Há Insuficiência de Poupança Nacional para o Aumento das Taxas de Crescimento da Economia Brasileira? Marco Flávio da Cunha Resende RESUMO Há na literatura convencional diversos argumentos e conclusões sobre a relação entre poupança e investimento que são equivocados segundo o referencial teórico pós Keynesiano. Argumenta-se na literatura convencional que: i) a taxa de investimento agregado não pode se elevar sem antes haver o aumento da poupança nacional e/ou da absorção de poupança externa; ii) Déficits em transações correntes elevam a soma entre poupança nacional e poupança externa e, por isso, elevam o investimento; iii) no pleno emprego não é válido o argumento de Keynes de que é o investimento que antecede a poupança. Elaboraram-se neste artigo argumentos de cunho teórico para demonstrar que: i) mesmo no pleno emprego, o investimento antecede a poupança; ii) a elevação da absorção de poupança externa pode se dar mediante a substituição de poupança nacional por poupança externa sem estar associada a uma taxa de investimento mais elevada. A contribuição do artigo está em desfazer confusões e demonstrar a relevância de se considerar a taxa de câmbio real quando se trabalha com a economia aberta, para que se possa entender a relação de causalidade entre investimento e poupança proposta por Keynes. ABSTRACT There are in the mainstream economics literature several arguments and conclusions about the relationship between savings and investment that are misleading according to the theoretical post-Keynesian. In the conventional literature one can see that: i) the aggregate investment rate can not increase without first having an increase of national savings and / or of absorption of foreign savings, ii) current account deficits raise the sum of domestic savings and external savings and therefore increase the investment; iii) the argument of Keynes that shows that investment prior to savings is not valid when there is full employment. In this paper theoretical arguments were developed to show that: i) even at full employment, investment precedes savings, ii) the absorption of foreign savings can occur through substitution of domestic savings by the former and it will not be associated with a higher rate of investment. The contribution of this paper is to undo confusion that there is in the literature that works with investment and savings and demonstrate the relevance of considering the real exchange rate when working with the open economy, so one can understand the causal relationship between investment and savings proposed by Keynes. Palavras-Chave: investimento, poupança, taxa de câmbio real Key words: investment, savings, real Exchange rate JEL Classification: C23, E62, F41. Professor do CEDEPLAR/UFMG e Vice-Presidente da Associação Keynesiana [email protected]. O autor agradece o apoio financeiro do CNPq e da FAPEMIG. 1 1. Introdução A meta do governo para o crescimento da economia brasileira em 2012 é 4,5%. Para muitos analistas o crescimento será de 3% ou menos. Para além de 2012, deseja-se o crescimento sustentado de 5% ao ano, o que requer a ampliação da taxa de investimento de 19% para cerca de 23% do PIB. O senso comum mostra que não há como ampliar o investimento sem antes elevar a poupança. Afinal, de onde sairão os recursos que financiarão o investimento? Ademais, investimento em macroeconomia é o acréscimo do estoque físico de capital, por meio da construção de novas fábricas, etc. Dado o PIB, para que se possa produzir mais máquinas, cimento, etc., que são os recursos que constituirão o investimento, é necessário reduzir o consumo, elevando-se a poupança. Esta visão, amplamente aceita, pois parece lógica, é equivocada segundo a Escola Pós Keynesiana. A poupança agregada, por definição, é renda agregada não consumida. Para Keynes, o investimento gera produto e renda que crescem a partir do efeito multiplicador dos gastos e, então, parte da renda é poupada. Logo, é o investimento que causa a poupança. O investimento é sempre igual a poupança, pois estes são igualados no processo de crescimento da renda a partir do multiplicador dos gastos. Contudo, é o investimento que precede a poupança, não o