Verbos metafóricos e colocações verbais metafóricas na

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3ª Conferência Internacional de Terminologia Marítima / 3rd. International Conference on Maritime Terminology
Verbos metafóricos e colocações verbais metafóricas
na terminologia marítima
SUSANA CORREIA & RENATA VALENTE
Instituto de Linguística Teórica e Computacional
[email protected]
1
Introdução
O presente trabalho tem por objectivo descrever e analisar alguns verbos e colocações
verbais1 com significado metafórico na terminologia marítima. A metáfora é uma figura
linguística muito frequente nas línguas de especialidade2. Para esta análise servir-nos-emos do
modelo de análise lexical da Teoria Sentido-Texto (Mel’čuk e Žolkovskij 1970), de onde deriva
a Lexicologia Explicativa e Combinatória (Mel’čuk et al. 1995). Este modelo foi testado
eficazmente na análise de lexias verbais e adjectivais especializadas do discurso da
Microinformática em português brasileiro (cf. Valente 2002), razão por que se decidiu aplicar
alguns dos seus princípios ao tratamento de verbos do discurso da náutica em português
europeu.
Neste modelo assume-se que um dado vocábulo3 é composto por várias lexias, as quais
podem ser definidas da seguinte forma:
“Une lexie est, dans le cadre de la TST soit un lexème, qui est un mot pris
dans une acception bien spécifique, soit un phrasème, qui est une locution,
prise également dans une acception bien spécifique.” (in Valente 2002,
apud Mel’čuk et. al. 1995:56-57).
1
Mais adiante, na secção «II. Análise das colocações», será apresentada uma definição das mesmas.
Cf. a este respeito, o trabalho de Oliveira (2002), a propósito da especificidade das línguas
especializadas a partir da metáfora, especificamente, no discurso da cardiologia.
3
«Un vocable est, selon la TST, “ (...) l’ensemble de lexies dont les signifiants sont identiques et dont les
signifiés partagent des composantes sémantiques importantes”» (Valente 2002, apud Milicevic 1997:2).
2
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Cada lexia é, por sua vez, constituída por um número x de componentes semânticos
(onde há necessariamente um componente semântico central4 e componentes periféricos –
Mel’čuk et al. 1995), os quais apresentam significados gerais ou especializados (são estes
componentes semânticos especializados que vinculam necessariamente uma lexia a um
determinado discurso especializado).
Segundo Valente 2002, uma lexia especializada contém componentes semânticos
especializados periféricos que se juntam ao componente semântico central ou periférico da lexia
de origem (LO)5, dando origem a uma nova lexia, isto é, uma lexia especializada. Pode também
suceder que uma lexia especializada seja o resultado de uma remodulação6 total nos
componentes semânticos de uma LO, dando também origem a uma nova lexia, desta vez através
de um processo metafórico. Tomemos um exemplo como DEITAR:
Deitar (Língua Geral7) = pôr horizontalmente.8
Deitar (Língua de Especialidade9) = ter velocidade, dar, fazer, em referência ao
andamento do navio.
As duas lexias não têm, aparentemente, qualquer relação semântica entre elas. Porém,
observando-as atentamente, notamos que neste caso houve uma remodulação total nos
componentes semânticos centrais e periféricos da LO dando lugar a uma nova lexia, a lexia
especializada deitar, específica ao discurso da náutica. Notemos que o facto de a lexia
especializada ser metafórica e de, portanto, não compartilhar nenhum componente característico
com a lexia de origem não implica a inexistência de um componente que “ligue” a LO da LG e
a lexia especializada da LE, pelo contrário. Existe um componente semântico que liga a LO e a
lexia especializada e que permite que se fale de metáfora. Este componente é o ‘componente
subjacente à transferência metafórica’. Esse componente formal dá conta do processo
metafórico que se estabelece entre a lexia especializada ‘B’ e a lexia de origem ‘A’, no qual ‘B’
lembra ‘A’. A metáfora pode, portanto, ser definida grosso modo como a analogia que se
estabelece entre um sentido ‘A’ e um sentido ‘B’, em que ‘B’ lembra ‘A’ ou, de outro modo,
como se ‘B’ fosse ‘A’.
Deste modo, neste trabalho procuraremos confirmar a existência de um significado
metafórico em algumas lexias especializadas (verbos e colocações verbais) da terminologia
marítima. As questões que se levantam prendem-se sobretudo com o conteúdo de alguns verbos
e de algumas colocações verbais no que diz respeito:
i)
ii)
Aos componentes semânticos de certas lexias verbais especializadas e de suas lexias
de origem;
Ao modo como é estabelecida a analogia entre uma L1 (LG) e uma L2 (LE) (verbos
e colocações).
