Indicadores: afinal, o que estamos medindo?1 Ladislau Dowbor Setembro de 2008 Se quisermos orientar a economia, canalizando racionalmente os nossos esforços produtivos para resultados que nos interessem, devemos construir os instrumentos de avaliação destes resultados. Celso Furtado utiliza o conceito de “rentabilidade social”, conceito que diz o essencial, mas que pode nos levar a confundir a visão da produtividade macroeconômica com a produtividade dos setores que normalmente identificamos com o “social”, como educação, saúde etc. Talvez seja mais explícito o conceito de produtividade sistêmica. 2 A lógica básica é simples: quando um grande produtor de soja expulsa agricultores para as periferias urbanas da região, podemos eventualmente dizer que aumentou a produção de grãos por hectare, a produtividade da empresa rural. O empresário dirá que enriqueceu o município. No entanto, se calcularmos os custos gerados para a sociedade com as favelas criadas e com a poluição das águas, por exemplo, ou o próprio desconforto de famílias expulsas das suas terras, além do desemprego, a conta é diferente. Ao calcular o aumento de produção de soja, mas descontando os custos indiretos gerados para a sociedade, o balanço sistêmico será mais completo, e tecnicamente correto. Ou seja, temos de evoluir para uma contabilidade que explicite o resultado em termos de qualidade de vida, de progresso social real. De forma semelhante, quando um país vende os seus recursos naturais, isto aparece nas nossas contas como aumento do Pib, quando na realidade o país está vendendo recursos naturais herdados, que não teve de produzir e que não vai poder repôr, e portanto está se descapitalizando, aumentando a riqueza imediata às custas das dificuldades futuras. O que herdamos, em termos de metodologia, é o sistema de contas nacionais elaborado ainda nos anos 1950 no quadro das Nações Unidas, com ajustes em 1993, e que nos fornece o famoso Pib, soma dos valores e custos de produção de bens e serviços, restringida portanto à área de atividades mercantís. Não vamos aqui fazer mais uma descrição dos limites desta metodologia, hoje bastante óbvios.3 O essencial é que a partir de 1990, com as 1 O presente texto faz parte de uma pesquisas mais ampla publicada no ensaio Democracia Econômica, Editora Vozes 2008, ver também http://dowbor.org 2 Todos andam tateando em busca de um conceito que dê expressão mais ampla aos resultados socioeconômicos esperados, já que a simples produtividade econômica é estreita demais para refletir os objetivos sociais. Jörg Meyer-Stamer utiliza competitividade sistêmica no seu trabalho sobre Estratégias de Desenvolvimento Local e Regional; The Economist utiliza o conceito de “social return” ao calcular o impacto de investimentos sociais que façam “a maior contribuição possível aos problemas da sociedade”. H. Schmitz utiliza o conceito de “collective efficiency” (in Vázquez-Barquero). 3 A este respeito, ver o nosso A Reprodução Social, Editora Vozes, Petrópolis, 2003 – http://dowbor.org visões de Amartya Sen4 e a metodologia dos indicadores de desenvolvimento humano (IDH) houve uma inversão radical: o ser humano deixa de ser visto como um instrumento para servir às empresas – na época o Banco Mundial dizia que a educação era boa porque aumentaria a produtividade empresarial – e passa a ser visto como o objetivo maior. Em outros termos, o social deixa de ser um meio para assegurar objetivos econômicos; pelo contrário, o econômico passa a ser visto como um meio para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Uma vida com saúde, educação, cultura, lazer, segurança, é o que queremos da vida. E a economia tem de se colocar a serviço destes objetivos sociais, da prosaica qualidade de vida. A qualidade de vida é evidentemente mais difícil de medir do que o valor das vendas de uma empresa, ou o custo de funcionamento de uma escola pública, sem falar da economia do voluntariado e do trabalho feminino domiciliar. Mas a realidade é que enquanto não adotarmos formas aceitas e generalizadas de medir o valor final, os resultados, das nossas atividades, não teremos como avaliar nem políticas públicas nem privadas. Hoje, aproveitando e indo além das metodologias do IDH, já se avançou muito. O livro de Jean Gadrey e de Florence Jany-Catrice, Les