo de forma independente contra a população palestina. O poder discricionário das forças armadas nos territórios ocupados, cujos habitantes não são considerados cidadãos de Israel (com exceção dos moradores de Jerusalém), provoca violações constantes de direitos civis e políticos da população palestina, limitando e desfigurando o papel do poder judiciário. Ideologicamente, a ocupação fortaleceu as tendências religiosas nacionalistas-fundamentalistas, cujos integrantes constituem o principal contingente da população dos assentamentos. Embora o Estado de Israel tenha sido produto de um movimento político secular, o sionismo, e a grande maioria da população judia de Israel não se identifique com o judaísmo ortodoxo, a procura de justificativas para a ocupação fortaleceu uma narrativa nacionalista de inspiração religiosa. Enfatizando os laços entre os territórios ocupados e lugares bíblicos, que justificariam o direito da presença judia, a ocupação passou a contaminar o espaço público com argumentos religiosos estranhos aos princípios da democracia. A ocupação afetou o processo de integração dos árabes-israelenses, que constituem 20% da população de Israel. Os árabes-israelenses, que têm cidadania de Israel, passaram a viver dilacerados entre sua crescente integração na sociedade israelense e sua simpatia com as reivindicações nacionais palestinas. No plano geopolítico, a ocupação isolou Israel da opinião pública dos países democráticos que, embora continue a apoiar a existência do Estado de Israel, rejeita a ocupação e favorece a criação de um Estado Palestino nos territórios ocupados em 1967. Nas últimas décadas, a situação do Oriente Médio e a geopolítica mundial mudaram profundamente. A ocupação e os assentamentos revelaram-se erros históricos insustentáveis. O fim da ocupação e a criação de um Estado Palestino, que viva em paz e segurança com Israel, permitirá aos palestinos assumirem a responsabilidade por seu futuro. Também permitirá aos israelenses superar uma situação que distorce os valores morais professados por uma sociedade democrática. Bernardo Sorj, professor titular de Sociologia da UFRJ e diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, acaba de lançar o livro Judaísmo para todos (Civilização Brasileira) MAIO 2010 9 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O RÚSSIA “O ATENTADOS REFORÇAM A COOPERAÇÃO ENTRE PUTIN E OBAMA presidente quer convencer os líderes regionais a assumir uma nova atitude para com a Rússia, no sentido de que os antigos temores de russos conspirando estão fora de moda”, afirmou um “alto funcionário da Casa Branca”, referindo-se a Barack Obama, ao The New York Times. Os “líderes regionais” são os presidentes e primeiros-ministros dos onze países ex-comunistas que hoje fazem parte da OTAN, a aliança militar liderada pelos Estados Unidos. A declaração foi feita às vésperas de uma visita de Obama a Praga, no início de abril, onde ele assinou, com o presidente russo Dmitri Medevedv, um novo acordo Start, de redução dos arsenais nucleares das duas potências. O porta-voz anônimo causou espanto, até indignação, entre os “líderes regionais”, dada a recentíssima história de opressão nacional exercida por Moscou sobre os países da Europa Oriental, nos tempos do “império soviético”, dissolvido em 1992. A “mão pesada” de Vladimir Putin, ex-presidente e atual primeiro-ministro russo, não ajuda muito. Putin está tentando passar a imagem de estadista preocupado com a normalização da relação com os seus vizinhos europeus. Ele próprio tomou a iniciativa, sem precedentes, de convidar o presidente polonês Lech Kaczynski e o primeiro-ministro Donald Tusk a uma cerimônia em homenagem a cerca de 22 mil soldados poloneses massacrados pelo Exército Vermelho, em 1940, em Katyn. Putin responsabilizou diretamente o ex-ditador soviético Josef Stalin pelo massacre. Em 1990, o ex-dirigente soviético Mikhail Gorbatchev reconheceu a responsabilidade da União Soviética pelo massacre, mas foi a primeira vez que as autoridades polonesas receberam um convite oficial para homenagear os mortos. A importância simbólica do gesto é óbvia, dado o papel historicamente estratégico que a Polônia ocupou na história das relações da Rússia com a Europa – e, também, dado o passado do próprio Putin, oficial da KGB, a polícia política soviética, até 1991. A cerimônia acabou