4
O mesmo que a paráfrase mínima da lexia descrita (Mel’čuk et al. 1995).
A este propósito Valente (2002:7) afirma que «L’analyse d’une lexie spécialisée est faite par rapport à
son sens d’origine (lexie d’origine) en langue générale». É deste pressuposto que partimos. LO = lexia
de base. A LO de uma lexia especializada é aquela na qual se observa o compartilhamento de pelo menos
um componente semântico NÃO TRIVIAL entre LO e LE, ou é aquela cujo significado de uma lexia B
lembra o significado de uma lexia A [= LO]. Note-se que a LO é geralmente a lexia de base do vocábulo.
A definição de ‘lexia de base’ que adoptamos é a de Mel’čuk et. al (1995:159) «La lexie de base d’un
vocable est une lexie L telle que les autres lexies du vocable font directement ou indirectement référence
à L alors que L ne fait aucune référence aux autres lexies du vocable».
6
O m.q. ‘reformulação’, ‘remodelação’. O termo ‘remodulação’ é usado em Valente (2002), razão por
que decidimos usá-lo também nesta comunicação.
7
Para uma definição de ‘língua geral’ e ‘língua de especialidade’ cf. Antunes (no prelo).
8
No que concerne às definições dos dicionários citados na bibliografia, gostaríamos de dizer que, em
alguns casos, esssas definições foram ajustadas, de modo a melhor dar conta do significado.
9
LE de agora em diante.
5
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2
Metodologia
O corpus de verbos e colocações foi construído a partir da extracção de verbos comuns
ao Tomo I do Português Fundamental (Vocabulário e Gramática) e ao Dicionário Ilustrado de
Marinha10 (cf. lista A).
Seguidamente, para extrair as locuções verbais, seleccionaram-se as entradas do
Dicionário Ilustrado de Marinha (a partir dos verbos da lista A) que eram formadas por Verbo
+ parte de navio (cf. lista B). O resultado desta selecção foi uma outra lista, de onde se
retiraram apenas as combinatórias V + leme, âncora, vela e respectivas definições (cf. lista C).
A escolha destas partes do navio e não outras, prendeu-se apenas com o facto de serem estas as
que mais frequentemente apareciam com os verbos seleccionados a partir da lista B.
Para terminar, escolheram-se os verbos da lista B que representavam uma acção
passível de ser realizada por um ser animado ou humano e cuja definição no Dicionário
Ilustrado de Marinha parecia mostrar um sentido metafórico, relativamente à definição
apresentada nos dicionários de LG.
Todas as acepções da LG foram retiradas dos dicionários Houaiss da Língua
Portuguesa11 ou Aurélio12. A opção entre as definições de um ou de outro, prendeu-se com o
facto de uma determinada definição representar mais adequadamente o significado de uma
lexia. Isto significa que procurámos identificar o significado mais bem descrito, ou seja, aquele
que melhor apresentasse a LO, acepção a partir da qual a lexia especializada se origina.
Para as lexias especializadas, tomámos como ponto de partida o Dicionário Ilustrado de
Marinha recorrendo apenas pontualmente (sempre que havia dúvidas quanto a um significado)
ao Dicionário da Linguagem de Marinha Antiga e Actual.
3
Análise dos verbos
Nesta secção procuraremos observar a existência de um processo metafórico nos verbos
deitar, largar, meter e tirar do discurso da náutica. Para este efeito, tentaremos mostrar como é
feito o processo de analogia entre as lexias de origem da LG e as lexias especializadas.
O processo metafórico não é aleatório ou casual. Trata-se de uma operação sistemática e
analisável, a qual procuraremos explicar nesta comunicação, realçando a sua importância na
terminologia marítima.
Comecemos pelo vocábulo DEITAR. A lexia de origem parece ser a seguinte:
Deitar1. Pôr (…) horizontalmente. (DA)
Há um componente semântico central ‘pôr’ e um componente semântico periférico
‘horizontalmente’.
A definição de DEITAR no dicionário especializado é a seguinte:
Deitar – Ter velocidade (em referência ao andamento do navio). (DIM)
Neste caso podemos dizer que a “ideia” transmitida pelo significado da LO é ‘mover no
sentido horizontal’. De facto, esta ideia parece estar subjacente à lexia especializada, se
lembrarmos que o navio se desloca no sentido horizontal. É esta ideia que vai provocar o
processo de analogia, levando à criação de uma nova lexia, uma lexia especializada. Podemos
dizer que é esta ideia que é representada pelo componente semântico subjacente à transferência
metafórica.
