A correlação corpo-alma platônica: uma interpretação possível

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A CORRELAÇÃO CORPO-ALMA PLATÔNICA: UMA INTERPRETAÇÃO
POSSÍVEL
Leander Alfredo da Silva Barros1
Orientador: Prof. Dr. Luiz Paulo Rouanet2
[email protected]
Não é possível descobrir os limites da alma, mesmo percorrendo todos os caminhos:
tão profunda medida ela tem. (HERÁCLITO, Fr.45 apud KIRK et al 1994, p. 211)
Resumo: Neste artigo pretendemos abordar um tema caro à filosofia de Platão: a relação corpo (soma) – alma
(psyché). Pretendemos apresentar uma crítica ao clássico idealismo, que reforça o dualismo platônico difundido
pela tradição interpretativa clássica, em defesa de um possível “realismo’’ em Platão. A partir da análise
criteriosa do Fédon e de demais diálogos, a filosofia platônica, mediante a proposta da correlação, torna-se mais
coerente com os ideais políticos, éticos e pedagógicos da Grécia Antiga.
Palavras-chave: Platão. Correlação. Alma. Corpo. Dualismo.
Abstract: This article aims to address a topic dear to the philosophy of Plato: the relationship body (soma) – soul
(psyché). We intend to present a critique of the classical idealism, which reinforces the widespread Platonic
dualism by classical interpretative tradition, in defense of a possible “realism”' in Plato. From a careful analysis
of the Phaedo and other dialogues, Plato's philosophy, by proposing the correlation becomes more consistent
with the political, ethical and pedagogical ideals of ancient Greece.
Key words: Plato. Correlation. Soul. Body. Dualism.
A partir das considerações de Heráclito podemos compreender como o tema da alma,
presente no cenário do pensamento antigo, é desafiador para os gregos. Dos tempos
homéricos até o cenário da metafísica grega, permanece a alma como um ponto central para a
compreensão da estrutura da realidade e do conhecimento que se pretende formular a partir
dela. São diversos conceitos e noções que se formulam acerca da natureza da alma e da sua
relação com o corpo no cenário da Grécia Antiga.
Em Platão, tal discussão ganha um tom ainda mais acentuado. Sendo o precursor da
metafísica, dessa ciência especulativa surgida na Grécia e que delineará os rumos do
pensamento ocidental, na sua Teoria das Ideias e na sua Teoria da Participação (methéxis), é
ele quem tratará da difícil questão da alma, ainda que de modo complexo e sem soluções
assertivas.
A relação corpo (sôma) – alma (psyché), nos séculos posteriores a Platão, é por vezes
mal interpretada. Tanto os platônicos e neoplatônicos quanto os filósofos medievos e
posteriores nos trazem sempre uma interpretação de um Platão tipicamente idealista. A leitura
1
2
Graduando do Curso de Filosofia da UFSJ.
Professor Adjunto do Departamento de Filosofia e Métodos (UFSJ).
2
do Fédon, diálogo da maturidade platônica, quando feita por leitores despreocupados ou que
por algumas “pinceladas” buscam retratar o pensamento platônico sem recorrer a outras obras
do citado filósofo, acaba por inserir características extremamente errôneas a tal filosofia
quando enfatiza a dicotomia entre tais dimensões humanas.
O caráter da alma é de mediação entre o sensível e o inteligível. Pela análise de outros
diálogos do filósofo ateniense, é possível perceber sua clara preocupação com a educação
político-filosófica, pela qual os cidadãos devem ser formados. O uso das analogias, dos mitos
e das crenças dominantes tem então uma pretensão didático-pedagógica. Dessa maneira
estamos distantes de um Platão tipicamente preocupado com o dualismo corpo-alma e
estritamente voltado ao conhecimento teórico. Abandonamos, então, uma visão extremamente
dualista para um possível “realismo platônico”.