contrário. Ademais, o investimento depende do crédito de curto prazo demandado no intervalo de tempo entre a decisão de investir e sua implementação. Essa demanda de crédito (finance motive) é satisfeita por meio de arranjos financeiros de débito e crédito que não necessariamente têm como lastro a poupança. A crise do subprime é um exemplo do modus operandis da economia, na qual a esfera financeira se descolou da esfera real. O adiantamento de recursos a partir de arranjos financeiros viabiliza o investimento, a geração de renda, que cresce via multiplicador dos gastos, e ao final deste processo surge a poupança. O papel desta é o de superar a fragilidade financeira criada para credores e devedores quando aqueles concederam o finance para o investimento - o papel da poupança é consolidar (mas não financiar) a acumulação de capital (Studart, 1995, cap 4; Cintra, 1999; Resende 2008). Assim, são equivocados os seguintes argumentos de economistas ortodoxos: i) a redução da taxa de juros, a estabilidade econômica, programas sociais, etc, inibem a poupança e, por isso, inibem o investimento (Neri, 2012); ii) a taxa de investimento agregado não pode se elevar sem antes haver o aumento da poupança nacional e/ou da absorção de poupança externa (Mendonça de Barros, 2012; Pinheiro, 2011; Garcia, 1997); iii) quando há desemprego dos fatores de produção é válido o argumento Keynesiano de que é o investimento que precede a poupança, porém, no pleno emprego o aumento do investimento só é possível por meio da inflação (poupança forçada) ou da expansão da absorção de poupança externa (déficits em transações correntes) ou do aumento da popança nacional (Pessoa, 2012; Giambiagi e Amadeo, 1990); iv) o aumento da absorção de poupança externa representa, necessariamente, aumento do investimento. Este tema é espinhoso e causa confusão. Este artigo possui dois objetivos. Pretende-se demonstrar que, em economias abertas, a relação de causalidade entre investimento e poupança e, também, a relação entre absorção 2 de poupança externa e aumento do investimento são questões que se relacionam com o nível da taxa de câmbio real. Argumenta-se neste artigo que: i) mesmo no pleno emprego, o investimento sempre antecede a poupança que, por sua vez, surge como resíduo do crescimento da renda induzido pelo investimento; ii) a elevação da absorção de poupança externa pode se dar mediante a substituição de poupança nacional por poupança externa sem o aumento do investimento. Este artigo é de cunho teórico e conta com três seções. A primeira se refere à Introdução. Na segunda, os objetivos acima delineados são abordados teoricamente. A terceira seção destina-se às conclusões e considerações finais. 2. Investimento e Poupança: desfazendo confusões Analisando o caso do Brasil, Garcia (1997) argumenta que a restrição ao investimento não decorre da deficiência do mercado de capitais brasileiro ou da insuficiência de recursos financeiros: “A poupança é contabilmente igual ao investimento. O conceito de investimento em macroeconomia, por sua vez, nada tem a ver com investimentos financeiros (...) investimento em macroeconomia é o acréscimo do estoque físico de capital (...) por meio, por exemplo, da construção de novas fábricas (...) Note que se fala aqui exclusivamente de bens e serviços, e não de dinheiro (...) quando se diz que se quer elevar a taxa de investimento da economia brasileira em 3 ou 4% do PIB, o problema é de onde vão sair os bens e serviços que constituirão o investimento (...) os bens e serviços adicionais só poderão sair de um menor consumo privado (maior poupança interna privada), de um menor consumo do governo (maior poupança interna pública) ou de um maior déficit em transações correntes (poupança externa) (...) os US$ 200 bilhões dos fundos de pensão constituem riqueza financeira (...) e não podem ser fisicamente transformados em máquinas para aumentar o investimento (...) o aumento do investimento tem, obrigatoriamente, que ser financiado por um equivalente aumento de poupança interna (privada ou pública) ou externa.” Mendonça de Barros (2012) e Pinheiro (2011) adotam esta mesma linha de argumentação.1 Nesta visão, a redução do consumo