fercapo: festival regional da canção popular no fim da era

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UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Delciane Martini Silva
FERCAPO: FESTIVAL REGIONAL DA CANÇÃO POPULAR
NO FIM DA ERA DOS FESTIVAIS
Cascavel
2006
UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná
FERCAPO: FESTIVAL REGIONAL DA CANÇÃO POPULAR
NO FIM DA ERA DOS FESTIVAIS
Monografia apresentada ao Curso de
Especialização em História da Educação
Brasileira da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná – UNIOESTE, como
requisito para obtenção do grau de
Especialista, sob orientação do Prof. Dr.
Paulino José Orso.
Cascavel
2006
2
Agradeço aos
meus pais,
Dilva e Delci,
pelo incentivo que sempre me deram em
relação a todos os meus projetos e ideais.
3
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 05
2 A IDÉIA DE MÚSICA E SUA GÊNESE NO BRASIL.................................................. 08
3 A EFERVESCÊNCIA MUSICAL DA DÉCADA DE 60................................................ 10
4 FESTIVAIS DE MÚSICA NO BRASIL, UMA HISTÓRIA.......................................... 14
5 FERCAPO, NO FIM DA ERA DOS FESTIVAIS.......................................................... 51
6 CONCLUSÃO.................................................................................................................... 71
4
INTRODUÇÃO
Na década de 60 ocorreu um verdadeiro turbilhão de acontecimentos importantes. Esta
foi a década do Cinema Novo, do golpe militar, dos movimentos estudantis, dos hippies, da
ideologia nacional-desenvolvimentista, da censura, da Jovem Guarda, do Vietnã, do Bicampeonato mundial de futebol, do Ato Institucional nº 5, do Rock`n roll, de Che Guevara, da
Tropicália, enfim, foi uma década emblemática na construção de uma nova identidade para a
juventude “mundial” e brasileira como também para a sociedade em geral. Tinha-se a clara
idéia de que era o crescimento econômico do país que propiciaria um poder aquisitivo maior
para todo o povo, através do trabalho e do consumo. Era preciso deixar o bolo crescer para
depois dividi-lo.
Não sem razão, os anos JK, até 1961, foram entendidos como os anos dourados da
cultura brasileira. O clima de otimismo, de bom humor e de esperança que Juscelino transmitia,
contagiou positivamente toda uma geração de músicos e artistas brasileiros. Para a nova
geração de compositores brasileiros, o movimento da Bossa Nova (cujo marco foi a gravação de
Chega de Saudade de João Gilberto, em junho 1958, na mesma data em que JK inaugurava o
Palácio da Alvorada) dava maior sofisticação, vigor e visibilidade a música brasileira.
A solução para as mazelas brasileiras deslocava-se agora do plano cultural para o
econômico. Neste bojo, uma elite cultural, inicia um trabalho no qual a produção e o consumo
da arte não seriam mais mero entretenimento. Na música popular, no teatro, na literatura, no
cinema, nas artes plásticas, cada vez mais havia o enlace entre cultura e poder. Em suas
diferentes linguagens o artista adota estratégias de um discurso político, atuando como agente
social. Esse posicionamento dos artistas frente os acontecimentos políticos e sociais inaugura
uma mudança no estatuto da cultura brasileira, que deve ser bem localizada e delineada, pois,
dá inicio a uma nova forma de ação política até então desconhecida
por aqui, que é a
conscientização do povo através da idéia de uma cultura popular nacional.
Em períodos de ditadura militar, tanto a instituída em 1937 quanto a de 1964, o governo
constrói e impõe ao país uma cultura oficial, algo que não abale os alicerces do poder e ao
mesmo tempo valide a ideologia dominante, dessa forma, a população é inserida nesta cultura
5
de forma automática, numa posição de passividade e aceitação em relação a posição que ocupa
na hierarquia social. Surge neste momento, através destes setores da elite cultural, uma cultura
mais engajada, da qual, ao menos teoricamente, a população é sua fonte e sua finalidade. Em
linhas gerais podemos situar esse momento histórico brasileiro como produtor de uma
contracultura.1
As canções de protesto, que tiveram como palco os festivais, canalizaram para a canção
popular esta relação entre cultura e poder, buscando na ampla aceitação popular desta música,
um local perfeito para a difusão deste novo discurso. Os festivais de música cumpriram
magistralmente esse papel.
E é justamente a tentativa de traçar uma trajetória histórica deste formato de evento no
Brasil, as influências que sofreu e qual a importância desse tipo de evento para a formação
cultural das pessoas envolvidas, tanto na criação quanto na apreciação, que este estudo se
propõe a discutir.
No primeiro capítulo, o estudo procura mostrar como se deu o encontro entre índios,
portugueses e africanos na produção de uma musicalidade brasileira própria.
O segundo capítulo descreve a música urbana do século XX, mais especificamente na
década de 50 e 60, quando eclodem os três gêneros que antecedem à MPB dos festivais de
música.
O terceiro e mais extenso dos capítulos, constrói uma trajetória dos festivais de MPB no
Brasil, o que representaram para a sociedade brasileira em meio a uma ditadura militar, quais
influências deixaram para as pessoas e a relação que a educação teve com esses eventos.
No quarto e último capítulo, há uma tentativa de mostrar como se gerou o FERCAPO –
Festival Regional da Canção Popular, que ocorre desde 1971, como e com que finalidade se
1
A Contracultura pode ser definida como um ideário veemente que coloca em dúvida valores centrais vigentes e
instituídos na cultura ocidental. Com o vultoso crescimento dos meios de comunicação, a difusão de normas,
valores, gostos e padrões de comportamento se libertavam das amarras tradicionais e locais – como a religiosa e a
familiar –, ganhando uma dimensão mais universal e aproximando a juventude de todo o globo. (CARVALHO,
2002, p. 7) De um lado, o termo contracultura pode se referir ao conjunto de movimentos de rebelião da
juventude [...] que marcaram os anos 60: o movimento hippie, a música rock, uma certa movimentação nas
universidades, viagens de mochila, drogas e assim por diante. [...] Trata-se, então, de um fenômeno datado e
situado historicamente e que, embora muito próximo de nós, já faz parte do passado”. [...] “De outro lado, o
mesmo termo pode também se referir a alguma coisa mais geral, mais abstrata, um certo espírito, um certo modo
de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente, de caráter profundamente radical e bastante estranho às
forças mais tradicionais de oposição a esta mesma ordem dominante. (PEREIRA, 1992, p. 20)
6
deu o festival, que tipo de músicas participavam e ganhavam, até que ponto a classe estudantil e
a sociedade em geral se envolviam. Para a construção do quarto capítulo foram feitas
entrevistas com músicos que participaram tanto dos primórdios do festival quanto das últimas
edições. Além de registros encontrados no clube promotor do evento e biblioteca municipal.
7
A IDÉIA DE MÚSICA E SUA GÊNESE NO BRASIL
O termo música, segundo o dicionário Aurélio, significa a “Arte e ciência de combinar
os sons de modo agradável aos ouvidos”. Etimologicamente, origina-se da palavra grega
mousikós, musical, relativo às musas. Referia-se ao vínculo do espírito humano com qualquer
forma de inspiração artística.