ofuscada pelo acidente aéreo que matou Kaczynski e diversas autoridades que o acompanhavam, justamente na viagem a Katyn. Mas Putin e Tusk, enlutados, depositaram flores no local do massacre. Explosões de trens de metrô, que refletem a continuidade da crise separatista na Chechênia, dão impulso à aproximação estratégica da Rússia com os Estados Unidos Grupos religiosos da região do Cáucaso R Ú S S I A Chechênia Ingúchia KabardinoKaratchai- Balkária Tcherkess Ossétia Daguestão do Norte Abkházia Ossétia do Sul MAR NEGRO MAR CÁSPIO GEÓRGIA AZERBAIJÃO Adjária ARMÊNIA 42ºN 2 TURQUIA 1 IRÃ 0 20 km 45ºL Muçulmanos sunitas 1 Naktchevan (Região autônoma do Azerbaijão) Muçulmanos xiitas 2 Nagorno-Karabakh (Região do Azerbaijão de maioria armênia) Cristãos ortodoxos FONTE: Conflitos do Mundo; Olic, Nelson B. e Canepa, Beatriz - Moderna - S. Paulo - 2009, pág. 102 Os gestos de boa vontade, as declarações amistosas e a política de boa vizinhança entre Moscou, Washington e vizinhos europeus contrastam com a política extre- mamente dura e repressiva de Putin para com os movimentos separatistas da Chechênia e outras repúblicas russas do norte do Cáucaso, como Ingúchia e Tolstoi, Khadji Murat e a Chechênia O russo Lev Tolstoi (1828-1910), um dos mais importantes escritores da literatura mundial, publicou livros célebres como Guerra e paz (1865-1969) e Ana Karenina (18751977), que retratam momentos marcantes da história do Império Russo no século XIX. É dele, também, Khadji Murat, publicado postumamente, em 1912. Neste livro, bem menos conhecido, Tolstoi lança um olhar sobre a região do Cáucaso, mais especificamente para a Chechênia, durante a conquista da região pelo Império Russo, à qual os chechenos opuseram encarniçada resistência. Khadji Murat era um rebelde pertencente a uma das inúmeras etnias da região que, por razões de vingança pessoal, alia-se aos seus antigos inimigos russos. Tolstoi foi o pioneiro a tratar dos dramas da região e, de certa forma, vaticinou que eles se repetiriam no futuro. De fato, entre 1943 e 1944, acusados por Stalin de cooperação com o invasor nazista, os chechenos tiveram toda a sua comunidade deportada para as “zonas de povoamento especial”, na Ásia Central. Em 1956, Nikita Krushev, o sucessor de Stalin, os reabilitou e permitiu o retorno às terras de origem. As duas guerras recentes da Chechênia, em 1994-1996 e 1999-2001, deram novas dimensões às tragédias caucasianas. Os atentados praticados pelas “viúvas negras” representam mais um capítulo de uma história de sangue e vingança que parece não ter fim. Daguestão (veja o mapa). Putin foi o responsável, em setembro de 2004, por uma operação contra separatistas chechenos que tomaram uma escola em Beslan, na Ossétia do Norte. O episódio resultou na morte de 344 civis, incluindo 186 crianças. Seu governo também foi caracterizado por censura à imprensa, perseguição de opositores e uma dura oposição às tentativas do ex-presidente George W. Bush de armar um “cinturão” em torno da Rússia, mediante a instalação de bases na Polônia, Ucrânia e Geórgia. A Chechênia é uma antiga pedra no sapato do expansionismo imperial russo no Cáucaso (veja o box). Atualmente, a república teoricamente autônoma é governada por Ramzan Kadyrov, um ex-rebelde que se aliou a Moscou em troca de ajuda financeira e muita repressão para manter a “ordem” interna. A brutalidade da polícia tem como contrapartida a prática aberta da corrupção. Os dois atentados a bomba em estações de metrô de Moscou, em 29 de março, que mataram 39 pessoas, foram realizados pelas “viúvas negras”, mulheres de guerrilheiros separatistas islâmicos mortos por tropas russas. Uma delas, Dzhennet Abdurakhmanova, viúva de Umalat Magomedov, tinha 17 anos; a outra, não identificada, tinha 20 anos. Os ataques foram reivindicados por Doku Umarov, líder separatista checheno. Putin declarou que iria “esmagar” o movimento separatista, e obteve imediato apoio da Casa Branca na “guerra ao terrorismo”. Com isso, sedimenta-se uma aliança entre Moscou e Washington. Aparentemente, há um acordo entre ambas as potências sobre a necessidade de “preservar a ordem” na Ásia Central, um imenso barril de pólvora agitado pela guerra do Afeganistão, que já ultrapassou suas fronteiras e envolve regiões inteiras do Paquistão, país dotado de arsenal nuclear. Dada a importância estratégica da região, onde estão situadas vastas reservas de petróleo e gás, a “estabilização” interessa a todos. Essa mesma lógica explica o relativo “endurecimento” de Moscou em relação ao Irã, alvo de pressão constante dos Estados Unidos. Em troca da ajuda de Putin na contenção do Irã, Washington estende o tapete vermelho para Moscou, que busca aproximação e negócios com os países europeus. 