agregado, ao ampliar a poupança nacional, permite a expansão da produção de máquinas, equipamentos e edificações, aumentando a produção dos “bens e serviços que constituirão o investimento”, isto é, elevando o “estoque de físico de capital” da economia. Todavia, visto que este raciocínio é aplicado a um curto período de tempo (o argumento de Garcia é que a contenção dos gastos públicos permitiria a ampliação da poupança pública viabilizando-se o aumento do investimento nos anos seguintes) e, ainda, não faz menção à taxa de câmbio real, tal argumento tem como hipótese implícita a possibilidade de se “transformar fisicamente” máquinas que produzem bens de 1 Conforme Mendonça de Barros (2012), “Finalmente, com uma taxa de poupança (no Brasil) relativamente baixa precisamos da poupança externa, mesmo para crescer relativamente pouco”. Segundo Pinheiro (2011) “Não há como contestar que a poupança nacional (do Brasil) é baixa e que é necessário elevá-la. Sem isso, uma alta do investimento exigiria déficits com o resto do mundo”. 3 consumo em máquinas que produzem outras máquinas (bens de capital). Assim sendo, o argumento de insuficiência (restrição) de poupança nacional perde, obviamente, sua validade. Para Giambiagi & Amadeo (1990), a restrição de poupança ao investimento só se verifica quando o nível do produto corresponde ao nível de pleno emprego. Neste caso, não haveria recursos reais disponíveis que permitissem absorver um aumento do investimento agregado. Segundo estes autores, tal absorção só seria possível mediante uma redução do consumo agregado. Os argumentos desenvolvidos em Giambiagi & Amadeo (1990) foram elaborados tendo por base uma série de equações que, por seu turno, se encontram no Anexo deste artigo. Todavia, Giambiagi & Amadeo (1990) cometem dois equívocos que comprometem suas conclusões. Segundo eles, há três restrições relacionadas ao crescimento: de poupança, externa e de demanda. Porém, para demonstrar a restrição de poupança, eles assumem uma relação de causalidade entre poupança e investimento (equação 12 de Giambiagi & Amadeo, 1990; ver no Anexo), onde este seria função da poupança, a partir de uma identidade contábil (equação 11 de Giambiagi & Amadeo, 1990; ver no Anexo), embora eles próprios tivessem argumentado anteriormente que: i) o investimento causa a poupança, e, não, o contrário; ii) identidades contábeis não apontam uma relação de causalidade. Ambos os pontos estão amparados nas seguintes passagens: “o discutido até aqui nada mais é que uma apresentação de equações contábeis. Estas nada nos dizem, porém, sobre as relações de causalidade envolvidas na análise. Por isso, é fundamental ir além das identidades (...) A forma como o tema costuma ser tratado na literatura parece-nos responsável pela confusão analítica associada à relação entre poupança e investimento. As análises feitas a posteriori supõem que o aumento do investimento é causado pelo crescimento da poupança, ou que o investimento não atingiu o nível satisfatório porque a poupança foi insuficiente. O que essas análises não levam em consideração é que a decisão dos indivíduos de poupar uma parcela maior dos seus rendimentos não necessariamente irá se transformar num aumento do investimento e da poupança agregados, ao passo que um aumento do investimento implica necessariamente a geração de um fluxo de poupança de igual valor (...)” Giambiagi & Amadeo (1990, p.82). Ainda, “Em particular, a relação de causalidade apontada por Keynes, do investimento para a poupança – contrariamente à visão neoclássica – continua válida sob qualquer hipótese, acerca das circunstâncias vigentes (...) embora em condições de pleno emprego Keynesianos e neoclássicos concordem quanto ao possível excesso de consumo (...) uma leitura neoclássica dos fatos conduzirá à recomendação de aumentar a poupança, ao passo que uma interpretação Keynesiana dos fatos levará a concluir que é preciso investir mais. A diferença entre ambas as recomendações, imperceptível quando se lida apenas com identidades contábeis, sem discutir a teoria que figura por trás das mesmas, é crucial (...)” Giambiagi & Amadeo (1990, p.78). 