A música tem acompanhado os homens desde os primórdios. O ritmo contido na música
é comparado com pulsações do próprio corpo humano e sons oriundos da natureza: ritmo do
coração, da respiração, das ondas do mar, o canto dos pássaros. Por esse motivo a música tem
historicamente se constituído como uma necessidade humana.
Durante um longo tempo a música esteve ligada às crenças e rituais religiosos: os
cânticos gregorianos nos mosteiros, as danças invocando deuses por parte dos indígenas e
escravos. Com o advento do Cristianismo essa relação se estreitou e passaram a ser comuns
manifestações como: procissões, missas, novenas, louvores, etc.
A mais remota referência à música no Brasil encontra-se na carta de Pero Vaz de
Caminha, que relata ao rei de Portugal Dom Manuel, a musicalidade dos nativos e o encontro
com a cultura musical dos europeus:
[...]E depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamos a pregação,
levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina começaram a saltar e
dançar um pedaço. [...] E além do rio andavam muitos deles dançando e
folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no
bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora
almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo
um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os
pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da
gaita. 2
Outras referências aparecem nas anotações do padre Manoel da Nóbrega que chega ao
Brasil com os primeiros Jesuítas, a partir de 1549, mencionando a música de catequese.
O encontro entre a música dos jesuítas e a música dos indígenas é a pré-história da
música popular do Brasil. A evolução desses ritmos primitivos, como o cateretê ou o
cantochão, são ainda hoje tocados em festas populares.
2
Disponível em: WWW.UFSC.BR Acesso em 13/12/2005.
8
A música popular do Brasil só se tornaria mais forte no final do século XVII, com o lundú,
dança africana de maneios e sapateados, e a modinha, canção de origem portuguesa de cunho
amoroso e sentimental. Esses dois padrões, a influência africana e a européia, alternaram-se e
combinaram-se das mais variadas e inusitadas formas durante o percurso que desembocou,
junto a outras influências posteriores, na música popular dos dias de hoje.
Durante o Período Colonial e o Primeiro Império, além dos já citados lundú e modinha,
também as valsas, polcas e tangos de diversas origens estrangeiras encontraram no Brasil uma
nova forma de expressão. Já no século XIX surgem os conjuntos de chorões, que adaptam
formas musicais européias, como a mazurca, a polca e o scottisch ao gosto brasileiro e à forma
brasileira de se tocar essas composições. Surge então, a partir da brasileirização dessas formas,
o choro, e firmam-se novas danças, como o maxixe.
Outras duas coisas que ajudaram decisivamente o aparecimento da canção popular no
Brasil foram o carnaval carioca e o gramofone. Pixinguinha, João da Baiana, Donga, autor de
Pelo Telefone, primeiro samba gravado, em 1917, foram grandes nomes nesse período, junto
com os continuadores dos chorões.
O samba urbano só se firmaria na década de 30, época em que surge a primeira escola
de samba, a Deixa Falar, fundada em 1929. Depois, com a popularização do rádio e do disco a
música popular se consolida e chega ao mundo de opções musicais que hoje o Brasil possui.
9
A EFERVESCÊNCIA MUSICAL DA DÉCADA DE 60
Na década de 60 dá-se início no Brasil ao fenômeno dos Festivais de Música de
MPB3. Surgem num momento em que o País está passando por intensa militância política com
a instauração de uma nova ditadura a partir do golpe militar de 31 de março de 1964. Não por
outro motivo o estilo musical que se cantava nos festivais era a MPB, por seu caráter de
“comprometimento com a denúncia da realidade sócio-política brasileira e seu anseio pela
transformação, fomentando a instauração de um contra-discurso e contribuindo na constituição
de uma memória nacional autêntica”. (VILARINO, 1999:94)
É essencial ressaltar que a sigla MPB, apesar de parecer abrangente e capaz de englobar
toda e qualquer música consumida e/ou produzida pelas camadas populares, possui um
significado restrito. Trata-se de um denominado estilo, como samba, bolero, rock, etc. A sigla
MPB possui um significado próprio dentro da música popular brasileira, constitui um
movimento autônomo dentro do próprio movimento da música popular no país. São várias as
significações atribuídas a MPB: música de protesto, música dos festivais, música politicamente
engajada, dentre outras.
Não é, entretanto, tão popular quando possa aparentar. Tinha a
princípio, um público seleto, em sua grande maioria pertencentes a classe média e
universitários.
Mas nem somente de MPB se constituiu a década de 60 (década dos festivais), a
Jovem Guarda, a Bossa Nova e a Tropicália também imprimiram suas marcas ao período.
A Bossa Nova nasce na euforia desenvolvimentista do Governo JK, época em que os
veículos de comunicação em massa, entre eles a televisão, expandem-se. É nesse contexto que
surge em 1958 a expressão “bossa nova”, segundo Waldenyr Caldas, num mero acaso:
Roberto Menescal, convidado para apresentar-se com o seu conjunto no
Grupo Universitário Hebraico-Brasileiro, encontra o seguinte aviso escrito no
quadro negro: ‘hoje, João Gilberto, Silvinha Teles e um grupo bossa-nova
apresentando sambas modernos’. A expressão foi tão feliz (seu criador
permanece até hoje no anonimato) que os profissionais daquele show ficaram
conhecidos como os ‘artistas da bossa nova’. (CALDAS, 1989:46-47)
3
“A expressão MPB, aqui, é tomada para identificar um momento da música popular brasileira,
localizado entre meados da década de 60 e 80, caracterizado pelo compromisso com a realidade, por
uma intencionalidade informativa e participante”. (VILARINO, 1999:20)
10
A Bossa Nova sofreu a influência da música clássica e principalmente do Jazz, e,
segundo José Ramos Tinhorão, a “Bossa Nova não é um gênero musical e sim uma maneira de
tocar especial, intimista”. (VILARINO, 1999:16)
Houve na década de 50, no Rio de Janeiro, em termos de produção musical, uma
separação social, nos morros e na Zona Norte situavam-se os pobres e na Zona sul, os ricos e
os remediados. Esse fator contribuiu para o surgimento de uma leva de jovens desligados da
tradição musical popular, os bossanovistas. Nessa fase inicial o discurso da Bossa Nova ainda
não havia se envolvido com as questões político-ideológicas do país. Enquanto o Cinema
Novo4 mostrava ao público o Brasil que ninguém gostaria de ver, a Bossa mostrava o que de
melhor havia no país.
Augusto de Campos cria a expressão cor local, para adjetivar essa primeira fase da Bossa
Nova. Segundo o mesmo autor as principais características desse movimento nesse primeiro
momento era o clima coloquial, descontraído, cheio de humor, ironia e malícia.
Mas a Bossa Nova tem também o seu momento participante, ainda com denominação
criada por Augusto de Campos. Nesta fase, as canções abordam questões relativas ao
subdesenvolvimento brasileiro, como a exploração no trabalho, a reforma agrária, o latifúndio,
o subemprego, as condições de miséria no morro, no Nordeste etc.
