Raio-X da História - Genealogia Genetica

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Raio-X da História de Um Estado Brasileiro –
Assinaturas Genéticas dos Fundadores de Mato Grosso do Sul
Uma proposta para a aplicação da metodologia da Genealogia Genética à
pesquisa histórica
Por Aaron Salles Torres*
*Aaron Salles Torres é diplomado em Cinema, Vídeo e
Novas Mídias pela School of the Art Institute of Chicago e
possui um MBA com ênfase em Marketing pela Loyola
University Chicago. É escritor, cineasta, e um dos pioneiros
estudiosos da Genealogia Genética no Brasil. Administra os
seguintes projetos na Family Tree DNA: I2b1/M223, I1
Ibérico, R1b1a2 Ibérico e I1 recLOH – YCAII a,b = 21,21,
além de vários projetos genealógicos, incluindo os das
famílias Bemis, Frame, Braga, Costa, Fernandes, Ferreira,
Freitas, Gomes, Gonzalez, Martinez, Mendes, Oliveira, Pires,
Ribeiro, Rocha, Rodrigues, Salles, Silveira, Souza e Torres.
Introdução
O estado de Mato Grosso do Sul está situado no Centro-Oeste do Brasil e
possui divisas com Bolívia e Paraguai e com os demais estados de Goiás, Minas
Gerais, Mato Grosso, Paraná e São Paulo. Efetivamente povoado no ano de 1829,
representou uma das últimas fronteiras na ocupação do território do brasileiro, com
um padrão de colonização diferente daquele da maioria das atuais unidades
federativas do país.
Ao passo em que a região correspondente ao atual Mato Grosso começou a ser
colonizada durante a corrida do ouro do século XVIII, Mato Grosso do Sul por vários
séculos se preservou em seu estado original, apesar de repetidas investidas de
bandeirantes que buscavam riquezas naturais e escravos indígenas. Devido ao difícil
acesso por meio fluvial e à topografia acidentada em sua região leste – às margens do
rio Paraná-, somente a expedição de 1829, patrocinada pelo Barão de Antonina,
conseguiu se estabelecer em terras sul-matogrossenses. Fundou-se, então, a atual
cidade de Paranaíba.
Em contraste com a norma de povoação de outras regiões brasileiras, em que
homens de origens europeias – mormente portugueses – raramente traziam consigo
mulheres e crianças, unindo-se em vez disso a ameríndias locais e, mais tarde, a
escravas africanas, o estado de Mato Grosso do Sul foi ocupado por um grupo de
famílias altamente entrelaçadas – homens, mulheres e crianças – que chegaram em
uma só leva com seus agregados, pertences e animais. Esses povoadores foram
responsáveis pelo estabelecimento de instituições, estruturas econômicas e identidade
de tal forma distintas das áreas já ocupadas do norte, em Mato Grosso, que
culminaram na divisão dos dois estados na década de 1970. Pode-se assim dizer que
os membros da frente pioneira de 1829 foram os fundadores de facto do estado de
Mato Grosso do Sul.
Dessa frente colonizadora faziam parte as famílias Lopes, Barbosa, Rodrigues
da Costa, Correia Neves e Garcia Leal, sendo esta última a mais numerosa.
Descendentes de bandeirantes paulistas e de portugueses imigrados em meados dos
anos 1700, essas famílias criaram um núcleo fechado e endogâmico, porém de rápido
crescimento, que após a guerra do Paraguai se expandiria aos diversos cantos do atual
estado de Mato Grosso do Sul, abrindo propriedades rurais e fundando cidades. Por
fim, sem a comunicação estrategicamente estabelecida pelos municípios do leste
(Paranaíba, Três Lagoas) com o triângulo mineiro e o estado de São Paulo,
assegurando o contínuo abastecimento e comércio de víveres e suprimentos, a rápida
expansão econômica de Mato Grosso do Sul não teria se tornado realidade a partir a
década de 1890.
Um estudo sistemático e abrangente da frente dos Garcia Leal e famílias irmãs
foi realizado no livro “Desbravadores de Sertões: Saga e Genealogia dos Garcia
Leal1”, que contou também com o levantamento de milhares de descendentes do
núcleo inicial e foi publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do
Sul em 2009. Com o advento da Genealogia Genética, entretanto, tornou-se possível
1
BARBOSA GARCIA, Elio. Desbravadores de Sertões: Saga e Genealogia dos Garcia Leal. Campo Grande:
Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2009. ISBN 85-99142-05-4.
aliar o conhecimento genealógico-histórico às novas possibilidades oferecidas pela
genética para coletar e analisar as assinaturas do DNA de alguns dos pioneiros da
frente de 1829. Este artigo discute os processos utilizados na identificação e testagem
de linhas diretas de personagens históricas, assim como os meios para a análise dos
resultados obtidos. Por fim, propõe a aplicação da metodologia da Genealogia
Genética à pesquisa da História, uma vez que a vasta quantidade de informações que
esse novo campo de pesquisa revela possui um escopo muito mais amplo que o
interesse de famílias específicas2.
Sobre a Genealogia Genética
Na década de 1950, a difração de raios X em uma molécula de DNA tornou
possível o descobrimento de sua estrutura: foi a foto 51. Desde então, muito progresso
foi feito. Em países avançados da América do Norte e Europa, a aplicação da genética
à genealogia tradicional há tempos tornou-se uma realidade. Assim nasceu a
Genealogia Genética, que para além de ser uma simples confluência de duas áreas
distintas, possui metodologia e conceitos próprios a esta altura já tão bem
estabelecidos e comprovados que passam a servir de referência a estudos científicos
desenvolvidos por geneticistas e universidades3. A Genealogia Genética torna fiáveis,
assim, as informações provindas de uma área de pesquisa tão frequentemente
assediada por falsificações que visam o engrandecimento pessoal de pesquisadores,
assim como de suas famílias. Cada vez mais, com a propagação de seus métodos e a
2
Dados como estes possuem importância não somente por seu aspecto histórico, mas por sua aplicação a estudos
demográficos, como neste caso de rápido povoamento de vastas extensões a partir de pequenos núcleos iniciais.
