Chico e Caetano ao mesmo tempo

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ROMULO FRÓES
www.romulofroes.com.br
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"Chico e Caetano ao mesmo tempo"
Muito tem se discutido sobre uma possível crise da canção e da própria música popular
brasileira, mas penso ser esta uma avaliação apressada e o erro está na observação do
problema. A música brasileira tem se renovado não mais somente pela composição, mas
principalmente por meio de uma experiência coletiva nova que se dá através do acesso
facilitado à tecnologia de gravação. É pelo som que a música brasileira está se
transformando. Através dos trabalhos mais recentes de Chico Buarque e Caetano Veloso, vou
tentar identificar traços dessa renovação e o modo como cada um vem lidando com esse
problema.
“Chico” (2011), o mais recente lançamento de Chico Buarque, faz parte de um momento
muito importante de sua discografia, em que incluo também “As Cidades” (1998) e “Carioca”
(2006). Entre a gravação destes dois, ele concede a famosa entrevista a Fernando de Barros
e Silva, onde discorre sobre um possível esgotamento histórico da canção. As músicas que
compõem estes três álbuns parecem tomadas por este pensamento. Chico inventa um
personagem andarilho que aparece sempre na primeira faixa de cada disco, como se a cada
trabalho saísse por aí para topar com as novidades do mundo. “Gostosa, quentinha, tapioca,
o pregão abre o dia, hoje tem baile funk, tem samba no Flamengo, reverendo no palanque
lendo o apocalipse (...)”, os versos de “Carioca”, canção que abre “As Cidades”, se
desenvolvem sobre uma harmonia fendida que distende a melodia até o limite da nitidez. É
difícil cantá-la, pois segue fluída, como que procurando seu prumo. E quando finalmente o
encontra, já é tarde demais para compreendermos o seu desenho. Ao iniciarmos de novo a
melodia, não nos lembramos mais dela. Sem rima aparente, a letra conduz o personagem
num travelling desorientado pela cidade. Dando liga a pessoas e acontecimentos distintos e
sem tentar compreendê-los, vai descrevendo uma cidade e um cotidiano novos em sua
música. “Subúrbio”, faixa que abre o álbum “Carioca”, avança ainda mais em direção a essa
outra cidade, vai ao “avesso da montanha” onde “não tem brisa, não tem verdes-azuis, não
tem frescura nem atrevimento". Talvez espere encontrar nesse outro Rio novos caminhos
para sua canção. Em "Querido Diário", faixa que abre o disco novo, este andarilho adquire
uma certa melancolia, não se encontra mais em sua própria cidade, que anda em contramão.
A movimentação que Chico imprime a este personagem movimenta também sua canção.
Provoca nela um esgarçamento, onde a melodia é muitas vezes esticada até sua quase
desintegração. A ponto de virar fala, mas ainda possível de ser cantada. Sua obra recente
parece encontrar um novo caminho para a sua música, mas encontra nele mesmo, o
adversário que dificulta sua plena realização. Chico sempre manteve certo distanciamento
(admitido por ele em mais de uma entrevista) com a produção de seus discos. Talvez por isso
nunca alcançaram a importância de suas canções. Todos conhecem “Construção”, poucos
sabem dizer o nome de outras faixas que pertencem ao disco que leva este título, um dos
mais importantes de sua carreira. Essa dualidade entre o compositor e o intérprete
permanece nos trabalhos recentes, pois se as canções parecem apontar um novo caminho
não só para sua obra, mas para a própria canção brasileira, nos discos elas regridem ao
escalonamento um tanto simplista do seu produtor musical.
