de servitute philosophiae - Portal de Revistas Eletrônicas da PUC

Propaganda
DE SERVITUTE
PHILOSOPHIAE*
JOSÉ REINALDO FELIPE MARTINS FILHO**
Resumo: tomando como pretexto o atual contexto da relação entre as áreas de filosofia e
teologia no âmbito da Pós-Graduação no Brasil, este texto pretende indicar uma leitura de
viés integrador, segundo a qual é impossível desassociar a estrutura de raciocínio própria à
filosofia do saber teológico. Em vista disso, reconstroi por meio de alguns exemplos o itinerário
percorrido por estas duas disciplinas ao longo da história ocidental, elucidando, sempre que
possível, o intercruzamento de seus olhares, a eleição comum de seus objetos e o entendimento de que ambas se constituem como legítimas formas de o ser humano se relacionar com o
universo que o circunda.
Palavras-chave: Filosofia. Teologia. Articulação.
O texto que segue constitui-se como uma livre reflexão a respeito do ocorrido no
mês de agosto de 2016. Estando eu em minha casa, recebi o informativo mensal
da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF)
celebrando a então instaurada separação das áreas de filosofia e teologia, há muito solicitada,
mas somente agora efetivada pela agência competente (neste caso, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES). Os motivos para tal protrusão parecem ser
variados, priorizando-se a diferença metodológica e de objetos adotada por ambas. A força de
uma, poderia representar a fraqueza da outra – um sério dilema no momento de atribuição
* Recebido 04.09.2016. Aprovado em: 24.11.2016. Trabalho originalmente apresentado no VI Colóquio do
Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás (IFITEG), ocorrido de 19 a 21 de outubro de 2016, cujo tema
também abordava a relação entre filosofia e teologia.
** Doutorando em Ciências da Religião, pela PUC Goiás. Mestre em Filosofia e em Música, ambos pela
Universidade Federal de Goiás. Especialista em Sociologia da Religião pelo Centro Universitário Claretiano.
Graduado em Filosofia e Teologia. Professor no Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás (IFITEG) e na
PUC Goiás. E-mail: [email protected]
148
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 1, p. 148-155, jan./mar. 2017.
das pontuações. Embora o mérito da ação empreendida, ao menos em termos valorativos,
não possa ser por mim debatido neste momento (e há elementos legítimos, estou certo que
sim!), pus-me a refletir sobre a possibilidade desta separação, sobretudo em vista da leitura
de viés integrador adotada como base para a eleição destes dois cursos (e não de quaisquer
outros) como fundamento para a formação intelectual dos candidatos ao ministério ordenado em várias igrejas cristãs.
O DIÁLOGO ENTRE FÉ E RAZÃO: CREDO UT INTELLIGAM
Em 14 de setembro de 1998, Festa da Exaltação da Santa Cruz, o então papa João
Paulo II, santo de feliz memória, promulgava sua carta encíclica intitulada Fides et Ratio, que
procurava aprofundar-se na compreensão e na articulação destas duas forças motrizes do homem. Já a epígrafe inserida na abertura do texto integral, inspirada em abundantes passagens
da Sagrada Escritura, admoestava:
[...] a fé e a razão ( fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano
se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo
de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e
amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio (cf. Ex 33,18; Sal 27 (26),
8-9; 63 (62), 2-3; Jo 14, 8; 1Jo 3, 2) (JOÃO PAULO II, 1998, n. 1).
Nada obstante, em se tratando da relação objetiva entre teologia e filosofia, interessam-nos particularmente os números 75, 76 e 77, nos quais o saudoso pontífice – reconhecido, aliás, pela legitimidade de suas reflexões no âmbito da filosofia do direito e da
teoria personalista – desenvolve o que ele próprio denomina como sendo os três estágios da
filosofia relativamente à fé: a) em primeiro lugar a absoluta independência desta em relação à
revelação angélica – o tempo dos primeiros filósofos que, historicamente, desenvolveram seus
raciocínios já bem antes da Nova Era instaurada pelo nascimento do Redentor; b) o segundo e, por sua vez, já posterior à Encarnação, refere-se à chamada filosofia cristã, abundante
desde a patrística – com exemplos prodigiosos, como é o caso de Agostinho – até o início da
modernidade, notadamente passando por Tomás de Aquino, referido pelo magistério como
o exemplo mister da filosofia dita cristã1; por último, diz João Paulo II, verifica-se o estágio no
qual é a própria teologia que chama em causa a filosofia, isto é, quando a teologia reconhece a
necessidade da contribuição filosófica e a conclama.