1 A parcimônia necessária à leitura do Fédon e a fundamentação do idealismo
O diálogo Fédon que compõe os diálogos da maturidade de Platão, cujo tema é a alma
(psyché), apresenta-nos questões de extrema relevância a serem discutidas dentro da filosofia
platônica. Ao longo dos séculos, tal obra vem sendo considerada o grande expoente que
fundamenta o idealismo platônico. Não é por acaso que o tema da alma é antigo dentro do
pensamento grego, e somente na sua maturidade irá Platão lidar com difícil abordagem.
Assim afirma Gazolla de Andrade no prefácio de seu livro, que aborda a questão da
alma para Platão:
Acreditamos que um dos princípios que nos nortearam foi a busca do filósofo
Platão, sem o colorido mais forte que lhe impôs grande parte da tradição
interpretativa, e que por vezes o aprisionou como o pensador da dicotomia sensívelinteligível, coerente nas suas colocações do princípio ao fim de sua obra,
inaugurador de um método claro para o prosseguimento de seus passos, como se
fosse um bom cartesiano, em meio à floresta a ser revelada. (1993, p. 10)
No que diz respeito às considerações da alma e da filosofia platônica como um todo,
muito se tem distanciado das obras do referido autor e muitas vezes o que se atribui a Platão
não contém o rigor especificado em suas obras. Diante da análise dos diálogos, percebem-se
novas oportunidades de interpretação, entretanto é preciso reportar-se ao contexto do filósofo
ateniense e aos períodos nos quais seu pensamento se desenvolve.
No diálogo Fédon, Sócrates está a discutir com seus discípulos acerca da imortalidade
da alma e da sua prisão ao corpo, que é o “lugar do sensível” (tópos aistetis), enquanto que a
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alma se mostra como o “lugar do inteligível” (tópos urânus). O contexto apresentado são os
momentos finais da vida de Sócrates, condenado a beber cicuta. Na prisão, Sócrates se propõe
a investigar a morte, não como causa temerosa ou fim último, mas como o simples apartar-se
da alma do corpo para contemplação do Bem supremo. Adentrando ao diálogo percebemos
claramente:
E agora, dize-me: quando se trata de adquirir verdadeiramente a sabedoria, é ou não
o corpo um entrave se na investigação lhe pedimos auxílio? Quero dizer com isso,
mais ou menos, o seguinte: acaso alguma verdade é transmitida aos homens por
intermédio da vista ou do ouvido, ou quem sabe se, pelo menos em relação a estas
coisas não se passem como os poetas não se cansam de no-lo repetir
incessantemente, e que nem vemos nem ouvimos com clareza? [...] Quando é, pois,
que a alma atinge a verdade? Temos dum lado que, quando ela deseja investigar com
a ajuda do corpo qualquer questão que seja, o corpo, é claro, a engana radicalmente.
(PLATÃO, 65b, 1972)
Pela interpretação do Fédon, o dualismo corpo-alma é instaurado. Na leitura radical
desse diálogo, parece ser fundamental no pensamento platônico tal dicotomia. A separação
entre corpo e alma parece ser a mais verossímil nesse momento. A visão negativa do corpo é
realçada quando apressadamente se leva o principiante estudioso da obra em questão.
Quando a alma se dispõe a buscar a verdade, dirige-se ela ao lógos, ou seja, volta-se
para si mesma. Platão, no mesmo diálogo, em 68 b-d, faz uma diferenciação ao ressaltar “um
filósofo, se realmente é filósofo” (p. 76, 1972) vai distanciar-se do que é próprio do corpo, ou
seja, todo tipo de conhecimento sensível, dirigindo-se na busca pela verdadeira sabedoria. É o
que designa por philomatheis (filósofos autênticos). Estes não pensam conforme os gnêsíos
philosóphous (filósofos primeiros) na separação física, natural, entre corpo e alma, presos
ainda à concepção mítico-religiosa (ANDRADE, 1998, p. 131-132). Os que amam o saber, e
isso Platão demonstra com toda sutileza que lhe é própria, pensam nessa separação de modo
“análogo” ao processo natural, nisso consiste a ascese proveniente da dialética filosófica.
