Lord Kelvin versus Charles Darwin Fernando Lang da Silveira [email protected] A teoria de Charles Darwin (18091882), exposta em 1859 em A origem das espécies, foi objeto de severas críticas desde o primeiro momento. Estas não partiram apenas de religiosos, defensores do criacionismo fixista concepção segundo a qual Deus criou todos os seres vivos na forma como os conhecemos hoje. Diversos cientistas produziram argumentos bem fundamentados contra a teoria de Darwin. O célebre físico Lord Kelvin (18241907), considerado como a maior autoridade em termodinâmica de seu tempo, refutou a teoria de Darwin com um argumento imbatível naquele momento. O fato de Lord Kelvin ter sido profundamente religioso pode explicar a origem de suas atitudes antidarwinistas; entretanto, não desmerece em nada a força da sua argumentação. Darwin aceitou o argumento de Lord Kelvin e acreditou ter levado a pior nessa polêmica. Vejamos qual foi o argumento do grande físico contra a teoria da “descendência com modificação” (Darwin nunca designou sua teoria pelo nome que a conhecemos teoria da evolução). Segundo Darwin, a evolução das espécies é um processo muito lento e gradual já que a “a natureza não dá saltos”. Para que a evolução tivesse sido biologicamente eficaz, era necessário que operasse por longos períodos de tempo; Darwin não sabia calcular precisamente tal tempo e o estimava em algumas centenas de milhões de anos (algumas centenas de milhões de anos constituem-se em uma subestimativa do tempo da vida na Terra, avaliada hoje em 4,5 bilhões de anos). Lord Kelvin demonstrou que a vida no sistema solar não poderia exceder vinte e cinco milhões de anos, calculando o tempo necessário para que o Sol consumisse toda a energia disponível. O modelo energético que Lord Kelvin utilizou foi o do Sol como uma grande pilha química, isto é, liberando energia radiante a partir de energia química. Hoje sabemos que Lord Kelvin estava errado; a energia solar é obtida de processos de fusão nuclear, o que permite durações muitas ordens de grandeza superiores àquela calculada por Lord Kelvin. A fusão nuclear não podia nem ser cogitada na época de Darwin; os físicos da segunda metade do século XIX sequer tinham consenso sobre a existência dos átomos e alguns a negavam veementemente. Lord Kelvin, arrogantemente, sublinhou a completa futilidade da teoria darwiniana, pois demonstrara não haver tempo para que as forças da variação e seleção natural operassem. Darwin aceitou o argumento do físico e tentou salvar sua teoria introduzindo, além da variação e seleção natural, outros mecanismos evolutivos. Em especial, atribuiu um papel importante aos efeitos hereditários do uso e do não-uso, que apressariam o processo O físico Ernst Mach (18381916) e o químico Wiliam Ostwald (18531932), nas últimas décadas de século XIX e nos primeiros anos do século XX, moveram intensa oposição à teoria atômica da matéria; acusaram os atomistas, em especial o físico Ludwig Boltzmann (18441906), de estarem fazendo “metafísica inútil” ao conceberem a existência de partículas pequeníssimas e inobserváveis os átomos e as moléculas. Em 1906, Boltzmann sentindo-se derrotado, não apenas pela vigorosa crítica de seus adversários cientistas, mas também pelo fracasso do seu casamento, suicidouse. Alguns anos depois, os seus renitentes adversários acabaram por aceitar a hipótese atômica da matéria. evolutivo. A última edição de A origem das espécies contém importantes revisões das idéias originais, aproximando as concepções de Darwin às de Lamarck (1744–1829), ou seja, ao evolucionismo lamarckista concepção segundo a qual a evolução das espécies resultaria da herança das modificações determinadas pelo ambiente e pelos efeitos de uso e desuso dos órgãos. Esta história contém algumas notáveis lições epistemológicas: Exemplifica uma importante característica do empreendimento científico: as teorias científicas não são imunes à crítica, podendo e devendo sofrê-las. Mostra como uma teoria consegue persistir, mesmo quando o seu idealizador a reformula. Apesar das correções de Darwin, suas idéias originais foram mantidas e desenvolvidas por outros cientistas posteriormente. Demonstra a tenacidade dos cientistas em sustentar uma hipótese ou teoria mesmo quando parece haver fortes razões para abandoná-la. Ou seja, em face de argumentos teóricos e evidências experimentais contrárias, os cientistas insistem usualmente em preservar a teoria. Uma forma de preservação da teoria se dá pela introdução de uma ou mais hipóteses auxiliares (hipóteses produzidas após a teoria ter sido criticada) com o objetivo de superar a crítica, conservando as hipóteses centrais da teoria. Usando as categorias do epistemólogo Imre Lakatos (1922-1974), Darwin não descartou o núcleo duro de suas concepções a teoria da variação e seleção natural ; apenas introduziu mecanismos adicionais que apressariam o processo evolutivo, como a hipótese dos efeitos hereditários do uso e do não-uso. Isto é, desviou o problema para o cinturão protetor da sua teoria. Evidencia que o princípio de coerência das teorias biológicas com as teorias físicas não é um princípio inquestionável, válido de forma indubitável. Afinal, neste episódio a teoria física o Sol produz energia radiante a partir de energia química , invocada por Lord Kelvin contra a teoria biológica de Darwin, estava errada. BIBLIOGRAFIA Gould, S. J. Darwin e os grandes enigmas da vida. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Monod, J. Acerca da teoria molecular da evolução. In: Harré, R. Problemas da revolução científica. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976. Silveira, F. L. A metodologia dos programas de pesquisa: a epistemologia de Imre Lakatos. Caderno Catarinense de Ensino de Física, Florianópolis, v.13, n.3: 219-230, dez. 1996. Thuillier, P. Darwin era darwinista? IN: Thuillier, P. De Arquimedes a Einstein. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.