Duas visões da Europa

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O IMPASSE EUROPEU
Duas visões da Europa
José Cutileiro
Il [Barrère] croit toujours qu’il faut animer les masses;
il faut, au contraire, les diriger sans qu’elles s’en aperçoivent.
Napoleão a Fouchet, Aix-la-Chapelle, 9 de Setembro de 1804
NAS COSTAS DO POVO
A tentativa de construção europeia de Bonaparte era revolucionária e militar mas encontrou dificuldades parecidas com as da União Europeia, civil e reformista, duzentos anos
depois. Há, é certo, grandes diferenças: por exemplo, quem acabou de vez com os desígnios do pequeno tenente corso foi uma aliança armada de potências tradicionais mas
quem está a fazer repensar o projecto europeu, cuja sobrevivência não está em causa,
é uma vaga de fundo pacífica, expressa nas urnas e em sondagens de opinião. Os dois
casos, porém, confirmam uma certeza conhecida: a vontade popular acaba sempre por
vir ao de cima.
No tempo de Franco a revista humorística espanhola La Codorniz (la revista mas audaz para
el lector mas inteligente) trazia sempre uma anedota a ocupar a capa toda. Lembro-me do
número em que se via um sonâmbulo em camisa de dormir a atravessar a rua de noite, à
altura do segundo andar. Na janela da casa ao lado, um vizinho murmurava para outro:
«Não o acordes que pode cair». Ao escolher o referendo como método de ratificação do
Tratado Constitucional europeu, Jacques Chirac acordou o povo francês do sonambulismo em que, desde ainda antes do Tratado de Roma em 1957, este fora vivendo a construção europeia. Em 1992, quando da ratificação do Tratado de Maastricht, o despertar
incómodo estivera por um triz, mas Mitterrand era mais hábil do que Chirac, não havia
10 por cento de desemprego em França, o tratado foi aprovado à justa e, até este ano, os
franceses não tinham tornado a fazer interrogações fundas e urgentes sobre o processo
de construção europeia em curso.
Com efeito desde Jean Monnet e Robert Schuman, da Comunidade Europeia do Carvão e
do Aço, que se iam celebrando acordos, criando instituições e gizando planos de trabalho
à puridade, no sossego de gabinetes de juristas e de técnicos, com conhecimento dos
governos e pouco mais. Os parlamentos nacionais não eram chamados a pronunciarem-se, a imprensa não se interessava ou interessava-se sem alarde e os povos, isto é, todos
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nós, sabiam que havia um projecto europeu mas, em política, tinham preocupações mais
sérias e urgentes. Além disso a Guerra Fria não encorajava perguntas que pusessem em
causa a maneira como vivíamos. A «Europa» foi crescendo sem que os europeus nisso fossem vistos nem achados (o que, note-se bem, nem sempre deu mau resultado). Os sucessivos alargamentos, três antes e dois depois da queda do Muro de Berlim, acrescentaram
mais território e mais gente ao projecto mas não mudaram a sua opacidade.
O primeiro deles, porém, que em 1973, às Comunidades Europeias dos seis países fundadores (França, Alemanha, Itália e Benelux) acrescentou Dinamarca, Irlanda e Reino
Unido, veio criar um pólo de aspirações diferente daquele que Paris e Bona haviam começado a construir. Encetou-se então um debate que ainda hoje dura entre duas visões da
Europa: a Europa (para falar à francesa)
A «EUROPA» FOI CRESCENDO SEM QUE OS EUROPEUS com vocação de Estado, de organismo político federal, em que as nações se submeteNISSO FOSSEM VISTOS NEM ACHADOS (O QUE,
NOTE-SE BEM, NEM SEMPRE DEU MAU RESULTADO). riam a governação central colectiva e que se
tornaria um pólo de poder universal, confrontando-se com os Estados Unidos e, um dia, a China. E a Europa potência económica,
comercial e financeira do mundo contemporâneo, difusora de estabilidade num tempo
convulso, complementando a sua segurança por aliança transatlântica, sem ambição de
ser superestado, por os seus proponentes entenderem que tentativas de criação desse
superestado iriam provocar reacções adversas das populações e prejudicar o que já se
obtivera em comum entre países membros. A França apresentava-se como advogada da
primeira Europa e o Reino Unido da segunda.
