O APOLÍNEO E O DIONISÍACO NO CERNE DO HOMEM TRÁGICO Jefferson da Silva Santos [email protected] Universidade Estadual de Santa Cruz Orientador: Profº Me. Lourival Pereira Junior RESUMO Nietzsche busca na mitologia grega as figuras dos deuses Apolo e Dionísio para representar o surgimento da tragédia e fundamentar o conceito de “vontade”. Apolo e Dionísio representam, cada um, uma força/impulso, que segundo Nietzsche, devem estar em equilíbrio para que o trágico aconteça. Deste modo, Apolo, o deus do sol, representa a força essencial humana do limite, da contemplação, da harmonia, da beleza, da aparência, da simetria e do uso da racionalidade. Já Dionísio, deus do vinho, representa o equilíbrio do homem com a natureza, a força do instinto, a embriaguez, o sexo e o sofrimento. O que Nietzsche faz é retomar a visão de mundo dos gregos por volta do século VI a.C. A mitologia surge como forma de sanar problemas existenciais, pois o gregos tinham consciência de quão trágica era a vida e expressavam isso através do mito e da arte. As artes plásticas possuíam a essência da atitude apolínea e a música a essência da atitude dionisíaca. Nietzsche apresenta dois estados fisiológicos que correspondem aos princípios apolíneo e dionisíaco: o sonho e a embriaguez. Ambos os impulsos artísticos andam lado a lado, quase sempre em conflito, e é desse conflito que nasce o homem trágico. PALAVRAS-CHAVE: APOLÍNEO; DIONISÍACO; TRAGÉDIA. ABSTRACT Nietzsche search in Greek mythology figures of Apollo and Dionysus gods to represent the appearance of the tragedy and support the concept of "will". Apollo and Dionysus each represent a force / impulse, which according to Nietzsche, must be in balance for the tragic happening. Thus, Apollo, the sun god, is the essential human strength limit, contemplation, harmony, beauty, appearance, symmetry and use of rationality. Already Dionysus, god of wine, is the man of balance with nature, the power of instinct, drunkenness, sex and suffering. What Nietzsche is to resume the worldview of the Greeks around the sixth century VI a.C. The mythology emerges as a way to solve existential problems, as the Greeks how tragic awareness of life was and expressed it through myth and art. The fine arts had the essence of Apollonian attitude and music the essence of Dionysian attitude. Nietzsche has two physiological states that correspond to the Apollonian and Dionysian principles: dream and intoxication. Both artistic impulses go hand in hand, almost always in conflict, and that conflict is born the tragic man. KEYWORDS: APOLLONIAN; DIONYSIAN; TRAGEDY. INTRODUÇÃO: os impulsos apolíneo e dionisíaco Nietzsche, em O nascimento da tragédia, recorre à mitologia grega, a fim de nos apresentar as figuras dos deuses Apolo e Dionísio, para representar o surgimento da tragédia e fundamentar o conceito de “vontade”. Este é um dos conceitos fundamentais na filosofia nietzschiana, pois, de acordo a tradução de J Guinsburg, ao longo de O nascimento da tragédia é utilizado no sentido schopenhauriano, “isto é, como centro e núcleo do universo, que assume as formas da multiplicidade fenomenal no espaço e no tempo, seus ‘princípios de individuação’, constituindo a antítese do estado de contemplação estética”. (Cf. NT, nota 17). No entanto, em O nascimento da tragédia encontramos apenas alguns esboços para o surgimento de tal conceito. Dentre os deuses do panteão da mitologia grega, Apolo e Dionísio foram escolhidos, pois, cada um deles representa uma força/impulso, que segundo Nietzsche, devem estar em equilíbrio para que o trágico aconteça. Deste modo, Apolo representa a força essencial humana da beleza, da razão e da simetria. Já Dionísio, representa a força do instinto e da embriaguez. É importante ressaltar, como destaca Rachel Gazolla (2001, p.21), que “Nietzsche quis ver nas tragédias a polaridade entre as divindades Apolo e Dionísio, em função de sua própria interpretação de ‘dionisíaco’ e de ‘apolíneo’, fundamental para a boa compreensão de suas reflexões”. O que Nietzsche faz é retomar a visão de mundo dos gregos. Um dos pontos centrais da questão desta retomada seria a respeito da sensibilidade demasiada (Cf. MACHADO, 1984, p.17.) que o povo grego tinha para o sofrimento e uma sensibilidade equivalente para a arte. Em razão disto, Nietzsche pôde concluir que o povo grego era instintivo. E tudo isso ajudava para uma visão pessimista da vida. A arte e a religião estavam ligadas intrinsecamente para os gregos, podendo