Luiz Cláudio Ramos, seu arranjador desde 1989, parece orientado por uma correção escolar,
querendo consertar os “defeitos” das composições de Chico, como em "Dura Na Queda”, um
dos mais belos e estranhos sambas de todo o seu repertório, escrito para Elza Soares e
gravado por Chico em "Carioca". Na gravação de Elza, sua linda melodia desliza como a
personagem da canção, “desfila natural” sobre uma pulsação cambaleante, com seu tempo
forte camuflado. A gravação de Chico “corrige” essa pulsação, revelando seu tempo forte e
pondo a canção literalmente no chão. Os arranjos escritos por Ramos tendem ao fisionômico,
enfraquecem as letras, numa tentativa de tradução inocente e anacrônica, como acontece em
“Querido Diário”. Ao se alcançar o verso "armou tocaia lá na curva do rio", na busca de
construir a imagem que a letra sugere, os instrumentos produzem sons que emulam água,
pássaros, vento. Às vezes, o título é que determinará sua feição - dessa maneira, “As
Atrizes”, faixa de “Carioca”, recebe tratamento orquestral típico dos musicais de cinema
americano, numa redundância que nada contribui para a canção. Não há enfrentamento ali,
um samba é apenas isto, um samba, uma valsa é uma valsa, um choro é um choro. Assim,
"Tipo um baião", outra faixa de "Chico", perde a dubiedade estampada no título, e é
finalmente transformada em um baião.
Francisco Bosco escreve em seu artigo "O artista e o tempo", que Chico atingiu o encontro
perfeito entre forma e história e que soube manter e desenvolver sua forma, a certa distância
formal da história. Caetano, por sua vez, sempre ligado ao aqui e agora, quando parece ter
simplesmente ignorado o presente, penso que houve um certo desvio em sua trajetória. Me
refiro ao período de um pouco mais de uma década de colaboração com o músico e maestro
Jaques Morelenbaum. Caetano já disse que Morelenbaum fez com que perdesse muito do
medo que tinha da música. Talvez isso explique o movimento em direção a uma produção
mais sofisticada, de arranjos orquestrais extremamente formatados e sem espaços para
improvisação, negando aquele saudável amadorismo sempre presente em sua obra. Longe
dos experimentos tropicalistas de Rogério Duprat, próximo do que fez Dori Caymmi para
“Domingo” (seu disco de estreia ao lado de Gal Costa) e, por que não notar, dos discos de
Chico Buarque, ainda que com resultados muito superiores. Não por acaso seu canto se
apura nesses trabalhos, parece querer acompanhar o aprimoramento técnico de sua banda.
Discos que privilegiam o intérprete em detrimento do compositor se sucedem. Caetano vinha
numa evolução que se configurava como um projeto de maturidade, quando esse processo é
interrompido.
“Cê” (2006) e “Zii e Zie” (2009) trazem a cena um novo protagonista em seu trabalho, o
guitarrista Pedro Sá, um dos nomes mais importantes de uma nova geração de artistas ainda
pouco comentada. A banda montada por Pedro Sá com outros talentosos músicos desta
geração (Marcelo Callado na bateria e Ricardo Dias Gomes no baixo), provocou uma
transformação na sua canção. Parece óbvia essa afirmação, pois é claro que o som de um
violão, uma guitarra, um violoncelo ou um cavaquinho, cada um com sua característica, muda
nossa percepção. Mas não só o som do instrumento tem importância aqui. O modo como ele
é captado e a manipulação do seu timbre através dos inúmeros equipamentos de um estúdio
de gravação serão tão ou mais importantes. Os músicos dessa geração discutem sobre
pedais, amplificadores, microfonação, válvulas, softwares de gravação, instrumentos antigos,
etc, tanto quanto propriamente de música.