A opacidade da governação comunitária e o sonambulismo das massas fez com que os
tratados se fossem sucedendo – depois de Maastricht (que nos daria o euro), Amesterdão (que nos daria o Alto Representante para a Política Externa); depois de Amesterdão,
Nice; depois de Nice, o Tratado que franceses e holandeses agora rejeitaram – cada um
deles aumentando mais os laços formais entre os europeus a caminho de uma união
cada vez mais chegada. A Comissão Europeia, cujo fortalecimento era desejado pela
França de Giscard e a seguir Mitterrand e a Alemanha de Schmidt e a seguir Kohl, encontrou em Jacques Delors um timoneiro inspirado e, durante alguns anos, o método comunitário (em que as decisões são tomadas por maioria, adoptando os estados vencidos as
decisões propostas pelos vencedores) foi-se impondo em várias áreas e fez da Comunidade, hoje União, uma potência económica e comercial gigantesca, um regulador de
concorrência acatado em todo o mundo e o maior fornecedor mundial de ajuda ao
desenvolvimento. Porém, em áreas marcadas mais profundamente nas identidades
nacionais, como, por excelência, a defesa e a política externa, mas também a justiça e a
fiscalidade, as decisões continuam a ser tomadas por unanimidade, isto é, se uma minoria de Estados não estiver de acordo (basta que um não esteja) não haverá decisão. Este
estado de coisas agrada e convém aos que querem uma Europa economicamente forte
sem futuro político federal. Para os defensores do método comunitário, pelo contrário,
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que apetecem uma Europa federal, este estado de coisas é nocivo e deveria ser corrigido
o mais depressa possível. O debate vem desde 1973 e, apesar da União Europeia se ter
dotado nos últimos anos de um quase-ministro dos Negócios Estrangeiros e de algumas
competências militares, o método comunitário de decisões não ganhou novos terrenos
significativos.
NAS GARRAS DO POVO
Mas deu-se uma outra mudança. Grande. Até Junho deste ano as posições dos governos
dos países da União eram consideradas como sendo as posições desses países. Houvera,
em 2003, uma perturbação: em países cujos governos apoiavam a administração Bush na
guerra do Iraque, sondagens de opinião mostraram que as populações estavam contra a
guerra. Mas nenhum governo (salvo o espanhol, em circunstâncias muito extraordinárias) caiu por causa disso e, para efeitos de política internacional, as posições dos governos eram, constitucionalmente, as posições dos países.
O recurso ao referendo em França (e na Holanda) e o resultado desse referendo tornaram o divórcio entre posições de governos e posições das massas (para empregar o
termo de Napoleão) significativo constitucionalmente. A Assembleia Nacional francesa
que teria ratificado o tratado aí por 80 por cento das vozes não pôde, nem no futuro
poderá, sozinha, fazê-lo. De agora em diante, em questões europeias de importância
será preciso consultar directamente os eleitores – não só em França e na Holanda mas,
estou seguro, em países que até hoje se tinham limitado a ratificação parlamentar nestas
matérias. Os resultados desta mudança de método de validação de posições nacionais
serão muito significativos.
Em primeiro lugar, os passos futuros que se derem de construção europeia serão muito
mais lentos. As Comunidades viram a luz do dia porque as decisões que a pouco e pouco
levaram a elas foram tomadas por técnicos e governantes que não precisavam de aprovação parlamentar – e menos ainda de aprovação popular. Quando, noutro capítulo do
começo da construção europeia, se pediu a um Parlamento que se pronunciasse o resultado foi categórico. Em 1954, o governo de Paris levou à Assembleia Nacional o projecto
de uma Comunidade Europeia de Defesa – que implicava o rearmamento da Alemanha –
e os deputados disseram-lhe redondamente que não. (Ao contrário do que se costuma
ler, esse voto não atrasou nem prejudicou a defesa europeia a qual continuou a fazer-se
na NATO, em cujo quadro a Alemanha, admitida nesse ano, se rearmou.) Dada a inevitabilidade futura de referendos, podemos antecipar, por um lado, uma saudável preocupação em tomar medidas que os eleitores compreendam e possam aceitar – mas, por
outro lado, o risco muito pouco saudável de, para agradar a facetas xenófobas e proteccionistas do eleitorado, virem a ser propostas e eventualmente aprovadas medidas populistas de agrado imediato e consequências desastrosas futuras. A construção europeia
passou a estar muito menos protegida da demagogia inevitável em regimes democráticos do que tinha estado até agora.