Outro movimento musical que surgiu ao lado da MPB foi a Jovem Guarda,
comumente chamada de iê-iê-iê.5 Baseava-se no ritmo internacional que estava em voga no
momento, o rock’n roll, preconizado pêlos ícones, Elvis Presley, Paul Anka, Neil Sedaka e
posteriormente The Beatles. A Jovem Guarda era composta por um grupo de jovens cantores e
compositores, liderados por Roberto e Erasmo Carlos, que tinham uma postura aparentemente
rebelde, mas que uma análise mesmo que superficial do que propunham em suas canções,
perceber-se-á que se trata de uma atitude bastante conservadora. Waldenyr Caldas constata:
4
Movimento neo-realista liderado por Nelson Pereira do Santos (e mais Glauber Rocha, Joaquim Pedro de
Andrade, Carlos Diegues, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman, David Neves, Ruy Guerra e Luiz Carlos
Barreto), viera “para descolonizar a produção brasileira”, condicionada até então a imitar os filmes de Hollywood.
Tratava-se da "libertação completa da linguagem cinematográfica de seus entraves coloniais
(BOJUNGA,2001:38).
5
A expressão iê-iê-iê vinha dos gritos Yeah yeah yeah dos Beatles na interpretação da canção She Loves
you(TINHORÃO: 2003,335)
11
Se o tipo de vestimenta e o uso de cabelos longos podiam representar rebeldia
às normas sociais vigentes ou desejo de transformações, o conteúdo das
canções o desmentia. A música Quero que vá tudo pro inferno, a mais
importante na ascensão de Roberto Carlos, resume, de forma extremamente
feliz, as tendências e perspectivas dos jovens e adultos da Jovem Guarda:
individualismo, desinteresse pelos acontecimentos da época, certo comodismo
e até apatia. A expressão e que tudo mais vá pro inferno, caracteriza muito
bem (ainda que os autores não tivessem a intenção ) o desinteresse por tudo o
que estava ocorrendo na sociedade brasileira. (CALDAS, apud CAMPOS,
1978: 55)
Em setembro e outubro de 1967, mais especificamente no III Festival da Música Popular
Brasileira, o País pôde conhecer um outro movimento da música popular, a Tropicália. O
Tropicalismo ou Tropicália foi um movimento cultural que procurou expressar através das artes
plásticas, da música e de todo um entorno imagético, o que seria na verdade a gênese e a
identidade do Brasil. Os representantes da Tropicália enfatizavam a “coragem de assumir todos
os pecados dos que nascem nos trópicos” (OITICICA apud CALADO, 1997,163), assumir
nossa real natureza: um país exótico, eclético culturalmente e subdesenvolvido em todos os
aspectos e contendo no seu interior uma multi-racialidade; assim, somos um pouco índios,
negros, portugueses, italianos, sul-americanos, norte-americanos, etc. De acordo com o artista
plástico Hélio Oiticica6 – tropicalista que batizou o movimento através de sua obra Tropicália–
A pureza é um mito:
[...] creio que a Tropicália veio contribuir fortemente para a objetivação dessa
imagem brasileira total, para a derrubada do mito universalista da cultura
brasileira, toda calcada na Europa e na América do Norte, num arianismo
inadmissível aqui: na verdade, quis eu com a Tropicália criar um mito de
miscigenação – somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo -, nossa
cultura nada tem a ver com a européia, apesar de estar até hoje a ela
submetida: só o negro e o índio não capitularam a ela.[...] Para a criação de
uma verdadeira cultura, característica e forte, expressiva ao menos, essa
herança maldita européia e americana terá de ser absorvida,
antropofagicamente, pela negra e índia de nossa terra, que na verdade são as
últimas significativas, pois a maioria dos produtos da arte brasileira é hibrida,
intelectualizada ao extremo, vazia de um significado próprio. (OITICICA
apud CALADO, 1997, 163)
6
A obra do artista plástico Hélio Oticica, que inspirou o nome do movimento tropicália (a princípio
Caetano Veloso pensava chamar o movimento de Ensaio Geral), consistia num labirinto cheio de
árvores que tinha ao fundo uma TV ligada, demonstrando que o Brasil era ao mesmo tempo exótico,
subdesenvolvido e moderno.
12
Foi no sentido de considerar a MPB intelectualizada demais em relação ao nível social,
político e econômico da maioria dos brasileiros que, Caetano Veloso e Gilberto Gil
preconizaram a Tropicália nos festivais de música, até então, reduto exclusivo da MPB e seu
público.
De acordo com Haroldo de Campos, a tarefa do Movimento Tropicalista era:
[...] assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangeira e reinventá-la em
termos nossos, com qualidades ineludíveis que dariam ao produto resultante
um caráter autônomo e lhe confeririam, em princípio, a possibilidade de passar
a funcionar por sua vez, num confronto internacional, como produto de
exportação. (CAMPOS apud VELOSO, 1997, 247)
A década de 60, considerou a Tropicália um movimento de Vanguarda que procurou
assimilar elementos da música estrangeira num ritmo abrasileirado e não apenas negar essa
influência nem tampouco reproduzi-la apenas. Os tropicalistas ofereciam outra proposta aquele
momento histórico, diferente da direita e da esquerda. Entendiam que, antes de transformar a
sociedade, era necessário uma transformação individual na qual a arte estaria sempre presente.
De acordo com a autora, Patrícia Marcondes de Barros,(2000) o Tropicalismo incorporou em
seu ideário os elementos antropofágicos contidos no Manifesto de Oswald de Andrade,
publicado em 1928:
A antropofagia cultural propõe devorarmos e saborearmos “o inimigo,
principalmente, se for esteticamente e festivamente aproveitado, ou seja, ao
invés de excluir “o outro”, devemos reaproveitá-lo naquilo que possa ter de
melhor. O Brasil faria assim uma “filtragem” daquilo que seria interessante
ou não assimilar (filtragem quase sempre inconsciente, produzida pelo
sentimento do ressentido colonizado). Na relação devorador/devorado, seria
criado um outro indivíduo típica e festivamente brasileiro. (BARROS: 2000,
7)
Muitos não compreenderam ou simplesmente não aceitaram a forma de ver e de
mostrar tropicalista. No entanto, é interessante notar que esse movimento de se
apropriar de ritmos e instrumentos oriundos de outras terras e dar-lhes nova
roupagem é prática comum na história da música e na história da própria constituição
de brasilidade desde os tempos do lundú e da modinha
13
FESTIVAIS DE MÚSICA NO BRASIL, UMA HISTÓRIA
A década de 60, abarcou, como pudemos verificar no capítulo anterior, quatro
movimentos da música brasileira: a Bossa Nova, gerada nos anos dourados do governo JK, a
Jovem Guarda, a MPB e a Tropicália, as três últimas frutos da Ditadura Militar. Sendo a Bossa
Nova anterior aos outros três movimentos citados, pode-se observar influências desta sobre os
demais movimentos. João Gilberto, considerado o pioneiro da Bossa Nova com sua clássica
gravação de Chega de Saudade, é tido como referencial tanto para Roberto Carlos como para
Chico Buarque e Caetano Veloso. A MPB tornou-se portadora de uma mensagem crítica,
reforçada pelo arranjo musical. Para que essa mensagem chegasse ao público, foram usados
prodigamente os Festivais, tão em voga durante toda a ditadura militar. Dessa forma a MPB, ao
menos nos primeiros anos, manteve um estreito vínculo com a televisão, a qual exibiu os
festivais, fundamentais para constituir um público para essa música.
