Tradução & Comunicação Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 VERSÃO NACIONAL: A ADAPTAÇÃO DE MUSICAIS DA BROADWAY NO BRASIL E O CASO “PRISCILLA, RAINHA DO DESERTO” (2012) National version: the adaptation of Broadway musicals in Brazil and the study case of “Priscilla, Queen of the Desert” (2012) Yuri Jivago Amorim Caribé Universidade Nove de Julho - Uninove [email protected] Bruno Alves Massineli de Maio Universidade Nove de Julho - Uninove [email protected] RESUMO Este trabalho trata da adaptação da obra “Priscilla, Rainha do Deserto” no Brasil (2012), realizada a partir do musical da Broadway de 2011. Inicia com um breve estudo teórico sobre tradução e sobre o conceito mais recente de adaptação, que melhor se aplica ao trabalho em discussão. Em seguida, apresentamos um panorama dos principais musicais da Broadway adaptados no Brasil e introduzimos a questão do trabalho dos adaptadores Cláudio Botelho e Flávio Marinho, este último responsável pelo texto da montagem brasileira do musical “Priscilla” (2012). Apresentamos ainda uma análise da adaptação desse roteiro para o contexto brasileiro. Essa tarefa se mostrou bastante desafiadora porque o texto-primeiro mostra diversas peculiaridades da cultura australiana. Essa parte traz exemplos de nomes de personagens, citações e outras referências do texto-primeiro que foram substituídas por outras mais facilmente reconhecíveis no texto de chegada. Concluímos que Marinho (2013) optou pela domesticação de alguns nomes, conforme conceito difundido por Venuti (2000) e Eco (2007). Os estudos de Lefevere (1992) sobre patronagem e de Hutcheon (2006) e Sanders (2006) sobre adaptação também embasaram nossa discussão. Essas ideias nos levaram a refletir sobre os fatores que interferem diretamente no processo de elaboração de uma adaptação. Palavras-Chave: musical; tradução; adaptação; cultura; teatro. ABSTRACT Anhanguera Educacional Ltda. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 4266 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 [email protected] Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original Recebido em: 10/01/2014 Avaliado em: 18/03/2014 Publicação: 30 de abril de 2014 This paper is on the adaptation of the musical “Priscilla, Queen of Desert” (2012) in Brazil from the Broadway musical of 2011. It starts with a brief theoretical study about translation and the more recent idea of adaptation. Then we presented an overview on the main Broadway musicals adapted in Brazil. Later, we introduced the issue on the work of the adapters Cláudio Botelho and Flávio Marinho, this last one who adapted the script to the Brazilian version of “Priscilla” (2012). We also presented an analysis on the adaptation of that script to the Brazilian context. This task turned to be challenging, due to several Australian peculiarities present on the source text. This part points out some examples of characters‟names and references that were adapted to other easier ones, better to recognize in the target text. We concluded that Marinho (2013) preferred to domesticate some terms, according to Venuti‟s (2000) and Eco‟s concept (2007). The works from Lefevere (1992) on patronage and Hutcheon (2006) and Sanders (2006) ideas on adaptation also supported our discussion. Those ideas made us think on the factors that directly interfere on the process of elaborating an adaptation. Keywords: musical; translation; adaptation; culture; theater. 121 122 Versão nacional: a adaptação de musicais da Broadway no Brasil e o caso “Priscilla, rainha do deserto” (2012) 1. INTRODUÇÃO Ao falarmos de tradução literária e dos trabalhos acadêmicos relacionados a esse tema, logo nos vem à mente as discussões de caráter interlingual, conforme conceito de Jakobson (1959/2000), especialmente aquelas que apontam semelhanças e diferenças entre um texto fonte e sua respectiva tradução (texto de chegada). Ocorre que, atualmente, outras pautas têm merecido a atenção de pesquisadores da área dos Estudos da Tradução por suas especificidades que desafiam não apenas o profissional envolvido com a tradução direta de um texto literário escrito, mas vários outros. Soma-se a isso a já conhecida questão do contexto que envolve a apresentação de uma obra estrangeira traduzida em outro país. Essas novas pautas de discussão estão relacionadas ao entendimento desses formatos para os quais um texto-primeiro será traduzido, conforme explicaremos a seguir. Sabemos que a tradução é uma área em constante desenvolvimento e que acompanha o surgimento de diferentes mídias. Foi assim que os pesquisadores dos Estudos da Tradução começaram a investigar de forma mais aprofundada a partir dos anos 90 a tradução e a dublagem de filmes, além de músicas, quadrinhos e peças teatrais traduzidas interlingualmente e para outros meios. O mesmo Jakobson (1959/2000) já adiantava esse processo quando se referiu pela primeira vez ao termo tradução intersemiótica, por exemplo, no ano de 1959. O autor falava da passagem de um romance escrito para um filme, o que seria também, segundo explica, uma espécie de tradução. Refletindo sobre esse conceito pensamos em vários outros gêneros que também foram traduzidos de forma intersemiótica, não apenas os filmes advindos de um romance. É fato que, até a década de 90, questões como essa eram vistas apenas nas discussões acadêmicas dos congressos e pesquisas das áreas de Literatura e Semiótica. Foi então que, muitos anos depois da apresentação do conceito de tradução intersemiótica de Jakobson, surgiu por volta do ano de 2008, conforme podemos conferir em Allen (2011) e em Milton (2009), a ideia de adaptação. Ocorre uma adaptação especialmente quando traduzimos um texto de um meio de comunicação para outro, mesmo que não haja uma transposição de idiomas. Citamos, como exemplo, o caso de algumas das primeiras peças adaptadas para um determinando público em outro trabalho de nossa autoria (CARIBÉ, 2011). É a história dos irmãos Lamb, que adaptaram em conto algumas peças de Shakespeare para crianças