10
DIM, de agora em diante.
DHLP, de agora em diante. Apesar de serem dicionários com edição em português brasileiro, a edição
consultada foi a versão portuguesa e a variedade analisada foi a do português europeu.
12
DA, de agora em diante. Idem.
11
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Como podemos observar, não há um componente semântico característico comum a
essas duas lexias, que criaria uma ponte semântica entre essas duas acepções do vocábulo
DEITAR. Se houvesse uma ponte semântica entre a lexia de origem e a lexia especializada criada
pela existência de um componente semântico característico comum às duas lexias, não teríamos
um sentido metafórico.
O mesmo acontece com LARGAR. A lexia de origem parece ser a seguinte:
Largar1. Segurar com menos força. (DHLP).
Segurar seria o componente semântico central, e com menos força seria o componente
semântico periférico.
O significado da lexia especializada é:
Largar – Deixar o porto. (DIM)
Há neste caso a ideia de ‘desprender’ que é representada pelo componente subjacente à
transferência metafórica. É esta ideia que permite que se estabeleça uma analogia entre largar1.
da LG e largar da língua especializada. Neste caso a lexia especializada (‘B’) lembra a LO
(‘A’) através da ideia de desprendimento.
O vocábulo METER revela também um significado metafórico no discurso da náutica. A
lexia meter1. tem com significado ‘fazer entrar’ (DHLP). A acepção especializada é:
Meter – Carregar muito o navio aumentando o calado. (DIM).
A ideia subjacente ao significado das duas lexias (a de origem e a especializada) e que
provoca e legitima a metáfora é ‘colocar’. ‘Carregar muito o navio’ significa grosso modo
colocar dentro dele uma quantidade considerável de mercadoria. Assim, ‘B’ (meter LE) lembra
‘A’ (meter LG) por meio da ideia colocar.
E finalmente, com o vocábulo TIRAR acontece exactamente o mesmo. A lexia de origem
é:
Tirar1. Mudar (alguém ou algo) de lugar, fazendo(-o) sair de onde está. (DHLP)
Enquanto que a lexia especializada é:
Tirar – ser arrastado pela corrente. (DIM)
É possível entender que há, subjacente às duas lexias, a ideia de ‘deslocação’.
‘Deslocar’ é, com efeito, a representação de uma ideia evocada pela LO e que vai ser transposta
para a LE, sob a forma de um processo metafórico. Não há, também aqui, qualquer partilha de
componentes semânticos entre as duas acepções, já que a decomposição semântica da lexia nos
indica que mudar de lugar é o componente semântico central e fazendo sair de onde está é o
componente semântico periférico. Não há nada na lexia especializada que nos remeta para
algum desses componentes (‘ser arrastado pela corrente’).
Para melhor entender a remodulação semântica ocorrida na LO que deu origem à lexia
especializada, passamos a apresentar esquematicamente este processo, de modo a dar conta da
transferência metafórica.
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= Remodulação semântica
VOCÁBULO
Lexia de origem
DEITAR
Pôr horizontalmente.
LARGAR
Segurar com menos força.
METER
Fazer entrar
TIRAR
Mudar (alguém ou algo) de
lugar, fazendo(-o) sair de onde
está.
“Ideia” que provoca a
transferência metafórica
[‘B’ lembra ‘A’]
Mover para baixo no
sentido horizontal
X move Y
Desprender (algo)
X desprende(-se) de Y
Colocar
X coloca Y em Z
Deslocar
X desloca Y (para Z)
Nova lexia
Ter velocidade
Deixar o porto
Carregar muito o
navio
Ser arrastado pela
corrente
Há, portanto, motivo para acreditar na presença de um processo de analogia que se cria
entre as LO e as lexias especializadas. De facto, há uma “ideia” em todas essas lexias analisadas
que lembra as LO. No entanto, essa evocação não se faz pela presença de componentes
semânticos comuns, mas por um processo de analogia subjacente ao significado da LO e da
lexia especializada. Este processo só é possível graças à ideia que liga ‘B’ a ‘A’, representada
formalmente por um componente semântico, o ‘componente subjacente à transferência
metafórica’13 da lexia especializada. Este componente representa a “ideia” que evoca um certo
componente da LO e que permite a transferência metafórica. Como podemos observar, ele não
é, na verdade, um componente semântico stricto sensu, mas uma representação. É ele que vai
representar formalmente a analogia em que ‘B’ (Lexia especializada) lembra ‘A’ (LO da LG),
levando à criação de uma nova lexia, no caso, uma lexia especializada, já que se vincula
necessariamente a um discurso especializado.
