arq-estr143.qxd 27/1/2006 15:39 A R Q U I T E T U R A S Page 66 E E S T R U T U R A S E H I S T Ó R I A S ARRANHA-CÉU DOS CASTELOS AOS EDIFÍCIOS ALTOS, AS TORRES TRANSFORMARAM-SE EM ESTRUTURA E USO, MAS NA SUA VERTICALIDADE MANTÊM A MATERIALIZAÇÃO DE ASPIRAÇÕES SECULARES DO HOMEM, COMO O DESAFIO À GRAVIDADE, O DESEJO DE TOCAR O CÉU E A CELEBRAÇÃO DA VIRILIDADE E DO PODER POR ENEIDA DE ALMEIDA, YOPANAN C. P. REBELLO E MARTA BOGÉA A figura do King Kong no topo do Empire State Building (1931), em Nova York, trazendo em suas imensas mãos a mocinha como refém, configura-se como a imagem a um só tempo de refúgio e domínio sobre a cidade. O filme de 1933 utiliza a recém-construída torre de 381 m de altura projetada por Richmond Shreve, William Lamb e Arthur Harmon, com projeto estrutural de H. G. Balcom. Na refil- Reprodução de The Graphic work of M. C. Escher, editado por Meredith Press e Ballantine Books Babel talvez seja a primeira referência ao falarmos de torres e ascensão. Um fascínio que extrapola o universo específico das construções e exprime a ousadia humana em atingir o céu. Um desejo evidenciado no mundo moderno na denominação dos primeiros edifícios altos, os chamados “arranhacéus”, que asseguram, na torre mais alta, o domínio do homem. A Torre de Babel é o primeiro símbolo registrado da ambição do ser humano em alcançar o céu e chegar ao topo do mundo. Desejo que na sociedade atual se reflete na criação dos arranha-céus, que brincam com a gravidade, com a estabilidade e com a engenhosidade estrutural para se transformarem em ícones de uma época. À esquerda, a Torre de Babel interpretada por Maurits Escher (1928) e, à direita, por Pieter Bruegel (1563) 66 ARQUITETURA&URBANISMO FEVEREIRO 2006 Reprodução de Vienna Kunsthistorisches Museum, de Gabriela Greco A ambição de alcançar o céu, o desejo de tocar o transcendental. Desde a primitiva Torre de Babel, ou até antes dela, essa urgência em atingir a distante abóbada celeste, ultrapassar as nuvens e olhar as estrelas será perseguida das mais diversas formas pelo homem, do início dos tempos até os dias atuais. arq-estr143.qxd 27/1/2006 15:39 Page 67 tural. Manter um corpo vertical estável, sobretudo os muito altos, corresponde a uma engenhosa solução. A estabilidade nessa tipologia depende sobretudo de um desenho que permita rigidez do conjunto por contraventamentos que se estabelecem por meio de volume final, ou da resolução das plantas. A seguir nos detemos sobre quatro soluções em Cartaz da refilmagem (1976). Em: www.amazon.com Cena do filme original (1933). Reprodução de Visions in Black & White, www.meredy.com magem de King Kong, em 1976, o “topo do mundo” são as torres gêmeas do WTC, símbolo de poder destituído pelo atentado de 11 de setembro, imagem que remete à derrocada das torres defensivas, gesto sempre repugnante, mas recorrente na história da humanidade. A estabilidade das torres, entretanto, é um desafio não só simbólico, mas também estru- Reprodução de 100 of the world's tallest buildings, de Ivan Zaknix e Matt Smith King Kong: do alto do Empire State em 1933 e do WTC em 1976, o topo do mundo representa, ao mesmo tempo, local de refúgio e domínio Arquivo No Bank of China, em Hong Kong, I. M. Pei usou o aço para compor uma grande treliça espacial que absorve as forças dos tufões presentes na região. À direita, a torre da TV Cultura, em São Paulo, cujo efeito diamantado usa solução estrutural semelhante à do Bank of China, ainda que em escala distinta Bank of China, em Hong Kong Torre da TV Cultura, em São Paulo que o contraventamento nos parece interessante e pertinente. O Bank of China (1989), em Hong Kong, de I. M. Pei, tem estrutura de concreto e aço e altura de 368,5 m. O aço foi usado na composição de uma grande treliça espacial de forma irregular que, além de transmitir as cargas verticais à fundação, apresenta principalmente a função de absorver as forças provocadas pelos grandes tufões da região. Nesse caso, o contraventamento ocorre no volume do edifício, mas por conta da geometria de planos variáveis da treliça – ou seja, de uma estrutura constituída no corpo da arquitetura. O interessante efeito diamantado da torre para antena de transmissão da TV Cultura, em São Paulo, projetada em 1991 pelo arquiteto Osvaldo Jorge Caron e calculada pelo engenheiro Hugo Tedeschi, tem solução semelhante à utilizada no Bank of China, embora em uma outra escala. Outro elemento de contraventamento bastante usual são os pórticos, que se caracterizam por apresentar ligações rígidas entre vigas e pilares. Um pórtico clássico é o do edifício Lake Shore Drive Apartaments (1948/1951), de 82 m de altura, obra de Mies van der Rohe em Chicago, Estados Unidos. Em alguns casos, o contraventamento fica a cargo de elementos internos ao edifício pela constituição dos núcleos de rigidez – em outras palavras, uma associação de paredes com função de contraventamento. Nos projetos de planta livre de Mies Van der Rohe podemos observar a adoção desses núcleos sempre dispostos nos eixos do