ainda no século XIX. Essa tradução foi feita mantendo o mesmo idioma (inglês), mas é fato que essas peças sofreram alterações inevitáveis na linguagem para que fossem Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 Yuri Jivago Amorim Caribé, Bruno Alves Massineli de Maio 123 adequadas a certo gênero (conto) e ao público pré-estabelecido pelos adaptadores (crianças). A palavra adaptação sugere, então, o condicionamento de uma obra a um determinado objetivo. No caso dos irmãos Lamb, a questão principal era adaptar a linguagem (texto) ao público infantil. Sendo assim, ousamos dizer que adaptação é um tipo de tradução investigada na contemporaneidade. É também uma espécie de gênero literário que evoca a ideia de um texto anterior completamente retextualizado ou que apenas utilizou elementos já citados em outra obra, não importando se houve mudança de idioma ou não. Até mesmo as editoras colocam o rótulo de adaptação em uma obra literária quando querem se justificar quanto a alterações mais drásticas na forma e/ou no conteúdo da obra-primeira. É como se o termo preenchesse uma lacuna, porque durante anos muitos pesquisadores se ocuparam em discutir a fidelidade na tradução de determinadas obras estrangeiras. Agora parece mais simples: basta usar o termo adaptação ou tradução adaptada que o público vai procurar entender melhor a proposta da editora, sem antes acusá-la de publicar algo que ofende o original em termos de fidelidade. Então, é fato que sempre há alguma forma de retextualização da linguagem da obra-primeira de acordo com as variáveis indicadas pela proposta de adaptação. Por exemplo: se a proposta é adaptar um romance escrito para o cinema, sabemos que – enquanto livro – os únicos recursos de que dispõe o leitor para concretizar sua leitura é o texto e sua própria imaginação. Ao ser adaptada para o cinema, dois outros recursos serão desenvolvidos na apresentação dessa obra: a imagem e o som. Entendemos, assim, que cada meio privilegia a utilização de um ou mais recursos peculiares. Na sequência, quando alguém propõe uma passagem para outro meio, outros recursos são necessários. Quando falamos de adaptação, logo pensamos nos filmes adaptados de obras literárias. Sem dúvida esse é o tipo mais comum de adaptação, e até mesmo o tema mais discutido nos congressos acadêmicos da área dos Estudos da Tradução. E mesmo com o crescimento de adaptações da literatura contemporânea, William Shakespeare, Charles Dickens e Edgar Allan Poe ainda são três dos autores mais adaptados na história do cinema. Mas a gama de adaptações é bastante heterogênea, visto que há romances em inglês que foram adaptados, por exemplo, em um musical da Broadway em vários países de língua inglesa. Temos ainda as peças de teatro não canônicas que são montadas em outros países, peças musicais que viraram filme e filmes que foram adaptados a musicais para o teatro. Em todos esses casos há questões de tradução/adaptação a serem analisadas. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 124 Versão nacional: a adaptação de musicais da Broadway no Brasil e o caso “Priscilla, rainha do deserto” (2012) Para o estudo das conexões tradução/adaptação, estabelecemos as mesmas conexões que Sanders (2006) e Hutcheon (2006), em seus estudos pioneiros sobre o tema, mas preferimos adotar neste trabalho o termo mais recente e o mais amplamente reconhecido na área dos Estudos da Tradução, qual seja, adaptação. Ele será, então, o termo usado para tratar dos musicais da Broadway adaptados no Brasil e de outros gêneros que foram retextualizados em novos formatos. Lembramos que nossa proposta é estabelecer uma discussão voltada aos Estudos da Tradução, portanto, trataremos cada adaptação citada neste trabalho como uma tradução da obra-primeira. Retomando nossa discussão: e se alguém considera complicado adaptar uma peça comum dentro do mesmo idioma, porém para outro contexto – como quando uma peça que fala de personalidades do Estado do Amazonas é montada em São Paulo –, imagine montar essa mesma peça em um país de cultura bem diferenciada... Imagine ainda quando há letras de canções, nomes de personagens e referências diversas a uma cultura estrangeira. Se fosse o caso da tradução literária de uma obra escrita teríamos o recuso da nota de rodapé. Porém, no caso de uma obra audiovisual como a peça de teatro musical não há espaço para texto escrito. Tudo deve ser narrado diretamente pelas personagens ou por um narrador externo ao palco, considerando que tudo é feito ao vivo. O exemplo que mais nos chama a atenção é o da adaptação de um filme musical em um musical para o teatro (primeiro intralingualmente) e depois sua montagem em terras brasileiras. Aliás, esse fato vem ocorrendo com uma frequência cada vez maior a partir dos anos 2000, retrato de um mundo globalizado que deseja conhecer mais as novas criações artísticas de autores estrangeiros. O roteiro de uma peça musical compreende canções e falas de personagens que precisarão passar por diversas transformações, ainda que nomes e até algumas canções dessa peça sejam apresentadas em inglês (na maioria dos musicais as canções são adaptadas em língua portuguesa). Acrescente-se a isso a questão das referências culturais, por vezes muito específicas. Assim, profissionais envolvidos com a montagem brasileira de um musical originalmente estrangeiro se veem diante de questões de tradução textual e contextual que despertam nossa curiosidade. O presente trabalho apresenta, então, um panorama das principais adaptações de musicais no Brasil e também discute – à luz de alguns conceitos importantes dos Estudos da Tradução – as principais questões relacionadas à adaptação desse gênero (musical) ao cenário teatral brasileiro. Embora muitas vezes não sendo adaptado por um profissional da tradução, é certo que o responsável pela passagem do roteiro estrangeiro (que contém as falas das personagens, as narrações e as canções) enfrenta vários desafios ao longo do processo de montagem da obra no contexto de chegada. Apontaremos alguns desses Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 Yuri Jivago Amorim Caribé, Bruno Alves Massineli de Maio 125 desafios baseados em exemplos retirados do roteiro adaptado de “Priscilla, Rainha do Deserto” (2012). Dessa maneira, também vamos apresentar e discutir algumas declarações de Flávio Marinho (2013), responsável por adaptar o musical da Broadway “Priscilla, Queen of the Dessert” (2011) ao cenário brasileiro. 