É verdade que isso já ocorria desde a Patrística, quando se consagrou a antiga
nomenclatura, recorrente em alguns autores, segundo a qual deve-se reconhecer a filosofia
como ancilla da teologia. Sobre isso o papa Wojtyla (JOÃO PAULO II, 1998, n. 77) oferece-nos uma interessante explicação:
[...] o título não foi atribuído para indicar uma submissão servil ou um papel puramente
funcional da filosofia relativamente à teologia; mas no mesmo sentido em que Aristóteles falava das ciências experimentais como “servas” da “filosofia primeira”. A expressão,
hoje dificilmente utilizável devido aos princípios de autonomia antes mencionados, foi
usada ao longo da história para indicar a necessidade da relação entre as duas ciências e
a impossibilidade de uma sua separação. Se o teólogo se recusasse a utilizar a filosofia,
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 1, p. 148-155, jan./mar. 2017.
149
arriscar-se-ia a fazer filosofia sem o saber e a fechar-se em estruturas de pensamento pouco
idôneas à compreensão da fé. Se o filósofo, por sua vez, excluísse todo o contato com
a teologia, ver-se-ia na obrigação de apoderar-se por conta própria dos conteúdos da fé
cristã, como aconteceu com alguns filósofos modernos. Tanto num caso como noutro,
surgiria o perigo da destruição dos princípios básicos de autonomia que cada ciência
justamente quer ver garantidos.
Pelo fato de a filosofia se constituir como uma investigação fundamental da natureza da realidade e do pensamento humano que com ela se relaciona, ao passo que a teologia se
ocupa da natureza de Deus, da humanidade e da criação do homem, pode parecer inevitável
que a teologia às vezes se expresse por meio de categorias estritamente filosóficas. De fato,
caso tomemos em revista a história da teologia cristã, desde Tertuliano até Karl Barth, sempre
houve uma linha de desconfiança segundo a qual é possível estabelecer algum vínculo positivo entre a teologia cristã e os desdobramentos da filosofia. Ao mesmo tempo, os teólogos
cristãos também estão corretos ao repudiar qualquer ameaça aos pilares fundamentais da fé,
sobretudo quando os esforços dos filósofos não se inclinam a este compromisso – e sobre isso
devemos ressaltar que, apesar de o contato entre filosofia e teologia poder resultar em benefícios para ambas, uma jamais poderá ser confundida com a outra, começando pelo fato de os
filósofos não terem qualquer compromisso com a defesa da fé, mas com a verdade, se é que
estas duas não se encontram em algum lugar.
Nesse sentido, também aqueles que se valem da filosofia podem fazê-lo com vistas
à sua própria teologia. É sabido que desde os tempos mais remotos fora exigido dos cristãos
a capacidade de dar razão à sua esperança (1Pd 3,15) e de distinguir a verdade revelada da
heresia (1Jo 4,1). Não podemos também excluir o contado do cristianismo com a linguagem
e a estrutura reflexiva de pensadores não cristãos a fim de contribuir em sua percepção de
mundo (cf. At 17). Também hoje, caso a Igreja não se veja limitada à atividade de reprodução
literal do mesmo reconhecer-se-ia, invariavelmente, obrigada a adotar, a dialogar e a adaptar
formas contemporâneas de pensamento com vistas a uma investigação mais profunda da realidade – quem sabe a fim de explicar algum aspecto da fé. Esse é o processo da fé que busca
esclarecimento, conforme enfatiza a conhecida expressão atribuída a Santo Anselmo: “neque
enim quaero intelligere ut credam, sed credo ut intelligam” (“não quero saber para crer, mas crer
para saber”).