Segundo o jornalista e historiador Zuza Homem de Mello (2003), os festivais, em
alguns países, dentre eles o Brasil, é um evento que possui duas concepções diferentes. Uma
das formas é a reunião de exibições artísticas sobre um gênero musical ou outra área artística,
não havendo assim, competitividade e sim uma amostra de arte, podendo ou não ter apelo
comercial. O objetivo destes festivais é oportunizar ao povo o acesso a novas tendências, ou
revisitar a obra de artistas consagrados. Neste primeiro modelo pode-se citar alguns dentre os
mais aclamados: Festival de Edimburgo, Festival de Bayreuth ou os Festivais de Jazz dos anos
50. No Brasil, o primeiro neste modelo, foi o I Festival da Velha Guarda, promovido em 1954.
O outro modelo de festival, o qual nós iremos abordar neste estudo, é marcado pela
competitividade. Os Festivais de Cannes e Veneza são exemplos de festivais competitivos.
Viña del Mar, no Chile e San Remo, na Itália também competem, visto que as novas
participações geralmente implicam em obras inéditas (MELLO, 2003: 13).
Esse conceito de Festival de música popular ou Festival de canção, que se estabeleceu
no Brasil nos anos 60, trata-se de uma nova roupagem dos concursos de música carnavalesca
que tiveram grande sucesso nos anos 30, embora, segundo Zuza Homem de Mello, em 1919 já
tivesse ocorrido, sem muita repercussão, um concurso realizado por Eduardo França. Em 1932
14
é oficializado o Carnaval e a partir daí abre-se terreno para as premiações e subvenções,
gerando controvérsias similares as que existem até hoje nos desfiles de escola de samba.
De acordo com Marcos Napolitano:
Quando Donga registrou a música Pelo Telefone, colocando-lhe o rótulo de
Samba, ele realizou um gesto comercial e simbólico a um só tempo: comercial
porque registrava uma música que reunia elementos de circulação pública, e
simbólico na medida em que tanto o registro de autoria (na Biblioteca
Nacional em 1916) quanto o fonográfico (com o selo Odeon, em 1917)
permitiam uma ampliação do círculo de ouvintes daquela música.
(NAPOLITANO: 2002,50) Grifo nosso.
Os critérios para a escolha das músicas premiadas variavam bastante, mas no geral o
público sempre esteve bastante presente nessas escolhas, tanto que os aplausos sempre foram
uma forma bastante utilizada para escolha das canções. Sobre esse aspecto resume, Zuza
Homem de Mello:
Como se nota nos concursos de carnaval que proliferavam então, os principais
ingredientes que fariam parte dos festivais, mais de 30 anos depois, já estavam
presentes: a rivalidade, a participação do público e os estratagemas para
vencer.” (MELLO, 2003:16)
Mesmo os concursos e posteriormente os festivais contando com um corpo de jurados,
composto por integrantes de diversos setores da comunicação, atores, radialistas, músicos, etc,
e obedecendo a critérios divulgados com antecedência, as injustiças referentes a escolha das
canções eram freqüentes.
Em 1959, Tito Fleury, jornalista e diretor do rádio-teatro da TV Excelsior, estava
prestigiando um festival nos moldes do que viriam a ser os festivais no Brasil na década de 60.
Era o Festival de San Reno, na Itália, naquela ocasião o radialista ficou tão entusiasmado com
a possibilidade de criar um concurso semelhante, com canções brasileiras, que trouxe em sua
bagagem uma cópia do regulamento. (MELLO, 2003: 18-19)
O primeiro Festival então se deu, com a apresentação da idéia de Tito para o jornal
Última hora, que estava promovendo na ocasião um concorrido concurso de misses o Miss
Luzes da cidade de São Paulo. O Festival aconteceu no Guarujá, balneário que na época era o
que havia de mais charmoso e parecido com San Reno no estado de São Paulo.
15
A parcela ocupada pelo festival no evento como um todo foi pequena, era apenas mais
um item da programação da Rede Record, não contando com a mesma promoção do concurso
de misses. Apesar de prometido pela emissora o Festival nunca foi divulgado pela televisão,
saindo apenas no jornal impresso. Poucos registros se tem desse momento da história dos
festivais, entretanto, conhecendo os que vieram a ser e representar em termos de participação
popular os festivais que se seguiram a este, pode-se dizer deste que foi elitizado e portando
excludente, voltado para minorias e com caráter comercial. Ainda não era intuito, nesse
primeiro momento, promover a música em si e sim utiliza-la como mais um fator de
entretenimento. O nome dado a esse evento foi, I Festa da Música Popular Brasileira, que se
constituiu no primeiro evento em caráter nacional, uma vez que eram aceitas composições de
várias regiões do Brasil.
No início dos aos 60, a maioria das formas de manifestação artística se auto-submetem
a uma transformação, os fatores políticos e sociais inerentes ao momento que o País vive, passa
a ser tema básico e obrigatório a nova postura da arte. Nos anos 50, o Teatro feito no Brasil
ainda não trabalhava a realidade do país como mote. Grande parte dos diretores teatrais da
época eram italianos, franceses e belgas, dessa forma, o que se assistia era apenas o olhar
europeu, distante e frio.
Em contraposição a esse formato de teatro surge o Teatro Arena, composto por artistas
mais ligados a esquerda, com uma perspectiva mais enraizadamente brasileira a ser
contemplada. Em 1958, a peça Eles Não Usam Black–Tie, de autoria de Gianfrancesco
Guarnieri, dirigida por José Renato Pécora, apresentou o homem brasileiro comum como
personagem e com direito a conteúdo popular dentro da realidade sócio-política.
Os atores do Arena também escreviam suas opiniões sobre o mundo na ótica do teatro,
criando um estilo que recebeu a adesão de pintores, arquitetos, jornalistas (como Benedito Rui
Barbosa) e músicos. As peças do Arena provocaram tamanho interesse no meio musical que o
contato entre os bossanovistas e os integrantes do Arena não tardaria a acontecer.
Dessa união surgiu a idéia de se montar o CPC, Centro Popular de Cultura, que foi
efetivamente criado em dezembro de 1961 por músicos, teatrólogos, cineastas, artistas plásticos
e líderes estudantis, que se tornou o braço cultural da União Nacional dos Estudantes, a UNE.
Nessas reuniões, organizadas por Chico de Assis, os freqüentadores do CPC costumavam
orientar suas discussões em torno da realidade social brasileira. As parcerias tornaram-se
16
inevitáveis, os músicos passaram a compor com o pessoal do teatro e do cinema. Uma das
canções pioneiras oriundas dessa parceria foi a Canção do Subdesenvolvido, de Carlos Lyra e
Chico de Assis, que vendeu bastante no interior das universidades e se tornou um ícone da
época.