2. PANORAMA DA ADAPTAÇÃO DE MUSICAIS DA BRODWAY NO BRASIL As peças musicais da Broadway adaptadas para o cenário brasileiro são normalmente montadas nas cidades de São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ) a um custo bastante elevado e que envolve vários contextos de adaptação. É que a maioria desses espetáculos obedece a padrões internacionais de equivalência ao musical da Broadway e isso demanda um grande investimento quanto à compra dos direitos autorais da obra-primeira, tradução do roteiro da peça e das canções, transporte e hospedagem de alguns profissionais da Broadway para trabalhar na franquia estrangeira, material publicitário padrão a ser adaptado em língua portuguesa por agências de publicidade brasileiras, contratação de atores-cantores-dançarinos (um perfil profissional ainda raro...), músicos, iluminador, cenógrafo, figurinista, aluguel do teatro, etc. É por isso que alguns sites jornalísticos chamam as adaptações realizadas em outros países do mundo de “franquias da Broadway”. A maioria dos recursos utilizados para produzir as adaptações brasileiras vem de patrocinadores, mas a produção espera, obviamente, conseguir lucro através da arrecadação das bilheterias. O resultado disso é um espetáculo prioritariamente voltado para públicos de alta renda – se levamos em conta o alto preço dos ingressos cobrados – e o retorno financeiro é garantido, conforme podemos conferir em uma matéria da Folha on line (2009) que afirma que o musical “A Bela e a Fera” foi visto por mais de 500 mil pessoas em sua primeira montagem no Brasil (2002-2003). Em uma segunda reportagem do Jornal O Globo (2013), podemos ver que o custo de produção desses espetáculos é, de fato, cada vez maior, como no caso da recente adaptação “A Família Addams” (2012,2013), que custou 25 milhões de reais. Essa mesma matéria (2013) destaca ainda a fala de outro reconhecido profissional, frequentemente envolvido com essas adaptações que nos interessam: é Cláudio Botelho, que já adaptou mais de 30 musicais para o cenário brasileiro. Ele é responsável pela tradução das letras e canções e, nesse texto, falou um pouco a respeito da liberdade que recebeu do diretor Jerry Jacks para adaptar as canções estrangeiras do musical “A Família Addams” (2012, 2013) no Brasil conforme suas escolhas: “‟A Família Addams‟ não é um enlatado. Os Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 126 Versão nacional: a adaptação de musicais da Broadway no Brasil e o caso “Priscilla, rainha do deserto” (2012) criadores permitiram uma adaptação total. O processo foi muito rico e a peça permite essa liberdade” (2013). Em outro momento do mesmo texto (ABOS, 2013), a repórter destaca uma colocação da diretora Fernanda Chamma sobre as adaptações necessárias à montagem mais recente no Rio de Janeiro em 2013: “Rio e São Paulo têm costumes e gostos diferentes. Portanto, há trechos da peça que foram mudados para trazer o humor e o timing cariocas” (2013). Essas declarações, de profissionais envolvidos com a tradução e a adaptação de musicais no Brasil, apenas reafirmam nossa proposta de evidenciar que há uma gama de questões a serem discutidas em pesquisas acadêmicas sobre esse tema. É bastante comum ver vários profissionais da Broadway trabalhando nas franquias de outros países. Eles querem com isso garantir a melhor projeção possível do musical americano nesses países. Querem, em outras palavras, que a franquia fique muito parecida com a da Broadway, embora todos entendam, talvez não em forma de teorias de tradução e adaptação, que o resultado final será um texto novo, uma adaptação. O dia a dia das adaptações da Broadway tem o bilinguismo como marca registrada, dada a miscelânea de profissionais brasileiros e americanos envolvidos e também a frequente consulta a textos em inglês ou às traduções desses textos em língua portuguesa. A comunicação oral e escrita nos ensaios e nos bastidores também é realizada muitas vezes em inglês e português. “A Bela e a Fera” (2002-2003, 2009), “A Família Addams” (2012, 2013), “O Rei Leão” (2013-2014) e “Priscilla, A Rainha do Deserto” (2012) são exemplos de musicais da Broadway adaptados no Brasil a partir dos anos 2000 e que partiram de obras fílmicas. As tabelas abaixo ilustram a história dessas adaptações: Filme Broadway (musical) Brasil (musical) A Bela e a Fera (1991) Beauty and the Beast (1994-1999) A Bela e a Fera (SP, 2002-2003, 2009) A Família Addams (1991) The Addams Family (2004) A Família Addams (SP, 2012, RJ, 2013) O Rei Leão (1994) The Lion King (1997) O Rei Leão (SP, 2013-2014) Priscilla, A Rainha do Deserto (1991) Priscilla, Queen of the Desert (2011) Priscilla, A Rainha do Deserto (SP, 2012) Há também o caso de espetáculos como “Evita” (1979), “Grease” (1972), “Chicago” (1975) e “Mamma Mia” (2001) que foram adaptados para o cinema e só então montados no Brasil. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 Yuri Jivago Amorim Caribé, Bruno Alves Massineli de Maio Broadway (musical) Filme Brasil (musical) Evita (1979) Evita (1996) Evita (SP, 2011) Grease (1972) Grease (1978) Grease (SP, 2003) Chicago (1975) Chicago (2002) Chicago (SP, 2004) Mamma Mia! (2001) Mamma Mia! (2008) Mamma Mia! (SP, 2010) 127 Essas adaptações não são as únicas relacionadas aos títulos citados. Por exemplo: se investigarmos mais a fundo, veremos que “A Família Addams” (2002-2003, 2009) foi adaptada do musical da Broadway (2004), que por sua vez foi inspirado no filme homônimo de 1995. Na sequência, descobrimos que o filme de 1995 advém dos desenhos do cartunista Claudio Addams, primeiramente adaptados em desenho animado por volta dos anos 30 e, por volta dos anos 60, em uma série de TV americana. Veja-se ainda o caso do romance “Les Misérables”, do francês Victor Hugo, publicado em 1862 e considerado um dos grandes clássicos da literatura mundial do século XIX. Essa obra já foi adaptada para diversos meios como rádio, televisão e teatro, e não seguiu uma sequência lógica de adaptação. Aliás, essa sequência não existe. As obras são revisitadas por motivos diversos. As editoras, produtoras de filmes e demais empresas adaptadoras (aquelas que resgatam a obra...) aproveitam a comemoração pelo aniversário de nascimento ou de morte de determinado escritor, ou simplesmente aproveitam que um tema está em discussão no atual cenário social/político /artístico do país e relançam a obra. Voltando a “Les Misérables” (1862): esse romance já foi adaptado para diversos meios. Temos uma adaptação em filme de 1935, dirigida por Richard Boleslawski, e outra mais recente em 2012, com direção de Tom Hooper. Além das películas, temos o musical da Broadway (1987) e a versão1 brasileira (2001). Em outras palavras: essas não foram as únicas adaptações teatrais ou fílmicas dos títulos citados. Certamente outros grupos fizeram e ainda farão outras montagens teatrais dessas obras. O texto artístico se renova quanto mais lido, mais assistido ou mais adaptado ele é. Esse tema (da adaptação) é inesgotável, e dizemos isso porque consideramos que as adaptações reconhecem a longevidade ou a perenidade da obraprimeira. É como se cada adaptação feita a partir de um texto-primeiro servisse de homenagem a ele ou de convite a conhecê-lo. O termo “versão” é mais empregado na área musical para se referir às adaptações das canções (letra e música) e do roteiro das peças teatrais. O compositor das versões é o “versionista”, como Cládio Botelho e Flávio Marinho. Nos Estudos da Tradução os termos empregados seriam adaptação e adaptador. 1 Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 128 Versão nacional: a adaptação de musicais da Broadway no Brasil e o caso “Priscilla, rainha do deserto” (2012) 3. ADAPTADORES DE MUSICAIS Os adaptadores de peças musicais, como Cláudio Botelho (2009, 2013, etc.) e Flávio Marinho, este último adaptador do musical “Priscilla, Rainha do Deserto” (2012), principal corpus desta pesquisa, executam um trabalho bastante complexo. Como ofício, eles devem não apenas adaptar o texto-primeiro (roteiro) para um público de idioma e cultura diferentes, mas também trabalhar na questão de letra e música (composição), para fazer com que as canções da peça soem como escritas originalmente no idioma de chegada. Tendo em vista o fato de que cada musical abrange diferentes temas e culturas, conclui-se que cada pesquisa sobre determinando musical trará diferentes resultados. Então, assim como as pesquisas em torno de obras adaptadas a partir de um mesmo texto chegam a resultados diversos – por conta dos fatores que nortearam o trabalho do adaptador –, é também compreensível que o tema adaptação cause conflitos entre leitores de uma obra-primeira e de suas adaptações. Estudos recentes, como os de Hutcheon (2006) e Sanders (2006), apontam diversos fatores que envolvem o processo de adaptação – tais como tempo, ironia, ambiguidade, metáforas, intertextualidade. Esses fatores explicam o fato de, muitas vezes, nos depararmos com uma obra-primeira e várias adaptações diferentes. Huctheon diz ainda (2006, p. 7) que a recriação desses itens na obra adaptada pode ser aceita ou não pelo público de ambos os textos e afirma que “a adaptação é uma forma de repetição sem replicação”, portanto “mudanças são inevitáveis, mesmo quando não há nenhuma atualização ou alteração consciente da ambientação” (tradução nossa). Nesta pesquisa, justificaremos essa última citação através de alguns aspectos envolvidos no processo de adaptação do musical “Priscilla, Rainha do Deserto” (2012) para o Brasil. Diferente o que acontece com a grande maioria dos musicais adaptados, 90% das canções da peça não foi traduzida para a língua portuguesa. Pretendemos ainda justificar esse fato – o da não tradução das canções – através de alguns trechos de uma entrevista com o adaptador Flávio Marinho (2013). 4. “PRISCILLA, RAINHA DO DESERTO” (2012) EM VERSÃO BRASILEIRA O musical “Priscilla, Rainha do Deserto” (2012) teve sua estreia no Brasil no dia 16 de março de 2012, apenas um ano após sua estreia na Broadway (2011). A conquista dos palcos da Broadway aconteceu alguns anos após o sucesso da montagem em 2006 no Lyric Theater, em Sydney, Austrália. A peça, que conta a historia de três drag queens que viajam juntas em um ônibus cor-de-rosa (batizado de Priscilla) em busca de seus sonhos, é uma Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 Yuri Jivago Amorim Caribé, Bruno Alves Massineli de Maio 129 adaptação do filme “The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert”, dirigido pelo australiano Stephan Elliott (1994). As três amigas cruzam a Austrália nesse ônibus e seguem contando histórias, conhecendo pessoas e arrumando muita confusão. A história de “Priscilla” se passa na Austrália e o texto apresenta muitas peculiaridades da cultura daquele país, o que torna o trabalho do adaptador ainda mais complicado. A peça também conta com 25 números musicais e trilha sonora com canções da disco music. Alguns números musicais remetem diretamente ao filme de 1994, como “Go West”, “Shake Your Groove Thing”, “I Love The Night Life”, e a marcante “I Will Survive”, enquanto outros como “It’s Raining Men”, “Hot Stuff”, “Say a Little Prayer” e “True Colors”, ganham vida pela primeira vez nos palcos do teatro. Depois da estreia em Sydney (2006) e nos palcos da Broadway (2011), a peça “Priscilla” viajou em turnê para outros países, visitando cidades como Toronto, Londres e mais recentemente, São Paulo, acumulando um total de 2,5 milhões de espectadores. Em cada uma dessas montagens foram feitas pequenas adaptações no texto e em algumas canções para que a peça se aproximasse ainda mais do público que