O teólogo se encontra em face de duas demandas dificilmente conciliáveis: a primeira se refere à crença de que as perguntas conceituais básicas devem, necessariamente,
possuir uma resposta – Deus é, nesse caso, o eterno sujeito do tempo, a resposta para todas
as demandas; a segunda se trata da constatação de que a Sagrada Escritura sozinha é bastante
imprecisa em relação a estas questões, carecendo de ulteriores aprofundamentos para que,
de fato, possa ser considerada “compreendida”. Realmente, a situação é bastante complexa,
dado que grande parte da linguagem da Bíblia está dotada de sentido figurado e simbólico.
Além disso, da relação – às vezes conflituosa – entre filosofia e teologia é possível aferir duas
outras interfaces: o argumento filosófico se baseia unicamente na razão, apelando para as normas lógicas dedutivas e indutivas; mas também a razão adquiriu um significado normativo.
Já Descartes sustentou que devia acreditar somente no que se pudesse perceber com clareza
e exatidão – a clara et distincta perceptio – obtidas pelo entendimento e a intuição racional.
Tal racionalismo, como denominou-se posteriormente, levou Descartes à conclusão de que
150
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 1, p. 148-155, jan./mar. 2017.
podia duvidar de tudo, incluindo duvidar de todos os sistemas religiosos vigentes (note-se
que também a teologia naquela ocasião havia sido posta em xeque por este autor), mas não
da existência de Deus.
De maneira contrária Locke sustentaria que apenas é razoável crer naquilo que nos
advém dos sentidos, o que também parece razoável. Tais apreciações racionais são certamente
atrativas, dado que ninguém pode furtar-se a elas. No entanto, é preciso que se completem.
O perigo teológico que está presente no racionalismo é o de reivindicar legitimidade a priori,
sem que os dados da revelação estejam de acordo com suas próprias condições – quiçá as
condições da razão. Tal perigo se acentua ainda mais no caso dos enfoques que privilegiam
a uma teologia de matriz iluminista. Aqui não se trata simplesmente de que a razão impõe
limites para a revelação, mas de dar nova forma a toda a teologia, inserindo-a numa perspectiva racional. O exemplo mais notável talvez seja o de Kant, aquele que negou impor a existência de Deus sobre as bases da razão ou da revelação, senão como uma experiência moral.
Para Kant a teleologia moral, que não é menos solidamente fundamentada do que a física,
merece mesmo a preferência, pelo fato de assentar-se a priori em princípios inseparáveis da
nossa razão e conduzir àquilo que é exigido para a possibilidade de uma teologia, isto é, de
um conceito determinado da causa suprema como causa do mundo segundo leis morais, por
conseguinte de uma causa tal que satisfaça o fim terminal moral. Para tanto são exigidas nada
menos do que a onisciência, a onipotência, a onipresença etc., como qualidades naturais que
lhe pertencem, as quais têm que ser pensadas numa ligação com o fim terminal moral – que
é infinito – e, por conseguinte, a ele são adequadas. Desse modo, pode aquela teleologia por
si só fornecer o conceito de um único autor do mundo apropriado a uma teologia (ver Crítica
à faculdade do juízo).
MAIS QUE UM OBJETO, UM OBJETIVO COMUM
É verdade que muitas outras semelhanças podem ser demarcadas entre filosofia
e teologia. De maneira geral, ambas abordam temas em comum, ambas representam uma
autêntica e profunda indagação sobre a realidade, indagação que ultrapassa os limites do
palpável, da matéria física simplesmente dada. Assim, entre os principais temas, comuns
tanto à teologia, quanto à filosofia, estão: a origem do mundo, a existência do espírito e a
imortalidade do mesmo, a liberdade, a finalidade da vida humana, sua função na existência,
os valores, a moral. Isso, diga-se de passagem, também não impede que haja distanciamentos entre ambas, começando pelo fundamento radical de uma e de outra. A filosofia repousa única e cegamente sobre a razão humana, nada que não seja demonstrável pela razão
pode estar em seu núcleo. A teologia, ao contrário, sustenta suas afirmações especialmente
a partir do princípio da fé, fé no revelado por Deus, fé na tradição empreendida desde
temos imemoriáveis. Está, nos dizeres de Marion (2007), no ponto de confluência “entre
o visível e o revelado”, embora nem sempre visível aos olhos dos sentidos. Justamente por
isso acaba por conter muitas afirmações e conteúdos que não estão plenamente ao alcance
da filosofia, dado o fato de excederem à razão. Este é o caso dos “mistérios” e dos “dogmas”.