Geraldo Vandré, Carlos Lyra e Sérgio Ricardo, por sua ligação com o cinema, foram os
compositores que mais se envolveram nesse processo de mudança de enfoque da música
popular brasileira, processo que Chico de Assis, Ruy Guerra e Glauber Rocha, apesar de não
serem músicos, exerceram influência decisiva.
Toda essa euforia musical ocorre junto com a culminância da TV Excelsior, que em
1965, já era líder de audiência segundo o Instituto IBOPE. E foi aproveitando esse entorno que
a referida TV designou Solano Ribeiro para produzir o que seria considerado na história da
música brasileira, o primeiro Festival da Música Popular Brasileira. As inscrições foram feitas
mediante a entrega de partituras das canções nos pontos estipulados pela TV Excelsior no Rio
de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Foi formada uma comissão para avaliar todo o material.
A Segunda etapa do trabalho seria indicar um grupo de intérpretes que seriam importantes para
dar credibilidade ao evento. Alguns dos cantores convocados a interpretar as canções foram os
novatos Wilson Simonal, Claudete Soares e Geraldo Vandré além dos já consagrados Agnaldo
Rayol, Altemar Dutra, Cauby Peixoto, Elizeth Cardoso, entre outros.
O patrocínio deste primeiro festival de música da Excelsior foi proposto à Rhodia, um
conglomerado de origem francesa da indústria química. O diretor de marketing da divisão têxtil
da Rhodia, a Rhodiaceta, era Lívio Rangan, que tratou logo de deixar seus traços no evento. Tal
como ocorreu na I Festa da Música Popular Brasileira, o festival de música não seria a única
atração da festa, que contaria com desfiles e outras novidades. A idéia, era dar um maior realce
a música dentro das festividades equiparando-a em importância com os desfiles, promovendo,
assim, a participação de músicos, cantores e dançarinos.
I Festival Nacional de Música Popular Brasileira foi o nome dado ao evento, que contou
com 12 músicas inéditas. Os prêmios somavam um total de 21 milhões de cruzeiros, divididos
proporcionalmente entre os 5 primeiros colocados. Solano Ribeiro da TV Excelsior e Lívio
Rangan da Rhodia não concordavam com a linha que o festival deveria seguir. Quando a
intérprete Elis Regina conquistou o público e os jurados com uma interpretação nada
convencional, provocou um certo desconforto em Lívio que acreditava que a música mais de
17
acordo com a linha do patrocinador7 era Rio do Meu Amor, uma verdadeira Ode à cidade.
Houve três eliminatórias e, em cada uma delas, o nível das canções se elevavam. A favorita do
público e jurados era Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, defendida por Elis Regina.
Segundo Zuza Homem de Mello :
Arrastão nascera numa festa na casa dos Caymmi, quando se cantava a
terceira parte da História de Pescadores, o trecho denominado ‘temporal’. Ao
improvisar um contra canto para o nome de cada um dos pescadores (Pedro,
Chico, Lino e Zeca), Edu percebeu que estava nascendo uma música sob a
inspiração de Dorival Caymmi. Guardou a idéia e completou a música depois,
mostrando a Vinícius quando este voltou de uma viagem. (MELLO, 2003:67)
Grifo nosso.
Arrastão foi um marco para a música popular brasileira, um divisor de águas. Ainda
segundo Zuza, “não era uma ruptura com a bossa nova, nem uma corrente contrária, e sim uma
decorrência da estrutura harmônica da Bossa Nova”(TINHORÃO, 1978:221-222). Surgiu até
mesmo uma nova sigla para designar esse novo formato de música MPB, para que esse
momento característico não ficasse diluído como sendo parte de toda a música brasileira de
cunho popular, MMPB (Moderna Música Popular Brasileira). Assim, alguns críticos como
Augusto de Campos e Walnice Pereira Galvão utilizavam essa expressão para deixar evidente
que tratava-se de um estilo dentro da música popular brasileira.
Essa nova concepção se deve em muito ao jeito único de Elis Regina de interpretar, com
muito movimento (principalmente com os braços, chegando a lembrar uma hélice, rendendolhe o apelido Hélice Regina) e outros elementos como a desdobrada, criando assim um outro
enfoque à música popular brasileira até então limitada ao modelo banquinho e violão. Esses
expedientes foram tão importantes que passaram a determinar o modelo das músicas de
festival.
A nova música popular brasileira, aclamada nos festivais “tinha por modelo a temática
como uma mensagem, como na letra de Vinícius; a melodia contagiante, como na música de
Edu Lobo; o arranjo peculiar, que levanta a platéia, e a interpretação épica de Elis Regina”
7
A empresa patrocinadora entre suas inúmeras atividades, tinha a linha têxtil, apresentada a alta sociedade em seus
desfiles, portanto não interessava a ela músicas que submetessem o funcionamento da sociedade a uma análise
mais cuidadosa como era a tônica dos festivais de MPB.
18
(MELLO, 2003:73). Esse foi também o ponto de partida da música na televisão e do programas
de auditório, um espaço até então inexistente.
Com os festivais nascia uma nova torcida no Brasil, a exemplo do futebol havia a
disputa e a empolgação, cantores e compositores no lugar de times, palcos no lugar de estádios.
Foi a primeira vez que o público que estava em casa teve a oportunidade de avaliar as canções,
opinar e torcer, influenciados ou não pela opinião das platéias. Esse simples ato representou na
época a liberdade de avaliar cada canção e nela cada idéia, cada grito por liberdade. Fato que
significou muito para uma época e num país em que a liberdade de pensar vinha sendo tolhida
pouco a pouco há quase um ano.
Em 31 de março de 1964 o Golpe Militar instaurou-se no Brasil. O presidente João
Goulart com suas reformas comunistas foi o estopim. Os militares começaram, então, a
promulgar decretos, chamados de AI, Atos Institucionais, que tinham o objetivo de limitar o
poder do congresso, embora este se mantivesse funcionando, e reprimir a liberdade de
expressão da população e principalmente da classe artística, intensificado no AI 5.
A situação da TV Excelsior com a instauração da Ditadura ficou complicada, uma vez
que as posições assumidas por Mario Wallace Simonsen, o cabeça do grupo Excelsior, a favor
de João Goulart passaram a ser alvo dos militares. Após sua morte em 1965, em Paris,
Wallace, teve seus bens seqüestrados, fato que desencadeou um longo e irreversível processo
de perdas, como os salários atrasados, as ações de despejo, o controle das ações da TV
Excelsior Rio pelo Estado, cassações, mudanças de diretoria e outras ações que levariam a
emissora a sua definitiva derrocada em abril de 1970.