ser consideradas a mesma coisa. A arte apolínea foi a responsável por criar os deuses do Olimpo, e com isso trazer um propósito aparente para a existência. Essa foi uma saída criada para não cair no pessimismo sobre a vida, que era tão evidente para os gregos. Entretanto, a religião criada pelos helenos não era uma forma de negar a vida, mas, sim, uma forma de enxergar beleza na vida presente. Nietzsche parte para uma análise sobre até que ponto chegava os impulsos artísticos dos gregos, a partir da “imitação da natureza”. Segundo ele, os gregos levavam os sonhos tão a sério que um grego sonhador poderia ser comparado tranquilamente à Homero, uma vez que o próprio Homero não passava de um grego sonhador. Nietzsche trata também sobre a diferença entre os gregos dionisíacos e os bárbaros dionisíacos. Estes bárbaros, descendentes do povo Dório, faziam festas puramente dionisíacas. Para este povo, festa e orgia eram sinônimos. No entanto, de acordo com Raquel Gazolla (2001, p.18), “claro que, ao falar de orgia, não se está indicando o significado assentado entre nós dessa noção, mas o sentido grego antigo da palavra, ou seja, celebração dos mistérios”. Em algum momento da história do povo Dório, as expressões apolíneas começaram a surgir na arte, com isso, o impulso apolíneo começou a tomar força na cultura dórica onde o dionisíaco predominava. O impulso apolíneo aflorou de maneira quase desenfreada. Mas, um impulso não anula o outro completamente, ambos princípios coexistem numa dependência recíproca, sendo assim, do equilíbrio entre essas duas forças surge o homem grego. O filósofo nos apresenta duas dimensões do princípio que gera o impulso artístico, a saber: o sonho e a embriaguez. O sonho seria a inspiração do poeta, que ao interpretar transforma em poesia. Apolo é a representação dessa experiência do sonho que reflete a vida e vice e versa. Mas, até os sonhos possuem limites, e Apolo nesse sentido representa o “princípio da individuação”, o que nos direciona a acreditar numa realidade estável e bela. Além de interiorizar e racionalizar as projeções humanas. A embriaguez, ao contrário do sonho, assume uma realidade instável, aflora os instintos humanos e sucumbe a voz de autoridade da razão. Na embriaguez o “princípio de individuação” é quebrado, pois o homem embriagado expõe seu êxtase e tudo acontece em sua realidade cotidiana. A arte, nessa perspectiva, é a representação simbólica da natureza captada pelo homem. Para Nietzsche (2007, p.31), assumir uma visão dionisíaca da vida é o momento em que “o homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a força artística de toda a natureza, para a deliciosa satisfação do Unoprimordial revela-se aqui sob o frêmito da embriaguez”. Para Nietzsche, as forças apolínea e dionisíaca são princípios metafísicos presentes na vida, na arte e na natureza, e tanto o artista apolíneo quanto o dionisíaco são “imitadores”, pois a obra de arte revela o modo como o artista percebe e sente o mundo a sua volta. Portanto, a obra de arte é uma criação humana a partir de imagens da natureza que o cerca, captadas pelos sentidos e transformadas em imagens vindas de um estado onírico ou de embriaguez. A música nesse contexto, enquanto uma das formas de arte mostra duas faces: a dionisíaca, que supõe intensidade, excitação, espanto, pavor etc., e a apolínea que sugere rigor, medida, constância, suavidade etc. Durante o “entusiasmo” dionisíaco o homem chega a potência máxima de suas capacidades simbólicas, e isso só ocorre devido à seus impulsos artísticos. Assim, a arte se constitui como a representação simbólica que mais se aproxima do que imaginamos ser a essência da natureza. Segundo Nietzsche (2007, p. 35), observar o dionisíaco na natureza mostra ao homem grego que “aquilo tudo não lhe era na realidade tão estranho, que sua consciência apolínea apenas lhe cobria como um véu esse mundo dionisíaco”. O grego e sua perspectiva trágica da vida Gradativamente a cultura grega tornou-se apolínea. Até a maneira como os deuses eram retratados denunciava uma visão apolínea do mundo. Homero, através do seus escritos, teve grande contribuição para que isso acontecesse, pois em seus poemas as formas monstruosas foram excluídas do Olimpo, no sentido de sucumbir concepções sombrias e aterrorizadoras, substituindo-as pela visão de um divino luminoso e acessível, de contornos definidos. Nietzsche chama a atenção a respeito da religiosidade peculiar que permeava as narrativas dos deuses