iria assisti-la. Esse fato nos leva a perceber três níveis de adaptação da obra que apresentaremos a seguir. Primeiro tivemos o filme (1994) que foi adaptado para os palcos da Austrália (2006), procurando manter as características culturais do local, já que a história se passa no mesmo país. Em um segundo momento, a peça original da Austrália foi adaptada para os palcos de outros países falantes do mesmo idioma (no caso, a língua inglesa). Por fim, a peça foi adaptada para a língua portuguesa no Brasil (2012). Nesse último caso, tratamos de um idioma e de um país completamente diferentes do primeiro. Uma adaptação da tela do cinema para os palcos não se baseia apenas em adaptar seu texto, mas também a interpretação dos atores para cada personagem. Assim, no caso de uma adaptação teatral ou fílmica, os atores também são considerados adaptadores. É dessa forma que uma personagem pode ganhar um ar mais exagerado, dramático e até espalhafatoso. Por se tratar de uma peça de teatro (realizada ao vivo), algumas falas tornam-se, mesmo que textualmente idênticas às dos filmes, muito mais enfáticas. Os atores usam diferentes tons de voz, gestos, ritmos e movimentos para tentar prender a atenção dos espectadores. Outro momento de adaptação acontece quando as canções são cantadas e dançadas. No teatro isso acontece ao vivo e no cinema é exibida uma base pré-gravada, na qual o ator dubla a música durante as filmagens. Hutcheon (2006, p. 128) chama esse fator de “mode of engagement”, que acontece quando uma adaptação se utiliza de diferentes focos para que uma obra seja transferida para outro formato. Existem diversas formas de Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 130 Versão nacional: a adaptação de musicais da Broadway no Brasil e o caso “Priscilla, rainha do deserto” (2012) transmitir histórias ao público, e elas podem ser contadas através de livros, mostradas em filmes ou peças e musicais, e em alguns casos, como nos vídeo games, existe a interação com a história. No caso do filme (1994) e do musical “Priscilla” (2012), a mesma história é contada, até mesmo com algumas das mesmas músicas e figurinos. O que difere uma obra da outra são as adaptações realizadas. Em um palco de teatro, por exemplo, existem limitações quanto à troca de cenários e figurinos, pois não há tempo e espaço suficiente. A música é cantada ao vivo e, muitas vezes, ocorre interação com o público. Mais ainda: as cenas são apresentadas em sequência. No cinema, a locação (cenário) tende a ser mais realista, pois basta que o elenco e a produção viajem para gravar nos locais determinados pelo diretor. Há tempo para a troca de roupas (figurinos) e muitas cenas são gravadas em intervalos diferentes. Para o caso de “Priscilla” (2012) temos, além das especificidades de um filme adaptadas para uma peça, a questão da adaptação do roteiro. É interessante notarmos como a palavra tradução nem sempre se refere à transferência de um texto de um idioma para o outro. Em “Priscilla” observamos casos de nomes de personagens e canções que foram substituídas por outras ainda em língua inglesa (porém mais conhecidas). O objetivo de Marinho (2013), nesse caso, foi apenas aproximar o texto do público brasileiro. Nos palcos de Sydney (2006) e de Londres (2009), o texto narra a história de Adam, um rapaz que tem o sonho de atravessar uma montanha vestido de mulher, e lá cantar um medley de canções da cantora australiana Kylie Minogue. Essa cantora é citada não só nessa cena, mas durante boa parte do espetáculo. Isto acontece porque Kylie é uma cantora internacionalmente conhecida, mas de forma mais direta na Austrália e Reino Unido. Já nos palcos da Broadway (2011) e em São Paulo (2012) toda e qualquer citação referente a Kylie Minogue foi adaptada para o nome da cantora Madonna, que, segundo o adaptador Flávio Marinho (2013), goza de um maior reconhecimento nesses países. Tal interferência não acontece somente nas falas, mas também nas canções da peça. Por exemplo: na peça original (2006) e na montagem britânica (2009), ao final da história, quando a personagem Adam finalmente realiza seu sonho, entoa o clássico “Confide in Me”, de Kylie Minogue. Já em outros países, a música apresentada é “Like a Prayer”, interpretada por Madonna. Esses casos nos remetem ao que Venuti (2000) e Eco (2007) chamam de domesticação, que ocorre quando tradutores/adaptadores decidem que, ao invés de aproximar o público do texto, vão preferir aproximar o texto do público. Em outras palavras, em “Priscilla” (2012), embora o espectador brasileiro seja informado de que a Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 Yuri Jivago Amorim Caribé, Bruno Alves Massineli de Maio 131 história se passa na Austrália, o adaptador decidiu substituir alguns termos por outros de reconhecimento mais imediato. Notemos que em alguns diálogos da peça o critério citado anteriormente se repete, veja: Exemplo 1 Texto-primeiro (Broadway) MARION: Places, girls! The word‟s out. It‟s the biggest crowd we‟ve had since David Hasselhoff. Texto adaptado (montagem brasileira) MARION: Oi meninas! O boca-a-boca já começou! Não tivemos tanto público assim desde a Olivia Newton-John! Exemplo 2 Texto-primeiro (Broadway) BERNADETTE: Madonna! Madonna! Don‟t you know anything by Rosemary Clooney? TICK: Shut up, Bernice. Madonna is an icon. BERNADETTE: So‟s Mt Rushmore. Except Mt. Rushmore‟s a better actor. No texto-primeiro dos diálogos Texto adaptado (montagem brasileira) BERNADETTE: Madonna… Madonna… Vocês nunca ouviram falar em Judy Garland? TICK: Cala a boca, Dette! A Madonna é um ícone. BERNADETTE: O Cristo Redentor também. Só que é melhor ator... anteriores foram citadas nomes de personalidades pouco conhecidas no Brasil, o que levou Flávio Marinho (2013) a adaptálos para nomes mais familiares ao público brasileiro. No primeiro diálogo o personagem citado é o ator e cantor americano David Hasselhoff, que atuou na série de TV americana “Baywatch”. Ocorre que Hasselhoff é praticamente desconhecido no Brasil, o que levou Marinho