Capítulo 1 Taiane Vieira Camila Giugliani Genética Médica e Atenção Primária à Saúde À medida que os países se desenvolvem econômica e socialmente, obtendo melhor controle das doenças infectoparasitárias, as alterações genéticas passam a ocupar um lugar de destaque nas estatísticas como causadoras de morbidade e de mortalidade. Estima-se que uma parcela significativa da população necessite de algum tipo de atendimento relacionado a problemas genéticos (para diagnóstico, tratamento ou aconselhamento). No entanto, poucos indivíduos e famílias recebem o atendimento de que necessitam, por vários motivos, destacando-se a desinformação da comunidade a respeito das doenças hereditárias, a dificuldade no diagnóstico e/ou no encaminhamento para especialistas por parte dos profissionais não geneticistas, com uma abordagem insuficiente no nível da Atenção Primária, e a falta de uma quantidade suficiente de serviços de genética médica, os quais se concentram, principalmente, nas universidades.1 As causas das doenças genéticas são variadas; portanto, várias abordagens são necessárias para a prevenção e um melhor cuidado dos pacientes e de suas famílias. Algumas doenças genéticas, como síndrome de Down e defeitos do tubo neural, podem ter sua incidência reduzida por meio de ações educativas direcionadas à comunidade. A Organização Mundial da Saúde propôs, em 2000, que fossem incorporadas à Atenção Primária à Saúde (APS) ações para a prevenção e o controle das doenças geneticamente determinadas e das malformações congênitas.2 A APS caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, nos âmbitos individual e coletivo, que abrange promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico e tratamento de problemas de saúde frequentemente detectados, reabilitação e manutenção da saúde. É o primeiro contato e a via preferencial dos usuários com o sistema de saúde. Ela orienta-se pelos princípios da universalidade e do acesso, do vínculo e da continuidade da atenção, da integralidade e da coordenação do cuidado, da responsabilização, do cuidado centrado na pessoa, da equidade e da participação social. A Atenção Primária considera a pessoa em sua singularidade e sua complexidade na inserção sociocultural.3 Vieira_1-10.indd 11 04/02/13 14:32 Manual de Genética Médica para Atenção Primária à Saúde 12 Assim, os contextos familiar e comunitário são elementos importantes no processo de cuidado, assim como a competência cultural, caracterizada como a capacidade do profissional de atuar dentro do contexto de convicções culturais, comportamentos e necessidades apresentados em uma comunidade.4 Em janeiro de 2009, foi publicada, no Brasil, a Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica, constituída com o envolvimento tanto da atenção especializada em genética clínica quanto da Atenção Primária. Essa política prevê que as famílias com problemas relacionados a anomalias congênitas e doenças geneticamente determinadas serão identificadas e acompanhadas pelas equipes da APS.5 A Estratégia Saúde da Família (ESF), modelo proposto para implementar a APS no Brasil, funciona com equipes multidisciplinares, compostas por: médico, enfermeiro, técnicos e auxiliares de enfermagem, dentista, técnicos e auxiliares em saúde bucal e agentes comunitários de saúde (ACSs).6 Os ACSs exercem um papel fundamental no fortalecimento da integração da comunidade com os outros profissionais da equipe de saúde e podem ter uma função valiosa nas ações de educação junto à comunidade. Os avanços no entendimento da base genética das doenças estão cada vez mais influenciando o manejo clínico dos pacientes. Todos os profissionais de saúde poderiam incluir conhecimentos de genética em suas práticas, de acordo com as necessidades da população assistida, e a APS emerge como o cenário mais apropriado para a promoção de alguns cuidados que incluem o conhecimento de conceitos básicos de genética.7-10 Starfield e colaboradores11 defendem que os elementos essenciais da APS (acesso, continuidade, integralidade e coordenação do cuidado) podem maximizar o reconhecimento de potenciais problemas genéticos e a coordenação do manejo destes problemas de modo custo-efetivo. Entretanto, os profissionais da APS precisam ter conhecimento suficiente sobre genética para prover cuidado apropriado voltado aos problemas genéticos ou para realizar o encaminhamento a um especialista de forma adequada quando necessário. A identificação de pacientes que necessitam de investigação específica (encaminhamento para especialista) tem um papel-chave para os profissionais da APS. Com os avanços na medicina genômica, os pacientes irão apresentar condições com um componente genético reconhecido com mais frequência, o qual deve ser manejado adequadamente. Uma vez identificado um risco em potencial, seja pela história familiar ou por exames de triagem, pode ser necessário o encaminhamento para um serviço