A canção de Caetano nestes dois discos foi influenciada por este comportamento e é devido
exatamente à nossa intimidade com sua obra que notamos mais claramente uma
transformação. Se compararmos, por exemplo, com um de seus trabalhos mais celebrados, o
álbum “Transa”, há de se notar diferenças na sua relação com os músicos. Mais do que pelas
próprias canções apresentadas, a banda que gravou “Transa” parecia influenciada pelo
comportamento e pela música produzida naquela época – era isso o que a motivava, na
busca do som adequado às canções. Com a banda Cê (nome com que batizou sua banda
atual), Caetano parece compor para o som que ela produz. Um som de rock, como o de
“Transa”, mas menos desbundado que os anos 1970, mais sombrio, próximo de bandas como
Pixies e Sonic Youth e que se mostrou perfeito para a leva de canções carregadas de raiva e
frustração apresentadas em “Cê”.
Em “Zii e Zie”, segundo disco gravado com essa mesma banda, os sinais de renovação na
música de Caetano ficam mais claros pra mim. Em “Perdeu”, faixa que abre o disco, já é
possível notar uma novidade. A canção, rasgada por um riff de guitarra, acompanhada em
uníssono pelo baixo e pela bateria, confere à melodia uma rigidez quase mecânica, travando
sua evolução, tornando-a menos nítida, quebrada, quase falada - o canto é áspero, diferente
daquele a que nos acostumamos. É difícil saber o que diz a letra, as rimas estranhíssimas se
desenvolvem fraturadas pelo groove da banda, trazendo um vocabulário inédito à sua lírica,
mais erótico do que já foi, quase pornográfico, "(...) colheu, esticou, encolheu, matou, furou,
fodeu, até ficar sem gosto, Ganhou, reganhou, bateu, levou, mamãe, perdeu, perdeu(...)". Em
outra faixa de "Zii e Zie", “Por Quem?”, seu falsete é que se modifica, perdendo muito do
lirismo de sua clássica interpretação de “Eu sei que eu vou te amar”. Lembra mais “A preta do
acarajé” de Caymmi. Como se acionado por algum pedal de efeito, no meio da canção ele se
desfaz, cedendo espaço a Pedro Sá, que num anti-solo repete nota por nota a melodia da
canção, conduzindo-a de volta ao falsete, que parece por sua vez adquirir o timbre da
guitarra.
O encontro de Caetano com a nova geração de artistas e este novo comportamento em
relação a música brasileira, acabou por encontrar e recuperar a carreira de Gal Costa. Gal há
muito tempo fora dos estúdios e que havia se transformado numa intérprete burocrática de
clássicos da MPB, volta a ser a voz ideal para as experimentações de Caetano. Em Recanto
(2011), disco mais recente da cantora produzido por ele e Moreno Veloso, Caetano se
aprofunda ainda mais no trabalho dentro do estúdio. Apoiado quase que totalmente sobre
bases eletrônicas, em sua maioria programadas por Kassin (músico e produtor que ao lado
de Moreno e Domenico Lancellotti formam o +2, grupo central dessa nova geração), Caetano
compôs canções duras, impenetráveis, de letras um tanto desagradáveis e que modificaram o
canto de Gal, tornando-o menos exuberante, de registro mais baixo, com notas graves
desconhecidas até então. Tão belo quanto já foi. De uma beleza surgida de elementos
comumente não reconhecidos como belo. Do tipo que Caetano sempre perseguiu e que
voltou a aparecer em seus trabalhos mais recentes.
Se a canção vive mesmo uma crise e não tem a mesma relevância na transformação cultural
do nosso país, é porque vivemos um tempo diferente, o que envolve questões que vão muito
além do modo como nos relacionamos com ela. A pergunta pertinente, agora, é se ainda
precisamos de canções. Chico e Caetano seguem ligados por suas diferenças, mas
principalmente pela estreita relação que mantêm com a canção brasileira. Chico, acreditando
ainda numa renovação através da composição. Caetano, voltando a se alinhar com o
presente atrás dessa renovação. Talvez seja justamente pelo comportamento inalterado
destes dois grandes artistas que ela ainda demonstre imensa vitalidade. O tempo, afinal, para
Chico e Caetano, parece no fundo ser o mesmo.
Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, C2+Música, p. D7, 04/02/2012.
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