3
Vide as inúmeras referências em textos científicos ao trabalho desenvolvido pela ISOGG – International Society
of Genetic Geneaogy-, que recebe contribuições de genealogistas genéticos de todo o mundo. Por exemplo: Kohl,
M., R. Lessig, J. Edelmann, J. Dressler, and K. Thiele. "Distribution of Y-chromosomal SNP-haplogroups between
Males from Ethiopia." Forensic Science International: Genetics Supplement Series, Volume 2, Issue 1, December
2009, Pages 435-436. Web. 1 Dec. 2009. Ou: Sims, Lynn M., and Jack Ballantyne. "A Rare Y Chromosome
Missense Mutation in Exon 25 of Human USP9Y Revealed by Pyrosequencing." Volume 46, Numbers 3-4, 154161, DOI: 10.1007/s10528-007-9139-1. Web. 17 July 2011.
contínua redução dos custos, a prática da Genealogia Genética torna-se
imprescindível aos genealogistas. De fato, através de sua sistemática verificação de
dados obtidos por meio da pesquisa documental e do relacionamento de fatores cuja
conexão seria de outra maneira desconhecida, a Genealogia Genética permite a
elevação da genealogia ao rol das ciências e possibilita a comunicação direta com
outras disciplinas, particularmente a História.
Figura 1 – “foto 51”: esta imagem obtida por Rosalind Franklin e Raymond Gosling
em maio de 1952 por meio da difração de raios X permitiu a compreensão da estrutura do
DNA por James D. Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins.
Genealogia e História enfrentam obstáculos similares, principalmente no que
toca a inexistência de recursos documentais com que embasar pesquisas específicas
ou dar prosseguimento às mesmas. Embora a abordagem da pesquisa e a aplicação
dos conhecimentos gerados sejam mais amplos em História por sua própria natureza,
em se tratando da investigação do contexto familiar, social e político de personagens
históricos há uma grande sobreposição das fontes utilizadas por ambas as disciplinas.
Devido a tais redundâncias, é muito baixa a aplicabilidade dos resultados de
investigações genealógicas em matérias vizinhas. Por outro lado, assim como a
Arqueologia permite a descoberta de fontes primárias que podem ser úteis a ciências
correlatas, a Genealogia Genética viabiliza o preenchimento de lacunas documentais
por meio de métodos próprios, o que a torna altamente relevante a outras disciplinas e
insubstituível em sua função. Para um genealogista contemporâneo, descartar a
utilização da metodologia da Genealogia Genética seria não somente negar a
necessidade da comprovabilidade de trabalhos de pesquisa, como também tentar frear
a natural evolução da genealogia e sua transformação em ciência. O fato é que a
inevitável cientificação da genealogia gera dados tanto comprovados, quanto
facilmente transferíveis que são de interesse de outras áreas de conhecimento.
Metodologia
A Genealogia Genética é sistemática e se baseia tanto na pesquisa documental,
quanto na testagem de DNA. Tentar distinguir entre dois tipos de genealogia, destarte,
é uma atividade vã, uma vez que a única diferença entre a genealogia que se
convenciona chamar de tradicional e a Genealogia Genética é que esta última traz
necessariamente consigo a verificação dos dados obtidos nos registros. Trata-se de
uma mera questão de tempo até que os trabalhos realizados antes do advento da
Genealogia Genética sejam devidamente averiguados4. Assim sendo, na busca
documental a Genealogia Genética em nada diverge da maneira como a pesquisa
genealógica tem sido tradicionalmente realizada, com uma cautelosa procura por
fontes primárias que evidenciem as relações histórico-familiares: certidões de
nascimento, batismo, casamento, óbito, testamentos, inventários, registros de terras,
processos judiciais e religiosos diversos, cartas de alforria e de armas, artigos de
jornal, testemunhos... Uma vez estabelecida a linhagem principal e alguns de seus
4
Somente a comprovação genética pode separar os fatos histórico-genealógicos dos mitos, do folclore e daquilo
que foi propositalmente falsificado. A averiguação das informações é tão complexa e importante quanto sua
garimpagem, e portanto deve receber a mesma atenção.
ramos, inicia-se o processo de verificação tão próprio da Genealogia Genética. Os
passos dessa metodologia são enumerados a seguir de forma simplificada:
(Nota: os conceitos citados abaixo são discutidos em maiores detalhes no
“Guia Prático de Genealogia Genética - Uma breve introdução”, disponível no
seguinte endereço: http://bit.ly/GenealogiaGenetica .)
1- Seleção de um ponto de partida
Um indivíduo não saberá quem são seus irmãos se, primeiro, não souber quem
são seus pais. Da mesma maneira, não saberá quem são seus primos primeiros sem
antes conhecer seu avô, ou seus primos em quarto-grau se não souber quem foi seu
tetravô. Toda atividade necessita de um ponto de partida, e a Genealogia Genética não
seria diferente.
Para se prosseguir com a verificação de uma linhagem será necessário, antes
de tudo, identificar um representante vivo dessa linha direta5. Geralmente, trata-se do
próprio pesquisador para a comprovação de sua ascendência direta (materna ou
paterna), ou de um colateral desse investigador para a averiguação de uma outra linha
ancestral6.
2- Análise das origens remotas
As primeiras informações conclusivas disponíveis ao genealogista genético
serão aquelas que dizem respeito às origens remotas do DNA testado. Em se tratando
5
Da mesma maneira como muitos dos trabalhos genealógicos realizados até este momento ainda não passaram por
um processo de verificação genética e, até que isso ocorra, continuam sendo considerados genuínos, um indivíduo
testado deverá ser considerado o legítimo representante de sua linha direta até que se prove o contrário. A
metodologia utilizada pela Genealogia Genética constitui um processo lento, portanto não se deve se apressar a
uma conclusão antes de todas as informações genéticas necessárias terem sido coletadas.
6
A investigação e comprovação de famílias e linhagens pode se dar por meio de três abordagens, a serem
utilizadas de acordo com as especificidades dos casos – testagem do cromossomo Y, do DNA mitocondrial ou do
DNA autossômico. Por uma questão de concisão, serão tratados como exemplos casos de linha direta – varonia ou
linha feminina –, de forma que somente o cromossomo Y e o DNA mitocondrial serão discutidos neste artigo.
Linhas indiretas requerem muito mais do pesquisador através da testagem do DNA autossômico de inúmeros
descendentes de um certo ancestral. Por isso, é mais prático identificar um descendente vivo desse ancestral por
linha direta, quando o mesmo existe.
da linha paterna, de forma que esses dados sejam tão precisos quanto possível, é
necessário testar todos os SNPs disponíveis a dado haplogrupo, uma vez que cada
subgrupo se originou em lugar e período específicos. Os dados obtidos serão ótimos
indicativos se os resultados dos testes de DNA são condizentes com o que é sugerido
pela genealogia de dada linha.