Assim, como nos foi dado a observar, há um processo metafórico subjacente à criação
de certas lexias verbais especializadas no discurso da náutica. Este processo resulta, não da
partilha de componentes semânticos comuns entre a lexia de origem e a lexia especializada, mas
de um processo de analogia, segundo o qual ‘B’ (LE) lembra ‘A’ (LO), através da ideia
representada por um componente semântico subjacente à transferência metafórica. É esta ideia,
esta evocação, que legitima o processo metafórico.
4
Análise de colocações verbais
Nesta secção procuraremos mostrar que as combinações lexicais14 i) modificam ou
realçam o sentido metafórico dos verbos seleccionados; ii) acrescentam componentes
semânticos especializados ao significado do verbo; iii) dão lugar a combinatórias lexicais
especializadas.
No modelo de análse lexical da LEC, a definição de ‘colocação’ é a seguinte (cf. Ramos
& Mantha 1996):
“Une collocation est donc une paire d’expressions lexicales, la base et le collocatif,
telle que le choix de la base n’est contrôlé que sémantiquement, alors que le choix
du collocatif est, en plus, contrôlé lexicalement – notamment, par la base. Au
13
CSTM, de agora em diante.
Chamaremos neste trabalho as ‘combinatórias lexicais’ de ‘colocações’ com o seguinte sentido: uma
lexia A associa-se a uma determinada lexia B. Essa associação é semântica e lexicalmente controlada pelo
verbo.
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moment de la production du texte, la base est choisie en premier, car son sens est
plus perceptible que celui du collocatif et il est exprimé de façon indépendente.”
Na presente comunicação analisaremos as colocações verbais. Partiremos da hipótese
de que a base é um verbo, já que parece ser este a restringir o nome com o qual se combina e
não o contrário. De facto, deitar, largar, meter e tirar são usados isoladamente na LE da náutica
ou com muitos nomes, enquanto que âncora, vela ou leme são usados com um número limitado
de verbos. Ou seja, é o uso do nome que está restringido lexicalmente pelo verbo. Tratando-se
de verbos usados metaforicamente no discurso da náutica, interessa observar o que acontece ao
sentido destes verbos, uma vez usados em colocação. É o que faremos.
Começamos por apresentar a lista das colocações verbais seleccionadas, bem como a
definição apresentada no DIM, para, seguidamente e de um modo sistemático, apresentarmos a
nossa proposta de análise semântica, com vista a observar o significado metafórico dos verbos
já analisados, agora em colocação:
1. [Deitar]B [âncora]c – ancorar.
2. [Largar]B [âncora]c – ancorar.
3. [Largar]B [as velas]c – desdobrar pano.
4. [Meter]B [o leme]c – manobrar o leme.
5. [Tirar]B [o leme]c – desmontar o leme.
]B = Base
]c = Colocativo
A partir desta pequena lista é possível observar que os mesmos colocativos se podem
juntar a diferentes bases verbais. Importa agora analisar o comportamento da base relativamente
ao colocativo e responder às seguintes perguntas: i) será que ela sofre uma mudança radical de
sentido? ou ii) o seu sentido é apenas parcialmente alterado? ou iii) não haverá mudança
alguma?
5
Análise dos verbos metafóricos em colocação
‘Deitar’ é usado no discurso especializado no sentido de ‘ter velocidade (em referência
ao andamento do navio)’. Ora, com a junção do colocativo ‘âncora’, o componente semântico
em referência ao andamento do navio é suprimido, mantendo-se o componente semântico
central ter velocidade. Quando usado em colocação com âncora, e tendo âncora o componente
semântico ‘peso’, para fundear após ser expelida da embarcação, podemos verificar que o
sentido especializado do verbo é reforçado em colocação. Não há propriamente uma alteração
de sentido, mas um reforço, uma reiteração de sentido do verbo usado em sentido metafórico,
isoladamente. Note-se como parece ainda estar presente o componente subjacente à
transferência metafórica, neste caso (‘mover para baixo no sentido horizontal’15).
Nesta medida, podemos acrescentar que o termo âncora vem reforçar o sentido
metafórico do verbo ‘deitar’ usado neste discurso especializado. Não vem alterá-lo.
Deitar (LG) = significado X: pôr em posição horizontal.
