A MÚSICA LITÚRGICA NO MAGISTÉRIO DA IGREJA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX ATÉ O CONCÍLIO VATICANO II. Anderson Luís Moreira Pe. José Humberto Motta / Pe. Antonio Élcio De Souza Faculdade Católica de Filosofia e Teologia de Ribeirão Preto. Introdução. O início do século XX na Igreja foi marcado por vários movimentos de renovação, entre eles, o Movimento Litúrgico, o Movimento Bíblico e o Movimento Catequético. Porém, no tocante à música litúrgica e religiosa não se verifica uma renovação provinda necessariamente do Movimento Litúrgico, mas de um processo de restauração do canto gregoriano, elevado ao grau de música litúrgica arquetípica. No pontificado de Pio XII se verificou alguma renovação quanto a possibilidade de usar outros cantos além do gregoriano e também da língua vernácula, sob algumas condições. Este breve estudo pretende mostrar como foi a evolução da música litúrgica nos documentos pontifícios neste período da história da Igreja. Situação da música sacra e restauração do canto gregoriano. Não se pode fixar uma data como início do Movimento Litúrgico, porém, o século XIX marcou para a Liturgia o começo de uma renovação. Este movimento de renovação apresentava a necessidade de levar os fiéis a uma real compreensão e participação nos mistérios celebrados, e se viu apoiado pelo Magistério e pelas medidas reformadoras dos papas, desde são Pio X até Pio XII e João XXIII1. O motu próprio Tra le sollecitudini (1903), de São Pio X, abre a série de documentos sobre a liturgia neste século, e trata especificamente da renovação/restauração da música e do canto sacro. Não obstante, desde o barroco, o canto na Igreja se encontrava cheio de um espírito teatral, de forma que o concerto e as óperas (bel canto) se apropriaram do 1 Cf. MARTÍN, Julián López. A Liturgia da Igreja: teologia, história, espiritualidade e pastoral. São Paulo: Paulinas, 2006. p. 106. culto2, “poluindo o repertório e a prática musical litúrgica”3. RAINOLDI afirma que “não é tanto a música que faz dos templos lugar de harmonia e concerto, mas é a celebração que reclama uma música culturalmente interessante, como meio idôneo para entreter o público dos fiéis”4. Assim, a música sacra tinha como objetivo o estético e o artístico, ao invés de ser uma música ritual propriamente dita. A música seria apenas mais uma parte do espetáculo que se tornara a liturgia e que devia ser assistida pelos fiéis. Na Tra le sollecitudini, Pio X descarta o uso da música de estilo teatral nos ritos (n. 5-6) e restaura o canto gregoriano baseado na reforma feita pelos monges beneditinos de Solesmes (França), animados por D. Guéranger. O papa define a música sacra neste motu próprio como parte integrante da liturgia, como sua “humilde serva” (n. 1). Ela deve ter como características a santidade, a delicadeza das formas, a universalidade, ser arte verdadeira (n. 2); características estas presentes do canto gregoriano e também da polifonia clássica, quando inspirada no primeiro (n. 3-4). “Uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproxima no andamento, inspiração e sabor da melodia gregoriana, e será tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo (n. 3). Nas funções litúrgicas solenes, a língua própria do canto é o latim (n. 7) e o instrumento oficial o órgão (n. 14) – sendo proibidos “o uso de piano bem como o de instrumentos fragosos, o tambor, o bombo, os pratos, as campainhas e semelhantes” (n. 18). As mulheres não podem participar do coro – já que é um verdadeiro ofício litúrgico, logo destinado aos homens – e nem é permitido que bandas musicais executem nas igrejas (n. 12, 19). Para que as orientações sejam colocadas em prática e os abusos evitados, os bispos deveriam criar uma comissão especial de música sacra em cada diocese (n. 23). Continuidade e padronização. Vinte e cinco anos depois, o papa Pio XI publica a Constituição Apostólica Divini Cultus, sobre Liturgia, canto gregoriano e música sacra (1928). O pontífice afirma que muitas das prescrições de seu predecessor Pio X, não foram colocadas 2 Cf. BOROBIO, Dionísio (org.). A celebração na Igreja. v. 1: Liturgia e sacramentologia fundamental. São Paulo: Loyola, 1990. p. 121; 3 JOÃO PAULO II. Quirógrafo no centenário do motu próprio Tra Le Sollecitudini sobre a música sacra. 