Segundo ele:
É uma coisa bem conhecida dos amigos do saber, que sua alma, quando foi tomada
sob os cuidados da filosofia, se encontrava completamente acorrentada, a um corpo
e como que colada a ele; que o corpo constituía para a alma uma espécie de prisão,
através da qual ela devia forçosamente encarar as realidades, ao invés de fazê-lo por
seus próprios meios e através de si mesma; que, enfim, ela estava submersa numa
ignorância absoluta [...] Assim digo, o que os amigos do saber não ignoram é que,
uma vez tomadas sob seus cuidados as almas cujas condições são estas, a filosofia
entra com doçura a explicar-lhes as suas razões, a libertá-las, mostrando-lhes para
isso de quantas ilusões está inçado o estudo que é feito por intermédio dos olhos
[...]. (1972, 82d-83-a, p. 94)
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Cabe ao filósofo, pois, educar a sua alma, dirigi-la ao encontro do inteligível, e
distanciar-se do sensível. Não cabe confiar nos sentidos, e nisso a alma filosófica se distingue
daqueles que creem estar a verdade contida nas aparências. O filósofo, aquele que ama o
saber, já não confia nos conhecimentos que partem do sensorial, daí então, confia somente no
inteligível e no invisível, aquele que a alma consegue alcançar (PLATÃO, 83c, p. 94). É
assim que Sócrates termina sua bela exposição acerca da alma propriamente filosófica.
Nas refutações a Cebes e a Símias, Platão pretende alcançar os filósofos presos à
physis que acreditam estar a alma ligada somente a esta, ou seja, motor vivente que cessa sua
atividade com o perecimento do corpo. Os princípios defendidos pelos primeiros filósofos, ou
físicos, são derrotados também por Platão. É o que se convencionou chamar “Segunda
Navegação” (PLATÃO, 96a-ss, 1972, p. 108ss).
A alma está direcionada agora ao lógos e todo discurso construído mediante uma
defesa da naturalidade da cisão corpo-alma terá de ser desfeito. Afinal, a alma filosófica não
teme o apartar provocado pela degeneração do corpo orgânico – exemplo vivo é o próprio
Sócrates –, mas preocupa-se com o aproximar-se a sua própria essência, que é o inteligível.
A oposição ao mito feita pelo logos também é realizada. Ou seja, em um primeiro
momento do diálogo, os mitos precedentes da tradição órfico-dionisíaca3 foram postos em
questão pelo logos. O filósofo ateniense utiliza-se de explicações imagéticas, ou mesmo
mitológicas, como é comum em todas as suas obras por meio do seu método dialógico. A sua
aproximação com o pitagorismo e o orfismo dominante parecem conduzir o seu pensamento
na defesa de tais seitas, e afastá-lo de seu caráter filosófico. Tal interpretação é causada
justamente pela filosofia neoplatonista que perdura. Platão é visto como cartesiano, espírita,
ou até cristão.
As alegorias que, conforme Brandão, significam “[...] etimologicamente dizer outra
coisa [...] que são [...] uma espécie de máscara aplicada pelo autor à ideia que se propõe
explicar” [...] (BRANDÃO, 1991, p. 31,35) são utilizadas por Platão e estas também são
coerentes com a religiosidade da época, no que tange aos aspectos da imortalidade da alma.
Por meio delas é mais fácil explicar tão difícil abordagem que se mostra, e isto é um traço
típico do método dialético. Ao inserir Cebes e Símias, personagens do diálogo, na difícil
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“Na representação da alma enquanto invisível e autônoma, concernente aos cultos a Dioniso e entre os órficos,
o duplo corpo-alma que caracteriza o humano permanece, mas a alma é distinta do corpo o suficiente para
poder libertar-se dessa “prisão” quando tomada de “vertigem”, nos ritos dionisíacos, ou da mania no orfismo
[...] na fuga de sua alma com o corpo com o auxílio dos ritos, transforma-se (o homem) num semi-deus pelos
laços que consegue manter com um ser divino que o transcende. A manía é um estado catártico, purificatório e,
seguindo a “roda das reencarnações”, a alma virá a purificar-se totalmente na sucessão de diferentes vidas”
(ANDRADE, 1993, p. 25).