edifício e de forma simétrica em relação ao conjunto. O emprego de um núcleo de rigidez assimétrico geraria torção no edifício, o que acarretaria aumento dos esforços na estrutura. O edifício Place Victoria (1962/1966), em Montreal, no Canadá, projeto de Pier Luigi Nervi, tem duas paredes centrais cruzadas em ângulo reto, correndo diagonalmente entre quatro colunas de concreto armado e conectadas por vigas treliçadas. Dois pisos mecânicos quebram visualmente a torre de 186 m em três a partir da base. Nesse projeto, Nervi cria um núcleo central de rigidez formado por lâminas de concreto armado cruzadas. O edifício também apresenta pilares na sua periferia, que são travados por FEVEREIRO 2006 ARQUITETURA&URBANISMO 67 arq-estr143.qxd 27/1/2006 15:40 Page 68 E E S T R U T U R A S E H I S T Ó R I A S Reprodução de Mies van der Rohe at work, de Peter Carter Reprodução de Process Architecture no 23, de Pier Luigi Nervi A R Q U I T E T U R A S Acima, o Lake Shore Drive Apartments, de Mies van der Rohe, contraventado pela constituição de pórticos. Pier Luigi Nervi, no Place Victoria (à direita), usa duas paredes centrais cruzadas em ângulo reto e pilares na periferia, travados por vigas que os ligam ao núcleo, para garantir rigidez em várias direções Reproduzido de The Master Architect Series II: Norman Foster, selected and current works of Foster and Partners, de Stephen Dobney Núcleo de rigidez assimétrico gerando torção 68 ARQUITETURA&URBANISMO FEVEREIRO 2006 27/1/2006 15:40 Page 69 Reproduzido de Jean Nouvel, de Oliver Boissière Reproduzido de The Master Architect Series II: Norman Foster, selected and current works of Foster and Partners, de Stephen Dobney arq-estr143.qxd Crescer até se perder nas nuvens. É essa a idéia da Torre Millenium (à esquerda), de Norman Foster, e da Torre sem Fim, de Jean Nouvel. Na primeira, o contraventamento é feito tanto pela malha treliçada externa que dá maior rigidez à construção, quanto por três lâminas de concreto armado que formam uma cruz no corpo central da estrutura. Já na proposta de Nouvel, o edifício começa opaco, de concreto armado, e termina com a transparência do vidro. Barras verticais e horizontais formam um tipo de tubo vazado com a função de contraventar o edifício muito altos. Na Torre Sem Fim, o pseudotubo passa por várias alterações e, da parede de concreto armado, maciça e propositadamente marcante, torna-se, no topo, uma parede de vidro, sustentada por um conjunto de barras treliçadas. A engenhosa solução estrutural faz com que essa torre desapareça “entre as nuvens” como a fantástica e orgânica torre de João no clássico infantil João e o Pé de Feijão, cuja metáfora conecta o mundo terreno e cotidiano de João ao mágico universo além das nuvens do Gigante. Reproduzido de João e o Pé de Feijão. Coleção Festival de Contos, da Editora Brasileira vigas que os ligam ao núcleo formado pelas lâminas. Como se sabe, a lâmina tem grande rigidez em uma direção, e bem menor na outra. Com o cruzamento consegue-se rigidez em várias direções, o que é desejável, visto que o vento pode solicitar o edifício em direções que não coincidam com as de maior rigidez das lâminas. A torre Millenium, de Norman Foster, está nas disputas para ser a mais alta. Nos seus 840 m de altura, com base de aproximadamente 100 m de diâmetro, configura uma unidade de vizinhança em um único edifício – uma espécie de cidadela vertical. O contraventamento utilizado aqui é composto por elementos externos e internos à obra: o corpo central é formado por três lâminas de concreto armado na forma de cruz. Externamente, uma grande malha treliçada envolve a construção e propicia-lhe maior rigidez. Dentre os projetos de edifícios muito altos, um se destaca por retomar aquilo que parece ser o genuíno encanto das torres: a incomensurabilidade que a faz desaparecer em meio às nuvens. Um legítimo arranha-céu. A Torre Sem Fim, de Jean Nouvel, distingue-se na sua materialidade por nos devolver essa poética próxima de um facho de luz que desvanece em direção ao infinito. Com 400 m de altura, a torre de Nouvel Eneida de Almeida é arquiteta, doutoranda pela FAUUSP, mestre pela Universidade La Sapienza de Roma na área de restauro e professora do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu. Ilustração do conto infantil João e o Pé de Feijão começa em uma base opaca e cresce para um topo transparente. A solução adotada para contraventamento é um sistema formado por pseudotubo, composto por barras verticais (pilares) e horizontais (vigas) dispostas de tal maneira que o conjunto forma uma espécie de tubo vazado. Essa é uma das mais econômicas soluções estruturais para edifícios Yopanan C. P. Rebello é engenheiro civil, doutor pela FAUUSP e professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu, além de diretor pedagógico da YCON Formação Continuada. Marta Bogéa é arquiteta, doutoranda pela FAUUSP e professora nos cursos de graduação e pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu. FEVEREIRO 2006 ARQUITETURA&URBANISMO 69