4 Por fim, “pode-se argumentar que reduzir o consumo e aumentar a poupança, se ocorrer um aumento do investimento, correspondem ao mesmo fenômeno. Entretanto, a sequência lógica é diferente, ou seja, na prática o que ocorre não é que a queda do consumo gera um aumento da poupança e este uma elevação do investimento e, sim, que o aumento do investimento acarreta um aumento da poupança e, em condições de pleno emprego, exige uma redução do consumo” Giambiagi & Amadeo (1990, p.82, grifo nosso). Portanto, os autores argumentam que no pleno emprego a redução do consumo permitiria o aumento do investimento e, em seguida (ou ao mesmo tempo), a poupança também cresceria como consequência deste. Ora, reduzir o consumo para uma dada renda significa ampliar a poupança antes mesmo que o investimento ocorra, pois poupança é, por definição, a renda não consumida. Ademais, há neste argumento a hipótese de que bens de capital que produzem bens de consumo podem se metamorfosear em produtores de bens de capital já que Giambiagi & Amadeo (1990) não trabalham com a taxa de câmbio real em seu modelo.2 Aliás, tal hipótese de metamorfose dos bens de capital foi feita explicitamente através de exemplo capcioso apresentado em Giambiagi (1988, p.12): ele supõe que, a pleno emprego, a redução do consumo de automóveis (bem de consumo) permitiria o aumento da produção de caminhões (bem de capital). Porém, neste “caso particular” os mesmos bens de capital que produzem bens de consumo (autmóveis) podem, em geral, produzir também um tipo específico de bens de capital, a saber, caminhões. Mas esta versatilidade dos bens de capital é uma exceção, não a regra. Do mesmo modo, para demonstrar a restrição externa ao crescimento, os autores, partindo da mesma identidade contábil, assumem que “(...) um aumento da taxa de poupança interna pode se traduzir no crescimento das exportações e, consequentemente, das importações e do investimento” Giambiagi & Amadeo (1990, p.85). Novamente os autores se contradizem, pois nesta passagem a poupança antecede o investimento. Além disso, a identidade contábil não aponta para uma relação de causalidade entre poupança e exportação e, então, novamente a demonstração dos autores não é válida (equação 20; ver no Anexo). Por fim, a relação apresentada por Giambiagi e Amadeo (1990, p.86), a saber, um aumento da propensão a poupar eleva o investimento, também é equivocada e expressa a contradição destes autores que inicialmente consideraram correta a proposição de Keynes de que a poupança resulta do investimento, e, não, o inverso. A propensão interna a poupar (s) não afeta o investimento. Tal propensão, que é o inverso da propensão a consumir, determina apenas o número de etapas do circuito gasto-renda-poupança inserido no processo multiplicador da renda e detonado pelo investimento. Após ter se verificado o investimento, a poupança será sempre a mesma, sendo ao final do processo multiplicador igual ao investimento. Ou seja, se a propensão a poupar cresce, então haverá um menor número de etapas no circuito gasto-renda-poupança, de modo que, para cada nível do investimento, a 2 Este ponto ficará claro logo a seguir. 5 poupança será a mesma ao final do processo, seja qual for o tamanho de s. Deste modo, o investimento inicial não é afetado pelo tamanho de s, mas, apenas, o número de etapas associadas ao multiplicador dos gastos é afetado. Mas porque diversos autores insistem na idéia da precedência da poupança em relação ao investimento? A ortodoxia econômica trabalha com a idéia de economia primitiva, representada pela ilha de Robinson Crusoe ou por uma feira de aldeia onde prevalece o escambo. A moeda entra nesta economia apenas como um facilitador das trocas. Neste caso, a moeda é neutra e se R. Crusoé quer produzir maior quantidade de bens de consumo no futuro terá que poupar e produzir menos bens de consumo no presente, pois parte do seu tempo será dedicada à produção da máquina (poupança) que permitirá aumentar a futura produção de bens de consumo. Neste caso, a poupança antecede o investimento. Argumenta-se, então, que quando a poupança nacional é insuficiente em relação ao investimento, o resultado é o aumento da taxa de juros doméstica que, por sua