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questão do “cárcere” que é o corpo para a alma, o uso dos mitos e da imaginação lhe é
propício ao se tratar de um tema tão abstrato (GAZOLLA, 1998, p. 128). Ainda sobre o
Fédon, diz Andrade:
[...] a linha reflexiva é tortuosa, fato que por certo propiciou a visão de um Platão
radicalmente dualista, que distanciou “geograficamente”, corpo e a alma, o sensível
e o inteligível, e que afirmou a existência de um mundo além deste, onde as almas
vêem as verdades eternas [...]. (1998, p.129)
As interpretações do Fédon que chegam até nós podem parecer perigosas. A própria
caracterização da filosofia que está intimamente ligada à pólis grega é um fator que põe em
dúvida tal dicotomia fundamentada somente em termos metafísicos. Na Grécia Antiga, onde
educação, metafísica e política se confluem, a caracterização de um Platão totalmente elevado
às excelsas alturas, destinado às elites, dualista e defensor de um conhecimento totalmente
teórico gera estranheza.
A noção de alma (psyché) é antiga no pensamento Grego. Desde Homero a busca de
uma definição do que seja a alma ainda é desafiador. Convém, então, saber distinguir o que a
tradição interpretativa diz e o que Platão realmente pretende dizer com seus escritos acerca da
alma. A alma pode ser também ligada às ideias, à inteligência (nous), mas, antes de tudo, para
o Grego antigo ela é princípio de vida, de movimento, está também direcionada à physis, e
também ao corpo (sôma).
Pelo orfismo e o dionisismo a alma é apartada do corpo para a purificação (kátharsis),
de semelhante exemplo vemos Platão utilizar-se em seu diálogo quando trata da alma. O
Hades, relatado no mito da destinação das almas, é outro exemplo que denota tal paradigma
utilizado por Sócrates ao tratar-se de sua filosofia, destinada ao conhecimento da Verdade
(alethéia), do Bem supremo. Enfim, as noções de alma, pertinentes ao século IV a.C. são
todas elas utilizadas, para que por meio de algo tão próximo de seus interlocutores Sócrates
atinja seus objetivos.
Há no Fédon um duro debate entre as concepções até então dominantes na Grécia
Antiga do século IV. Primeiramente, uma “analogia” próxima ao pensamento mítico ainda
apegado à imortalidade da alma, à purificação desta, da alma com um “fantasma” sem o corpo
vagante pelo Hades, na busca de reencarnações sucessivas. E uma consequente refutação do
pensamento de caráter físico, preso a um devir das coisas, que não permite nenhum
conhecimento verdadeiro, que perdure.
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O que há é uma defesa do “lógos” e não de uma dissolução corpórea. Como diz
Andrade, Platão não é um cientista, nem está à procura do que seja a essência da alma, mas
está preocupado com o discurso mais verdadeiro possível da realidade, de modo que os logóis
não se percam, na alma filosófica, nem se misturem ao conhecimento aparente, à ilusão, ao
sensível. (1998, p. 136).
A complexidade da alma humana está nessa dicotomia que a faz expressar-se de
modo mortal e imortal; e se dissemos, até aqui, que a alma é princípio do
movimento, causa da vida, da ordenação de todas as coisas quando definida na sua
universalidade, na sua particularidade humana ela é causa dos movimentos
específicos que o homem vem a conhecer em si mesmo, e fora de si, é causa da vida
expressa nas sensações, nos sentimentos, vontade e reflexão. (ANDRADE, 1993, p.
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Por fim, podemos inferir que a dicotomia corpo-alma pode ser vista de outra maneira.