Nesse sentido, para o indivíduo que crê a teologia representa uma indagação ainda mais
profunda que a filosofia.
Mas esta não é a única diferença entre ambas. Há, por último, que se considerar
que, em termos pedagógicos a teologia se apresenta como um movimento mais completo que
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 1, p. 148-155, jan./mar. 2017.
151
a filosofia porque compromete o ser humano integralmente. Enquanto a filosofia inclui o
conhecimento das verdades e a teoria moral, a teologia supõe o conhecimento das verdades,
a exigência da vida moral e a relação vital com Deus e os irmãos. Em resumo, teologia e filosofia se assemelham na capacidade de representarem, ambas, uma visão profunda dos temas
que interessam a todo ser humano. Distinguem-se, apesar disso, por sua diferente base (fé e
razão) e pelo maior alcance da teologia em relação à totalidade do ser humano – como efetiva
exigência da relação.
Seria interessante observarmos o contato entre filosofia e teologia – a essa altura
partindo de um olhar mais abrangente – tomando como exemplo a grande quantidade de
filósofos que também foram teólogos, homens de profunda fé religiosa e que passaram continuamente em seus escritos do universo filosófico ao teológico e vice versa. Basta lembrar,
por exemplo, que os filósofos cristãos – sejam eles católicos ou protestantes – representam
a grande maioria dos pensadores conhecidos na história. No caso destes homens, filosofia e
teologia se complementaram de forma profundamente organizada e fecunda. A filosofia sugerindo a base racional. A teologia agregando fé à visão da outra. Em um indivíduo que possui
fé, porquanto, filosofia e teologia se complementam mutuamente.
Em segundo lugar, a revelação divina, como dissemos, requer ser compreendida
à luz da razão. Todo homem se interroga a si mesmo, como fizeram os grandes povos da
civilização humana: os gregos, os israelitas ou os orientais. Partindo do espanto inicial,
todos estes chegaram a formar diferentes sistemas de pensamento, considerados hoje como
integrantes e mantenedores do grande patrimônio espiritual da humanidade. Para alguns
fundamentalistas, o movimento de centralização do indivíduo iniciado na modernidade deporia contra o primado de Deus, mas estes casos não devem ser levados tão a sério. A maturidade dos anos subsequentes permitiu conceber que a filosofia, ao contrário de desagregar,
constitui-se como uma ajuda indispensável para entender os desígnios do divino. Nesse
sentido, sua “utilidade” novamente repousaria em ser suporte para a teologia, estrutura de
reflexão e apoio.
A respeito da revelação, poderíamos esquematizar do modo como segue. I) Por
meio dela acolhemos o mistério salvífico de Deus em seu Filho e o mistério do ser humano se
esclarece na Encarnação e na Redenção de Jesus na Cruz. A verdade de Deus e do ser humano
resplandecem em Cristo. Essa verdade divina se insere no tempo e na história da humanidade.
II) Por conseguinte, a filosofia e as ciências estão na ordem natural, enquanto a fé na ordem
sobrenatural. Há conhecimentos provenientes da razão e conhecimentos oriundos da fé. Em
ambos os casos o conhecimento é o caminho sem descanso, mas humilde, até a transcendência, única realização possível em plenitude para o homem. III) A verdade da revelação respeita
a autonomia da liberdade, mas a obriga a abrir-se à transcendência, sendo que a natureza é o
primeiro passo para este movimento. O ser humano é um ser em relação, um explorador do
belo, do bem e do verdadeiro. Todos os seres humanos desejam conhecer a verdade suprema,
científica, ética e humana. Há um sentido para a vida? Para onde estamos indo? O absoluto
correspondido na ideia de Deus dá sentido e resposta a estas interrogações. IV) Filosofia e
teologia, desse modo, integram um ciclo de complementaridade e, jamais, de oposição – um
caminho bilateral, de fortalecimento para ambas.