olímpicos, pois era uma “religião” muito distinta do modo como a maioria das pessoas pensam religião na atualidade. Os deuses da mitologia grega, ao contrário dos deuses das maiores religiões do mundo hoje, não inspiravam uma elevação moral, não cobravam santidade de seus seguidores e nem sempre tinham misericórdia, uma vez que os próprios deuses gregos possuíam sentimentos e personalidades semelhantes à dos seres humanos. Como conta muitas narrativas poéticas, os deuses gregos costumavam se relacionar com os humanos, assumindo uma forma humana para não serem identificados. O resultado disso eram os semi-deuses. Os contos sobre os heróis eram bem comuns na Grécia arcaica e servia, de certo modo, como inspiração para o povo grego e também como forma explicar, através de exemplos, ideias como coragem, justiça, virtude, sabedoria etc. Nietzsche destaca um trecho do conto do sábio Sileno, que é um exemplo dessas narrativas populares na cultura grega. Sileno foi retratado como um semi-deus, que era próximo a Dionísio. Fisicamente foi descrito como um velho careca, de nariz chato arrebitado e além disso andava sempre bêbado (afinal de contas era amigo de Dionísio). Um certo rei, chamado Midas, estava a procura de Sileno, pois a sabedoria deste último o havia intrigado. Quando finalmente o achou, perguntou: “Qual dentre as coisas é a melhor e a mais preferível para o homem?”. Respondendo, Sileno disse: “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo para ti é inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer.”. Esse tipo de conto escancarava a tragicidade da vida, deixando estarrecido quem escutava. Com isso, os gregos puderam sentir o “gosto amargo” da existência e para que fosse possível, de algum modo, suportar e continuar a viver, tiveram que inventar uma explicação para dar sentido a vida, explicação essa que impulsionou a criação onírica dos deuses olímpicos. Por outro lado, segundo Olímpio Pimenta (2000, p. 101), “a arte trágica só é possível a partir do vislumbre do trágico na vida: este, depreciado por Sileno como sinal de fraqueza humana, é transformado, pela afirmação da vida, em potência criadora”. Tudo para o homem grego tornou-se incerto, quando a base da sua própria existência foi comprometida. A primitiva teogonia surge como explicação para o princípio de tudo e ao longo do tempo se desenvolveu a teogonia olímpica do júbilo. Isso mostra como o homem grego acreditava que o caos tende para a ordem, isto é, o apolíneo sempre surge depois do dionisíaco. Os deuses olímpicos, nesse contexto, desempenhavam o papel de reafirmar a vida, de potencializar a “vontade” no interior do ser humano. Os gregos viam nos deuses a beleza da existência, ou seja, o Olimpo era visto pelos homens através dos olhos de Apolo. E com isso, as palavras de Sileno são invertidas, o grego passa a pensar que “a pior coisa de todas é para eles morrer logo; a segunda pior é simplesmente morrer um dia.”. O homem grego passa de um vazio existencial à “vontade” de vida, marca da transição da cultura bárbara puramente dionisíaca, para uma cultura apolínea. Nietzsche caracteriza essa visão inteiramente apolínea como “ingênua”, este termo é usado no sentido de que o grego se envolveu em sua próprias ilusões afim de esquecer as dores da existência. A beleza inventada em referência ao deuses olímpicos gerava um fim em si mesmo, uma vez que o grego vivia para contemplar a vida numa perspectiva puramente apolínea. Deste modo, a vida foi reafirmada numa ilusão, um alicerce que pode novamente ser comprometido. O excesso do apolíneo Segundo Nietzsche, o artista ingênuo é o tipo de homem que prefere viver o mundo ilusório do sonho do que viver a realidade cotidiana. Uma vez que, no sonho o próprio homem constrói a “realidade” em busca da estabilidade e com isso pode excluir todas as mazelas e contradições da vida real. O artista ingênuo, portanto, é um artista genuinamente apolíneo. É importante ressaltar que a palavra “sonho”, em todo o contexto apresentado por Nietzsche, vai muito mais além do que uma mera atividade mental não dirigida que se manifesta durante o sono. O sonho para Nietzsche é aparência, é uma ilusão criada pelo homem que ganha status de verdade e supostamente fundamenta uma ideia. Ambos os impulsos artísticos denotam um desejo que se apresenta de modo excessivo pela aparência. A diferença é que, enquanto o apolíneo se detém às imagens oníricas, o dionisíaco reafirma as imagens da realidade tais como são. Por isso que