Assim, por exemplo, se certa linha teria se originado em Portugal na Idade
Média, a determinação de um haplogrupo de origens europeias seria compatível com
essas informações. Resultados que apontem origens inesperadas requerem a testagem
imediata de linhas intersectantes (passo 4, abaixo) para se determinar as causas dessas
divergências.
3- Análise das origens recentes
Uma vez estabelecidas as origens remotas de uma linha, marcadores podem
então ser utilizados para a análise de suas origens mais recentes, pois resultados muito
similares compartilhados com outros indivíduos indicarão ascendência comum em
períodos não tão distantes. Mais uma vez, é necessário averiguar se esses parentescos
corroboram o que é dito pelos registros documentais. A resposta sendo afirmativa,
pode-se fazer desnecessário o passo seguinte caso os indivíduos já testados
confirmem tal descendência pela maneira com que a intersectam. Caso tais
similaridades pareçam suspeitas e/ou indiquem a possibilidade de um evento nãopaterno em algum ponto dessa linhagem, ou caso não se encontre nas bases de dados
membros dessa família já testados geneticamente, deve-se levar a cabo o passo
seguinte.
4- Seleção de linhas intersectantes
De forma a se comprovar definitivamente dada linhagem, faz-se necessária a
testagem de linhas que intersectam em várias alturas a descendência escolhida como
ponto de partida. Assim, um pesquisador que investiga sua varonia haverá de recrutar
e testar primos por parte dessa linha paterna direta – por um exemplo, um filho de um
tio paterno. Por se tratar da investigação de uma linha direta, é importante se certificar
que não tenha havido quebra na varonia - no caso de investigação de linhas femininas,
não pode ter havido interrupção na transmissão do DNA mitocondrial, que é passado
de mãe para filhos.
Recomenda-se ao pesquisador testar linhas que intersectam a linha principal a
cada cinco ou seis gerações, ao menos. Dessa forma, testar-se-ia um descendente por
varonia do tetravô paterno, e então outro descendente paterno direto do decavô, e
assim por diante. Este método permitirá, também, a análise do comportamento de
determinada linha através das gerações, compreendendo-se melhor a velocidade e o
tipo das mutações que se pode esperar.
5- Verificação das linhas de descendência de um ancestral
Através da intersecção de linhas descendentes de um certo ancestral, obtém-se
indícios de que esse progenitor foi historicamente quem, de fato, os registros
documentais afirmam que ele tenha sido. Quanto maior o número de linhas testadas
partindo diretamente de dado ancestral, maior a fiabilidade dos resultados. Esse
processo reitera que somente um indivíduo possa ter angariado as qualidades
genéticas e históricas para ser o ascendente de todos indivíduos testados e ter sido a
mesma pessoa registrada nos documentos. Ilustrações desse processo encontram-se a
seguir:
Figura 2 – exemplo da descendência de um ancestral como teria sido coletada por
pesquisa documental: os quadrados em preto simbolizam indivíduos do sexo masculino que
herdaram a varonia do ancestral comum mais recente (MRCA) desse grupo, no topo do
quadro – cada um deles seria um representante legítimo do cromossomo Y desse ancestral.
Figura 3 – demonstração do método de comprovação a partir da descendência coletada por
busca documental: indivíduos 1, 2, 3, 4 e 5 são descendentes diretos vivos do ancestral comum mais
recente (MRCA) do grupo. Para os fins desta demonstração, consideremos o indivíduo 1 como o
pesquisador que foi o ponto de partida deste processo de comprovação. Além de se testar seu próprio
cromossomo Y, testa-se também o DNA de um primo (indivíduo 2), que intersecta sua linha quatro
gerações acima de si, no ancestral comum entre as linhas rosa e azul: A1, comprovando as linhas de
descendência desse ancestral e obtendo-se indícios que corroboram sua identidade genético-histórica.
Em seguida, testa-se a linha de um outro primo, indivíduo 3, que intersecta a ascendência de A1 três
gerações acima do mesmo, no ancestral comum A2. Através desta prova, verifica-se não somente as
linhas de descendência de A1 e A2, como também a linha de ascendência de A1 até A2, comprovandose indubitavelmente assim a identidade genético-histórica de A1, conforme discutido no passo 6,
abaixo. Por fim, testa-se os indivíduos 4 e 5, cujas linhas representadas pelas cores verde e laranja se
intersectam no ancestral comum B. As linhas verde e rosa de A2 e B intersectam-se, então, sob o
ancestral comum do grupo (MRCA), no topo do gráfico, comprovando-se suas linhas de descendência
ao mesmo tempo em que são providencias provas da identidade genético-histórica desse MRCA.
6- Verificação da identidade genético-histórica de um ancestral
Como foi dito acima, quanto maior a quantidade de linhas testadas partindo de
descendentes diretos (filhos) de um ancestral, maiores os indícios acerca da
identidade genético-histórica desse mesmo progenitor. Em casos de grande dúvida
que, por quaisquer motivos, tornem necessária uma comprovação final da identidade
de tal ancestral, intersecta-se sua linha com outra ao menos uma geração acima de si,
ou seja, em seu pai ou em outros de seus ancestrais – conforme realizado com o
ancestral A1 por meio da intersecção de sua linha com a de ancestral A2 no exemplo
acima. Os resultados possuem alto grau de precisão7.
7- Disponibilização dos resultados em base de dados pública
Uma genealogia que se clama publicamente há de ser comprovada também
publicamente. Os resultados de teste genéticos que verificam dada linha de
descendência devem participar de um projeto público de DNA de família ou de
origens remotas (como um projeto de haplogrupo), agrupados de forma a serem
facilmente encontrados por outros pesquisadores e devidamente citados nos trabalhos
de pesquisa a que se referem. Sem a disponibilização pública de tais resultados, não
seria possível a averiguação do trabalho por outros investigadores, o que fere o
princípio de verificabilidade da Genealogia Genética.