Mesmo percorrendo a difícil questão da definição da alma nos diálogos platônicos, Platão está
sempre a relacionar o tema da alma em relação ao corpo com o conhecimento, e esta se
mostra como uma interpretação mais que adequada, ou seja, é uma pretensão
“epistemológica” a separação entre corpo e alma.
Parece oportuno ressaltar a história da alma de Tirésias, que vive a perambular no
Hades, como um fantasma, que ganha novamente o sopro vital, quando sua psyché inebria-se
do sangue de Ulisses. É assim que o adivinho resgata os seus poderes, unido o sangue
(matéria corpórea) e a alma (psyché). No diálogo Timeu Platão também descreve a geração da
Alma, mas, devido à extensão de criteriosa abordagem, não lidaremos com semelhante
diálogo neste texto.
2 A visão “realista” da filosofia platônica
Dodds diz: “a época clássica herdou uma série completa de retratos inconsistentes da
alma e do eu” (1951, p. 179 apud ROBINSON, 1998, p. 342). Na antiguidade grega, notam-se
várias concepções acerca da alma. A alma, muitas vezes se assemelha às Formas, é
compreendida também como Una, indivisível, imaterial, dotada de conhecimento, sentimentos
e desejos, ora é vista como dupla, princípio vital (visão adotada pelos físicos) e também como
o próprio “eu” puro, simples, genuíno.
Por mais que essas concepções estejam próximas ao dualismo da alma, a alma é um
agente cognitivo, um agente moral também. Entretanto, em Platão, “a relação alma-corpo é
essencialmente não-natural” (ROBINSON, 1998, p. 342). O conflito não é na própria alma,
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mas, sim, no conflito entre corpo e alma. E isso é fundamental para compreendermos a
correlação entre corpo e alma no pensamento platônico.
O indivíduo é duplo, não corpo versus alma, mas, sim, corpo-alma. Lado a lado, há
uma correlação psicofísica em Platão, o que mais tardiamente em nosso século vem sendo
desenvolvido e estudado com maior profundidade.
A alma apresentada na República de Platão é aquela que mais se distancia de tal
dicotomia estabelecida pela tradição. Vemos na República a alma associada à politéia, ao
conjunto de cidadão da pólis, e consequentemente à formação do homem grego (paidéia).
Alma então perde o seu caráter dual e agora é tripartida. Há as distinções: a alma apetitiva
(presa às sensações, à realidade aparente) mais próxima dos artesãos, a alma irascível (fica
próxima ao tórax, sinal de força, de proteção, controladora dos sentidos, própria dos
guerreiros e guardiões) e alma intelectiva (localizada na cabeça, direcionada ao inteligível)
que é a alma filosófica.
Notamos na obra em questão séria preocupação ético-política platônica. Isso nos
distancia da caracterização de Platão como um filósofo elitista, sem preocupações com a
cidade, preocupado somente com o conhecimento. Está em “jogo” na dialética platônica de
semelhante obra é a melhor formação para o homem, mais propriamente do filósofo. Assim,
por Sócrates, diz:
Foi graças a isso que, disse eu, naquele momento, apesar de prevermos essas
dificuldades e de temê-las, nós dizíamos, sob coação da verdade, que uma cidade,
uma constituição, um indivíduo – isso pouco importa – jamais chegará à perfeição
antes que esses poucos filósofos de quem não se diz que sejam maus, mas inúteis,
sejam obrigados por uma situação fortuita, queiram eles ou não, a ocupar-se da
cidade e a cidade seja obrigada a dar-lhes ouvidos, ou então que os filhos dos que
hoje estão no poder ou exercem a realeza ou mesmo eles próprios, por uma
inspiração divina, sejam invadidos por um verdadeiro amor pela verdadeira
sabedoria. (PLATÃO, 499b-c, 2006, p. 246)
Platão então demonstra sua intensa preocupação com o destino da cidade. Serão os
filósofos que, por meio da contemplação da Verdade, poderão governar a cidade. A alma
filosófica está mais apta ao governo porque ela parte do inteligível para a compreensão do
sensível, dessa forma, o destino da cidade será próspero, estará em conformidade com o
próprio Bem supremo.