nouveaux indicateurs de richesse (os novos indicadores de riqueza), apresenta uma sistematização extremamente bem organizada do novo quadro conceitual das contas nacionais que está se desenhando.5 Assim, passa-se a diferenciar a contabilização da produção (outputs), dos resultados efetivos em termos de valores sociais (outcomes); os indicadores econômicos, sociais e ambientais; os indicadores objetivos (taxa de mortalidade infantil, por exemplo) e os subjetivos (satisfação obtida); os resultados monetários e não monetários. Com isto foram sendo construidas várias metodologias, hoje bastante bem embasadas, como o índice de bem-estar econômico de Osberg e Sharpe, o indice de bem-estar econômico sustentável (IBED), o indicador de progresso real (IPV), o indicador de poupança real (genuine savings) do Banco Mundial e outros. Particularmente interessante é a metodologia adotada pelo Calvert-Henderson Quality of Life Indicators: a new tool for assessing national trends6, um autêntico balanço das contas nacionais aplicado aos Estados Unidos. Em vez de ficar na soma do produto monetário, distribui as contas em 12 áreas, incluindo renda mas também direitos humanos, segurança pública, qualidade do meio ambiente e assim por diante. O resultado é que pela primeira vez os americanos têm um instrumento de avaliação de como e em que áreas o país está melhorando (ou piorando). O interessante é que não foi preciso construir novos indicadores ou realizar novas pesquisas: partiram dos dados existentes, selecionaram os mais confiáveis, e simplesmente os cruzaram de maneira inteligente segundo os grandes eixos de resultados práticos esperados pela população. 4 O livro básico de Amartya Sen, Desenvolvimento como Liberdade, foi editado pela Companhia das Letras, São Paulo, 1999, [email protected] 5 Jean Gadrey et Florence Jany-Catrice, Les nouveaux indicateurs de richesse, Ed. La Découverte, Paris 2005, www.editionsladecouverte.fr - ver dados mais detalhados sobre o livro em http://dowbor.org sob “dicas de leitura”. A edição brasileira é do Senac, 2006, [email protected] ; outra publicação excelente é o livro de Patrick Viveret, Reconsiderar a Riqueza, Ed. UNB, Brasilia, 2006 6 Hazel Henderson, Jon Lickerman and Patrice Flynn (editors) – Calvert Henderson Quality of Life Indicators: a new tool for assessing national trends (Indicadores Calvert-Henderson de qualidade de vida: uma nova ferramenta para avaliar terndências nacionais). – www.calvertgroup.com O próprio Banco Mundial está finalmente repensando as suas metodologias. No World Development Indicators 20037, no quadro 3.15 que avalia as poupanças, o Banco passou a contabilizar a extração de madeira, por exemplo, não como cifra positiva (aumento do PIB), mas como descapitalização do país. Na mesma lógica, paises que exportam o petróleo passam a ser vistos como gastadores do seu capital natural, apresentando taxas de poupança negativas. Na própria produção de automóveis passou-se a deduzir, no cálculo, os gastos adicionais com saúde causados pela poluíção. Como as metodologias do Banco Mundial têm um poder forte de indução, esta abertura é bem-vinda, e vai influenciar contas nacionais em numerosos países. Vale a pena mencionar ainda o trabalho Survey of existing Approaches to Measuring SocioEconomic Progress, elaborado por uma comissão que envolve o INSEE de Paris, a OCDE e outras instituições. O documento constitui uma revisão do progresso na elabaoração de metodologias que se constata em 2008.8 A participação tanto do Banco Mundial como da OCDE, além dos recentes aportes de personaidades como Stiglitz e outros economistas mostra a que ponto o debate está maduro para mudanças. Mas há igualmente soluções criativas bastante práticas. Na região de Cascavel (Paraná), por exemplo, 22 municipios passaram a elaborar indicadores municipais de qualidade de vida 9. São 26 indicadores, relativamente simples, que conjugados permitem avaliar se a situação da população está ou não melhorando, ano por ano. Assim as pessoas podem orientar o seu voto segundo resultados reais para as suas vidas, e não segundo quem distribuiu mais camisetas. A inovação não exigiu grandes cálculos econométricos, pois os dados existem, mas significou uma mudança política extremanente importante: a informação é organizada para a população, e