Para o II Festival promovido pela TV Excelsior, em 1966, a Rhódia manteve-se como
patrocinadora, aliando-se a revista Manchete e ao jornal Folha de São Paulo. As eliminatórias
ocorreram em cidades diferentes, Guarujá, Porto Alegre, Recife, Ouro Preto e Rio de Janeiro,
segundo exigência da Rhodia que fazia turnês pelo Brasil e aproveitava os festivais de música
para agregar valor a seus eventos de moda, contrariando a idéia inicial de Solano Ribeiro, que,
com a movimentação dos festivais pretendia promover a vida cultural local. Diante desse
impasse Solano Ribeiro pediu demissão e Roberto Palmari, homem de confiança de Livio
Rangan, assumiu a organização do festival.
Essa mudança na direção do festival é
historicamente importante, pois explica as mudanças no enfoque do Festival (MELLO, 2003:
76).
19
Quando a TV Record anunciou no mesmo ano, que promoveria o II Festival da Música
Popular Brasileira muitos pensaram que seria o segundo pelo fato da TV Excelsior já ter feito
em 1965, contudo, poucos se lembravam que seis anos antes houvera o primeiro, promovido
pela Record, no Guarujá. O ponto em comum entre o Festival da Excelsior e o da Record que
faria a diferença era o produtor, Solano Ribeiro, o homem que segundo Zuza Homem de Mello,
sabia fazer Festivais.
O compositor Geraldo Vandré teve a primeira vitória em Festivais de sua carreira com a
composição Porta Estandarte, interpretada por Airto Moreira e Tuca, campeã do II Festival
da Excelsior. Foi com essa composição que Vandré iniciou sua caminhada para se tornar, anos
mais tarde, um dos grandes mitos de sua geração na música popular brasileira. Caetano Veloso
conseguiu a Quinta colocação com a música Boa Palavra, Baden Powell e Lula Freire ficaram
com o quarto lugar com a música Cidade Vazia, em terceiro lugar Adilson de Godoy e Luiz
Roberto com a música Chora Céu, em segundo lugar ficaram Vera Brasil e Maricene Costa
com a música Inaê, Geraldo Vandré e Fernando Lona foram os primeiros colocados com a
música Porta Estandarde. A música que levou Vandré e Fernando Lona à vitória possuía uma
importante característica em comum com outra música vencedora, Arrastão.
O ano de 1966 abarcou também outras manifestações musicais além daquelas
demonstradas nos festivais, tratava-se da Jovem Guarda. Em termos de audiência, “o pessoal
da Bossa Nova perdia espaço para a garotada do iê-iê-iê”(MELLO: 2003, 92).
A guerra estava declarada, a TV Excelsior atacava com programas promovendo a
Jovem Guarda, com participações de astros do estilo como Os Vips, Demetrius, Marcos
Roberto, e programas como Juventude e ternura. A Tupi também apresentava aos sábados um
programa intitulado, Na onda do iê-iê-iê, com participação de ídolos internacionais como Neil
Sedaka, Rita Pavone e outros. A Record contra-atacava, com o intuito de salvar a moderna
música popular brasileira desse tal iê-iê-iê. Zuza Homem de Mello retrata a forma e proporção
com que a Jovem Guarda conquistou parcela significativa da juventude brasileira:
Naquele verão de 1966, ao mesmo tempo que Elis passeava pelo Velho
Mundo, a audiência da Jovem Guarda crescia assustadoramente, alavancada
pelo novo sucesso de Roberto Carlos, Quero Que Vá Tudo Pro Inferno. A
garotada iconoclasta superlotava o Teatro Record nas tardes de Domingo,
identificando-se com os cabeludos de roupas extravagantes, acolhendo o
alheamento como forma de revolta contra as preocupações e formalidades,
adotando as novas gírias como a linguagem de sua preferência e entregando-se
20
à espontaneidade ingênua das letras e à alegria do ritmo para cantar e dançar
livremente. O iê-iê-iê começava a dominar a bossa. (MELLO, 2003:118)
O governo militar começou a prestar maior atenção aos espetáculos de música engajada
tipo Opinião8,
por se tratarem de um espaço privilegiado de formação de opinião e
engajamento político. Os novos ídolos da música popular passaram a ser o foco. Nara Leão, por
ter assumido suas posturas publicamente, depois de ter sido publicado no jornal Diário de
Notícias, em manchete: “Nara é de opinião: esse exército não vale nada”, correu o risco de ser
presa. (MELLO, 2003:121)
Geraldo Vandré, que já tinha a experiência de vencer um Festival, sabia que tipo de
música ia dar certo. Zuza Homem de Mello narra um vislumbre sobre a música vencedora do II
Festival da Record:
Geraldo Vandré, que tinha um Fusquinha, saiu com Alberto Helena e o
produtor Luis Vergueiro. De repente, parou o carro e disse: “eu vou cantar
para vocês a música que vai ganhar o Festival. É a maior revolução, porque é
o sertanejo moderno com Guimarães Rosa; vocês não tem a menor idéia do
que vai ser”. E cantou Disparada. Os dois ficaram se olhando abismados. Foi
uma porrada, era uma música revolucionária, coisa de um visionário.
(MELLO, 2003:125-126)
A música Disparada foi cantada por Jair Rodrigues acompanhado pelo Trio Marayá e
pelo Trio Novo, com uma estranha instrumentação: viola caipira, uma queixada de burro e
violão. A música provocou uma vibração generalizada, francamente superior a qualquer outra
concorrente. A música tinha como temática a esperança num dia melhor, num mundo melhor,
segundo Ramom Casas Vilarino – o dia que virá (VILARINO, 1999:56).
Prepare o seu coração
Pr ’as coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar
Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar
A morte, o destino, tudo
Estava fora de lugar
8
O LP Opinião de Nara, se por um lado rachou a Bossa Nova, por outro deu origem ao espetáculo Opinião, escrito
por Oduvaldo Viana Filho, Armando Costa e Paulo Pontes e dirigido por Augusto Boal. Esse espetáculo mescla o
musical com o teatro, constituindo-se num primeiro ato de resistência ao golpe militar.
21
Eu vivo pra consertar
Na boiada já fui boi
Mas um dia me montei
Não por um motivo meu
Ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse
Porém por necessidade
Do dono de uma boiada
Cujo vaqueiro morreu
Boiadeiro muito tempo
Laço firme, braço forte
Muito gado, muita gente
Pela vida segurei
Seguia como num sonho
E boiadeiro era um rei
Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando
As visões se clareando
Até que um dia acordei
Então não pude seguir
Valente em lugar-tenente
Como dono de gado e gente
Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente
Se você não concordar
Não posso me desculpar
Não canto pra enganar
Vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado
Vou cantar noutro lugar...
O autor descreve o trabalhador sertanejo tratado como gado e um tanto passivo diante
de sua situação, pois até quando muda de posição não é por vontade própria e sim por
necessidade do sistema. Mesmo aqueles com posições mais bem situadas na hierarquia social
precisam agir conforme o sistema impõe, mesmo que ilusoriamente se considerem donos de
seus destinos.
Há donos e bois. Temos uma sociedade dividida em classes. Acordar, para tal
classe submissa, é tomar as rédeas do seu destino, assumir a vontade própria.