Através de sua sistemática comprovação de dados obtidos por pesquisa
documental, a Genealogia Genética nada mais faz que pôr em prática o que é
indispensável a qualquer disciplina. Porém, baseando-se em conceitos e processos da
7
Caso haja, por exemplo, dúvidas quanto a eventos não-paternos que teriam como causadores parentes próximos
(irmãos, primos), pode-se angariar uma quantidade equivalente de descendentes desses dois indivíduos e comparar
os padrões de mutações em marcadores, assim como realizar buscas por SNPs “privados” nas linhagens que
supostamente partiram de cada um deles. Ao se coletar um razoável número de assinaturas genéticas de um grupo
de familiares, ficam patentes as diferenças entre as linhas de descendência, mesmo quando se trata de indivíduos
geneticamente próximos.
genética e da genealogia e desenvolvendo uma metodologia própria, posiciona-se na
intersecção das ciências e das humanidades, e assim pertence simultaneamente a
ambos os campos de conhecimento. De fato, as informações extraídas por meio dos
métodos da Genealogia Genética não poderiam ser obtidas por qualquer outra
disciplina. Permite a ligação de linhas excluídas a seus respectivos grupos familiares,
a comprovação ou o descarte de supostas relações entre famílias e a identificação de
novos ramos das mesmas. Ao possibilitar o preenchimento de lacunas no
conhecimento genealógico, demográfico e histórico, esta nova ciência tende a se
tornar indispensável às disciplinas com que se relaciona.
No exemplo da figura 3 acima, digamos que os indivíduos A2 e B tenham sido
personagens históricos cuja consanguinidade fosse, até então, desconhecida. Através
da metodologia da Genealogia Genética, torna-se possível não somente comprovar
seu parentesco como, através das mutações encontradas, calcular o número de
gerações até o MRCA. Qual a relevância do parentesco entre tais personagens
históricos? Quais foram as implicações da consanguinidade para essas famílias e
como essas informações possibilitam a compreensão da sociedade da época? Que
circunstâncias sociais, políticas e históricas podem ser reveladas? Através da
descoberta desse parentesco, pode-se chegar a registros documentais até então
ignorados? Na atualidade, a varonia do MRCA é representada por antigos aristocratas,
novos burgueses ou excluídos sociais? Trata-se de um ancestral que pesquisadores do
passado e do presente tentaram incluir em suas genealogias, até propositalmente
falsificando-as para tal fim? Ou alguém cuja existência tentaram ignorar, ou mesmo
apagar da história? Quais as consequências dessas novas informações para a
sociedade contemporânea? Tais perguntas cabem não somente a genealogistas, como
a quaisquer pesquisadores que, por um motivo ou outro, tenham interesse na
investigação de tais indivíduos. Em um outro caso poder-se-ia determinar, ao
investigar a linha materna de um personagem histórico do sexo masculino que não
tenha deixado descendentes, que sua infertilidade foi causada por uma mutação do
DNA mitocondrial e não, por doenças venéreas, por um exemplo. As possibilidades
são infindas. E as informações são pertinentes a inúmeras matérias, como História,
Sociologia, Antropologia, entre tantas outras.
As Assinaturas Genéticas dos Fundadores de Mato Grosso do Sul
Durante o procedimento de verificação das linhagens estabelecidas na obra
“Desbravadores de Sertões...”, sobre as famílias que efetivamente fundaram o estado
de Mato Grosso do Sul, tem sido possível angariar as assinaturas genéticas do
cromossomo Y e/ou da mitocôndria de pioneiros presentes na frente de 1829.
Descendentes diretos desses desbravadores – a maioria residente no município de
Três Lagoas – foram identificados em 2007 e 2008, durante o processo de
investigação documental que embasou o livro. O início do procedimento de
comprovação genética somente foi possível em 2009, após a publicação do trabalho,
portanto os resultados não foram inclusos na primeira edição do mesmo. De fato,
apesar de essa sistemática verificação ainda se encontrar em andamento, utilizando-se
da metodologia detalhada acima, compartilha-se aqui algumas das informações
obtidas até este momento, uma vez que possuem relevância para além do estudo
genealógico. A esta altura, foi possível a verificação das linhas diretas de quatro
pioneiros: Maria Joaquina de Freitas, Luís Correia Neves Filho, José Garcia Leal e
Januário Garcia Leal Sobrinho8. Seus resultados são discutidos a seguir.
8
Para os fins deste artigo, não serão inclusas linhas intersectantes que representem indivíduos que não estiveram
presentes na frente pioneira de 1829.
1- Maria Joaquina de Freitas
O DNA mitocondrial de Maria Joaquina de Freitas, presente na frente pioneira
de 1829, foi testado com a colaboração de sua descendente direta Yolanda Fernandes
de Alencar. A linhagem é apresentada a seguir9, e a transmissão do DNA mitocondrial
é acentuada pelo negrito:
1- Yolanda Fernandes de Alencar10
2- Antônio Alexandrino de Alencar
3- Josefa Maria de Jesus11
6- Jovino José Fernandes
7- Zulmira Maria de Jesus (Três Lagoas, 1882 – 22 de julho de 1932) –
primeira treslagoense, precursora do feminismo, agropecuarista e pioneira industrial
do Bolsão Sul-Matogrossense12
14- Luís Correia Neves Neto
15- Claudina Correia Garcia (Paranaíba, 1843 – Três Lagoas, d. 1885) –
agropecuarista, responsável pelo estabelecimento da rota da BR-158 em Mato Grosso
do Sul, e fundadora com seu esposo do município de Três Lagoas13
30- Bernardino Correia Neves
31- Maria Joaquina de Freitas (Franca, 1819 – Paranaíba, 3 de julho de
1883) – presente na frente de 1829, fundadora de Mato Grosso do Sul e responsável
pelo movimento rumo ao sul que permitiria a criação de Três Lagoas e a colonização
do Bolsão Sul-Matogrossense14
62- Januário Garcia Leal Sobrinho
9
Ancestrais não diretamente relacionados à transmissão do cromossomo Y ou do DNA mitocondrial em questão
serão omitidos por motivos de concisão.
10
Elio Barbosa Garcia, 2009, p. 369.
11
Idem, p. 366.
12
Idem, p. 356.
13
Idem, p. 355.
14
Idem, p. 354.