para Nietzsche a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético. Sendo a realidade empírica uma aparência, composta pelo conteúdo dionisíaco e pela forma apolínea, a arte do artista ingênuo representa a aparência da aparência. Para exemplificar, Nietzsche cita o pintor italiano renascentista Rafael Sanzio, criador da obra entitulada “Transfiguração”. Nesta obra, Rafael retrata uma imagem onírica, onde na parte inferior estão homens desesperados, mas na parte superior está um ser divino que passa a ideia de amparo, no sentido de que há uma solução para o desespero. A obra de Rafael é ingênua, pois segundo Nietzsche, na realidade não há uma solução definitiva para o desespero humano nem aqui e muito menos fora desse mundo, até porque isso é algo natural para o homem que se percebe lançado a própria sorte na existência. O problema do artista ingênuo é que ele não admite isso e cria, em meio aos seus devaneios, as mais diversas soluções para tentar escapar da dor de existir e com isso mergulha num mar de ilusões sem receio algum. No quadro “Transfiguração”, mostra-se também o endeusamento da individuação. Como que um bote salva-vidas para um náufrago. Apolo mostra como a ordem, a obediência, a medida e a razão podem salvar o homem do caos, isto é, do trágico. Com isso, o homem assume o lugar de criatura central dentre as demais criaturas por conta de sua capacidade racional, ou seja, sua existência passa a possuir um valor mais elevado que as dos demais seres. A prescrição apolínea é que os homens tenham medida para que se autoconheçam. Portanto, o “belo” só é conhecido depois do processo do “conhece-te a ti mesmo” e do “nada em demasia”. Sendo assim, o contrário do que foi prescrito, como a desmedia e a auto-exaltação são demonizados, marginalizados e afastados pelo apolíneo. O mundo como fenômeno estético Nietzsche aponta Homero e Arquíloco como grades poetas da Grécia arcaica, mas que possuíam estilos bem distintos. Ambos os poetas são postos, por Nietzsche, em analogia aos impulsos apolíneo e dionisíaco respectivamente. Homero representa perfeitamente o artista apolíneo, com toda sua narrativa poética mítica e ilusória. Já Arquíloco representa o artista dionisíaco, com seus poemas que narram a vida e a morte, a guerra, as dores cotidianas. O problema levantado por Nietzsche, diz respeito ao princípio de individuação presente no artista apolíneo, uma vez que este cria uma arte subjetiva. Para Nietzsche, o artista subjetivo é um mau artista, pois este ainda não se libertou das limitações do seu “eu”. Deste modo, em sua arte não há objetividade, uma vez que tudo criado por ele remete à uma vontade individual, um interesse particular. Segundo o filósofo, isso foge a ideia da produção verdadeiramente artística, que supõe uma contemplação puramente desinteressada ao qual todos possam se identificar. De tudo isso decorre outro problema: como pode o poeta “lírico” ser considerado artista? Essa problemática, num primeiro momento, parece envolver tanto Homero quanto Arquíloco, pois ambos produzem poesia a partir de algum sentimento provocado por uma pulsão interna. É então que Nietzsche busca investigar como acontece o processo artístico (ou o ato de poetar) no artista lírico. O filósofo recorre à Schiller, que descreve esse processo da seguinte maneira: primeiro surge o sentimento no artista, algo ainda obscuro e confuso; depois a disposição musical é despertada, pois ela já está no espírito humano; a junção destes dois aspectos faz com que haja o amadurecimento da ideia poética. Constatado esse processo do ato de poetar, Nietzsche tira uma conclusão que responde a problemática colocada por ele mesmo. O poeta lírico é a princípio um artista dionisíaco, ou seja, ele está em sincronia com o Uno-primordial, o que traz à tona sua dor diante das contradições da vida. Logo, o sentimento identificado por Nietzsche no ato de poetar surge do impulso dionisíaco. Com isso, esse sentimento é externado em forma de música. Neste ponto, a música permite a formação de imagens, nota-se então a influência do apolíneo, que se utiliza desses sentimentos para produzir sonhos. Assim, aquilo que no começo era obscuro, torna-se uma aparência. Nesta perspectiva, o artista sai de sua subjetividade devido a influência do dionisíaco no processo. As imagens supostas pela poesia refletem a dor primordial na existência humana e junto com isso vem o prazer provocado pela aparência, fruto da contribuição apolínea no processo. Assim sendo, não