Tal Ideia do Bem (tòn agathon) aparece na República, no Livro VI, em 508a-ss
figurada pela Alegoria do Sol. Na dificuldade da definição da Ideia Suprema, Platão constrói
alegorias ao longo desse diálogo. “É a ideia do bem que confere a verdade ao que está sendo
conhecido e capacidade ao que conhece (PLATÃO, 508e, 2006, p. 260)”. É a partir de tal
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ideia que a ciência pode ser concebida; entretanto, o Bem em si mesmo não é apreendido pelo
conhecimento humano.4 E em 509e-ss, o processo do conhecimento é comparado a uma linha
ascendente, na qual o conhecimento é divido em seções, segundo uma hierarquia, partindo do
sensível ao inteligível. A alma então é vista como responsável pela dialética ascendente do
conhecimento.
A alma, na primeira seção, era forçada a pesquisar a partir de hipóteses, usando
objetos lá imitados como imagens, caminhando na direção não do princípio, mas do
fim; na outra, porém, vai de hipótese ao princípio que não admite hipóteses sem
servir-se de imagens como no outro caso e encaminha sua pesquisa só por meio das
próprias idéias. (PLATÃO, 2006, 510b, p. 262)
A Alegoria do Sol (Filho do Bem – tòn toü agathoü ékgonon) e a Alegoria da Linha
preparam o “terreno” para a exposição da mais conhecida Alegoria da Caverna de Platão,
exposta no Livro VII da República. Platão antes de relatar tal alegoria já relata nas primeiras
linhas: “Depois disso, falei, compara nossa natureza, no que se refere à educação ou à
ausência de educação, com uma experiência como esta” (PLATÃO, 514a, 2006, p. 267). Isso
já reforça o caráter didático-pedagógico (paideia) da sua filosofia.
Na imagem apresentada no diálogo, Platão estabelece uma analogia com a alma
filosófica, que deve distanciar-se das “sombras” do aparente e ir em direção ao inteligível. A
alma humana é permeada pela visão “comum” do mundo, pelos que estão aprisionados na
caverna. Mas, por mais árduo que seja a visão direta às ideias, cabe ao filósofo esforçar-se,
começando pelo sensível, até alcançar as ideias, e consequentemente a Ideia do Bem, próxima
da alma. Ele deve corrigir (ortótes) o olhar, desviando-o das sombras em direção às ideias,
para que assim se aproxime da Verdade.5
Ora, disse eu, se uma alma cuja natureza é essa, já na infância, fosse submetida a
uma cirurgia em que lhe fosse cortado o que para ela é uma chumbada algo que tem
afinidade com o devir e que, sendo por natureza adequada a banquetes, prazeres e
glutonerias tais, voltam para baixo o olhar da alma; se, porém, já liberta disso,
voltasse seu olhar às coisas verdadeiras, mesmo aquela alma, a dos mesmos homens,
teria uma visão muito nítida com a que tem das coisas para as quais está voltada
agora. (PLATÃO, 2006, 519a-b, p. 273)
4
“ – Pois bem! Deves dizer também que não só é sob a ação do bem que a faculdade de serem conhecidos está
presente nos objetos, mas também que é sob a ação dele que eles ainda vêm a ter existência e o ser, muito
embora, o bem não seja essência, mas esteja muito além da essência em majestade e poder” (PLATÃO, 2006,
509b, p. 261).
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(Cf. PLATÃO, 2006, 518c-d, p. 272). Martin Heidegger explicita mais tal noção em: A doutrina de Platão
sobre a Verdade, 1942. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/verdade.htm>.