a fazer opção pelo nome de Olivia Newton-John, grande nome do cinema e da música mundial. No segundo trecho, o nome de Rosemary Clooney, cantora e atriz norteamericana, foi adaptado para Judy Garland, também cantora e atriz americana. Sabemos que Garland é bem mais popular que Clooney no Brasil, certamente por sua atuação em “The Wizard of Oz”, filme musical de 1939 dirigido por Victor Flamming. Ainda no segundo trecho, temos a presença do nome Mt Rushmore, famoso monte em Keystone (Dakota do Sul, E.UA.) onde foram esculpidos os rostos de quatro ex-presidentes do país. O nome foi alterado para “O Cristo Redentor”, outro monumento situado no Rio de Janeiro (Brasil) que retrata Jesus Cristo e que é bem conhecido pelo público brasileiro. Percebemos que as adaptações presentes nessa obra confirmam a fala de Venuti (2000, p. 468) quando diz que o processo de domesticação é totalizante, mesmo que nunca por completo. Então Marinho (2013) optou por fazer adaptações domesticadoras não apenas nesses trechos, mas cada vez que percebeu que o nome citado no texto-primeiro poderia inviabilizar o entendimento do público brasileiro e, dessa forma, a piada, o reconhecimento. Em “Priscilla” (2012), temos também casos em que títulos de séries, filmes ou músicas citados precisaram ser domesticados na versão brasileira, como a Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 132 Versão nacional: a adaptação de musicais da Broadway no Brasil e o caso “Priscilla, rainha do deserto” (2012) substituição das séries “Baywatch” (1989-1999) e “Crime Watch” (1984-2012), pelos filmes “Pretty Woman” (1990) e “Pulp Fiction” (1994), respectivamente. Notamos que as séries citadas no texto-primeiro não seriam facilmente reconhecidas no Brasil, portanto foram substituídas pelos nomes de dois filmes mais populares. Um fato importante a analisar é que, apesar da preferência por nomes mais conhecidos do público brasileiro, os títulos usados na adaptação brasileira permaneceram em seu idioma de origem (inglês). Sabemos que esses filmes receberam no Brasil os nomes de “Uma Linda Mulher” e “Pulp Fiction: tempo de violência”. Marinho (2013) diz que manteve os nomes em inglês porque esses filmes são tão ou mais conhecidos pelo nomeprimeiro, o que dispensaria o uso dos nomes brasileiros. O autor descreve esse critério como o de “reconhecimento mais imediato do público” e diz que se tivesse usado o título “Tempo de Violência” talvez o público sequer reconhecesse a obra. Esse fato confirma sua preferência pela domesticação (VENUTI, 2000 e ECO, 2007), fazendo com que o público brasileiro se identifique com a cultura inserida no texto, ao invés de estrangeirizá-lo e tentar levar o brasileiro até a cultura australiana. Marinho (2013) ainda nos relata que sua maior dificuldade na adaptação de “Priscilla” (2012) foi encontrar equivalentes para os termos australianos. O texto da peça é repleto de termos bastante específicos do local e, por vezes, sem um equivalente mais conhecido do público brasileiro. Algumas opções foram bem interessantes. A palavra “dingo”, por exemplo, refere-se a uma sub-espécie de lobo, animal bastante perigoso, mas que existe apenas na Austrália e no sudeste asiático. No texto em português a opção foi pelo termo “cão feroz”. Em outro trecho, temos a expressão “Woop Woop”, uma gíria em inglês australiano usada para se referir a um lugar qualquer, no meio do nada. Em português o termo utilizado foi “fim do mundo”. Em todos os exemplos citados anteriormente, podemos concluir que a ideia principal do adaptador Marinho (2013) foi de trazer o texto para perto do público, mais precisamente, trazer a peça para o Brasil, e não levar o público à Austrália. Para tornar isso possível, o recurso à domesticação foi necessário, segundo justificativa de Marinho (2013), para que houvesse uma compensação em relação a algumas perdas que o texto adaptado veio a sofrer. Isso aconteceu, segundo o adaptador, devido à falta de liberdade para adaptar determinados pontos do roteiro. É que produtores e autores do textoprimeiro não permitiram que certas peculiaridades fossem adaptadas. Não permitiram também que as canções fossem traduzidas. Podemos, a partir daí, introduzir nesta pesquisa a ideia de patronagem de Lefevere (1992), ou seja, uma provável manipulação do texto traduzido, a partir de certas Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 Yuri Jivago Amorim Caribé, Bruno Alves Massineli de Maio 133 ideologias que podem colaborar ou não para o resultado final da tradução de uma determinada obra. Lefevere (1992, p. 41) diz que essas ideologias refletem a forma como o tradutor lida com os objetos, conceitos e costumes pertencentes ao mundo familiar ao escritor do texto-primeiro. Durante a adaptação do musical “Priscilla” (2012), Flávio Marinho se deparou com os dois lados do conceito de patronagem. O tradutor obteve permissão para adaptar alguns nomes de personagens e termos mais específicos para um equivalente na língua de chegada, mas foi impedido de adaptar as canções do musical, o que, segundo ele, dificultou a compreensão plena do espetáculo por espectadores nãofluentes em língua inglesa. Para exemplificar esses dois lados, vale citar a adaptação de outros nomes de personagens para o português. Na cena que abre o espetáculo, que se passa na “Cockatoo Club” (que em português virou a boate “Peru-Ação”), temos uma apresentadora chamada “Miss Understanding”. No texto em português, o nome da drag queen, espalhafatosa e abusada, foi genialmente traduzido por “Miss Segura”, um termo que reflete exatamente a personalidade da personagem, sem perder o jogo de palavras criado em inglês. Em português o nome também traz a palavra Miss para representar uma figura feminina. Em cima de um palco, a expressão soa como “me segura”. Esses foram momentos do textoprimeiro em que parece ter havido uma permissão total ao trabalho de adaptação realizado por Marinho (2013). O resultado foi bem interessante em termos dramatúrgicos. Por outro lado, ele não obteve autorização para