2010 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 10 Renata Pires Especial para Mundo inha primeira visita à China começou com uma passagem rápida por Pequim, cidade fascinante que acomoda o que há de mais belo da nova e velha China. É difícil não se impressionar com a beleza e magnitude dos pavilhões e edifícios de madeira em estilo tradicional da Cidade Proibida, o complexo de palácios do século XV que foi sede do Império do Centro por quase 500 anos, período durante o qual era fechada ao público. São cerca de nove mil quartos, nos quais outrora viveram os imperadores e suas milhares de concubinas. O portão principal da Cidade Proibida é encabeçado por um pôster gigantesco de Mao Tsé-Tung, pai da Revolução Comunista na China. Do outro lado da rua está Tiananmen Square, a Praça da Paz Celestial que, apesar de parecer uma praça como outra qualquer, ainda evoca inevitavelmente a memória do massacre de estudantes pelo governo durante os protestos pró-democracia em 1989. Quando estive na praça, a área encontrava-se fechada, por conta de uma conferência de representantes dos governos regionais da China – uma prova de que as tensões desse passado recente ainda estão presentes. Guilin, no sul do país, era meu destino seguinte. A caminho do aeroporto, o guia avisou: “No sul da China, come-se tudo o que voa, menos avião; tudo o que tem quatro pernas, menos mesa, e tudo o que tem duas pernas, menos os pais.” Suspirei, preocupada. A gastronomia do sul não desapontou. As especialidades locais incluem cachorro, tofú fedido, olho de peixe, estômago de boi, caramujos de água doce e cérebro de macaco, entre outras iguarias. No mercado da cidade, vi também cobras vivas e corações de boi desidratados à venda. Na manhã seguinte, percorri de barco o cenário idílico do rio Li, cujas águas serpenteiam em meio a altas montanhas de pedra cobertas por vegetação, até a cidade de Yangshuo. No caminho, registrei a prática tradicional dos pescadores que, em barcos simples de bambu, utilizam cormorões, grandes aves treinadas, para caçar peixes. Detalhe: eles colocam pedaços de arame na garganta das aves para impedir que elas engulam os peixes maiores. As grandes metrópoles chinesas e suas áreas de influência R CAZAQUISTÃO Ú S S I RÚSSIA M © Omar A./Flickr UMA CONSTELAÇÃO DE CHINAS A MONGÓLIA XINJIANGUIGUR AFEG. Pequim PAQUISTÃO ng Rio TIBETE C H I se gT Ian Rio Rio Sinkiang ÍNDIA BANGLADESH GOLFO DE MIANMAR BENGALA Área de influência direta Área de influência regional Nankin Wuhan A Xangai Chunking NEPAL PEQUIM JAPÃO COREIA DO SUL Ho a Hu N COREIA DO NORTE OCEANO PACÍFICO Cantão Macau VIETNÃ XANGAI HONG KONG/CANTÃO Área de influência direta Área de influência regional A paisagem serena da região converteu-se em fonte de inspiração para uma grande comunidade de artistas que se formou quando pintores, poetas e escritores foram exilados para lá, nos tempos terríveis da Grande Revolução Cultural (1966-1976). No entanto, a chegada em Yangshuo revelou de imediato que o tempo não para: o desembarque é seguido por uma passagem obrigatória pela “Hello Street”, onde ambulantes empolgados anunciam todo tipo de bugigangas aos gritos de “Hello! Hello!”. À noite, assisti ao show mais fantástico da minha vida. Criado pelo famoso diretor de cinema Zhang Yimou, o majestoso espetáculo tem como palco o próprio rio Li e as montanhas de Yangshuo, refletindo as proporções inimagináveis de produção só atingíveis na China. Cente- TAIWAN Hong Kong Área de influência direta Área de influência regional nas de pescadores locais e atrizes encenam práticas tradicionais das minorias étnicas da região, enquanto um complexo jogo de luzes dirige a atenção dos espectadores para o lugar onde acontece cada encenação. Xangai foi um verdadeiro choque. Avenidas largas, quarteirões enormes, engarrafamentos intermináveis, prédios monstruosos e viadutos colossais dominam a paisagem da metrópole. Lá, é possível realmente sentir o que significa estar num país com população