vez, atrairá capitais externos, produzindo apreciação da taxa de câmbio real e déficits em conta corrente (absorção de poupança externa). O aumento da poupança externa resolve o problema da insuficiência de poupança nacional. Neste raciocínio a taxa de câmbio real é, então, endógena, enquanto a poupança é exógena. Na visão Pós Keynesiana, a economia é permeada pela incerteza fundamental e, por isso, a moeda não atua apenas como meio de troca. Ela é também um ativo, alternativo aos demais e com liquidez máxima, sendo unidade de conta e reserva de valor no âmbito de complexa teia de relações de débito e de crédito entre o setor financeiro e os demais setores, entre as partes do sistema financeiro, intra-firmas e interfirmas, entre governo e setor privado, etc. O cumprimento dos direitos e obrigações inscritos netas relações contábeis está respaldado por contratos monetários - onde a moeda é unidade de conta. Os contratos e convenções existem para garantir aos agentes um mínimo de controle e segurança em relação ao porvir em um mundo marcado pela incerteza sobre o futuro (Davidson, 2012, Carvalho, 1992). Assim sendo, arranjos financeiros permitem o adiantamento de recursos monetários para a compra de máquinas e equipamentos que servirão ao investimento antes da produção e da poupança terem ocorrido - até porque, por definição, poupança é renda não consumida, isto, é, para se ter a poupança deve-se ter, antes, o emprego, o produto e a renda. Parcela da renda é usada para gastos com consumo e o resíduo é a poupança. Nas modernas economias capitalistas, denominadas por Keynes de economias monetárias, bancos trabalham alavancados, adiantando os recursos que resultarão no investimento, no crescimento da renda, e, ao final do processo, na poupança (Keynes, 1988 a,b). Esta, por sua vez, é crucial para se gerar o funding (reestruturação dos passivos de curto prazo em passivos de longo prazo) e, assim, eliminar a fragilidade financeira que poderia abortar o crescimento da economia. Além disso, para se entender a relação de causalidade entre investimento e poupança proposta por Keynes é necessário considerar a taxa de câmbio real quando se trabalha com a economia aberta. Esta taxa expressa a relação entre os preços dos bens comerciáveis (bens que podem ser importados e exportados) e não-comerciáveis (serviços em geral, inclusive salários). O aumento daqueles em relação ao preço dos não-comerciáveis corresponde à depreciação do câmbio real e leva à redução do consumo de bens comerciáveis e aumento da sua produção, elevando-se as exportações líquidas. O aumento 6 destas corresponde contabilmente à ampliação da poupança nacional, sendo que o investimento é (contabilmente) sempre igual à soma da poupança nacional e da absorção de poupança externa (Feijó et alli, 2001, p.8). Simetricamente, a apreciação da taxa de câmbio real reduz as exportações líquidas, inibe a poupança nacional e estimula a absorção de poupança externa. A queda do preço relativo dos bens não comerciáveis representa redução do custo de produção de bens comerciáveis, mas a queda do preço relativo destes não enseja, na mesma proporção, redução do custo de produção de bens não comerciáveis. Deste modo, para o conjunto da economia, a depreciação da taxa de câmbio real confere viabilidade econômica a plantas produtivas que antes da depreciação cambial não eram viáveis. Logo, o grau de ociosidade dos fatores produtivos depende, entre outros elementos, do nível da taxa de câmbio real. Isto quer dizer que mesmo no pleno emprego o investimento pode aumentar sem a necessidade da inflação (poupança forçada) ou da absorção de poupança externa (déficits em transações correntes) se a taxa de câmbio real se depreciar. Na visão Pós Keynesiana, quando a apreciação cambial ocorre, verificam-se, simultaneamente, deterioração do saldo em conta corrente, queda da poupança nacional e deslocamento para o exterior do estímulo à formação de poupança proporcionado pelo investimento, se não vejamos. Na economia fechada, o investimento gera renda e desta surge a poupança nacional. Na economia aberta, este papel do investimento também é exercido pelas exportações: estas geram renda e