Deitar (LE) = significado Y: ter velocidade.
Deitar a âncora = significado Y’ (Y + termo âncora ): ancorar.
O mesmo se passa com ‘largar a âncora’. ‘Largar’ (LE) é usado como «deixar o porto».
A LO é, no entanto, «segurar com menos força». Neste sentido, e se tivermos também aqui em
consideração o componente que provoca a transferência metafórica (‘desprender’) e o sentido
15
Por esta expressão entendemos o movimento:
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especializado do verbo, podemos verificar que a colocação vai reforçar o sentido metafórico
daquele (‘desprender’). ‘Largar a âncora’ é (também) «ancorar». Metaforicamente falando, é
como se a âncora partisse.
Largar (LG) = significado A: segurar com menos força.
Largar (LG) = significado B: deixar o porto.
Largar âncora = B’16: ancorar.
Do mesmo modo, a colocação ‘largar as velas’ vai reforçar o sentido metafórico
especializado do verbo ‘largar’. Se ‘largar’ (LE) significa ‘partir’ e o componente subjacente à
transferência metafórica é ‘desprender’, também aqui é possível falar em ‘desprendimento das
velas’.
Largar (LG) = significado A: segurar com menos força.
Largar (LE) = significado B: deixar o porto.
Largar as velas = significado B’’: desfraldar (pano, as velas)
Quanto ao verbo ‘meter’, sabemos que o seu sentido metafórico especializado é o de
‘carregar muito o navio’. Se decompusermos esta lexia em componentes semânticos, podemos
verificar que carregar muito é o componente semântico central e navio é o componente
semântico periférico.
A colocação ‘meter o leme’ é um bom exemplo deste reforço semântico, levado a efeito
pelo colocativo em relação ao sentido metafórico da base. Se ‘meter’ (LE) corresponde a
‘carregar muito o navio’, ‘meter o leme’ vai aproveitar o componente semântico central e, com
a junção do componente semântico ‘leme’, significa ‘carregar o leme a um bordo’, ou seja,
manobrar o leme para um dos lados, numa direcção. De facto, para ‘carregar o leme’ é
necessário colocar, empreender uma certa energia, de modo a que o navio obedeça. Voltamos a
lembrar que ‘colocar’ é o componente subjacente que provoca a transferência metafórica da LO
para a lexia especializada. Assim, ‘meter o leme’ significa ‘carregar o leme’ com a mesma
energia com que se ‘meteria o navio’. Mais uma vez, o sentido metafórico do verbo
especializado é reiterado pela presença de mais um componente especializado, neste caso
‘leme’.
Meter (LG) = significado C: fazer entrar.
Meter (LE) = significado D: carregar muito o navio
Meter o leme = significado D’: carregar o leme a um bordo.
Finalmente, o verbo ‘tirar’ parece ter um comportamento singular uma vez usado em
colocação com ‘o leme’, relativamente aos restantes verbos. De facto, ‘tirar o leme’ não é uma
metáfora, pois que a colocação não é constituída pela lexia especializada, mas sim por outra
acepção do vocábulo TIRAR, ou seja, a sua lexia de base. ‘Tirar o leme’ significa ‘mudar o leme
de lugar, fazendo-o sair de onde ele está’. Não houve, neste caso, qualquer remodulação
semântica.
De modo a tornar mais claro o processo de reforço do sentido metafórico dos três
primeiros verbos, apresenta-se de seguida, um quadro com todo o processo, desde o vocábulo à
colocação, passando pela lexia de origem e pelo verbo especializado.
16
B’ = Y’, mas composto por B + termo âncora. Isto equivale, esquematicamente, ao seguinte:
X
A
Y
B
Y’ ≈ B’
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“Ideia” que provoca a
transferência metafórica
[‘B’ lembra ‘A’]
Mover para baixo (no
sentido horizontal)
X move Y
VOCÁBULO
Lexia de origem
DEITAR
Pôr horizontalmente.
LARGAR
Segurar com menos
força.
Desprender (algo)
X desprende(-se) de Y
METER
Fazer entrar
Colocar
X coloca Y em Z
TIRAR
Mudar (alguém ou
algo) de lugar,
fazendo(-o) sair de
onde está.
Deslocar
X desloca Y (para Z)
Nova lexia (lexema e
colocação)
Ter velocidade (em referência
ao andamento do navio)
- âncora: ancorar.
Deixar o porto
- as velas: desfraldar as velas.
- âncora: ancorar
Carregar muito o navio
- o leme: carregar o leme a um
bordo
Ser arrastado pela corrente
- o leme17: desmontar e
guardar o leme.