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Vemos então que em Platão as considerações acerca da alma variam, mas há nelas o
“fio condutor” epistemológico, didático-pedagógico, ético-político. A cidade ideal é aquela na
qual o filósofo governa, pois este vive de acordo com a verdade, e qualquer simulacro da
verdade já não lhe satisfaz. Por isso, é necessário que quem “sai da caverna” retorne a ela,
para dizer aos que ainda estão “presos” o exercício ao qual devem se submeter para
alcançarem a verdade. Nessa tentativa o filósofo poderá até “morrer”, devido ao constante
ágon que se instaura após ter desfrutado dos prazeres que a Verdade pode proporcionar. Dessa
forma, a cidade alcança a prosperidade devido aos ensinamentos filosóficos, que para Platão
se introduzem por meio da dialética.
Ao estabelecer a alma como primordial em relação ao corpo, e ao defender um
“morrer” constante dos “amantes da sabedoria”, Platão está fazendo alusão à vida de
arrazoamento filosófico. Não é que as concepções que promulgam o dualismo estejam
totalmente errôneas, mas quando recorremos aos textos platônicos com o devido rigor nos
distanciamos de tais concepções.
A teoria da reminiscência, exposta no Mênon, por exemplo, em que conhecer é
recordar-se do que já foi contemplado em uma vida anterior, é o lembrar-se da alma das
ideias, indica-nos, por exemplo, certo dualismo, ou um Platão órfico. Mas, como já fora
ressaltado, Platão utiliza-se “analogicamente”, e este “análogo” tem importante função para
explicar-nos a questão da alma. Assim ressalta Nunes:
Assim desde longe, o filósofo tomava suas providências para não ser incluído no
número dos pensadores unilaterais, tal como, numa confusão lastimável, viria a fazer
a maioria dos historiadores da filosofia, por considerá-lo idealista puro, que fugia do
mundo para melhor entregar-se a suas lucubrações. (NUNES, 1973, p. 250)
A ascese pretendida por Platão é aquela exposta no Banquete, em que o Eros
mediador, que é a própria filosofia, que entre a necessidade e a inteligência, entre a verdadeira
sabedoria e os empecilhos do corpo, afetado pelas paixões, sempre tem como objetivo
primordial o conhecimento. Semelhante daimón que novamente aparece no Fédon na
condução das almas ao Hades. A separação corpo-alma é apenas epistemológica, e o corpo
não é mal, porém é um obstáculo para a reflexão, para o conhecimento verdadeiro. No Fédon
acontece um jogo com as palavras, sistematizado e rigoroso, e estas palavras são: corpo e
alma. Diz Torrano:
Nessa definição de morte e de estar morto, a palavra “corpo”, como a palavra
“alma” são usadas num sentido ambíguo. Por quê? Porque “alma” significa não só a
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identidade espiritual, mas também toda a região do ser a que temos acesso através da
inteligência, da razão, do raciocínio, e que conhecemos unicamente através da alma,
e que a alma investiga com os seus próprios recursos, constituídos pela inteligência,
pela razão, pelo raciocínio. E “corpo” significa não só a unidade orgânica que
constitui o indivíduo, mas também essa região do ser correspondente ao sensível,
que nós conhecemos servindo-nos do corpo como um instrumento do conhecimento,
e cujo conhecimento é sempre precário, sujeito a equívocos, a enganos[...] Sócrates
diz que o verdadeiro filósofo é o verdadeiro iniciado porque a filosofia é a
verdadeira iniciação e a verdadeira purificação. A morte, então, se torna uma
metáfora do processo do conhecimento. (s/d, p. 9)
Sócrates até o final de sua vida ressalta a importância dessa verdade, mesmo que não
especifique bem ainda a debilidade da razão humana. A principal atenção não deve ser dada
ao mestre da dialética, mas ao exercício filosófico por ele defendido em toda a sua existência:
esse é o desejo de Sócrates. O pensamento autônomo libertará o homem das amarras do corpo
e conduzirá a sua alma às gratificações da contemplação da verdade (NUNES, 1973, p. 245).
Platão atua então em defesa da imortalidade da alma no Fédon, e tenta desconsiderar qualquer
doutrina que não dê prioridade à alma, devido ao relevante labor dialético que a compete.