poupança. Assim, as exportações fazem parte da poupança nacional quando não têm como contrapartida importação de bens de consumo. A receita das exportações é usada para importar bens de capital (BK), ou seja, tudo se passa como se as exportações fossem o próprio investimento doméstico (isto é, produção doméstica de BK) já que a receita das exportações é trocada por importação de BK que irão satisfazer a demanda de investimento. Da mesma forma que ocorre com o investimento, as exportações geram renda, consumo e poupança nacional. Porém, se a magnitude do investimento não se alterar,3 após a redução das exportações líquidas devido a uma apreciação cambial, não haverá mais a troca de bens exportados por importações de BK, pelo menos parcialmente. Isto é, parcela das importações de BK não terá mais correspondência na poupança nacional. Após a apreciação cambial parcela das importações de BK e, portanto, parcela do investimento, terá sua correspondência na absorção de poupança externa (déficit em conta corrente). Do ponto de vista do resto do mundo (parceiros comerciais), suas exportações líquidas terão aumentado após a apreciação da taxa de câmbio real no país doméstico. Isto quer dizer que após a apreciação cambial parcela do investimento (importações de BK) do país doméstico passou a estimular a formação de poupança no resto do mundo em detrimento do estímulo à poupança nacional no país doméstico. 3 Pode-se argumentar que a apreciação da taxa de câmbio real, ao tornar as importações de bens de capital mais baratas em moeda doméstica, estimularia o investimento. Todavia, a literatura nacional e internacional que trata da relação entre câmbio e crescimento aponta diversos argumentos teóricos e evidências empíricas para a relação inversa entre taxa de câmbio real e crescimento econômico de longo prazo (o que, obviamente, sugere uma relação inversa entre câmbio e investimento). 7 Portanto, não há insuficiência de poupança nacional em relação a uma dada taxa de investimento: este antecede aquela. Partindo de um dado nível do investimento doméstico, quando a taxa de câmbio está apreciada, surgem déficits em conta corrente estimulando a formação de poupança no resto do mundo a partir do investimento doméstico, enquanto o estímulo sobre a renda e a poupança doméstica será reduzido. Após a apreciação cambial tem-se a substituição de poupança doméstica por poupança externa, conforme já argumentavam Bresser-Pereira e Nakano (2003). Segundo estes autores, o aumento do preço relativo dos bens não comerciáveis eleva a participação dos salários na renda agregada em detrimento da participação dos lucros. Como a propensão a consumir do trabalhador é maior do que a do capitalista, o consumo agregado aumenta e a poupança doméstica diminui. Deste modo, na abordagem Pós Keynesiana é equivocado o argumento de que déficits em transações correntes, por representarem absorção de poupança externa, implicam sempre aumento da taxa de investimento. De um lado, o déficit externo associado a um câmbio apreciado, tudo o mais constante, não amplia a soma da poupança nacional com a poupança externa, mas, apenas, representa a substituição de poupança nacional por poupança externa. De outro lado, a apreciação cambial desloca para o exterior o estímulo à formação de poupança proporcionado pelo investimento. O aumento do investimento simultaneamente à depreciação do câmbio real elevará o crescimento e a poupança da economia brasileira – a depreciação da taxa de câmbio real confere viabilidade econômica a plantas produtivas que antes da depreciação cambial não eram viáveis, aumentando do nível do produto de pleno emprego. O câmbio apreciado no Brasil desloca parcela do estímulo do investimento para a formação de poupança no resto do mundo e ainda produz, perigosamente, a desindustrialização e a vulnerabilidade de uma economia que se insere cada vez mais no mercado internacional como exportadora de commodities e com crescentes déficits externos- estes foram de 1,72% do PIB em 2008, alcançando, em 2011, 2,26% do PIB. 3. Conclusões É consensual na literatura econômica que o crescimento econômico de longo prazo depende do investimento. Sobre este tema são comuns