É interessante o destaque da música, em que se lembra que o autor não canta
para enganar, e sim sua música é uma tomada de posição diante de uma
22
realidade que provoca interpretações opostas, desde os que com ela
convergem, até aqueles que não a toleram. Daí o lembrete, pois se o ouvinte
não concordar com sua posição, recolhesse a viola e busca-se outro lugar para
cantá-la. (VILARINO, 1999:28)
A outra finalista, concorrente de Disparada, foi a música A Banda, que revivia a pureza
de espírito das cidades do interior nos anos 30. A intérprete foi Nara Leão, que cantou à frente
de uma bandinha de coreto do interior, com tuba e bumbo, num arranjo de Geny Marcondes. A
voz de Nara ficou encoberta pelo som da banda, não impressionou tanto quanto Disparada,
embora tivesse sido a mais aplaudida. O conteúdo segundo Ramon Casas Vilarino:
É um tanto desalentador, não apontando o dia que virá como redenção para o
presente, mas anotando naquele momento uma possibilidade de esquecer a
dor, uma oportunidade fugaz, mas é na passagem da banda que se anuncia um
mal-estar presente.(VILARINO, 1999:57)
A música acena para a idéia de que através da própria MPB, seria feita a catarse do
momento politicamente difícil que o povo brasileiro passava. O breve momento de passagem
de uma banda de música, trazia à tona todos os problemas da vida cotidiana, proporcionando
uma tomada de posição frente a realidade.
Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O homem sério que contava dinheiro, parou
O faroleiro que contava vantagem, parou
A namorada que contava as estrelas, parou
Pra ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada, sorriu
A rosa triste que vivia fechada, se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor...
(...)
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
23
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
E cada qual no seu canto
E em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor.
Nessa final, a mobilização nacional em torno da música popular foi tanta que pode ser
comparada as discussões causadas pela final da copa do mundo, em todos os cantos as pessoas
discutiam sobre as qualidades das duas finalistas e apostavam em suas prediletas. O tema
ganhou amplitude nacional. O povo estava pela primeira vez se envolvendo verdadeiramente
com assuntos pertinentes à cultura musical do país e vendo que Música Popular Brasileira era
coisa séria. “Acontecia na rua uma discussão sobre estética, o gari e o jornaleiro argumentavam
sobre o que era mais bonito, mais antigo, mais moderno, qual letra ou melodia era melhor”
(MELLO, 2003:129).
Nas palavras de Zuza Homem de Mello, “com essas duas músicas, a bucólica A Banda
e a telúrica Disparada, o II festival da TV Record mostrou para os brasileiros de todas classes
sociais a grandeza da sua música popular, um bem dotado do mais alto valor artístico do qual
tinham por que se orgulhar”(MELLO, 2003:145).
A música A Banda, foi posteriormente gravada por Nara Leão, sua intérprete no
Festival. A música começou a tocar em todas as rádios, dando imensa vantagem ao seu
compositor Chico Buarque, até então sem nenhum grande sucesso reconhecido.
O ano de 1966 foi um ano musicalmente agitado, foi também neste ano que Augusto
Marzagão, o “discreto e ultra bem informado personagem dos bastidores da vida política
brasileira”,(MELLO, 2003:148) pediu a Negrão de Lima, eleito Governador do Estado da
Guanabara com sua ajuda na campanha de Marketing, que gostaria de produzir um Festival de
música, justificando que poderia ser benéfico à juventude brasileira. Assim gerou-se o I FICFestival Internacional da Canção.
A novidade do FIC foi reunir dois festivais num só. Uma fase nacional e outra
internacional. O Festival foi realizado no Maracanãzinho, um estádio com capacidade para
13.163 espectadores, com péssima qualidade de som. As músicas defendidas no festival, de
modo geral, eram músicas que na opinião do público e da critica, principalmente os
estrangeiros, podiam ser consideradas tristes, sem o vigor dos festivais anteriores. Registrou-se
24
inclusive a participação de uma composição chamada Canto Triste, um pressentimento do
compositor sobre a nova aura que pairaria sobre os festivais.
Um dos grandes pontos positivos, oriundos desse festival foi o amadurecimento do
público, mais crítico e participativo. Devido a essa participação verdadeira do público, a essa
tomada de posição, em pleno Maracanãzinho, a música que mais agradou não foi nenhuma das
concorrentes do FIC e sim uma vencedora do Festival da Record. Após serem proclamadas as
vencedoras, Saveiros em primeiro lugar, o público gritou pela Banda e Chico Buarque teve que
emprestar um violão e subir ao palco.
A música Saveiros foi designada para representar o Brasil na fase internacional e
perdeu para a estrangeira Frag den wind de Helmut Zacharias e Carl Schaubler.
Os festivais não estavam movimentando apenas a opinião pública mas também a
economia, “como se deu com a bossa nova, naqueles meses de outubro e novembro de 1966, as
gravadoras brasileiras estavam descobrindo uma nova área de atuação, a dos discos de festival,
que atingiram picos a partir desse ano” (MELLO, 2003:170).
Com os festivais que já haviam ocorrido, um novo perfil na Música Popular Brasileira
havia se delineado, e não é de se admirar que tenha sido neste festival, o I FIC, que o público
tenha inaugurado as vaias, pois nenhuma das concorrentes apresentava o perfil das já
conhecidas como músicas de Festival, mesmo possuindo algumas das canções de indiscutível
qualidade técnica. Foi o primeiro festival que não contou com músicas características de
festival.
Antes do III Festival da TV Record, 1967, a atividade de compositor era ignorada do
grande público, ficavam conhecidas a canção e o intérprete. A música ganhava ou perdia pela
atuação do intérprete. Os autores começaram a perceber que seus ganhos com direitos autorais
eram bem menores do que os oriundos da simples exposição após o sucesso da música. Foi
então que vários compositores decidiram subir ao palco defender suas próprias canções. Nas
palavras de Zuza Homem de Mello:
A nata da música popular, de Pixinguinha ao novato Martinho da Vila, estava
concorrendo. Era um verdadeiro Grande Prêmio, com 36 canções alinhando-se
na fita de partida, pilotadas pela fina flor dos intérpretes brasileiros que, pela
primeira vez, corriam lado a lado com compositores, defendendo sua obra.
(MELLO, 2003:184)
25
Para o público dos festivais, qualquer símbolo que lembrasse o Rock, ritmo importado e
apelidado de iê-iê-iê, causava repúdio. Ronnie Von, estreante em festivais, e que defendia essa
corrente da música, ao entrar no palco do III Festival da Record, foi recebido com rosas por
meia dúzia de fãs e estrepitosas vaias da grande maioria do público presente. Gilberto Gil que
nessa época já via o Rock de uma maneira mais cautelosa, ficou inconformado com essa
manifestação do público e não fosse o apelo de amigos, Nana e Dori Caymi, teria desistido de
concorrer no festival. Gil e Caetano estavam boquiabertos desde que ouviram o disco Sgt.
Peppers Lonely Hearts Club Band, que provocou nos dois uma leitura diferente do Rock.
Perceberam que havia uma música inteligente no estilo que estava vindo de fora.
