TRABALHO E RELAÇÕES DE PRODUÇÃO Repensando Metodologias Ladislau Dowbor Fevereiro 2003 As relações de produção – as formas como os homens se organizam para produzir – representam o eixo que, através de milhares de mudanças pontuais, transforma o conjunto da nossa organização social. Neste sentido, quando mudam as relações de produção, muda a sociedade. O estudo do trabalho abre assim o caminho para a compreensão das dinâmicas sociais no sentido mais amplo. O problema metodológico que se coloca pode ser apresentado nos seguintes termos: estão mudando as bases tecnológicas da sociedade, os vínculos do trabalho, as formas de remuneração, os mecanismos de apropriação do excedente, as dinâmicas e os valores culturais. Não há dúvida que a revolução tecnológica em curso gera mudanças tão ou mais profundas que as que gerou a revolução agrária, ou a revolução industrial. Com tantas transformações, continuaremos a falar em modo de produção capitalista? A visão que temos, é que está em curso uma mudança sistêmica, o que poderíamos chamar de mudança qualitativa, pois o acúmulo de mudanças quantitativas em diversas áreas está gerando um outro sistema. Poderíamos, naturalmente, achar que os processos continuam sendo os mesmos, apenas exacerbados. Extrapolando Lênin, poderíamos inventar um estágio mais avançado ainda do capitalismo. Estaríamos provavelmente tentando torcer conceitos antigos para dar conta de dinâmicas cada vez mais distantes da realidade que lhes deu origem. Marx procurou entender os mecanismos que geravam um processo contraditório de aumento de produtividade acompanhado de crescente miséria das massas. Explicitou o processo de formação da mais-valia, e abriu caminho para a análise da dimensão internacional do processo, o que viria a ser chamado de imperialismo. É importante ter claro que os dramas que motivaram a sua análise não só não desapareceram, como se agravaram. Mas não devemos confundir os dramas gerados com as formas de organização social e econômica que os permitem. E estas formas estão se deslocando radicalmente. A realidade é que as formas como as sociedades se organizam para produzir estão se deslocando, e exigem de nós um esforço mais amplo de apreciação do universo do trabalho. Marzx partiu das transformações tecnológicas, o desenvolvimento das forças produtiras. No seu tempo, era o surgimento da indústria, que exigia máquinas, e fontes de energia, e o agrupamento dos trabalhadores em torno da unidade de produção que os centralizava: a fábrica. Ou seja, as forças produtivas alteravam oas relações técnicas de produção: não se faz siderurgia em fundo de quintal. Da mesma forma como o senhor feudal controlava os trabalhadores controlando a terra, o proprietário de meios de produção passa a exercer o seu poder controlando a fábrica. Surge assim o capitalista, o assalariado, a mais-valia, o conjunto que Marx chamaria de relações sociais de produção. As infraestruturas que constituem o universo produtivo necessitariam, por sua vez, de superestruturas capazews de assegurar a codificação jurídica do capitalismo, os seus valores culturais, os seus mecanismos de dominação política. O conjunto, infraestruturas e superestruturas, passam a constituir um modo de produção. Não se trata aqui de simplesmente “voltar” a Marx, ou de ahcar válidas respostas que ele elaborou para uma situação diferente. Mas quando nos vemos desafiados, hoje, a enfrentar a análise de uma mudança sistêmica das formas de organização do trabalho, .não há dúvida que o paralelo é inevitável. Citar Marx a todo propósito, como um tipo de empréstimo de autoridade, não resolve nada. Mas não podemos ignorar o imenso aporte metodológico de Marx quando tentamos entender o presente. As linhas que seguem constituem um tipo de esboço do que poderia ser uma metodologia de análise das novas formas de organização das relações de produção. Partimos do que seriam hoje as forças produtivas (revolução tecnológica), buscamos as relações técnicas de produção (redes, horizontalização, flexibilização), as relações sociais de produção (diversificação dos vínculos salariais, trabalho parcial, hierarquização do unverso de trabalho), buscando assim abrir espaço para uma análise arejada das relações de produção de modo geral. Este enfoque serviu como pano de fundo para um ciclo de discussões sobre os Desafios do Trabalho, que permitiu a elaboração do presente