A Eclesiologia de Trento Algumas observações preliminares sobre a Eclesiologia de Trento: a) Sua doutrina eclesiológica é pouco estudada, apesar de influenciar quatro séculos de Eclesiologia. b) Condicionada por querer dar uma resposta à Teologia dos reformadores e querer estancar a influência da Reforma, esclarece os pontos doutrinais mais atacados, sem, contudo, pretender apresentar uma proposta doutrinal sistemática e ampla. c) Não havia um plano sistemático de doutrina eclesiológica. O catecismo tridentino possui uma eclesiologia implícita. São tratados temas de Eclesiologia, tais como Escritura e Tradição, estruturas hierárquicas da Igreja, Sacramentos. A Reforma colocou em questão tudo o que a Igreja medieval construiu e intentou voltar à Igreja antiga, no que diz respeito à doutrina e à disciplina. Essa tentativa foi influenciada pelo pensamento da época, onde dominava o individualismo, o subjetivismo, crítica e oposição à Igreja por causa da sua vida interna, decadência do papado, conciliarismo e anti-romanismo germânico. Ainda contribuíram a decadência da Teologia escolástica e outras tendências intelectualizantes. Consequências da Reforma: rompimento da unidade monolítica da Idade Média, no campo religioso, cultural e do conhecimento, diminuição do prestígio religioso do Papa, desejo de reforma da Igreja, com um retorno às fontes do cristianismo contra o formalismo e o legalismo. Lutero tinha um conceito eclesiológico característico: a) Sola Scriptura: autossuficiência da Bíblia no conhecimento teológico. A origem e a natureza da Igreja são atribuídas à Palavra. b) Sola Fides: a Igreja é a comunhão dos santos, na qual se ressalta a incorporação nela pela fé. c) Sola Gratia: “Basta-te a minha graça” (2Cor 12,9). Não há necessidade de mediadores entre os homens e a graça de Deus. O Concílio de Trento (1545-1564) é a resposta da Igreja Católica ao movimento iniciado com Lutero, mas algumas dificuldades surgiram nesse intento: a) A teologia de Lutero não partia dos princípios eclesiológicos, mas de uma problemática religioso-existencial. b) Faltou uma noção de Igreja à assembleia, ficando a dever uma mais profunda teologia do sacerdócio comum dos fiéis. c) Foi um Concílio puramente episcopal, dominado pelo grupo de bispos preocupados em reforçar sua posição contra a negação da hierarquia da Igreja por Lutero. Aspectos principais da Eclesiologia de Trento: a) A Escritura e a Tradição são os princípios e os critérios do conhecimento teológico na Igreja. Há um entrelaçamento entre Evangelho e Igreja, e o papel desta é garantir a conservação daquele. b) A existência da hierarquia na Igreja e a afirmação de que nem todos os fiéis são sacerdotes ministeriais (ordenados). c) Houve um esclarecimento da origem e do poder dos bispos diante da diversidade de posições que chegaram a Trento. Eclesiologia – Aula n. 2 – 09.04.14 d) O primado do Papa é jurídico e não de honra. e) Principal personagem do Concílio de Trento: marcadamente apologético e polêmico. Roberto Belarmino, A renovação da Eclesiologia Após Trento os tratados clássicos insistem quase exclusivamente nos aspectos jurídicos e societários da Igreja, deixando de lado aspectos espirituais e carismáticos. Da Igreja se descrevem a origem, a fundação por Cristo, a sua constituição interna hierárquico-monárquica e as notas, que a distinguem das outras comunidades cristãs separadas. No início do século XIX houve um sopro renovador: o método apologético foi substituído pelo método dogmático que deduzia suas argumentações dos dados bíblicos e patrísticos, que são mais valorizados como fontes genuínas da fé e da Teologia. Os principais autores que pensaram a Igreja no século XIX desenvolveram uma teologia que passou a valorizar conceitos que viam a Igreja como epifania de Cristo, Corpo Místico de