63- Claudina de São Camilo (Curral del Rey, b. 15 de agosto de 1798 –
Ituverava, 2 de julho de 1821)15
126- Fabiano Álvares da Silveira
127- Anastácia Maria de Oliveira
254- Antônio de Freitas Silveira
255- Francisca Maria de Oliveira
Realizados os exames, as regiões hipervariáreis (HVR) 1 e 216 do DNA
mitocondrial apresentaram as seguintes divergências com o CRS17:
Tabela 1 – regiões hipervariáveis 1 e 2 de Yolanda Fernandes de Alencar.
Corroborando o que é sabido a respeito do núcleo altamente endogâmico
estabelecido em Paranaíba em 1829, que preservou as características genéticas e
fenotípicas de portugueses imigrados ao Brasil em meados do século XVIII, a
mitocôndria de Maria Joaquina de Freitas possui origens europeias18.
O haplogrupo mitocondrial T originou-se no Oriente Médio há cerca de
45.000 anos19, tendo adentrado a Europa por volta de 10.000 anos atrás. A partir de
então, sofreu uma grande expansão ligada ao crescimento da agricultura nesse
15
Idem.
Dados disponibilizados publicamente no Projeto de DNA do Sobrenome Fernandes em:
http://www.familytreedna.com/public/Fernandes/default.aspx?section=mtresults - kit número 172174.
17
“O primeiro sequenciamento do DNA mitocondrial foi realizado pela Cambridge University em 1981 e
constituiu o pontapé inicial ao Projeto Genoma Humano. O resultado foi o chamado Cambridge Reference
Sequence (CRS, na sigla em inglês), que então passou a ser utilizado como padrão para o sequenciamento do DNA
mitocondrial de outros indivíduos.” Mais em http://bit.ly/GenealogiaGenetica.
18
Até fins do século XIX, a miscigenação deste grupo se deveu a casamentos com antigas famílias bandeirantes do
Brasil, descendentes dos Raposo Tavares, Borba Gato, Rodrigues Velho, Bicudo, Leme, Taques, Moraes d’Antas,
entre inúmeras outras, muitas das quais possuíam matriarcas ameríndias.
19
Pike calcula 47.500 anos. Em: Pike, David A., Terry J. Barton, Sjana L. Bauer, and Elizabeth B. Kipp. "MtDNA
Haplogroup T Phylogeny Based on Full Mitochondrial Sequences." Journal of Genetic Genealogy 6.1 (2010).
Web. Fall 2010. <www.jogg.info/>.
16
continente. O subgrupo T1 surgiu no mínimo há 6.000 anos, estando presente em
maiores números no sudeste, centro e noroeste do continente europeu20.
Na análise das origens recentes da linha mitocondrial de Maria Joaquina de
Freitas, encontra-se cinco resultados idênticos na região hipervariável 1, somente um
dos quais testou a HVR2 até este momento21. Um dos cinco indivíduos não lista a
origem de sua linha materna. As outras quatro linhas possuem raízes na França.
Assim sendo, com base nos resultados da HVR1, a probabilidade é de 50% que Maria
Joaquina de Freitas e esses indivíduos tenham possuído uma ancestral direta comum
nos últimos 1.300 anos. Maiores conclusões somente serão possíveis quando esses
indivíduos testarem a região hipervariável 2, ou, quiçá, realizarem o sequenciamento
total de seu DNA mitocondrial (FGS, na sigla em inglês). As investigações
documentais sobre as origens de Francisca Maria de Oliveira, ancestral mais antiga
conhecida de Maria Joaquina de Freitas e residente em Sabará, Minas Gerais na
segunda metade do século XVIII, ainda estão em andamento. De qualquer forma, é
certo que esta linha materna possui passagem pela França, podendo ter imigrado
diretamente ao Brasil ou antes ter se estacionado por algumas gerações em Portugal.
2- Luís Correia Neves Filho
A testagem do cromossomo Y de Luís Correia Neves Filho, presente na frente
de 1829, foi possível com a colaboração de seu descendente por varonia, Epitácio
Francisco Garcia. A transmissão do cromossomo Y encontra-se em negrito:
1- Epitácio Francisco Garcia22
2- João Correia Garcia23
3- Eduarda Bernardina Junqueira
20
The International Society of Genetic Genealogy. Web. 25 Jul. 2011. <http://pt.wikipedia.org/wiki/DNA>.
Este indivíduo apresenta resultados diferentes na HVR2.
22
Elio Barbosa Garcia, 2009, p. 380.
23
Idem.
21
4- Cherubino Correia Garcia24
5- Antônia Emília de Souza
8- Luís Correia Neves Neto (Paranaíba, b. 10 de novembro de 1835 – Três
Lagoas, 8 de setembro de 1885) – agropecuarista, contribuiu para a expansão
econômica da região ao sul de Paranaíba ao estabelecer relações comerciais com a
colônia militar de Itapura e foi um dos fundadores de Três Lagoas25
9- Claudina Correia Garcia
16- Luís Correia Neves Filho (Lavras, julho de 1796 – Paranaíba, setembro
de 1859) – presente na frente de 1829, fundador de Mato Grosso do Sul, edificou
propriedades ao sul de Paranaíba, o que levaria seus filhos Bernardino Correia Neves
e Luís Correia Neves Neto e suas respectivas esposas Maria Joaquina de Freitas e
Claudina Correia Garcia a estabelecerem a rota ao sul que proporcionou a criação de
Três Lagoas e a estruturação do chamado Bolsão Sul-Matogrossense; foi, ademais,
um dos signatários do abaixo-assinado de 1835, que estabeleceu as divisas entre os
estados de Goiás, Mato Grosso (área do atual Mato Grosso do Sul), Minas Gerais e
São Paulo26
17- Eleodora Rodrigues da Costa
32- Luís Correia Neves
33- Isabel da Silva Gomes
64- Manuel Correia Neves27
65- Ana Maria Angélica
24
Idem, p. 378.
Idem, p. 355.
26
CAMPESTRINI, Hidelbrando. Santana do Paranaíba, 3. ed. Campo Grande: Instituto Histórico e Geográfico
de Mato Grosso do Sul, 2002.
27
THOMAZELLI, Apparecida Gomes do Nascimento. As famílias de nossas famílias (mineiros e paulistas). São
Paulo/ Belo Horizonte: Ed. Gráfica da FAAP, 1989.
25
Os exames do cromossomo Y da família Correia Neves determinaram os
seguintes SNPs: P312+ L23+ L21+ U152- U106- P66- P314.2- M37- M222- L96L226- L193- L159.2- L144- L1-. Seus valores nos 67 marcadores são28:
Tabela 2 – haplótipo de Epitácio Francisco Garcia.