volume. Foram dois anos de reuniões que abriram um leque de visões tão diferentes como as de Octávio Ianni, de Márcio Pochmann, de Márcia Leite, de Ricardo Antunes; de pessoas das CUT e de técnicos de cooperativas, do mundo empresarial ou acadêmico; de administradores, economistas ou antropólogos ou politólogos. Brevemente comentada, a metodologia trabalhada segue a estrutura seguinte: I – AS MACROTENDÊNCIAS O novo contexto Mutação tecnológica Globalização Urbanização Concentração da riqueza (global e nacional) Perda de governabilidade O trabalho muda na sua natureza: tempo, relações, vínculos, remuneração, diversificação (pontos que serão desenvolvidos abaixo). Caracterizar a mudança sistêmica em curso. As grandes visões A visão da simples transição de indústria para serviços A visão da “morte do emprego”, desemprego estrutural. Os conceitos: emprego, desemprego, desalento, trabalho temporário. O trabalho exige visão mais afinada e detalhada, as grandes simplificações são insuficientes, é preciso voltar aos dados básicos, aos dados diferenciados por setores, ao universo empírico. Dados básicos População total População em idade ativa (PIA) População economicamente ativa (PEA) Desemprego, segundo as metodologias. Os dados básicos apontam para uma dramática subutilização do nosso maior recurso, a força de trabalho, tanto por desemprego como por subemprego, insuficiente qualificação e outros. O trabalho por setores Agricultura, indústria, comércio, área social, áreas emergentes Caracterizar o deslocamento intersetorial do trabalho. Por mais que se fale nos novos setores, na alta tecnologia, a realidade é que a massa dos trabalhadores ainda se concentra em atividades tradicionais com tecnologias pouco avançadas. A mudança tecnológica é lenta e sobretudo desigual, gerando profundos desequilíbrios intersetoriais. . A hierarquização do trabalho Empregos de ponta Empregos precários Setor informal Setor ilegal Dinâmica diferenciada, exclusão/inclusão no sentido amplo. Não basta caracteriza emprego ou desemprego, os níveis de inserção no universo de trabalho tornaram-se extremamente desiguais, gerando sub-sistemas que seguem lógicas diferentes. II – DINÂMICAS DIFERENCIADAS Mudanças no vínculo de emprego Flexibilização Auto-emprego As novas “tarefas” Sistemas tecnológicos de controle “Correndo atrás”: o caos e a insegurança do processo não regulado. Há poucas visões organizadas da imensa transformação em curso, multiplicamse iniciativas desconexas. Desponta a necessidade imperiosa de um sistema de garantias básicas universais. Mudanças na remuneração do trabalho O fim do “plano” de carreira Terceirização: “cooperativas” e outros O “taylorismo” dos médicos e outros profissionais Área caótica, nem plano nem mercado, corporativismos e autodefesa. O leque de remuneração é cada vez mais aberto, gerando um clima amplo de insegurança e angústia. O trabalho e o tempo Jornada Stakhanovismo eletrônico Trabalho parcial Trabalho domiciliar Tal como na época das grandes lutas pela jornada de 8 horas, a questão do tempo no sentido mais amplo (jornada, qualdiade de vida, lazer, família, atividades alternativas) está voltando a ser central. A regulação do trabalho Limites do mercado Peso do corporativismo O caos dos excluídos O mercado como mecanismo regulador exerce função cada vez menos relevante nos subsistemas diferenciados do trabalho, ao mesmo tempo que os mescanismos de regulação do Estado foram desmantelados, e as redes sociais de solidariaedade foram corroídas pela urbanização e desagregação da família. Impera o salve-se quem puder, a ética do vale tudo desde o uiverso das drogas como atividade econômica, por exemplo, até as fraudes sistêmicas na Enron, Citygroup, Xerox etc. A subjetividade no trabalho Crise das motivações Individualização das culpas Erosão do capital social Sistemas tecnológicos de controle Autonomia e criatividade As oportunidades desperdiçadas: as tecnologias que deveriam libertar amarram, angustiam, geram novos dramas. Uma perda crescente do controle das pessoas sobre as suas próprias atividades. Expansão dos controles eletrónicos sobre os trabalhadores. Os grandes impactos Exclusão Concentração de renda Trabalho infantil O imenso desperdício frente ao potencial econômico e tecnológico III – OS NOVOS CAMINHOS Empregabilidade Limites das políticas pontuais Resgatar sistemas de regulação Partir da absurda contradição