Cristo, continuação da encarnação de Cristo, Sacramento de Salvação e Mãe que gera e educa na fé. A Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano I Esse espírito renovador desembocou no Vaticano I, convocado pelo Papa Pio IX, em 1869. Foi um Concílio inacabado devido à guerra franco-prussiana1, que culminou com a invasão dos Estados pontifícios em Roma, exigindo a retirada imediata dos bispos. O objetivo desse Concílio era unificar o mundo católico, demonstrar a verdade, combater os erros da época e adaptar a disciplina da Igreja ao tempo. Dois foram os documentos do Concílio: a) Dei Filius: contra os múltiplos erros derivados do racionalismo; b) Pastor Aeternus: sobre a instituição do primado de verdadeira e própria jurisdição de Pedro, da parte de Cristo, e a perpetuação do mesmo nos Pontífices Romanos; a natureza do primado do Romano Pontífice e a sua infalibilidade pessoal em matéria de fé e de moral. É neste último documento – Pastor Aeternus – que se encontra a Eclesiologia do Vaticano I, embora na Dei Filius apareça o conceito de Igreja como sinal entre as nações e mestra da Palavra revelada. A Igreja é o Corpo Místico de Cristo, tem sua origem na Trindade e, além de invisível, é visível enquanto sociedade. A Pastor Aeternum define a infalibilidade papal, vinculando-a à Igreja e pretendendo salvaguardar a unidade desta mediante a unidade do episcopado. Ressalta-se ainda a reação diante do modernismo por parte do Vaticano I. O Papa Pio X intensificou a prática eucarística e incentivou o movimento litúrgico, que redescobriu a Igreja como mistério de Cristo, conforme a Tradição. São Pio X ainda incentivou os leigos a participarem do apostolado da Igreja – Ação Católica. No início do século XX a Eclesiologia começou a ocupar um espaço privilegiado na Teologia. 1 Conflito ocorrido entre França e Prússia no final do século XIX. Durante o conflito, a Prússia recebeu apoio da Confederação da Alemanha do Norte, da qual fazia parte, e dos estados do Baden, Württemberg e Bavária. A vitória incontestável dos alemães marcou o último capítulo da unificação alemã sob o comando de Guilherme I da Prússia. Também marcou a queda de Napoleão III e do sistema monárquico na França, com o fim do Segundo Império e sua substituição pela Terceira República Francesa. 2 Eclesiologia – Aula n. 2 – 09.04.14 A Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II Vimos que as novas perspectivas teológicas consideravam a Igreja como Corpo Místico, Sacramento de Salvação. Na segunda metade do século XX se encontrava no seio da Igreja uma renovação dos estudos bíblicos e patrísticos, o movimento litúrgico, a espiritualidade cristocêntrica, a promoção do laicato e o despertar do apostolado missionário. Nesse contexto, o Papa João XXIII convocou o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). Esse Concílio conta com vários documentos referentes à Igreja: a) Lumem Gentium: inicia com o capítulo sobre o mistério da Igreja, não o definindo, mas compreendendo-o como acontecimento da história salvífica. A Igreja é muito mais do que o visível e historicamente manifestado pela sua organização estrutural. Ela indica uma dimensão espiritual, interior, sobrenatural e divina. Esses dois aspectos – o visível e o invisível, ou exterior e interior – formam uma única realidade. Dom Boaventura Kloppenburg nos diz que a Lumen Gentium foi uma reação positiva contra um conceito excessivamente jurídico, social, externo, institucional, clerical e triunfalista da Igreja. Conceito esse que foi sendo gerado e alimentado pelo contexto das diversas épocas e que finalmente haviam sido purificados. b) Sacrossanctum Concilium: sobre a Liturgia. c) Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo. d) Ad Gentes: sobre a atividade missionária da Igreja. e) Christus Dominus: sobre o ministério