existe o “eu” no lírico, a subjetividade mostra-se também uma ilusão, pois a dor primordial e o prazer na aparência são provocados pelos dois impulsos essenciais, isto é, são coisas presentes em qualquer ser humano, portanto objetivo. Em relação a isso, a pesquisadora Rachel Gazolla esclarece que: Enquanto gênero poético específico, e quando comparada a outras expressões poéticas, a tragédia guarda, pelo menos, uma importante diferença com a poesia lírica e épica, que pode auxiliar a compreensão do que seja o trágico. Do ponto de vista do conteúdo poético, a poesia de Homero e a de Hesíodo demonstram a época da sociedade das fratarias, com seus mitos dos deuses e dos heróis, enquanto poetas líricos como Arquílocos, Mimnermo, Safo e outros inspiraram-se nos valores comportamentais dos homens das poléis, privilegiando a manifestação dos sentimentos e de seus significados, e não suas aventuras, deixando à mostra uma comparação entre os atos valorados pelo cívico e as emoções impulsionadoras de comportamentos mais próprios a cada um, quer singularmente, quer enquanto totalidade humana. A morte, o amor, o prazer do vinho e dos amigos sã temas básicos na lírica. (GAZOLLA, 2001, p. 32). Nietzsche coloca o artista plástico e o épico contrapostos ao músico dionisíaco. Enquanto estes dois primeiros se limitam a contemplar as imagens, o último é ele próprio expressão da dor primordial. O poeta lírico vive em um estado de unidade e seu modo de ver o mundo é totalmente diverso do modo do artista plástico e épico. Nesse ponto é importante esclarecer como ambos artistas lhe dão com a questão da imagem. O artista apolíneo sente prazer na aparência e a imagem em sua arte é uma aparência distorcida da realidade. Este artista vive para contemplar essas imagens, que são ideais, pois surgem da vontade apolínea de medida, simetria e regularidade. O artista apolíneo não reconhece que sua arte trata de imagens ilusórias e fantasiosas, para ele sua arte reflete a essência da realidade. Já o poeta lírico, que se revela dionisíaco, vê as imagens e ele próprio como uma coisa só, e é nisto que consiste o Uno-primordial. No centro da poesia lírica está o “eu”, não no sentido da subjetividade, é uma “eudade” em relação a assumir a dolorosa condição humana, é se perceber fora de todas as ilusões criadas pelo próprio homem. Arquíloco é um exemplo de poeta lírico, pois seus sentimentos são expressos ao extremo, de um lado o ódio, do outro o amor. Nietzsche coloca que existe um gênio universal que possibilita o homem de exprimir simbolicamente o seu sofrimento. Esse gênio se manifesta no poeta e o sofrimento humano é expresso. Assim, não há subjetividade, pois, o sofrimento provocado pela dor existencial é universal, comum a qualquer ser humano. Deste modo fica evidente que o poeta lírico não é subjetivo. Nietzsche ainda traz a visão de Schopenhauer acerca do poeta lírico. Schopenhauer diz que a vontade de música já está no sujeito, mas nem todos reconhecem isso, pois não querem assumir esse querer artístico e acham que foram criados para conhecer e a arte não possibilita um conhecimento “puro”, pois não é conceitual. Nesse sujeito há uma guerra entre vontade artística e conhecimento conceitual. Para Shopenhauer, a canção autêntica é justamente esse estado em que a pulsão e a razão dividem a alma. Ponto onde claramente há uma divergência entre Schopenhauer e Nietzsche, pois este último considera a arte, e sobretudo a música, como a atividade humana superior por excelência e a mais autêntica. REFERÊNCIAS DIAS, R. M. Arte e vida no pensamento de Nietzsche. Cadernos Nietzsche, v. 36, p. 58-72, 2015. FREITAS, G. S. O labirinto da arte trágica nos primeiros escritos de Nietzsche. 2007. 117 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2007. ______. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. GAZOLLA, R. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega. São Paulo: Ed. Loyola, 2001. MACHADO, R. C. M. Nietzsche e a verdade. 2. ed. Rio de Janeiro: ROCCO, 1984.132 p. ______. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. 289 p. ______. Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. v. 1. 166 p. NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio: J Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. PEREIRA, C. L. J. Nietzsche e a fisiologia da arte. São Paulo: Cadernos Nietzsche, 2015. PIMENTA, N. O. J. Razão e conhecimento em Descartes e Nietzsche. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.