Pode-se concluir, assim, que esta varonia pertence ao haplogrupo
R1b1a2a1a1b4, o que é condizente com o que foi estabelecido pela pesquisa
documental, que por sua vez determinou que a freguesia de Coina, em Setúbal,
Portugal, foi o berço da família Correia Neves.
Conforme as hipóteses investigadas pelo projeto R1b1a2 Ibérico, “os
haplogrupos R1b1a2a1a1a (U106+) e R1b1a2a1a1b (P312+) teriam se dispersado
pela Europa a partir da Ibéria no mesmo movimento migratório que levou a cultura
campaniforme aos quatro cantos desse continente, entre 4.000 e 4.800 anos atrás. O
surgimento do ramo R1b1a2a1a1b4 (L21+) teria se dado pouco tempo depois.” De
28
Disponibilizados publicamente no Projeto R1b1a2 Ibérico em:
http://www.familytreedna.com/public/R1b1b2Iberico/default.aspx?section=yresults - kit número 172173.
fato, segundo cálculos de Anatole Klyosov de outubro de 2009 que tiveram por base a
variância de haplótipos de 25 marcadores presentes no projeto R-L21 Plus, a idade do
haplogrupo R1b1a2a1a1b4 seria de 3.725±380 anos29. Utilizando-se 67 marcadores, a
variância dos haplótipos L21+ com origens na França apresenta idade aproximada de
4.200 anos, o que corrobora a teoria de que esse SNP teria se originado no sul daquele
país ou no norte da Ibéria30.
A análise das origens recentes da varonia Correia Neves indica que esta
família estabeleceu-se em Portugal, na região de Setúbal, em migrações anteriores à
Era Medieval, uma vez que a base de dados da companhia Family Tree DNA aponta
somente um resultado similar nos 37 marcadores (sobrenome Corbin, distância
genética de 4 passos). O sítio ysearch.org indica que os resultados mais próximos nos
67 marcadores de um indivíduo comprovadamente pertencente ao mesmo haplogrupo
(R1b1a2a1a1b4) são do sobrenome Rose, com uma considerável distância de 15
passos. A relação dos Correia Neves com outras famílias portuguesas na época
anterior ao estabelecimento dos registros paroquiais somente poderá ser estabelecida
com a testagem dessas linhas intersectantes antigas, as quais até o momento não
foram identificadas. Todos os resultados obtidos sustentam o que foi averiguado pela
pesquisa documental de Thomazelli (1989) e deste autor, que determinaram que esta
linhagem vem intacta desde, ao menos, o período Renascentista.
3- José Garcia Leal
A testagem do cromossomo Y de José Garcia Leal, presente na frente de 1829,
foi possível com a colaboração de seu descendente por varonia, Elio Barbosa Garcia,
autor de “Desbravadores de Sertões...”. A transmissão do cromossomo Y dá-se assim:
29
Klyosov, Anatole. “Mapping of Europe with R1b1b2-L21 subclade.” Web. Oct 2009.
<2009https://docs.google.com/Doc?docid=0AaM2itiAENRJZHZrOHBxZ181Y2JoanA2ZDU&hl=en&pli=1>
30
R-L21 Plus Project: http://www.familytreedna.com/public/R-L21/default.aspx?section=news
1- Elio Barbosa Garcia31
2- Filogônio Garcia de Freitas32
3- Elizena Barbosa Soares
4- José Garcia de Freitas33
5- Helena Cândida de Carvalho
8- Flávio Garcia de Souza34
9- Ana Silvéria de Freitas
16- Flávio Garcia Leal (Franca, 14 de julho de 1812 – Aporé) – presente com
seu pai na frente de 1829, foi também pioneiro do sul do estado de Goiás, onde
estabeleceu propriedades rurais às margens do rio Aporé35
17- Cecília Claudina de Oliveira
32- José Garcia Leal (Lavras, 5 de abril de 1786 – Paranaíba, 1862) – líder da
frente pioneira de 1829, foi fundador de Paranaíba e Mato Grosso do Sul, desbravador
dos sertões e um dos signatários do abaixo-assinado de 1835; estabeleceu suas
propriedades rurais ao norte da dita vila, de forma que seus descendentes
posteriormente vieram a colonizar o sul de Goiás36
33- Ana Angélica de Freitas
64- João Garcia Leal37
65- Maria Joaquina do Espírito Santo
128- Pedro Garcia Leal38
129- Josefa Cordeiro Borba
256- João Garcia Luís39
31
Elio Barbosa Garcia, 2009, p. 704.
Idem, p. 698.
33
Idem, p. 691.
34
Idem, p. 658.
35
Idem, p. 651.
36
Idem, p. 565.
37
Idem, p. 135.
38
Idem, p. 53.
32
257- Maria Vargas Leal
512- Mateus Luís40
513- Ana Garcia
1024- Francisco Luís
1025- Maria Martins
Os exames no cromossomo Y da família Garcia Leal apresentaram os
seguintes resultados de SNP: P312+ L49+ Z196- U152- U106- SRY2627- M65M160- M153- M126- L4- L21- L20- L2- L1-. Os marcadores presentes nos seis
paineis tiveram os valores abaixo41:
Tabela 3 – haplótipo de Elio Barbosa Garcia.
39
Idem, p. 45.
Idem, p. 40.
41
Disponibilizados publicamente no Projeto R1b1a2 Ibérico em:
http://www.familytreedna.com/public/R1b1b2Iberico/default.aspx?section=yresults - kit número 166447.
40
Pertencente ao haplogrupo R1b1a2a1a1b* (P312+), esta varonia representa
uma clássica linhagem ibérica. Segundo dados de 2009, os subgrupos da família
R1b1a2a1a1 representam aproximadamente 50% de todas as varonias em Portugal42.
Esses números não surpreendem, tendo em vista que pesquisadores como Anatole
Klyosov teorizam que os haplogrupos R1b1a2a1a1a (U106+) e R1b1a2a1a1b (P312+)
teriam surgido na Península Ibérica após a chegada naquele território de indivíduos
R1b1a2a1a1(L11+) com passagem pelo norte da África43. De fato, os vasos mais
antigos da cultura campaniforme, associada à expansão dessa família de haplogrupos,
teriam sido inicialmente fabricados ao longo do rio Tejo, em Portugal44. A tradição de
arcos e flechas em sepultamentos também poderia ter se iniciado ali.