É por isso que Sócrates não ousa temer a morte, e nem ousa fugir. Como aparece na
Apologia, até a crença no Hades e no encontro com os deuses no post-mortem são postos em
segundo plano por ele para defender a primazia do lugar do conhecimento. Qualquer vida se
mostra débil perante a proporcionada pela contemplação das Ideias e do Bem. Afirma
Andrade: “Por isso Sócrates não se importa em morrer, uma vez que, na mudança da
perspectiva física e religiosa para a metafísica, morrer significa deixar a “senda e opiniões dos
mortais” (1993, p. 28).
Por fim, diante de tudo o que foi exposto, cabe-nos o distanciamento de todas as
concepções que fundamentam um Platão que não corresponde às suas obras. Para uma
interpretação
rigorosa,
cabe examinarmos
os
argumentos
estritamente platônicos,
fundamentados em suas obras, com o propósito de fugirmos de todo comentário neoplatônico.
Visto que o dogmatismo não é uma característica propriamente platônica, só a partir
do exercício proposto pelo “mestre” Sócrates atingiremos o próprio conhecimento acerca das
questões que envolvem a filosofia, ou seja, somente pela dialética. Um típico dualismo corpo
e alma, eu e razão, só encontraremos séculos e séculos depois da antiguidade platônica com
Descartes, no seu dualismo dominante em que a razão conquista toda a sua primazia.
Considerações finais
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A leitura de um Platão órfico, tão defendida nos manuais e na História da Filosofia,
não realça o verdadeiro problema platônico acerca da definição da alma. Conforme Andrade:
“Apesar do Fédon, do Timeu, do Sofista afirmarem um Platão não-órfico, persiste na tradição
interpretativa um Platão que não encontra eco nos próprios textos” (1998, p. 139).
Na homenagem prestada ao velho Sócrates feita por Platão no Fédon, na própria figura
do mestre da dialética, deseja Platão, pelo exemplo daquele, demonstrar a vida em potencial
que pode ser desfrutada por quem se dispõe à reflexão, o que para os que não são filósofos é a
própria negação dos prazeres da vida, é um “morrer” intenso. A arte da maiêutica, defendida
pelo sábio ateniense, que consiste em utilizar-se do poder do “lógos” para melhor expressar o
pensar é o ideal que norteia semelhante diálogo. Diz Schelling:
Pois aquele que se quer colocar no ponto instaurador da filosofia verdadeiramente
livre deve abandonar até mesmo deus. Isso aqui significa: aquele que quer conserválo deve perdê-lo e quem se despojar haverá de encontrá-lo. Somente aquele que
chegou ao fundo de si mesmo e conheceu toda a profundidade da vida, que já tudo
abandonou e foi ele mesmo por todos abandonado, para quem tudo naufragou e que
se viu sozinho com o infinito, foi capaz do grande passo, que Platão já comparou
com a morte. (1986, IX, 217/218 apud CAVALCANTE, 1991, p. 15)
O “sol já se põe” e Sócrates está destinado a tomar o veneno, acusado pela defesa da
autêntica filosofia, e nós nos vemos menos confusos quanto às definições da alma na filosofia
platônica. A lição que o filósofo ateniense nos deixa, na elevação do pensar de seu mestre
Sócrates, é alma correlacionada com o corpo, que por meio do conhecimento sensível, quando
bem dirigida ao inteligível alcança a verdadeira sabedoria, a verdadeira “ciência”.
Tal exercício não tem feitio pré-determinado, mas vai amadurecendo-se, vai
formando-se, assim como a criança que chega à fase adulta. O que amadurece, contudo, não é
somente o corpo, mas sim e ainda mais a própria alma. Afinal, não é possível lidar com a
filosofia “sem alma”. Eis o que fica resguardado da perene e memorável filosofia socrática
exposta por Platão e que ainda perdura pelos séculos com suas questões tão peculiares.
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