dos bispos. f) Presbyterorum Ordinis: sobre a vida e o ministério dos presbíteros. g) Apostolicam Actuositatem: sobre o apostolado dos leigos. h) Unitatis Redintegratio: sobre o ecumenismo. Esse Concílio não perdeu sua atualidade, e continua como autêntica fonte inspiradora. A situação atual da Eclesiologia Os tempos pós-Concílio trouxeram uma crise de identidade da Igreja. O Papa Paulo VI escreveu uma Carta Apostólica – Evangelii Nuntiandi – para mostrar que a identidade própria da Igreja, seu ser e missão, é a evangelização. Não só no que diz respeito à identidade da Igreja, mas também em tudo o decorre daí (sua forma de se apresentar, de agir, de pregar, de se portar) passaram por uma série de turbulências próprias de uma reforma profunda. Os Papas Paulo VI e João Paulo II enfrentaram tempos difíceis na condução da Igreja, até que conseguiram colocá-la no rumo certo. A Eclesiologia na América Latina Talvez possa se afirmar sem errar que a Igreja na América Latina foi a que mais “ousou” na renovação da Igreja, tirando daí experiências positivas e negativas. Desde o Concílio Vaticano II foram quatro as Conferências Episcopais Latino Americanas: a) Rio de Janeiro (1955): concluiu pela necessidade de incrementar as vocações sacerdotais nativas que tornassem a região menos dependente dos povos europeus; b) Medellín (1968): sublinhou a enorme quantidade de pobres que era preciso libertar do estado de exploração; 3 Eclesiologia – Aula n. 2 – 09.04.14 c) Puebla (1979): prolongou a análise de Medelin e acentuou a importância das Comunidades de Base para a evangelização dos pobres e alteração social. Forte influência da teologia da libertação; d) Santo Domingo (1992): freou a tendência político-social das duas anteriores e acentuou a necessidade de conhecer a cultura local em ordem à inculturação da fé; e) Aparecida (2007): destaca a índole missionária da Igreja, que é chamada a cuidar daqueles que gerou e que não acompanhou com o devido zelo. A Eclesiologia da Teologia da Libertação Os autores da Teologia da Libertação tardaram em escrever sobre a Igreja. Ocupavam-se, em primeiro lugar, com a Cristologia da Libertação. As comunidades é que passaram, com o tempo, a elaborar sua própria Eclesiologia a partir da teologia subjacente à sua vivência e organização comunitária. A Eclesiologia da Teologia da Libertação faz uma revisão crítica das estruturas internas da Igreja, a partir da perspectiva e da presença do pobre como sujeito ativo da comunidade. O acento eclesiológico muda da visão hierárquica tradicional para o acento comunitário popular. A Eclesiologia toma rumos novos e estes não na direção da opção preferencial pelos pobres, no sentido de entender a Igreja na América Latina a partir dos pobres, que passam a ser o lugar teológico da Eclesiologia. Igreja dos pobres: assume a forma de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), onde os cristãos se alimentam, principalmente, por meio da reflexão da Palavra de Deus. O Evangelho é anunciado aos pobres e estes, por sua vez, se convertem em anunciadores do Evangelho e evangelizadores de toda a Igreja. A abertura ecumênica tem grande impulso – com não poucos exageros. A religiosidade popular passa por uma “desalienação”. “Quer-se mostrar aqui que a Teologia da Libertação partiu bem, mas, devido à sua ambiguidade epistemológica, acabou se desencaminhando: colocou os pobres em lugar de Cristo. Dessa inversão de fundo resultou um segundo equívoco: instrumentalização da fé “para” a libertação. Erros fatais, por comprometerem os bons frutos desta oportuna teologia. Numa segunda parte, expõe-se a lógica da Conferência de Aparecida, que ajuda aquela teologia a “voltar ao fundamento”: arrancar de Cristo e, a partir daí, resgatar os pobres”. (Clodovis Boff, artigo no site adital.com.br, de 16.06.2008). 4