superior a 1,3 bilhão. O desenvolvimento urbano incomparavelmente rápido das últimas décadas parece, à primeira vista, uma prova irrefutável da eficiência das tiranias. Entretanto, ele tem seu preço: aqui, nenhuma propriedade privada está a salvo de desapropriações sumárias, com compensações bem abaixo do valor de mercado ou até inexistentes. Além disso, os milhões de migrantes das áreas rurais que modernizam Xangai e outras grandes cidades são relegados ao subemprego e vivem em condições deploráveis, devido à lei que os impede de acessar serviços básicos fora do seu local de nascimento. Situada no delta do rio Yang-Tsé (Azul), Xangai conecta a economia mundial à China interior (veja o mapa). A cidade funciona como sede de corporações globais instaladas na China. Ao mesmo tempo, é o paraíso dos que buscam itens de marca bem abaixo do preço – e não se preocupam com sua procedência. No famoso “Fake Market” acha-se cópias de tudo, desde roupas e acessórios até artigos eletrônicos de última geração. Um jantar em um dos restaurantes no topo de edifícios com vistas de 360o da cidade é a maneira ideal de se despedir da metrópole mais cosmopolita da China. De Xangai parti para Taipei, Taiwan. Uma visita a essa capital é um convite a rever a história recente da China. Hoje considerada algo como uma “filha rebelde” da China continental, Taiwan se tornou sede do governo central do Partido Nacionalista Chinês (Kuomitang), cujas lideranças partiram para o exílio na hora do triunfo de Mao Tsé-Tung, em 1949. Seu líder autoritário, Chiang Kai-Shek, permanece imortalizado em Taipei, onde um mausoléu de mármore de proporções faraônicas foi erguido em sua homenagem. Taipei é diferente em quase tudo das cidades da China continental. Cidade de ruas estreitas e cheias de vida, inundada por cartazes, letreiros coloridos de neon e aromas de barraquinhas de comida de rua, Taipei permanece acesa noite adentro. Ao contrário de Xangai ou Pequim, onde os restaurantes fecham cedo, na capital da “outra China” é possível achar desde tofú fedido até roupas da última moda em mercados noturnos abertos até alta madrugada – provas do dinamismo do seu mercado interno e do elevado poder de consumo da população do Tigre Asiático. Renata Pires é mestre em desenvolvimento internacional pela London School of Economics e trabalha para a Organização Internacional para Imigração, em Londres MAIO 2010 11 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O Stock.xchng Nelson Bacic Olic Da Redação de Mundo Série sobre os oceanos e mares EUA, ÍNDIA E CHINA EXERCEM INFLUÊNCIA NA ÁREA DO ÍNDICO C H I N A TURQUIA OCEANO PACÍFICO AFEG. IRÃ PAQUISTÃO G. PÉ RS ARÁBIA ICO EGITO BANGL. MIANMAR ÍNDIA SAUDITA TAIL. VIETNÃ OMÃ GOLFO DE BENGALA IEMEN SUDÃO QUÊNIA r ado Equ MALÁSIA SING. I N D O N É S I A MALDIVAS SO M ETIÓPIA ÁL IA SRI LANKA OCEANO IS. SEYCHELES E IQU MB IS. COMORES MA DAG ASC AR TANZÂNIA ÇA om extensão bem inferior às dos oceanos Pacífico e Atlântico, o Índico banha cerca de 40 países que se localizam entre a costa leste da África e o litoral ocidental da Austrália. Ao sul, seu limite é o paralelo 60º S, desde o cabo das Agulhas (África do Sul), até a ilha da Tasmânia (Austrália). Em virtude de seus recortes litorâneos, existem no Índico estreitos de grande importância estratégica como os de Bab-el-Mandeb, Ormuz e Málaca, além de inúmeros arquipélagos e penínsulas (veja o mapa). Algumas das primeiras civilizações do mundo, como as da Mesopotâmia, do Antigo Egito e do Subcontinente Indiano, que surgiram ao longo de vales fluviais como os do Tigre, Eufrates, Nilo e Indo, desenvolveram-se próximas do litoral do Índico. Nas primeiras décadas do século XV, o almirante Zheng He liderou frotas de navios do então Império da China em várias viagens pelo Oceano Ocidental, como os chineses denominavam o Índico. Ao final daquele século, Vasco da Gama contornou o Cabo da Boa Esperança e os europeus estenderam a sua influência para a região. Num primeiro momento, Portugal esteve à frente, construindo fortificações nos estreitos e portos mais importantes. Mas, rapidamente, o país foi perdendo espaço para Holanda, França e Grã-Bretanha. No século XIX, a Grã-Bretanha se transformou na potência dominante da região, especialmente após a abertura do Canal de Suez, inaugurado em 1869. Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos substituíram a Grã-Bretanha na esfera do Índico, quase ao mesmo tempo em que a União Soviética desenvolveu a estratégia de ampliar sua influência geopolítica junto a países da região. O choque de interesses levou as duas superpotências a se envolverem, direta e indiretamente, em todos os conflitos que ocorreram na região que bordeja o Índico durante a Guerra Fria, como no Sudeste MO C A BACIA DO ÍNDICO Base de Diego Garcia (EUA) AUSTRÁLIA ÍNDICO IS. MAURÍCIO TASMÂNIA ÁFRICA ta bo DO SUL Ro Ca o d Projecão Bertin Países banhados pelo Índico Principais Estreitos (1- Bab-el-Mandeb / 2 - Ormuz / 3 - Málaca) Região afetada por atos de pirataria Asiático (Indochina), Oriente Médio, Afeganistão e África Austral. Atualmente, três países – Estados Unidos, Índia e China – possuem grandes interesses geopolíticos na região. Como única potência verdadeiramente global, os Estados Unidos estão ali presentes através de bases militares e facilidades oferecidas por países aliados. A presença da hiperpotência ampliou-se a partir de 2001, em decorrência das ações militares no Afeganistão. A posição estratégica crucial de Washington é a base de Diego Garcia, situada a meio caminho entre a África e a Indonésia. Com apenas 44 km2 de extensão, o atol onde está situada tornou-se território britânico no século XIX. Na década de 1960, o governo britânico firmou um acordo com os Estados Unidos transformando a ilha em base militar. Para que ela fosse construída, cerca de 2 mil habitantes foram transferidos compulsoriamente para as ilhas Maurício. Com mais de 7 mil quilômetros de linha costeira, a Índia é o único dos três países que possui litoral no Índico. Sua vasta e rica Zona Econômica Exclusiva exige constante vigilância, especialmente porque o país vê com preocupação o aumento da presença chinesa na área. A Índia julga fundamental tornar seguras suas rotas marítimas e, por isso, busca a cooperação com os governos da ilhas Seychelles e Maurício, a fim de dispor de facilidades de escala ou de bases permanentes. O Índico é essencial para o comércio da China. Por ele, transitam cerca de um quarto de suas exportações e 15% das importações. Aproximadamente 75% das importações chinesas de hidrocarbonetos, essenciais para sua segurança energética, circulam por suas rotas. A estratégia de Pequim é de dispor de bases navais e facilidades nesse espaço marítimo. A política da China para o oceano mira três objetivos maiores: fazer frente à multiplicação de atos de pirataria, garantir a segurança de seus navios e, no caso de um conflito, defender seus interesses na área. O estreito de Málaca é a passagem mais vulnerável. Este estreito, juntamente com o de Cingapura, constitui uma das principais artérias comerciais do mundo, já que por ali transita a maior parte dos bens intercambiados entre a Europa e Ásia. Nessa região, entre a Malásia, Indonésia e Cingapura, agem inúmeros grupos criminosos assaltando os navios. Nos últimos anos houve também crescimento de atos de pirataria junto às costas da Somália. A multiplicação de atentados perpetrados por extremistas islâmicos tem reforçado a ideia de ataques suicidas contra petroleiros. Outra preocupação da China é a forte presença dos Estados Unidos na região de Málaca. Na hipótese de uma crise dramática entre os dois países, os americanos não teriam grandes dificuldades em paralisar o comércio chinês, estrangulando a passagem no estreito. O sentimento de vulnerabilidade é ainda mais acentuado pela circunstância de que a China não possui nenhuma base naval verdadeiramente operacional na região capaz de sustentar missões de segurança prolongadas. No momento, a estratégia naval de Pequim se apoia principalmente em Mianmar, Bangladesh, Maldivas e Paquistão. O regime ditatorial de Mianmar ofereceu a Pequim um acesso marítimo ao golfo de Bengala. Em Bangladesh, os chineses obtiveram facilidades navais no porto de Chittagong. Nas ilhas Maldivas, a China poderá construir uma base naval destinada a seus submarinos. Quanto ao Paquistão, o interesse é o porto de Gwadar, cuja construção foi possível graças ao apoio técnico e financeiro de Pequim. O uso do porto permitiria a ligação terrestre entre o Índico e a região ocidental chinesa do Xinjiang através do Paquistão, evitando o caminho dos estreitos do Sudeste Asiático. 2010 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 12