2003, n. 4. 4 RAINOLDI, F. Canto e música. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. (orgs.). Dicionário de Liturgia. 3. ed. São Paulo: Paulus: 2004. p. 168. em prática em muitas partes (n. 7), por isso incentiva o estudo do canto gregoriano nos seminários e casas religiosas (n. 8-9), pede que se instaure o ofício coral (n. 10) e que se restaure as antigas capelas musicais – scholae cantorum – principalmente de meninos (n.12-13). O povo deve ser educado musicalmente para que aprenda a cantar o gregoriano (n. 16-17). Para Pio XI a música sacra é qualificada como “nobilíssima serva” da liturgia. Assim, a música sacra passa a ter caráter de serviço, e por isso, “funcional”. Avanços rumo à reforma litúrgica. O papa Pio XII orientou doutrinalmente o Movimento Litúrgico. Ele levou a cabo a restauração da Semana Santa entre 1951 e 1955, autorizou o uso das línguas modernas na missa e nos sacramentos e, em 1956, dirigiu um importante discurso ao Congresso Internacional de Liturgia de Assis, entre outros gestos relevantes no processo de renovação da Liturgia. Em seu amplo magistério, destacaram dois documentos dedicados à liturgia: as encíclicas Mediator Dei (1947) – a primeira exclusivamente dedicada à liturgia – e Musicae sacrae disciplina (1955), e que foram precedidas ou seguidas de medidas tomadas no plano prático, como a Instrução sobre a música sagrada e a liturgia (1958) da Sagrada Congregação dos Ritos. Na Encíclica Mediator Dei Pio XII afirma que o progresso das belas artes, e dentre elas a música, influenciam nos aspectos exteriores da liturgia e em sua renovação (n. 50). Confirma, baseado em seus predecessores, o canto gregoriano como oficial da liturgia, pois ele “não só acrescenta decoro e solenidade à celebração dos divinos mistérios, antes contribui extremamente até para aumentar a fé e a piedade dos assistentes” (n. 176). Porém, se tem um avanço quando afirma que os fiéis não são meros espectadores da liturgia, mudos e estranhos, mas devem estar “penetrados, intimamente, da beleza da liturgia” (n. 177). A encíclica ainda dá lugar à música e ao canto moderno na liturgia, desde que nada tenham “de profano e de inconveniente à santidade do lugar e da ação sagrada, nem derivam de uma procura vã de efeitos extraordinários” (n. 178), e até mesmo ao canto religioso popular, se a execução deste for “feita com a dignidade conveniente, podendo isso estimular e aumentar a fé e a piedade das populações cristãs” (n. 179). Na Musicae Sacrae Disciplina, Pio XII diz ser necessário iluminar o motu próprio de são Pio X para que a música sacra esteja adaptada às condições presentes e assim corresponda melhor à sua finalidade (n. 1). Ele demonstra o desenvolvimento da música na Igreja, lembra da ampliação de possibilidades de uso de cantos além do gregoriano, realizada pela Mediator Dei (n. 7), recorda que a música sacra deve exprimir, através da harmonia, a fé e a piedade cristãs (n. 12). A música sacra tem um papel litúrgico (n. 15) e também extra-litúrgico – quando até se usa a língua vulgar no canto com grande proveito para os fiéis (n. 16, 30). Porém, somente a Santa Sé pode dispensar o uso do latim e do canto gregoriano nas missas solenes (n. 22-23). Lembra as características que a música deve ter segundo são Pio X: santidade, beleza, universalidade; típicas do canto gregoriano (n. 19-21). O órgão é o instrumento por excelência, mas são permitidos outros instrumentos que auxiliem a música sacra: violino e outros instrumentos de arco (n. 29). A Instrução sobre a música sagrada e a liturgia (1958) da Sagrada Congregação dos Ritos, aprovada por Pio XII um mês antes de sua morte, reúne as considerações feitas nos documentos anteriores: Tra le sollecitudine, Divini cultus, e sobretudo, a Mediator Dei e a Musicae sacrae disciplina. Recolhemos algumas considerações deste documento que apontam alguma renovação quanto à música litúrgica. Para esta Instrução a música sacra pode ser: a) O canto gregoriano: sagrado canto da Igreja; b) A polifonia sacra: pode ser usada em todos os atos litúrgicos; c) A música sacra moderna: música a várias vozes que não exclui os instrumentos musicais e foi composta nos tempos recentes. Pode ser usada em todos os atos litúrgicos, desde que corresponda à dignidade da Liturgia; d) A música sacra para órgão; e) O canto popular religioso: canto que brota do senso religioso. Pode ser usado nos exercícios de piedade livremente e, sob algumas condições, nos atos litúrgicos; f) A música religiosa: aquela que exprime e suscita sentimentos pios e religiosos, não estando ordenada ao culto divino. Na missa cantada, somente a língua latina pode ser usada – há possibilidade de se inserirem cânticos populares em vernáculo. Já nas missas rezadas podem-se acrescentar algumas orações e cantos populares no vernáculo (n. 14), desde que adequados a cada uma das partes da Missa (n. 33). O instrumento musical litúrgico habitual é o órgão clássico ou de tubos. Todavia, o uso de qualquer instrumento musical deveria por si mesmo ser absolutamente perfeito, desde que considere a natureza, santidade e dignidade da Sagrada Liturgia, e não seja um tipo de instrumento próprio para a execução de músicas profanas (n. 62, 70). “O toque desses instrumentos deve ser produzido com tal moderação, gravidade e como que religiosa pureza, que se evite todo estridor da música profana e se alimente a piedade dos fiéis” (n. 69b). Por fim, a Instrução relembra a importância da formação de músicos capacitados e também da do povo, para a sua melhor participação nos atos litúrgicos, e a necessidade de existir uma Comissão de Música Sacra em cada diocese. Considerações Finais. De são Pio X até o Vaticano II, a música sacra passou por um processo de restauração do canto gregoriano e da polifonia, tornando-se a música litúrgica arquetípica da Igreja, e fonte de inspiração garantida. Esta restauração deve-se ao tipo de música com caráter teatral, surgida no período do barroco, e que “contaminou” a música sacra aquele período. Com o tempo, sob certa influência do Movimento Litúrgico e do desenvolvimento da música, passou-se a permitir, sob certas condições, não só o uso de outros tipos de músicas religiosas – e não profanas –, como também o uso da língua vernácula nos ritos litúrgicos. Esse caminho percorrido pela música na Liturgia católica é, de certo modo, paralelo ao caminho percorrido pelo Movimento Litúrgico, e que acabará por desaguar na Constituição Sacrosactum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, do Concílio Vaticano II (1963). Referências Bibliográficas. ABULQUERUE, Amaro Cavalcanti de (et al.). Música brasileira na liturgia. São Paulo: Paulus, 2005. ALMEIDA, João Carlos. Cantar em espírito e verdade: orientações para o Ministério de Música. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2003. BOROBIO, Dionísio (org.). A celebração na Igreja. v. 1: Liturgia e sacramentologia fundamental. São Paulo: Loyola, 1990. BOTTE, Bernard. O Movimento litúrgico: testemunho e recordações. São Paulo: Ed. Paulinas, 1978. MARTÍN, Julián López. A Liturgia da Igreja: teologia, história, espiritualidade e pastoral. São Paulo: Paulinas, 2006. PIO XII. Mediator Dei: sobre a Sagrada Liturgia. Carta Encíclica, 1947. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1954. SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. (orgs.). Dicionário de Liturgia. 3. ed. São Paulo: Paulus: 2004. VV.AA. Documentos sobre a música litúrgica. São Paulo: Paulus, 2005.