entre tanto trabalho que há por fazer, e tão pouco emprego: a empregabilidade não é apenas um problema individual ((competências), e sim um processo social integrado. As políticas locais integradas Um novo potencial de articulação Gestão integrada Os espaços locais, e em particular as ciddes, abrem um imenso potencial de rearticulação das ativides remuneradas e não remuneradas, produtivas e de lazer, econômicas e culturais. A cidade como espaço de regulação integrada das atividade; qualidade de vida e novos eixos de objetivos sociais. A gestão pública Descentralização Participação Reformulação da regulação pública Resgatar o papel articulador do Estado, do planejamento, dos sistemas participativos inovadores, de parcerias e alianças, do win-win social e econômico. . O potencial das políticas sociais Dimensões Social como estruturador social Social e relaçãos de produção As politicas sociais despontam como o principal eixo de emprego nas sociedades que se modernizam. A saúde, a educação, o lazer, o apoio aos mais pobres, representam poderosos instrumentos de articulação dos atores sociais em torno aos seus interesses; o social visto como alavanca de organização socia, de dinamização do capital social e da cultura participativa. l O potencial do Terceiro Setor Dados básicos Social Urbanização Tecnologias e redes A regulação dos interesses difusos, a organização da sociedade em torno aos seus interesses, o forte surgimento de formas de articulação que não são nem empresariais nem estatais mudam profundamente o leque de oportunidades. Como otimizar o potencial das novas arquiteturas organizacionais? O potencial das novas dinâmicas organizacionais Cooperativas Autogestão Economia solidária Paralelamente às diversas formas de organização da sociedade civil em torno aos interesses sociais, está se gerando uma nova dinâmica de atividades em torno da economia solidária, de auto-gestão empresarial, de uma nova geração de cooperativas. O conceito de tempo livre Conceitos de produtividades social As novas dinâmicas do tempo livre, lazer... O tempo é o nosso principal recurso não renovável. Na ausência de formas criativas de organização social, as novas tecnologias, em vez de nos libertar, nos dividem em segmentos desesperados porque trabalham demais, e outros desesperados por não conseguir trbalho. O tempo torna-se uma categoria central já não só em termos de reforço do emprego, mas de concepção dos objetivos de vida. Revisão do horizonte sindical O global e o local Os limites da setorialização A vinculação entre movimentos sociais A gestão do desemprego Da reivindicação salarial à gestão social: há uma grande dificuldade do universo sindical em se apropriar de uma visão mais ampla de gestão do mundo do trabalho. Que novos rumos? As novas dinâmicas políticas Da globalização empresarial à universalidade humana Seattle, Porto Alegre, movimentos sociais Horizontes a reconstruir: o futuro hoje se apresenta fragmentado em múltiplas realidade pouco articuladas, em tendências diferenciadas que se desenvolvem em ritmos diferentes, em redes complexas de subsistemas. Este esboço de metodologia, dividido em Macrotendências, Dinâmicas Diferenciadas e Novos Caminhos, mostou-se útil, nas discussões, como ponto de referência para a análise. O livro Desafios do Trabalho, naturalmente, não seguiu este referencial como plano, mas sim tentou assegurar que estivessem presentes alguns pontos essenciais do processo. Se fosse resumir a impressão que me fica destes dois anos de pesquisa e de discussão, diria que é o forte desnível entre as técnicas, que progridem de maneira vertiginosa, e a extrema lentidão da mudança das formas de organização social, processo contraditório que está gerando tensões extremas. Muito interessados na ponta do processso onde se concentram as transformações, subestimamos muitas vezes a que ponto tantas coisas continuam penosamente iguais. Ladislau Dowbor, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e da Universidade Metodista de São Paulo, e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de “O que acontece com o trabalho”, pela editora Senac, bem como de “A Reprodução Social” e “O Mosaico Partido”, ambos pela editora Vozes, além de numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social. Fone: (011) 3872-9877; FAX: (011) 3871-2911; E-mail [email protected]; Textos disponíveis no site http://dowbor.org