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As duas vítimas potenciais mais prováveis, se as coisas forem por esse caminho, serão
a modernização das economias europeias anquilosadas (sobretudo francesa e alemã)
e os alargamentos futuros da União (Bulgária, Roménia, os Balcãs, Turquia, um dia
Ucrânia).
Sem tal modernização económica a Europa não poderá continuar a desempenhar o seu
papel preponderante na economia e no comércio mundial, o que seria mau para todos
nós. Sem alargamentos, muito principalmente à Turquia e à Ucrânia, a Europa deixará
dentro de poucas décadas de ser capaz de criar riqueza que chegue para pagar as pensões
de reforma dos seus velhos e, num mundo hostil e armado, ficará em situação estratégica muito menos confortável do que aquela em que se encontraria com uma barbacã
ucraniana a leste e uma barbacã turca a sudeste.
A mais curto prazo ou, melhor dito, já evidente, houve ainda outra mudança. Durante os
anos opacos entre Maastricht e o Tratado Constitucional era um lugar-comum pensar-se que ingleses queriam uma Europa comercial – uma zona de livre-câmbio – e que franceses e alemães queriam uma Europa política – um Estado federal. Era a diferença entre
alargamento e aprofundamento. Os resultados dos referendos na França e na Holanda
obrigam a corrigir esta formulação. Houve muitas razões para os dois «Não», várias
delas nacionais e específicas de cada país: descontentamento com os respectivos governos, medo de diluição de identidade entre os holandeses, medo de ainda mais desemprego entre os franceses – mas houve também razões europeias: dificuldades do texto do
Tratado, descoberta (na terceira parte deste) de disposições já existentes sobre as quais
houvera pouca consulta e informação, desagrado geral com «Bruxelas». Como, além
disso, quase todos os governos de estados-membros fazem regularmente de bode espiatório e bombo da festa da Comissão Europeia, esta, já traumatizada pelos escândalos da
Comissão Santer e pelos mecanismos kafkianos de autocontrolo com que se flagela
desde então, saiu maleferida do exercício. A recusa do Tratado e a erupção concomitante
de nacionalismos não parecem propiciar
A «VISÃO FRANCO-ALEMû REVELOU-SE UMA VISÃO aumento de competências comunitárias.
DE ELITES QUE CINQUENTA ANOS DE CONSTRUÇÃO Baterias de sondagens pós-referendo
apontam directa e indirectamente nesse
EUROPEIA NÃO CONSEGUIRAM IMPLANTAR
sentido. De maneira que o dilema entre a
NAS ALMAS DOS POVOS.
«visão inglesa» e a «visão franco-alemã» da
União Europeia parece por agora ter desaparecido. A «visão franco-alemã» revelou-se
uma visão de elites que cinquenta anos de construção europeia não conseguiram
implantar nas almas dos povos. Os cidadãos europeus estão interessados numa Europa
próspera que garanta estabilidade à sua volta (onde o papel crucial da Comissão no
comércio externo e na concorrência tem sido muito bem desempenhado) mas não estão
interessados num Estado Federal europeu: dir-se-ia que a «visão inglesa» é partilhada
pelos povos de muitos outros países, incluindo a França e a Alemanha. De duas Europas
passou a haver uma.
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Ou quase. Porque dois elementos da «visão inglesa» nem sempre recolhem o sufrágio de
opiniões públicas europeias recentemente inquiridas: primeiro, legislação social e laboral mais flexível para melhor desempenho económico e menos desemprego; segundo,
vantagens estratégica, política e económica de prosseguir o alargamento da União. Em
muitos estados-membros, no Parlamento Europeu e na Comissão, os políticos que considerarem estes dois elementos indispensáveis para o futuro da Europa terão de se bater
a sério por eles.
Antes da construção europeia se ter afirmado como o movimento político mais activo,
coerente e influente do continente, quando chegava o Verão a Europa ia para a guerra –
famosamente, já no século XX, em 1914 e 1939. Agora, graças ao engenho de Monnet e
Schuman e à clarividência de alguns homens de Estado coevos, vai para férias. Na próxima rentrée recomeçará o trabalho de reforçar a União e de tornar os seus membros mais
ricos, mais seguros, mais coesos e mais influentes no mundo, enquanto se medite e discuta com que linguagem e em que altura se irá por fim mudar, para melhor, o Tratado
de Nice que por enquanto nos rege. São duas tarefas distintas e convém não confundir o
mapa com o território.
JULHO DE 2005
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