Com exceção da esperada semelhança com um descendente direto de seu
irmão Januário Garcia Leal Sobrinho (abaixo), não foram encontrados resultados
similares entre a varonia de José Garcia Leal e qualquer outro indivíduo na base de
dados da empresa Family Tree DNA, sequer no painel dos 12 marcadores. Nos 67
marcadores, ao se realizar uma busca na base de dados ysearch.org, os resultados
mais próximos aos desta varonia pertencem a indivíduos de sobrenomes Boylan,
Baum, Patrick, Goodwin, Parker e Saxton, com uma distância de 18 passos e
apresentando origens geográficas diversas, como Irlanda e Alemanha. Ademais, não é
possível saber se esses indivíduos são R1b1a2a1a1b* como a varonia dos Garcia Leal.
As grandes diferenças e a variedade de origens geográficas se mantêm ao se realizar
uma busca com quantidade menor de marcadores. Tanto assim, que a menor distância
42
Balaresque et al.; Teteliutina, FK; Serebrennikova, GK; Starostin, SV; Churshin, AD; Rosser, Zoë H.; Goodwin,
Jane; Moisan, Jean-Paul et al. (2010). "A Predominantly Neolithic Origin for European Paternal Lineages". PLoS
Biol. 8 (1): 119–22. doi:10.1371/journal.pbio.1000285. PMC 2799514. PMID 20087410.
43
Klyosov, Anatole A. "Haplotypes of R1b1a2-P312 and Related Subclades: Origin and “ages” of Most Recent
Common Ancestors." Proceedings of the Russian Academy of DNA Genealogy 4.6 (2011): 1127-195. Lulu.com.
Web. <www.lulu.com/items/volume_70/10723000/10723072/1/.../10723072.pdf>.
44
Moffat, Alistair, and James F. Wilson. The Scots: a Genetic Journey. Edinburgh: Birlinn, 2011. Print.
genética encontrada é de 2 passos nos 12 marcadores iniciais, com indivíduos que
podem não pertencer ao mesmo subgrupo dentro do haplogrupo R1b1a2a1a1b.
A singularidade do haplótipo dos Garcia Leal se reafirma em comparação com
os valores modais do haplogrupo R1b. Ao contrastarmos os 67 marcadores, há uma
distância de 19 passos do modal (valor de base) do haplogrupo R1b, calculado a partir
de dados do projeto de mesmo nome por Charles Kerchner45. Também obtemos
surpreendentes 17 passos de distância a partir do modal calculado por Robert Tarin
para os indivíduos R1b ibéricos46. Uma avaliação mais aprofundada47 indica que, nos
12 marcadores iniciais, uma deleção de nada menos que quatro repetições no DYS390
diferencia os Garcia Leal do restante da população R1b. Nos paineis seguintes, outras
mutações peculiares envolvem o DYS458, o DYS 455 (deleção de três repetições),
YCAIIb (deleção de duas repetições), entre outros.
Estatisticamente, considerando os 37 marcadores iniciais, essa divergência
genética posiciona os Garcia Leal a 4.600 anos do MRCA do haplogrupo
R1b1a2a1a1b. Tamanhas diferenças somente podem ser explicadas por cladogênese48,
e indicam que essa varonia permaneceu relativamente isolada na Ibéria dos outros
grupos P312+ que partiram para colonizar o restante da Europa. O fato de o ancestral
mais antigo conhecido dessa varonia ser originário dos Açores cria uma questão
interessante, referente ao local de origem desta linha em Portugal. Somente a
popularização da testagem genética nesse país poderia apontar o nível de especiação
sofrida pela varonia dos Garcia Leal. Já para os fins genealógicos, os resultados
obtidos até o momento confirmam o que foi estabelecido pela pesquisa documental.
45
Id na base de dados ysearch.org: 55GU9.
Id na base de dados ysearch.org: E866V.
47
http://bit.ly/GarciaLealXvaloresdebase
48
“Processo evolutivo que gera ramificações nas linhagens de organismos ao longo de sua história evolutiva e
implica obrigatoriamente em especiação biológica.” Fonte: Wikipédia.
46
4- Januário Garcia Leal Sobrinho
A testagem do cromossomo Y de Januário Garcia Leal Sobrinho, presente na
frente de 1829, foi possível com a colaboração de seu descendente por varonia, João
Nunes Garcia Leal. A transmissão do cromossomo Y encontra-se em negrito:
1- João Nunes Garcia Leal49
2- Protázio Garcia Leal (Paranaíba, 18 de abril de 1858 – Três Lagoas, 7 de
junho de 1943) – agropecuarista, deu continuidade à expansão ao sul iniciada por seus
primos Claudina Correia Garcia e Luís Correia Neves Neto, sendo considerado ao
lado dos mesmos, de sua primeira esposa Ana Silveira Ferreira, e do casal Antônio
Trajano dos Santos e Maria Lucinda Garcia de Freitas um fundador de Três Lagoas50
3- Laudelina Nunes Lacerda
4- Francisco Garcia Leal51 (Paranaíba, 1830 – 28 de junho de 1861)
5- Laudelina Carolina de Almeida
8- Januário Garcia Leal Sobrinho (Lavras, 1788 – Paranaíba, 25 de março
de 1868) – presente na frente pioneira de 1829, fundador de Paranaíba e Mato Grosso
do Sul, desbravador dos sertões, estabeleceu a propriedade em Três Lagoas que viria a
ser ocupada por seu neto Protásio Garcia Leal e foi signatário do abaixo-assinado de
1835 que determinou as divisas dos atuais estados brasileiros de Mato Grosso do Sul,
Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e São Paulo52
9- Ludovina Maria de Jesus
16- João Garcia Leal53 (Santa Cruz de Goiás, 1759 – Lavras, 1794)
17- Maria Joaquina do Espírito Santo
32- Pedro Garcia Leal54 (São Miguel, Açores, 1722 – Jacuí, c. 1780)
49
Elio Barbosa Garcia, 2009, p. 501.
Idem, p. 478.
51
Idem, p. 477.
52
Idem, p. 353.
53
Idem, p. 135.