Com base no que dissemos até aqui, insistimos que o destino da filosofia e da
teologia no Ocidente nunca esteve completamente diferenciado, nem no momento de suas
origens, nem hoje. No começo da história ocidental ambas tiveram que afirmar-se frente
152
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 1, p. 148-155, jan./mar. 2017.
a uma mitologia, em alguns casos ligada à magia e, em outros, incapaz de chegar às perspectivas e exigências morais que são inerentes à sacralidade do ser humano. Platão definiu
sua proposta frente a Homero e Hesíodo, já que os mitos por estes propostos corrompiam
os homens em imoralidades. O mesmo fez Aristóteles àqueles que confundiam a realidade
física com supostas disputas ou resultado da luta entre deuses e homens. Ao final do século
XX, porém, filosofia e teologia viram-se novamente próximas, protegidas, por um lado, e
ameaçadas, por outro. Desta vez a ameaça não mais provinha da mitologia, mas da ciência,
plenamente estabelecida e atuante no mundo dos homens. Apenas parece dotado de legitimidade o racional, tomado no sentido positivo da ciência, e apenas pode ascender a este
mesmo status o que se submete ao procedimento de um método, à linguagem da ciência,
aos programas de investigação e transmissão aos quais estão sujeitas as vertentes das chamadas ciências “duras” e/ou “exatas” (este é o caso dos sistemas de avaliação adotados pelas
instituições que supervisionam o ensino e a pesquisa no Brasil: fala-se em termos de metas,
de quantidade, de resultados/produtos).
Seguindo este itinerário, filosofia e teologia assumiram um destino comum em relação à mera mitologia. Sua tarefa se concentrou em resguardar a realidade do ser e do dever,
do esperar e de Deus, apenas a partir dos quais o homem é realmente homem (capacidade
de simbolização e ser moral). Sem essas características sua vida apenas perdura e seu estar no
mundo não pode ser considerado autêntico por si mesmo. Pode até estar em um mundo, mas
não o constitui por meio de sua ação. Está no mundo de maneira fática, mas não se integra
a ele como o construtor à sua morada; apropria-se como simples objeto à disposição. Como
sentinelas da essência do humano, na situação atual tanto a filosofia, quanto a teologia, devem
se considerar ameaçadas – sobretudo enquanto disciplinas e/ou ramos legítimos do conhecimento universal – por um imperialismo científico, que nega a realidade e existência aos objetos acerca dos quais ambas inquerem. Por não possuírem nem uma verificabilidade, nem uma
falseabilidade universais, estão reduzidas ao mundo do temor ou do desejo, da elucubração
e da fantasia, legítimos na intimidade de cada indivíduo, mas sem a capacidade de reclamar
qualquer intervenção pública, sem um lugar ao sol na arena das demais ciências, que às vezes
parecem se encaminhar para um utilitarismo do mais baixo nível.
A despeito disso, filosofia e teologia têm coexistido, em concórdia e cooperação,
desde as origens, com Platão, Aristóteles e Santo Agostinho, mas ainda em tempos mais
próximos de nós, com Buber, Heidegger, Wittgenstein, Lévinas, Unamuno, por um lado,
bem como por Bultmann, Rahner, Balthasar, Pannenberg, Küng, Ratzinger e tantos outros.