os dados levantados são os que mais interessam à qualidade de vida da população. Ou seja, a contabilidade econômica passa a ser um instrumento de cidadania, e as iniciativas dos diversos atores públicos e privados serão avaliadas em termos de resultados finais para a sociedade, pelo menos no território mais próximo, onde as pessoas podem mais facilmente participar dos processos de decisão. De toda forma, o que estamos apontando, é que a mudança do enfoque das contas econômicas é essencial. Um banco que desvia as nossas poupanças para aplicações financeiras especulativas, e apresenta lucros elevados, aumenta o Pib, mas reduz a nossa produtividade sistêmica ao descapitalizar as comunidades, ao reduzir o uso produtivo das nossas poupanças. O sistema alemão de intermediação financeira, baseado em pequenas caixas econômicas municipais, não apresenta grandes lucros, mas canaliza as poupanças para investimentos socialmente úteis, gerando melhores condições de vida para todos.10 O World Bank – World Development Indicators 2003, Washington, 2003, páginas 174 e ss. O documento encontra-se disponível na íntegra em http://www.stiglitz-senfitoussi.fr/documents/Survey_of_Existing_Approaches_to_Measuring_Socio-Economic_Progress.pdf 9 Programa Indicadores de qualidade de vida de Cascavel – Conceito e Metodologia de Aplicação – Versão 1, outubro de 2001 (documento avulso). 7 8 10 Os dados sobre a gestão da poupança na Alemanha podem ser encontrados em The Economist, June 26th 2004, p. 77. The Economist naturalmente lamenta que os legisladores regionais da Alemanha “se recusem a autorizar a venda dos bancos de poupança, que são de propriedade das comunidades locais, para compradores do setor privado”. “lucro”, nesta visão, tem de ser social, e a produtividade tem de ser sistêmica. O fato da ciência econômica evoluir para esta contabilidade integral, e não apenas micro-econômica, constitui um progresso importante.11 De forma geral, um avanço importante para as ciências econômicas é a mudança radical de como organizamos a informação sobre os resultados obtidos. Enquanto a medida se resumia à soma do valor de produção das empresas e dos custos dos serviços públicos, naturalmente passávamos a achar que o progresso só se dá através do lucro empresarial, e que inclusive os serviços públicos representam um ônus. Quando passamos a avaliar de maneira sistêmica os resultados para a sociedade no seu conjunto, podemos ter uma visão inteligente do progresso real obtido. A construção de sistemas mais realistas de avaliação do nosso progresso econômico e social vem corrigir uma deficiência estrutural da ciência econômica. Grande parte do nosso sentimento de impotência frente às dinâmicas econômicas vem do fato que simplesmente não temos instrumentos para saber qual a contribuição das diversas atividades para o nosso bem-estar. O clamor quase histérico da mídia por alguns pontos percentuais suplementares de crescimento do PIB age sobre a angústia generalizada do desemprego, e tira o nosso foco do objetivo principal que é a qualidade de vida da sociedade, deixando as pessoas confusas e mal informadas. Pessoas desinformadas, naturalemente, não participam. Não há democracia econômica sem informação adequada sobre as dinâmicas e os resultados que realmente importam. A construção de novos indicadores de riqueza é um eixo particularmente importante neste sentido. Ladislau Dowbor, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de “Democracia Econômica”, “A Reprodução Social: propostas para uma gestão descentralizada”, “O Mosaico Partido: a economia além das equações”, “Tecnologias do Conhecimento: os Desafios da Educação”, todos pela editora Vozes, além de “O que Acontece com o Trabalho?” (Ed. Senac) e coorganizador da coletânea “Economia Social no Brasil“ (ed. Senac) Seus numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org – Contato [email protected] 11 Para uma discussão do papel da informação nesta apropriação cidadã das políticas econômicas, ver o nosso artigo Informação para a Cidadania e o Desenvolvimento Sustentável, http://dowbor.org , sob “Artigos Online”. É importante mencionar aqui os aportes metodológicos como os de Marcio Pochmann nos estudos sobre a distribuição da riqueza no Brasil, e de Aldaiza Sposatti sobre os “mapas de exclusão”.