50
33- Josefa Cordeiro Borba
64- João Garcia Luís55
65- Maria Vargas Leal
128- Mateus Luís56
129- Ana Garcia
256- Francisco Luís
257- Maria Martins
Os resultados de SNP da linha de Januário Garcia Leal Sobrinho são idênticos
aos da linha de seu irmão, José Garcia Leal, que foram discutidos acima. Os 67
marcadores apresentam a seguinte configuração57:
Tabela 4 – haplótipo de João Nunes Garcia Leal.
54
Idem, p. 53.
Idem, p. 45.
56
Idem, p. 40.
57
Disponibilizados publicamente no Projeto R1b1a2 Ibérico em:
http://www.familytreedna.com/public/R1b1b2Iberico/default.aspx?section=yresults - kit número 186620.
55
Ao se realizar uma análise cautelosa, pode-se notar uma distância de dois
passos entre o descendente testado de Januário Garcia Leal Sobrinho e o descendente
do irmão deste, José Garcia Leal. Os microssatélites em questão são DYS458 e
DYS464a, ambos possuidores de velocidades de mutação consideradas médias – com
um intervalo de confiança de 95%, o primeiro muta a uma velocidade58 de 0.00814 e
o segundo, de 0.00566. Tais diferenças são previsíveis, pois o ancestral comum mais
recente (MRCA) dos dois indivíduos testados, João Garcia Leal, nasceu no ano de
1759. Exemplos como este, entretanto, são úteis para ocasiões em que se desconhece
quem foi o MRCA de dois ou mais indivíduos. Assim, caso empregássemos os
marcadores de Elio Barbosa Garcia e João Nunes Garcia Leal para calcularmos o
tMRCA, obteríamos 210 anos utilizando um intervalo de confiança de 75% e a
velocidade de mutação média da Family Tree DNA (0.004..0.0075). Tal cronologia é
condizente com o que sabemos sobre o ancestral comum mais recente dos indivíduos
em questão, e em muito auxiliaria a busca documental caso ainda não o
conhecêssemos.
Para além da utilidade como exemplo de cálculo do espaço de tempo até um
ancestral comum mais recente (tMRCA), as linhas de descendência dos irmãos Garcia
Leal servem para uma importante lição teórica. Isso porque, ao testarmos 67
marcadores, obtivemos diferenças em dois deles. Como é sabido, essas divergências
se iniciaram nos processos de meiose que geraram as gametas que, por sua vez, deram
origem aos indivíduos em questão. Uma vez que a multiplicação e divisão da carga
genética durante a meiose é um processo completamente aleatório, o processo que
origina uma mutação não se repetirá exatamente da mesma forma na próxima meiose.
Assim, a não ser que estejamos tratando de gêmeos univitelinos, podemos concluir
58
Chandler, John F. "Estimating Per-Locus Mutation Rates." Journal of Genetic Genealogy. 2006. Web. 08
Mar. 2011. <http://www.jogg.info/22/index22.htm>.
que cada indivíduo seja o fruto da união de óvulo e espermatozóide únicos. Ao
aplicarmos essa noção ao estudo genealógico, deduzimos que as mutações supracitadas diferenciaram, a certo ponto, a carga genética de dois irmãos. Ou seja,
utilizando o caso acima, ao analisarmos a geração em que uma mutação surgiu pela
primeira vez, descobrimos que a espermetogênese paterna gerou um filho com 19
repetições no DYS458 e outro, com 18 repetições, separando as linhagens desses
indivíduos para sempre. O filho com a mutação (provavelmente aquele com 19
repetições) diferenciou-se não somente de seus irmãos, como também de seu pai.
Lembremos que a análise acima se confinou a apenas 67 marcadores, dentre
centenas que são conhecidos e muitos mais a descobrir. Ao ampliarmos o número de
marcadores testados e ao descobrirmos SNPs que são privados a uma linha específica
em dada família, torna-se possível concluir que cada indivíduo é único em sua
composição genética mesmo quando nos referimos apenas ao cromossomo Y, que é o
menor entre os cromossomos humanos. Assim, ao permitir a apropriada análise de
descendentes e parentes de certo personagem histórico, a Genealogia Genética
possibilita a indubitável identificação da assinatura genética desse personagem, que
então pode ser contrastada com registros documentais. Todo indivíduo que deixa
descendência serve também como um carimbo genético-temporal, uma “digital
histórica” independente do período em que viveu.
Conclusão
Geneticistas de todo o mundo realizam novas descobertas a uma velocidade
cada vez mais alucinante, apesar da quantidade estarrecedora de informações já
apuradas desde o descobrimento da estrutura do DNA na década de 1950. A
Genealogia Genética galga junto a essa rápida proliferação de conhecimento e na
última década fez grandes avanços no aprimoramento de sua metodologia, de forma
que já há alguns anos tem servido como uma fonte abundante de informações para as
ciências biológicas. Esses métodos que visam a comprovação genética de dados
levantados por meio da pesquisa documental trazem à genealogia algo que é essencial
a qualquer ciência ou humanidade: a verificabilidade do que é apresentado. A
Genealogia Genética posiciona-se, assim, na intersecção das ciências e das
humanidades e, com um grau de coesão cada vez maior, apresenta-se como uma área
de conhecimento que é insubstituível em sua função, possibilitando a obtenção de
dados de outra forma inacessíveis.
Apesar disso, nas humanidades e ciências sociais, a utilização das ferramentas
oferecidas pela Genealogia Genética não se encontra disseminada como nas ciências
biológicas. Embora nos dias atuais seja usual a realização de testes de DNA em restos
mortais de personagens históricos, os pesquisadores não lançam mão da metodologia
da Genealogia Genética em si. Como foi demonstrado neste artigo, os métodos desta
disciplina possibilitam identificar e testar as linhagens de tais personagens de maneira
segura e com mínimas margens de erro, utilizando-se de diferentes exames de acordo
com as circunstâncias e sem que sejam necessárias práticas como exumação de restos
mortais – que, em si, podem levar a deslizes como a testagem de material de um
indivíduo errado sem se ter ciência disso. De fato, a Genealogia Genética permite não
somente o levantamento da assinatura genética de um personagem histórico que tenha
deixado descendentes e/ou colaterais verificáveis, como a comprovação do processo e
de seus resultados por meio de um necessário confronto dessas informações com
registros documentais. Se na década de 1950 o raio-x permitiu a descoberta da
estrutura do DNA, hoje a Genealogia Genética permite que se realize um raio-x da
história.
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