A questão de Deus é a constante que enreda a consciência filosófica do Ocidente desde os
pré-socráticos até os nossos dias. Ele, que fora recebido no seio das reflexões atendendo
por muitos nomes: o Absoluto, o Princípio, a Causa primeira, o Fundamento, o Fim último, a Razão universal, o Ipsum Esse subsistens, o Non aliud. Quer sobre uma ou sobre
outra invocação, resta ao pensamento como uma presença permanente. Foi assim quando
a professora Heinz Heimsoeth, em Os seis grandes temas da metafísica ocidental começou
enumerando um capítulo sobre Deus e o mundo, seguindo, o próximo, sobre a Infinitude e
o finito. O mesmo fariam, por caminhos diversos, Husserl e Marion. Deus é o permanente
tema comum a toda a filosofia e teologia na história ocidental. O próprio termo teologia
não é produção dos cristãos, sendo forjado já pelos gregos, como quando Aristóteles a compara à singular tarefa do filósofo ao empreender a ciência de todas as ciências, a metafísica
(ver Metafísica, VI).
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 1, p. 148-155, jan./mar. 2017.
153
ALGUMAS PALAVRAS PARA CONCLUIR
Na esteira de nossa interpretação, o que denominamos por medievalibus convertionem em nada diminuiu o prestígio de uma em relação à outra. Nesse caso, talvez possamos
nos beneficiar da alegoria elaborada por Hegel (2005) ao tratar da semelhança entre senhor
e escravo. Dada a mútua dependência entre ambos, não há que se falar em dominador e dominado, pois tudo dependerá da perspectiva empreendida. Aliás, o Mestre de Nazaré já havia
ensinado que aquele que quer ser o primeiro deve, antes, ser o servidor de todos (cf. Mt 20;
Mc 9). Nesse sentido, Jesus e Aristóteles estariam em comum acordo ao definir a filosofia
como o primeiro movimento rumo à compreensão do mundo, do homem e de sua relação
com o transcendente (os outros, Deus, a natureza); movimento que, forçosamente, alcançou
a maturidade de discernir pelo desenvolvimento da área teológica em sentido estrito. A fraternidade estabelecida daí em diante privilegiaria ora a irmã mais velha (a filosofia), ora a mais
nova (a teologia), sem, contudo, assinalar nenhum demérito para qualquer uma das duas.
Nesse sentido, vale mesmo a pena concluir com o trocadilho: o que Deus e o homem uniram,
engodo nenhum poderá separar.
DE SERVITUTE PHILOSOPHIAE
Abstract: taking as a pretext the current context of the relationship between the areas of philosophy and theology within the Postgraduate in Brazil, this text is intended to indicate a reading
integrator bias, according to which it is impossible to disassociate the reasoning structure itself to
the philosophy of theological knowledge. In view of this, reconstructs through some examples the
route traveled by these two disciplines throughout Western history, elucidating, whenever possible,
the interbreeding of their looks, the common election of its objects and the understanding that are,
both, legitimate forms of human beings to relate to the universe that surrounds it.
Keywords: Philosophy. Theology. Integration.
Nota
1 Entre outros autores, valeria a pena verificar os questionamentos levantados por Marion (2007) acerca da
forma adequada deste conceito: houve realmente uma filosofia cristã, ou apenas uma filosofia produzida por
cristãos? (ver O visível e o revelado).
Referências
AGOSTINHO. As confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1979. (Coleção os Pensadores)
ARISTÓTELES. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentários de
G. Reale. Tradução Portuguesa de M. Perine. São Paulo: Editora Loyola, 2001.
DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Editora
Nova Cultural Ltda., 2000. (Coleção Os Pensadores)
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses.
3.ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
HEIMSOETH, Heinz. Los seis grandes temas de la metafisica occidental. Madrid: Revista de
Occidente, 1946.
154
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 1, p. 148-155, jan./mar. 2017.
JOÃO PAULO II. Fides et ratio – sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Paulus, 1998.
KANT, Immanuel. Crítica à faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
MARION, Jean-Luc. Il visibile e il rivelato. Traduzione dal francese di Carla Canullo. Milano:
Editoriale Jaca Book SpA, 2007.
PLATÃO. Apologia de Sócrates e outros textos. Tradução Jaime Bruna et alii. São Paulo: Nova
Cultural, 1991. (Coleção Os Pensadores)
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 1, p. 148-155, jan./mar. 2017.
155
Download