Para terminar esta secção, parece-nos que a colocação completa, reforça o sentido do
verbo especializado, uma vez usado isoladamente. De acordo com o pressuposto sobre o
processo linguístico, há um processo de síntese da informação, o do falante, e um processo de
análise da informação, o do interlocutor como foi apresentado por Valente (2002:83). Assim, a
utilização de um desses processos na descrição de um fenómeno linguístico determina a
metodologia da sua descrição, bem como o resultado da sua descrição.
Será necessário para o interlocutor, primeiro, conhecer ‘meter’, depois ‘meter o leme’ e
por fim retirar o sentido global da estrutura em que a colocação está inserida. Assim, apenas o
contexto é capaz de anular a ambiguidade do enunciado e faria o interlocutor perceber que
‘meter’ (LE) e ‘meter o leme’, têm significados metafóricos relativamente a ‘meter’ (LG) e se
trata de diferentes lexias. Do mesmo modo, se um falante disser ‘deitar’ e ‘deitar a âncora’ na
situação do discurso da náutica, ele saberá que se está a referir ao verbo que designa a acção de
‘ter velocidade’ e à ‘acção de ancorar’, respectivamente. O falante sabe o que quer dizer, em
que estruturas vai construir o enunciado, com que morfemas e fonemas. Nunca haverá lugar
para ambiguidade.
Uma das diferenças mais evidentes desses dois processos de descrição pode ser
observada na análise que se faz das lexias de um vocábulo. No processo de síntese o falante
conhece muito bem as lexias que quer empregar para construir a sua frase. Ele vai buscar ao seu
‘dicionário mental’ as lexias desambiguadas para compor a sua frase. Por exemplo18: “o
‘pijama2.’ da ‘Ana’ tem ‘mangas11.’ ‘curtas21.’”19
17
O significado da lexia tirar neste caso é o da LG, ou seja, o mesmo da LO.
Os índices dessas lexias são do Dicionário Aurélio Século XXI (1999).
19
O índice [= número] superior designa o vocábulo seleccionado (relação de homonímia) e o índice
inferior designa a acepção do vocábulo seleccionada (relação de polissemia). Assim, por exemplo,
‘manga11’, significa que foi seleccionado o primeiro vocábulo e a primeira acepção de ‘manga’ (parte de
vestimenta) presentes no dicionário.
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Manga1
Pijama
1.
2.
3.
1.
2.
3.
Curta2
1.
2.
3.
pijama2
manga12
‘Ana’
curta21
No processo de análise, o interlocutor depreende as lexias a partir da frase. Desse
modo, a partir da frase ‘o pijama da Ana tem mangas curtas’, o interlocutor observa o ‘contexto
imediato’ das lexias: ‘manga’ e ‘curtas’ apresentam uma ligação sintáctica na qual ‘curta’
modifica ou caracteriza ‘manga’. Assim, o significado da lexia ‘manga’ é desambiguado como
sendo ‘parte de vestimenta’. A lexia ‘pijama’ corrobora a desambiguação de ‘manga’ (parte de
vestimenta) em relação ao seu homónimo ‘manga3’ (fruta de polpa amarela carnuda, doce, dos
trópicos).
Mel’čuk e Polguère (1987) definem sumariamente ‘síntese’ e ‘análise’ da seguinte
forma: “the syntesis of a sentence appears in the Meaning-Text framework as a series of
subsequent transitions, or translations, from one representation to the next one, beginning with
SemR20; the analysis takes of course the opposite direction, starting with the SPhonR21 or with
the written text.”
Assim, esses dois processos (síntese e análise) levam a considerações teóricas
diferentes. No processo de síntese, o do falante, cada lexia de um vocábulo tem um e apenas um
significado. No processo de análise, o do interlocutor, uma lexia carrega-se de um determinado
significado segundo o contexto onde esta se insere, dando lugar a considerações tais como “uma
lexia pode ter vários significados e estes mudam dependendo do contexto discursivo.” Somos
claramente contrárias a esta última consideração, pela impossibilidade de um modelo linguístico
que dê prioridade à actividade linguística do interlocutor.
20
21
O mesmo que Representação Semântica.
O mesmo que Representação Fonológica Subjacente.