os seguintes argumentos: i) não é válido o argumento de Keynes de que é o investimento que causa a poupança e, então, o aumento do investimento depende da elevação da poupança; ii) quando o nível do produto está aquém do nível de pleno emprego o investimento pode anteceder a poupança. Contudo, no pleno emprego o aumento do investimento só é possível por meio da inflação (poupança forçada) ou da expansão da absorção de poupança externa (déficits em transações correntes) ou do aumento da popança nacional; iii) redução da taxa de juros, estabilidade econômica, programas sociais, etc, inibem a poupança e, por isso, inibem o investimento; iv) o aumento da absorção de poupança externa implica aumento do investimento. Este tema é espinhoso e causa confusão. Argumentou-se neste artigo que para se entender a relação de causalidade entre investimento e poupança proposta por Keynes é necessário considerar a taxa de câmbio real 8 quando se trabalha com a economia aberta. Demonstrou-se que mesmo no pleno emprego o investimento antecede a poupança. Todavia, quando o nível do produto é o de pleno emprego o aumento do investimento requer a depreciação da taxa de câmbio real uma vez que esta amplia o produto potencial da economia. De outro lado, na economia aberta, os estímulos do investimento agregado para a formação da poupança agregada verificam-se no país onde está ocorrendo o investimento e também em seus parceiros comerciais (resto do mundo). Demonstrou-se neste trabalho que é o nível da taxa de câmbio real que determina a proporção do estímulo do investimento para a formação de poupança que será direcionada para o país onde ocorre o investimento e a proporção que será direcionada para o resto do mundo. Quanto mais apreciada for a taxa de câmbio real maior será a parcela do investimento que estimulará a poupança no resto do mundo em detrimento da formação da poupança nacional. Ou seja, a apreciação da taxa de câmbio real desloca para o exterior o estímulo à formação de poupança proporcionado pelo investimento. Deste modo, a apreciação cambial provoca a substituição da poupança nacional por poupança externa. Isto significa que déficits em transações correntes que decorrem da apreciação da taxa de câmbio real não ampliam a soma da poupança nacional com a poupança externa, mas tão somente substituem uma pela outra, dada uma mesma taxa de investimento. Ao contrário do que se pode encontrar na literatura convencional (mainstream economics), a absorção de poupança externa (déficits em transações correntes) não está, necessariamente, associada a uma taxa de investimento mais elevada. Da mesma maneira, do ponto de vista pós Keynesiano, políticas de proteção social, quedas nas taxas de juros, etc, não levam a reduções da poupança e do investimento, conforme se argumenta na literatura convencional. Pelo contrário, coeteris paribus, tais políticas estimulam o investimento agregado e, em conseqüência, estimulam a poupança agregada. O aumento do investimento simultaneamente à depreciação do câmbio real elevará o crescimento e a poupança da economia brasileira – a depreciação da taxa de câmbio real confere viabilidade econômica a plantas produtivas que antes da depreciação cambial não eram viáveis, aumentando do nível do produto de pleno emprego. O câmbio apreciado no Brasil desloca parcela do estímulo do investimento para a formação de poupança no resto do mundo e ainda produz, perigosamente, a desindustrialização e a vulnerabilidade de uma economia que se insere cada vez mais no mercado internacional como exportadora de commodities e com crescentes déficits externos. 