traduzir as canções do musical e desabafou: Eu preferiria ter traduzido todas as letras, mas não consegui convencer os australianos sobre isso. Do jeito que ficou o espetáculo por vezes ganha um clima de show de navio. Acontece que se eles aceitassem as letras brasileiras (que nunca são idênticas ao original) teriam que mexer nas coreografias e eles queriam uma montagem o mais próxima possível da que foi originalmente criada. Acho uma pena essa falta de jogo de cintura. Em outro momento, por exemplo, uma personagem canta uma canção que não faz muito sentido nem no original, ela diz “I left the cupcakes out in the rain” (deixei os cupcakes na chuva), um dos versos mais doidos da música pop. Eu sugeri outra coisa (que não lembro mais), mas eles queriam que as personagens, nesse momento, entrassem vestidas de cupcake. E foi o que aconteceu. Lamentavelmente, porque ninguém na plateia entendia o que estava acontecendo. Criou-se um corpo estranho na comunicação palcoplateia. A declaração de Marinho (2013) parece concordar com o trabalho de Eco (2007, p. 109) ao afirmar que em toda tradução há “perdas e compensações” e que algumas perdas são absolutas. Portanto, antes de se apegar a conceitos de natureza estrangeirizadora, que podem até mesmo confundir o público, os detentores dos direitos autorais das obrasprimeiras, que muitas vezes tolhem o trabalho criativo dos adaptadores, deveriam pensar no resultado final desse processo. Enfim, deveriam ter como objetivo receber das mãos do adaptador um texto que comunicasse de forma clara, simples e divertida. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 134 Versão nacional: a adaptação de musicais da Broadway no Brasil e o caso “Priscilla, rainha do deserto” (2012) 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebemos que o trabalho de adaptação de um musical da Broadway ao contexto de outros países e idiomas – não somente no caso do Brasil – esbarra em uma série de entraves, relacionados ao excessivo apego que muitos diretores, produtores e roteiristas das primeiras versões costumam ter ao lidar com as adaptações que se fazem necessárias no texto de chegada. E como o trabalho de adaptação envolve vários profissionais, inclusive o adaptador do texto narrativo e das letras das canções, a cooperação entre eles é fundamental para a produção de um resultado (texto) mais assertivo em termos de humor, entretenimento e troca. Dizemos isso porque cada adaptação segue uma proposta, e em “Priscilla” (2012) parece-nos que a proposta é alinhar público-alvo, linguagem e texto. Dentre esses três aspectos, destacamos o público como o ponto mais importante, conforme pesquisa anterior (CARIBÉ, p. 10, 2011). Também não se deve adaptar uma obra estrangeira pensando somente no público que conhece o idioma e nas especificidades da cultura do texto-fonte, até porque a obra adaptada poderá servir de convite a conhecê-la. Hutcheon (2006, p. 121) confirma isso quando diz que “adaptações bem sucedidas são feitas para ambos os públicos: os que conhecem e não conhecem os textos-fonte”. Aprovamos, então, a proposta de Marinho (2013) de aproximar o texto do público, mesmo encontrando diversos obstáculos. O adaptador reafirma a importância da tradução das canções dos musicais da Broadway em língua portuguesa, inclusive com o intuito de congregar outros públicos, conforme disse Hutcheon (2006, p. 121). Sobre o resultado final, diz que sua satisfação só não foi total porque não concordou com o fato de a maioria esmagadora das canções de “Priscilla” (2012) terem sido cantadas em inglês. Também aproveitamos este trabalho para apresentar outras vertentes de tradução mais recentemente discutidas, como o caso da adaptação de musicais para o público brasileiro. Podemos notar que em um trabalho dessa natureza não se traduz apenas o roteiro, usamos diversas formas de adaptação. Percebemos, em suma, que o adaptador ora opta pela domesticação ora pela estrangeirização. Sim, pois é fato que os problemas de tradução vão aparecer. Nesse caso, concluímos que, quando não é possível adaptar em um dado momento, o adaptador poderá fazê-lo em outros pontos do texto. Assim procedeu Marinho (2013) na adaptação “Priscilla, A Rainha do Deserto” (2012). Sua intenção foi fazer com que a obra se apresentasse ao público brasileiro da forma mais natural e convincente possível, sem deixar de lado a cultura australiana e, ao mesmo tempo, introduzindo um pouco da cultura brasileira. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 Yuri Jivago Amorim Caribé, Bruno Alves Massineli de Maio 135 Em resumo, é como se o processo de adaptação de “Priscilla” (2012) por Marinho (2013) resultasse em uma história em que o ônibus cor-de-rosa do texto-primeiro sai do deserto australiano e parte rumo ao Brasil, trazendo em seu bagageiro diversas malas carregadas da cultura australiana. E, devido a alguns problemas durante a viagem, parte dessa bagagem se perdesse, algumas malas fossem trocadas, porém outras chegassem intactas ao seu destino final. REFERÊNCIAS ABOS, Marcia. „A Família Adams‟ em versão nacional. Matéria do Jornal O Globo de 10/01/2013. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/a-familia-addams-em-versao-nacional7245528>. Acesso em: 17 fev. 2014. ALLEN, Graham. Intertextuality. 2. ed. Londres e Nova Iorque: Routledge, 2011. CARIBÉ, Yuri J.A. Adaptações, apropriações e o papel do adaptador Michael Cunningham em “The Hours” (Picador, 1998). Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores, Valinhos (SP): Anhaguera Educacional Ltda., n. 22, 2011, p. 43-53, 2011. ECO, Umberto. Quase a mesma coisa. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007. HUGO, Victor. Les Misérables. Paris (França): A. Lacroix, Verboeckhoven & Cie, 1862. HUTCHEON, Linda. A theory of adaptation. Nova Iorque: Routledge, 2006. JAKOBSON, Roman. 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Filmes musicais e suas adaptações para o teatro (estrangeira e brasileira) A BELA E A FERA (filme). Direção: Gary Trousdale, Kirk Wise. Walt Disney Pictures, 1991. 