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Assim, o processo pode ser esquematizado da seguinte maneira:
Semântica
Sintaxe
Morfologia
Fonologia
Para quem ouve, ou seja, o interlocutor, o processo é o contrário, é um processo de
análise da frase. Naturalmente, o interlocutor decompõe a expressão de baixo para cima, ou
seja, da estrutura fonológica à estrutura semântica, de modo a apreender o significado do
enunciado (o que não resultaria, já que as colocações têm um significado independente dos
significados de cada um dos seus elementos, os quais estão relacionados lexicalmente).
6
Conclusões
Para este trabalho, o nosso ponto de partida foi o de que as LE são construídas por um
processo metafórico em relação às suas lexias de origem. Procurámos, assim, verificar pela
aplicação de alguns princípios da LEC se haveria ou não um processo metafórico em alguns
verbos que intuíamos terem significado metafórico, que podia ou não ser reforçado pela
presença de termos dados pelo colocativo. Deste modo, foi possível concluir que:
i)
ii)
iii)
iv)
7
os verbos deitar, largar, meter e tirar têm, na LE, um significado metafórico
em relação ao significado original da LG.
Este processo metafórico dá-se pela presença de um componente semântico que
evoca a “ideia” da LO e resulta na criação de uma nova lexia.
O componente subjacente à transferência metafórica faz com que ‘B’ (lexia
especializada) lembre ‘A’ (LO).
Uma vez usados em colocação (com os termos âncora, leme ou vela), o sentido
metafórico do verbo parece ser realçado, não se criando um outro significado.
Bibliografia
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ALLAL, A. e al. (1992). “Sémantique et terminologie: sens et contexts”, Terminologie et
Traduction, n. 2/3. Éd. Commission des Communautés européennes, pp. 411-421.
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publicação.
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Susana Correia & Renata Valente
Anexos
Lista A
Lista de Verbos existentes no tomo I do Português Fundamental (Vocabulário e Gramática) e
no Dicionário Ilustrado de Marinha:
A
abrir
apagar
atravessar
acender
apertar
aumentar
achar
apitar
afastar
apresentar
agarrar
aproveitar
aguentar
arrancar
alagar
aterrar
andar
atirar
B
bater
beber
beijar
buscar
C
caber
chegar
coser
caçar
cheirar
crescer
cair
colher
calar-se
comer
calçar
comparar
cantar
construir
chamar
correr
chatear
consertar
D
dar
diminuir
deitar
deixar
demorar
descer
descobrir
despedir
despir
E
embarcar
encher
entrar
enxugar
estar
F
fazer
fechar
ferver
ficar
formar
G
ganhar
gastar
governar
guiar
H
I
ir
J
jogar
L
largar
levantar
levar
limpar
M
mandar
marcar
meter
montar
morder
morrer
mostrar
multiplicar
N
nascer
O
obedecer
observar
P
passar
prometer
pedir
puxar
perder
perguntar
pescar
pintar
pôr
preparar
Q
R
rasgar
registar
remar
responder
S
sair
surgir
saltar
seguir
sentir
ser
servir
sofrer
subir
T
tapar
tentar
ter
tirar
tocar
tomar
tornar
trabalhar
U
V
verificar
vestir
virar
X
Z
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3ª Conferência Internacional de Terminologia Marítima / 3rd. International Conference on Maritime Terminology
Lista B
Lista de locuções verbais existentes no tomo I do Português Fundamental (Vocabulário e
Gramática) e no Dicionário Ilustrado de Marinha: V + PARTE de barco (cabo, leme, vela, etc.)
Afastar
Aguentar
Apertar
Bater
Calar
Cantar
Colher
Comer
Correr
Dar
Deitar
Despir
Diminuir
Encher
Enxugar
Largar
a vela: encher de vento a vela que, por isso, se afasta do mastro (pano redondo e bastardo de
boa volta).
o leme: ter mão no leme para não o deixar desandar.
o pano: suportar, sem risco, dado pano.
o cabo: suportar, sem correr, o cabo que se está alando.
a voga: picar a voga.
o remo: apertar a voga (o remo, a remada).
a baderna: (calão) dormir uma soneca; passar pelo sono. Ferrar a baderna.
a cavilha: baptizar o navio.
o prego: Baptizar o navio.
remos: remar
a âncora: largar a âncora para fundear.
o leme: colocar o leme no seu lugar. Meter o leme. O contrário de desmontar ou descalar o
leme.
a sonda: dizer, o prumador, em voz alta ritmada e bem inteligível, as indicações fornecidas
pelo prumo.
a bandeira: I. abafar a bandeira em molho em sinal de pedir socorro. 2. Prolongar a bandeira
com o pau, abafando-a.
amarra: pôr safa a amarra para facilidade da manobra. Ferrar amarra.
pano: abafar pano.
um cabo: dispor o cabo em aduchas (voltas de um cabo), depois da manobra, a começar
pelo seio (parte do cabo). Para o deixar pronto a ser usado, vira-se o pandeiro (conjunto de
voltas de um cabo) de modo a ficar com o seio para cima, isto é, sobra-se o pandeiro.