de referência, mas muitos pacientes e famílias podem ser tratados na Atenção Primária. O risco genético que pode emergir de uma história familiar obtida no contexto da APS inclui a predisposição para doenças multifatoriais ou monogênicas e a detecção de risco reprodutivo.12 Além disso, existem inúmeras medidas de prevenção primária, nos âmbitos populacional ou individual, que podem reduzir o risco de anomalias congênitas. Essas intervenções envolvem uma melhor nutrição (p. ex., fortificação ou suplementação com ácido fólico), prevenção de doença ou infecção materna (vacinação contra rubéola; cuidado pré-concepcional da mulher portadora de epilepsia ou diabetes, evitando fármacos teratogênicos), evitação de certas exposições durante a gravidez (fumo, álcool e obesidade) e controle de exposição a agentes químicos de fontes ocupacionais ou ambientais.13, 14 O foco principal ao se desenvolver conhecimentos básicos de genética na Atenção Primária devem ser as doenças comuns, a predisposição genética para desenvolvi- Vieira_1-10.indd 12 04/02/13 14:32 Lembre-se: A APS é o primeiro contato e a via preferencial dos usuários com o sistema de saúde. Ela orienta-se pelos princípios da universalidade e do acesso, do vínculo e da continuidade da atenção, da integralidade e da coordenação do cuidado, da responsabilização, do cuidado centrado na pessoa, da equidade e da participação social. Conhecimentos básicos em genética podem ajudar os profissionais da APS no cuidado de pessoas e famílias com doenças geneticamente determinadas ou em situações de risco genético. 13 Genética Médica e Atenção Primária à Saúde mento de doenças na vida adulta e a saúde reprodutiva. Apesar de algumas famílias em risco para doenças genéticas, especialmente quando este é associado às doenças monogênicas, necessitarem de encaminhamento para especialista, a maioria delas 12 pode ser manejada na Atenção Primária. Programas de supervisão clínica na APS (geneticistas dando apoio periódico às equipes nas unidades básicas) ou de suporte telefônico ou pela internet podem ser muito úteis para promover o conhecimento de genética necessário aos profissionais da Atenção Primária para identificar e acompanhar de forma adequada as famílias com doenças ou situações de risco genético. Muitas situações que envolvem conhecimentos em genética podem ser manejadas no contexto da APS; porém, outras situações precisarão de encaminhamento para serviços de referência. A identificação de pacientes que precisam de investigação específica em serviços especializados tem um papel-chave para os profissionais da APS. Referências 1. Ramalho AS. Genética comunitária: uma alternativa oportuna e viável no Brasil. Boletim da SBGC. 2004;6:2-7. 2. World Health Organization. Primary health care approaches for prevention and control of congenital and genetic disorders. Geneva: WHO; 2000. Report of a WHO meeting, Cairo, Egypt, 6-8 December 1999. 3. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 648/GM, de 28 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília: MS; 2006 [capturado Vieira_1-10.indd 13 em 15 jul. 2011]. Disponível em: http:// bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/ politica_nacional_atencao_ basica_2006.pdf. 4. Starfield B. Primary care: concept, evaluation, and policy. New York: Oxford University; 1992. 5. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 81/GM, de 20 de janeiro de 2009. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica. Brasília: MS; 2009 [capturado em 2 abr. 2010]. Disponível em: http:// dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/ Port2009/GM/GM-81.html. 6. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 2.488/GM, de 21 de outubro de 2011. 04/02/13 14:32 Manual de Genética Médica para Atenção Primária à Saúde 14 Vieira_1-10.indd 14 Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília: MS; 2011 [capturado em 7 set. 2012]. Disponível em: http:// www.brasilsus.com.br/legislacoes/ gm/110154-2488.html. 7. Hayflick SJ, Eiff MP. Role of primary care providers in the delivery of genetic services. Community Genet. 1998;1:18-22. 8. Emery J, Watson E, Rose P, Andermann A. A systematic review of the literature exploring the role of primary care in genetic services. Fam Pract. 1999;16(4):426-45. 9. Burke W, Emery J. Genetics education for primary care-providers. Nat Rev Genet. 2002;3(7):561-6. 10. Flouris A, Hawthorne G, Aitken M, Gaff C, Metcalfe SA. Development of a questionnaire for evaluating genetics education in general practice. J Community Genet. 2010;1(4):175-83. 11. Starfield B, Holtzman NA, Roland MO, Sibbald B, Harris R, Harris H. Primary care and genetics services: health care in evolution. Eur J Public Health. 2002;12(1):51-6. 12. Qureshi N, Modell B, Modell M. Raising the profile of genetics in primary care. Nat Rev Genet. 2004;5(10):783-90. 13. 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