1 DVD (84 minutos). Título original: Beauty and the Beast. BEAUTY AND THE BEAST (musical da Broadway). Roteiro: Linda Woolverton. Letras e canções: Howard Ashman e Tim Rice. Broadway, Nova Iorque (E.U.A.), 1994. Disponível em: <http://www.beautyandthebeastontour.com>. Acesso em: 17/02/2014. A BELA E A FERA (musical adaptado no Brasil). Direção: Robert Joss Roth (180 minutos). Letras e canções: Cláudio Botelho. Teatro Abril, São Paulo (SP), 2002-2003, 2009. A FAMÍLIA ADDAMS (filme). Direção: Barry Sonnenfeld. Paramount Pictures, 1991. 1 DVD (99 minutos). Título original: The Addams Family. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 136 Versão nacional: a adaptação de musicais da Broadway no Brasil e o caso “Priscilla, rainha do deserto” (2012) THE ADDAMS FAMILY (musical da Broadway). Roteiro: Marshall Brickman e Rick Elice. Letras e canções: Andrew Lippa. Broadway, Nova Iorque (E.U.A.), 2010. Disponível em: <http://www.theaddamsfamilymusical.com>. Acesso em: 26 ago. 2013. A FAMÍLIA ADDAMS (musical adaptado no Brasil). Direção: Jerry Zacks e Fernanda Chamma. Letras e canções: Cláudio Botelho (150 minutos). Teatro Abril, São Paulo (SP), 2012, Teatro Vivo Rio, Rio de Janeiro (RJ), 2013. PRISCILLA, a rainha do deserto (filme). Direção: Stephan Elliott. PolyGram Filmed Entertainment, 1994. 1 DVD (103 minutos). Título original: The adventures of Priscilla, Queen of the Desert. PRISCILLA, Queen Of the Desert (musical da Broadway). Roteiro: Stephan Elliott e Allan Scott. Sydney (Austrália), 2006, Londres, 2009, Broadway, Nova Iorque (E.U.A.), 2011. Disponível em: <http://www.priscillathemusical.com>. Acesso em: 26 ago. 2013. PRISCILLA, RAINHA DO DESERTO (musical adaptado no Brasil). Direção: Simon Philips. Roteiro, letras e canções: Flávio Marinho. Teatro Bradesco, São Paulo (SP), 2012. O REI LEÃO (filme). Direção: Roger Allers e Rob Minkoff. Roteiro: Tom Schumacher. Produção: Don Hahn. Walt Disney Pictures, 1994. 1 DVD (87 minutos). Título original: The Lion King. THE LION KING (musical da Broadway). Roteiro: Roger Alters e Irene Mecchi. Letras e canções: Tim Rice e Elton John. Broadway, Nova Iorque (E.U.A.), 1997. Disponível em: <http://www.lionking.com>. Acesso em: 26 ago. 2013. O REI LEÃO (musical adaptado no Brasil). Diretora: Julie Taymor. Letras e canções: Gilberto Gil. Teatro Renault, São Paulo (SP), 2013-2014. Musicais adaptados em filmes CHICAGO (musical da Broadway). Direção: Walter Bobbie (2014). Roteiro, letras e canções: John Kander, Fred Ebb e Bob Fosse (1975, 2014). Broadway, Nova Iorque (E.U.A.), 1975. Disponível em: <http://www.chicagothemusical.com>. Acesso em: 26 ago. 2013. CHICAGO (filme). Direção: Rob Marshall. Produção: Bob Weinstein, Harvey Weinstein, Craig Zadan, Martin Richards. Miramax Films, 2002. 1 DVD (113 minutos). CHICAGO (musical adaptado no Brasil). Direção: Scott Faris. Letras e canções: Cláudio Botelho. Teatro Abril, São Paulo (SP), 2004. EVITA (musical da Broadway). Direção: Harold Prince (1978), Michael Grandage (2014). Letras e canções: Andrew Lloyd Webber e Tim Rice. Broadway, Nova Iorque (E.U.A.), 1979. Disponível em: <http://www.evitaonBroadway.com>. Acesso em: 26 ago. 2013. EVITA (filme). Direção: Alan Parker. Roteiro: Alan Parker e Oliver Stone. Letras e canções: Andrew Lloyd Webber e Tim Rice. Hollywood Pictures, 1996. 1 DVD (134 minutos). EVITA (musical adaptado no Brasil). Diretor: Jorge Takla (2011), Maurício Sherman (1983, 1986). Letras e canções: Victor Berbara (1983,1986), Cláudio Botelho e Vânia Pajares (2011). Teatro João Caetano, Rio de Janeiro (RJ), 1983, Teatro Palace, São Paulo (SP), 1986, Teatro Alfa, São Paulo (SP), 2011. GREASE (musical da Broadway). Direção: Tom Moore (1972), Kathleen Marshall (2007). Roteiro, letras e canções: Jim Jacobs e Warren Casey. Broadway, Nova Iorque (E.U.A.), 1972. Disponível em: <http://www.Broadwaymusicalhome.com/shows/grease.htm>. Acesso em: 26 ago. 2013. GREASE (filme). Direção: Randal Kleiser. Produção: Robert Stigwood e Allan Carr. RSO Records, 1978. 1 DVD (110 minutos). GREASE (musical adaptado no Brasil). Direção: Cristina Trevisan . Direção musical, roteiro, letras e canções: Rudy Arnaut. Teatro Sérgio Cardoso, São Paulo (SP), 2003. LES MISÉRABLES (filme). Direção: Richard Boleslawski. Produção: Darryl F. Zanuck. 20th Century Pictures, 1935. 1 DVD (108 minutos). Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137 Yuri Jivago Amorim Caribé, Bruno Alves Massineli de Maio 137 LES MISÉRABLES (musical da Broadway). Direção: Laurence Connor e James Powell (2014). Roteiro adaptado por: Trevor Nunn e John Caird. Letras e canções: Claude-Michel Schönberg e Alain Boublil. Broadway, Nova Iorque (E.U.A.), 1987. 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Letras e canções: Cláudio Botelho. Teatro Abril, São Paulo (SP), 2010-2011. THE WIZARD OF OZ (filme). Direção: Victor Fleming. Metro-Goldwyn-Mayer, 1939. 1 DVD (101 minutos). Título no Brasil: O Mágico de Oz. Outros BAYWATCH. Série de TV americana. Criadores: Michael Berk et al. 1989-1999. Título no Brasil: S.O.S. Malibu. CRIME WATCH. Série de TV inglesa criada e exibida pela BBC (UK). 1984-2012. PRETTY WOMAN (filme). Direção: Gary Marshall. Dimension, 1990. 1 DVD (119 minutos). Título no Brasil: Uma linda mulher. PULP FICTION (filme). Direção: Quentin Tarantino. A Band Apart / Miramax Films, 1994. 1 DVD (168 minutos). Título no Brasil: Pulp Fiction: tempo de violência. Yuri Jivago Amorim Caribé Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, doutorando em Estudos Linguísticos e Literários do Inglês, subárea Tradução pela USP, professor do Bacharelado em Tradutor e Intérprete da Universidade Nove de Julho (Uninove/SP). Trabalha com Teoria e Prática de Tradução (literária e técnica) e Literaturas de Língua Inglesa. Bruno Alves Massineli de Maio Bacharel em Tradutor e Intérprete e especialista em Tradução Inglês/Português, ambos pela Universidade Nove de Julho (Uninove). Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores Nº. 27, Ano 2013 p. 121-137