Colher à manobra.
o navio: encobrir o navio por vagas alterosas que ameaçam engoli-lo.
em popa: correr com o tempo, levando o mar na popa e o pano reduzido.
o calafeto: melhor recorrer o calafeto (tapar as costuras do tabuado do navio).
a popa: pôr a popa (no mar, na terra, etc.).
leme: meter o leme, manobrar o leme.
pano: dar à vela.
talha (espécie de roldana): passar talhas.
uma cavilha: meter uma cavilha no seu lugar.
uma espia: passar uma espia para terra, para a bóia ou para outro navio.
um prego: I. espetar um prego. 2. Dar carta de prego, dar instruções seladas.
velas: dar à vela.
âncora: deitar ferro. Ancorar.
ferro: ancorar.
o aparelho: desaparelhar.
o navio: diminuir latitude.
pano: subtrair algum pano à acção do vento. O pano diminui-se por qualquer das manobras:
arriar, abafar, carregar ou ferrar.
a vela: esticar a vela com o vento, formando balão mais ou menos bojudo, de acordo com a
força daquele e da qualidade da mareação.
navio: correr os pavimentos, depois de baldeados, com vassoura, rodo e lambaz para os
secar.
pano: Largar as velas sobre os cabos para secar.
a bandeira: desfraldar a bandeira.
âncora: ancorar.
o prumo: prumar.
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Susana Correia & Renata Valente
Levantar
Levar
Meter
Montar
Passar
Perder
Preparar
Servir
Tirar
Tomar
Virar
pano: desferrar o pano e deixá-lo cair sobre os cabos, pronto a ser caçado e içado, ou para
enxugar. Largar velas.
remos: largar os remos e prolongá-los como costado da embarcação, ficando os punhos para
vante.
as velas: largar pano.
âncora: suspender a âncora.
velas: I. preparar armada de navios de vela. 2. Içar e marear as velas.
remos: colocar os remos na posição «leva remos».
o leme: I. carregar o leme a um bordo. 2. Calar o leme, dar o leme.
pano: envergar o pano.
um cabo: dobrar um cabo.
uma baderna: abadernar.
uma espia: enviar o chocote duma espia para fora do navio, por meio de embarcação, ou por
retenida, lançada à mão ou por foguetão. Dar uma espia.
um cabo: 1. Dar um cabo. 2. Gornir um cabo de laborar. 3. Ultrapassar um cabo.
a âncora: talhar a âncora.
o leme: deixar de ter leme, por acidente.
o mastro: desarvorar do mastro.
o pano: I. Deixar encher o pano de vento. 2. Dispor o pano de modo a que possa receber
bem o vento.
remos: executar a operação de preparar remos.
o leme: utilizar o leme. Governar.
o leme: desmontar e guardar o leme.
a vela: carregar ou abafar a vela.
as velas: cambar as velas quando se muda de bordo.
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Lista C
V + Vela
Afastar
Dar
Encher
Largar
Levantar
Tomar
V + Âncora
Calar
Deitar
Largar
Levantar
Perder
a vela: encher de vento a vela que, por isso, se afasta do mastro (pano redondo e bastardo de
boa volta).
velas: dar à vela.
a vela: esticar a vela com o vento, formando balão mais ou menos bojudo, de acordo com a
força daquele e da qualidade da mareação.
as velas: largar pano.
velas: 1. Preparar armada de navios de vela. 2. Içar e marear as velas.
a vela: carregar ou abafar a vela.
a âncora: largar a âncora para fundear.
âncora: deitar ferro. Ancorar.
âncora: ancorar.
âncora: suspender a âncora.
a âncora: talhar a âncora.
V + Leme
Aguentar o leme: ter mão no leme para não o deixar desandar.
o leme: colocar o leme no seu lugar. Meter o leme. O contrário de desmontar ou descalar o
Calar
Dar
Meter
Perder
Servir
Tirar
leme.
leme: meter o leme, manobrar o leme.
o leme: 1. Carregar o leme a um bordo. 2. Calar o leme, dar o leme.
o leme: deixar de ter leme, por acidente.
o leme: utilizar o leme. Governar.
o leme: desmontar e guardar o leme.
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