9 ANEXO Os argumentos desenvolvidos em Giambiagi & Amadeo (1990) mencionados na seção 2 deste trabalho foram elaborados tendo por base uma série de equações que, por seu turno, se encontram a seguir. Em um modelo agregado, a taxa de crescimento do produto (y) é dada por: yt = [Yt/Yt-1] – 1 (1) Yt = [Kt/c].ut (2) c = relação entre estoque de capital e o produto potencial; u = grau de utilização do capital; K = estoque de capital Supondo que o investimento incorpora-se ao estoque de capital com defasagem de um período e chamando d à percentagem de depreciação do capital, temos: Kt = Kt-1(1-d) + It-1 (3) I = investimento O produto potencial é dado por: Y*t = Kt/c (4) Conclui-se por (3) e (4) que yt y*t = f (It-1) (5) A RESTRIÇÃO DE POUPANÇA Os autores consideram uma economia sem governo, o que não afeta as conclusões do trabalho já que o caso da restrição financeira do setor público pode ser considerado um caso especial da situação analisada. “Se o Estado está investindo pouco e a economia está operando a plena capacidade, a solução é restringir o consumo, seja do próprio Governo – via mudança no perfil do gasto – seja do setor privado – via tributação. Em ambos os casos há uma queda do consumo e um aumento da poupança e do investimento.” Giambiagi e Amadeo (1990, p.80). Si = Y – C (6) Si = poupança interna C = consumo; 10 Se = M – X (7) Se = poupança externa; M = importações de bens e serviços não fatores; X = exportações de bens e serviços não fatores4 Si = si.Y M = m.Y (8) (9) si e m são a propensão interna a poupar e a propensão a importar, respectivamente. Dada a identidade Y = C + Si = C + I + X – M (10) Então o valor de I será: I = si.Y + Se = si.Y + m.Y – X (11) Chamando de IA ao investimento que prevaleceria se a única restrição fosse a de excesso de consumo, o valor do investimento efetivo seria: I = IA = f ( si , m , X ) (12) Giambiagi e Amadeo (1990) assumem que o investimento depende da renda esperada futura, a qual é uma função dos gastos autônomos e do multiplicador. Sendo A esses gastos esperados e up o grau de utilização planejada de capacidade, a renda potencial esperada seria: A RESTRIÇÃO DE DEMANDA Giambiagi e Amadeo (1990) assumem que o investimento depende da renda esperada futura, a qual é uma função dos gastos autônomos e do multiplicador. Sendo A esses gastos esperados e up o grau de utilização planejada de capacidade, a renda potencial esperada seria: Y* e = [Ae/(sie + me)].[1/up] (13) Os autores supõem que a propensão interna a poupar e a propensão a importar esperadas (sie + me, respectivamente) são iguais aos seus valores correntes. O estoque de capital (Ke) programado pelos empresários para um período depende do valor de Y* e e da relação capital/produto potencial, conforme: 4 Giambiagi e Amadeo (1990, p.80) consideram que a poupança interna é o resultado da diferença entre o PIB e o consumo e, do mesmo modo, as importações líquidas de serviços de fatores não são consideradas no cômputo da poupança externa. 11 Ke = c.Y* e (14) A partir das equações (3), (13) e (14) e incorporando defasagens temporais, obtém-se: It = c.[ Ae t+1 / (si + m)].[1/up] – Kt (1-d) (15) Chamando de IB ao nível de investimento que prevaleceria se a única restrição fosse de demanda, e sendo os valores de K, d, c e up dados, o nível efetivo de investimento seria dado por: I I = f ( si , B e) m , At 1 (16) A RESTRIÇÃO DO BALANÇO DE PAGAMENTOS A terceira limitação analisada em Giambiagi e Amadeo (1990) é a restrição de balanço de pagamentos: Px.X – Pm.m.Y – RLE + CK = R (17) Onde Px e Pm são os índices de preço de exportações e importações, RLE é a renda líquida enviada ao exterior, CK é o saldo da conta de capitais e R é a variação de reservas. Supõese que o país só importa bens de capital, cujo montante importado é uma proporção mk do investimento. Então, m.Y = mk.I (18) Supõe-se, ainda, que a RLE e o valor de CK são dados. Assim, I = [Px.X – RLE + CK - R] / [Pm.mk] (19) Supondo que a variação de reservas é nula e chamando Ic ao investimento resultante do fato de a restrição de balanço de pagamentos ser a única vigente na economia, o valor efetivo do investimento seria: I Ic = f ( P X , m X i* g * CK , P , m , , , K 12 ) (20) Referências Bibliográficas BRESSER-PEREIRA, L.C.; NAKANO, Y. Crescimento econômico com poupança externa? Revista de Economia Política, v. 23, n. 2, abril-junho, 2003. CARVALHO, F.J.C. Mr Keynes and the post Keynesians: principles of macroeconomics for a monetary production economy. Edward Elgar, 1992. CINTRA, M. A. M. Uma visão crítica da teoria da repressão financeira. Campinas: Unicamp, 1999. DAVIDSON, P. Is Economics a science? Should economics be rigorous? Real-World Economics Review, n. 59, 2012. 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