Redes colaborativas no teatro paulistano

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março2011
Jornal Unesp
Opinião
Redes colaborativas
no teatro paulistano
Os primeiros quatro anos e a contribuição da Unesp a uma proposta de política de Estado para o setor
Cena do espetáculo Brasil, quem foi que te pariu, da Trupe Artemanha de Investigação Urbana – Foto Marco Pezão
Alexandre Mate
“Nosso tema é o óbvio. Acho mesmo que os cientistas trabalham é com o óbvio. O negócio deles – nosso
negócio – é lidar com o óbvio. Aparentemente, Deus
é muito treteiro, faz as coisas de forma tão recôndita e
disfarçada que se precisa desta categoria de gente – os
cientistas – para ir tirando os véus, desvendando, a fim
de revelar a obviedade do óbvio. O ruim deste procedimento é que parece um jogo sem fim. De fato, só conseguimos desmascarar uma obviedade para descobrir
outras, mais óbvias ainda.”
“Sobre o óbvio”, in: Ensaios insólitos, de Darcy Ribeiro.
A
história do teatro paulista ainda não foi escrita.
Trata-se de tarefa difícil, na medida em que, infelizmente, as ações e inquietações de tanta gente – que
tem necessidade de participar de trocas simbólicas que jamais
se esgotarão – não tiveram registro e guarda documental de
suas experiências. Pela inexistência de registros, a totalidade
das ações desenvolvidas por tantos sujeitos (normalmente artistas amadores) é desconhecida. Fundamentalmente nutrido por
atávicos processos de exclusão, os representantes da cultura oficial e hegemônica, ao subtrair da história tantas experiências
significativas, (re)constroem uma memória pelo alto, registrando apenas o que lhes interessa, e, ideologicamente, balizando
tudo o mais de resto, de obra de qualidade duvidosa, pouco
elaborada, fundamentada em estereótipos, datada etc. Como
sabe a maioria, rótulos esquadrinham e não promovem embates e cotejos: trata-se de uma facilitação perversa e ideológica.
Dentre outros aspectos, lembra Bakhtin (1992) que todo símbolo reflete e refrata a realidade. Do mesmo modo, um rótulo
caracteriza-se sempre em uma refração, que, exatamente por
isso, reflete posicionamentos políticos e corolários ideológicos.
Pelo fato de conhecerem o quadro político, grupos de teatro e sujeitos extraordinários (Gianni Ratto, Umberto Magnani, Fernando Peixoto, César Vieira, Aimar Labaki, dentre
tantos outros...), em fins da década de 1990, mobilizam-se
para enfrentar o mercado e criam um processo de diálogo e
de discussão, batizado de Arte Contra a Barbárie. Em 7 de
maio de 1999, foi publicado o primeiro manifesto do grupo
com o mesmo nome do movimento. A partir daquele momento
– fruto de mobilização de parcela da categoria, a história, os
modos de produção, a preocupação com a memória e com a documentação –, muito se transforma. A maior das conquistas do
grupo foi a criação da Lei Municipal de Fomento ao Teatro da
Cidade de São Paulo. De modo sucinto, a partir de 2002, selecionados por comissão mista (metade indicada pela Secretaria
de Cultura e a outra metade pelo conjunto dos trabalhadores)
e um presidente, 30 projetos teatrais (com proposição estética
e contrapartida social pertinentes) seriam selecionados por
ano, dividindo, então, R$ 6.000.000,00.
Com patrocínio garantido pelo Estado e, também, legitimidade pelo processo de escolha, os grupos selecionados (23 na
Este texto não reflete necessariamente a opinião do
Jornal Unesp.
primeira edição) – e na medida em que a Lei pressupunha continuidade – embrenharam-se na tarefa de construir suas obras
e levantar experiências estéticas mais coletivas e significativas
desenvolvidas na história. Se até então, de modo mais sistemático, o TUOV (Teatro Popular União e Olho Vivo) se caracterizava na cidade como único grupo a desenvolver um processo
rigorosamente coletivo de trabalho – da construção do texto
aos processos de debate com as comunidades após os espetáculos
–, com a conquista do fomento muito mudou na cidade.
Uma rede de criadores, com ações individuais e coletivas, com
recuperação de experiências significativas, com a promoção de seminários, debates, oficinas, workshops; publicação de livros, tanto
dramatúrgicos como da trajetória dos grupos, atos públicos e políticos... passaram a fazer parte da paisagem da cidade.
De múltiplos e importantes aspectos, ressurge, com força e
qualidade estética significativas, o chamado texto colaborativo.
Múltiplas experiências, como aquelas do teatro de agitação e
propaganda russo-soviético, passando pelo legado de Enrique
Buenaventura e o Teatro Experimental de Cali, as criações coletivas de vários grupos de vanguarda, como aquelas do Living
Theatre... Enfim, com temas candentes aos procedimentos épicos, e a História em muitos casos como protagonista, e paridos
a partir das mais diversas formas, autores importantes (como
Luís Alberto de Abreu); grupos com mais de trinta anos de história (como o Engenho, o Oficina/Usyna Uzona e o já mencionado TUOV) e novos grupos, como Dolores Boca Aberta, Cia.
Do Latão, Cia. Estável, Buraco d’Oráculo, Os Inventivos, Brava
Cia., Cia. São Jorge de Variedades, II Trupe de Choque, Cia.
Livre, Teatro da Vertigem, Teatro de Narradores... têm dividido
todas as tarefas da criação teatral. Nessa perspectiva, ainda
que o texto seja assinado por um “autor”, nos grupos citados,
o resultado corresponde a um processo de escritura coletiva,
cujos assuntos são experimentados improvisacionalmente pelo
conjunto de atores e outros criadores, em permanente processo
de intercâmbio, horizontalizando as relações de trabalho.
Apesar de os processos de agregação, em si mesmos, não representarem necessariamente qualidade, o trabalho coletivo na
cidade de São Paulo tem transformado os conceitos de escritura
teatral, potencializando singularidades de cada um no todo,
expressando no todo a quebra da divisão reificante de trabalho.
Bibliografia
Bakhtin, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem.
São Paulo: Hucitec, 1992.
Costa, Iná Camargo; Carvalho, Dorberto. A luta dos
grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para
a cultura: os cinco primeiros anos da lei de fomento ao
teatro. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008.
Vieira, César. Em busca de um teatro popular: os 40
anos do TUOV. 4.ª ed. Atualizada. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.
Alexandre Mate é professor do Instituto de Artes da
Unesp
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