Em 1967, Solano Ribeiro convidou Caetano Veloso para ouvir um disco. O disco era
Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band. Caetano ficou bastante impressionado com o LP e o
mostrou a Tom Zé. Gilberto Gil também ficara entusiasmado com o disco, percebendo que
havia algo de muito inteligente na música que vinha de fora. Gil e Caetano consideravam o iêiê-iê banal, mas percebiam que aquele disco mostrava uma nova maneira de incorporá-lo a
música popular brasileira.
Com os próprios compositores subindo aos palcos concorrendo com profissionais da
voz, a disputa alcançava um alto nível de competitividade. Foi quando as gravadoras tiveram a
idéia de lançar um LP com as finalistas de cada etapa do festival nos dias seguintes a cada
eliminatória. Foi um golpe de mestre.
A organização dos Festivais estava sempre na corda bamba, tinha a firme
intencionalidade de ser o palco das manifestações de intérpretes que usavam a música como
instrumento político, de desvelamento da realidade a qual atravessava o país, mas por outro
lado, tem estreita relação com a direita do país, já que a ditadura sempre exerceu rigoroso
controle das mensagens transmitidas nas músicas dos festivais. De acordo com Zuza Homem
de Mello (2003), Solano Ribeiro demonstrava esse cuidado até na escolha dos jurados,
equilibrando entre membros representantes da esquerda e da direita. Nem sempre esse
convencimento se dava com facilidade.
A Censura fazia um trabalho rigoroso junto as composições concorrentes. Todas as
músicas eram enviadas para a apreciação da Polícia Federal, que depois de examiná-las,
convocava os responsáveis pela organização do festival e indicavam frases que continham
26
duplo sentido ou conteúdo marcadamente de esquerda. Os responsáveis, então, procuravam os
músicos e tentavam convencê-los a modificar a música.
O III Festival da Record também foi o responsável pela institucionalização da vaia. Os
cantores e compositores ficavam aterrorizados com a possibilidade de serem vaiados. O público
se organizava em pequenos grupos dispostos a eleger uma canção e vaiar qualquer outra
independente da qualidade que apresentasse. Os cantores eram vaiados antes mesmo de
iniciarem as apresentações. Uma verdadeira injustiça.
Caetano Veloso concorreu com a música Alegria, Alegria, uma letra de empatia
instantânea com a juventude que assistia o Festival, fosse da linha esquerdista ou do iê-iê-iê. A
letra tratava da aversão às convenções. Segundo Décio Pignatari, “Alegria, alegria é uma letracâmara-na-mão” (VILARINO, 1999:44) colhendo a realidade casual por entre fotos e nomes:
Caminhando contra o vento
Sem lenço, sem documento
No sol de quase dezembro, eu vou
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas, eu vou
Em caras de presidentes
Em grande beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bombas e Brigitte Bardot
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quê lê tanta notícia, eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou, por que não? Por que não?...
(...)
O sol é tão bonito, eu vou
Em lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou, por que não? Por que não?
Chico Buarque concorreu com Roda Viva, que levou ao delírio mesmo aqueles que não
torciam pela canção. Segundo Zuza Homem de Mello, o sucesso da música em grande parte se
deveu ao arranjo, um dos mais perfeitos da Era dos Festivais. Na euforia do impacto causado
27
pela música, poucos foram os que compreenderam o real significado da canção, que as
mocinhas cariocas cantavam em coro, apaixonadas. Falava da fatalidade com que a história
política interrompeu os sonhos dos brasileiros. De acordo com Ramon Casas Vilarino, “nessa
composição, o destino e o livre arbítrio, o tempo como agente inibidor da tomada de ações, a
saudade simbolizando a memória, e a repressão são algumas questões presentes”. (VILARINO,
1999:62)
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá...
A música de Chico Buarque foi contemplada com o terceiro lugar e foi música-tema de
uma peça homônima, lembrando os tempos do Teatro Arena, em que música e teatro subiam
juntos ao palco.
28
Edu Lobo venceu o Festival com a música Ponteio, que ofereceu ao país mais um
bordão contra a ditadura militar. A música também tocava na questão do dia que virá, aquele
no qual o momento será mais propício para se cantar:
Era um, era dois, era cem
Era o mundo chegando e ninguém
Que soubesse que eu sou violeiro
Que me desse um amor ou dinheiro
Era um, era dois, era cem
Vieram pra me perguntar
Ò você, de onde vai, de onde vem
Diga logo o que tem pra contar
Parado no meio do mundo
Senti chegar meu momento
Olhei pro mundo e nem via
Nem sombra, nem sol, nem vento
Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar...
(...)
Certo dia que sei por inteiro
Eu espero não vá demorar
Este dia estou certo que vem
Digo logo que vim pra buscar
Correndo no meio do mundo
Não deixo a viola de lado
Vou ver o tempo mudado
E um novo lugar pra cantar
A platéia dos festivais era formada em sua maioria pela juventude estudantil, que estava
sintonizada com aquele movimento musical que se distinguia da Jovem Guarda, tanto no
conteúdo quanto na forma, pois falava e tinha por obrigação falar da realidade brasileira. As
músicas tinham nos festivais, que unir beleza estética e posicionamento político. Era como se
fosse uma prestação de contas à população brasileira, pois a grande maioria dos músicos
envolvidos nos festivais era oriunda de Universidades, portanto, tiveram acesso a educação
formal, e tinham como obrigação, através de sua música, “dar voz ao povo”, principalmente aos
excluídos. Evidentemente, os compositores perceberam que, em se fazendo porta vozes do
povo, eram por ele admirados e mais facilmente chegariam próximos a vitória, uma vez que a
premiação além de levá-los a popularidade, representava boas quantias em dinheiro.
Os festivais juntaram públicos diferentes que antes se limitavam a aplaudir suas canções
prediletas, mas agora, neste festival de 1967, iam além, queriam prejudicar as concorrentes,
29
como torcedores de times de futebol. Daí as vaias, os protestos, as perturbações e os aplausos
das torcidas que se organizavam. As músicas de festival passam a ter como bordão obrigatório,
o protesto contra a política econômica e as conseqüentes mazelas causadas pela má distribuição
de renda no país, principalmente com a instauração da ditadura militar. Os compositores, por
sua vez, perceberam esse tipo de reação e procuraram criar músicas que contivessem essas
mensagens e é nesse ponto que o amadurecimento da platéia se tornou imprescindível, pois a
censura estava com as antenas ligadas para detectar e cortar qualquer menção ao sistema
político. A canção tinha de ser inocente aos olhos da censura e consistente e emblemática aos
olhos do público.
Compositores prediletos à parte, a negação a qualquer manifestação da Jovem Guarda
era ponto comum nas platéias dos Festivais de MPB. A grande maioria vaiava estrepitosamente
contra o iê-iê-iê e seus símbolos, cantores e guitarras. Os participantes que representavam a
Jovem Guarda não se surpreendiam com tais manifestações, sabiam que os festivais era um
reduto da MPB, mas mesmo assim levavam suas canções aos festivais e consigo suas torcidas
organizadas.
No mesmo dia da final do Festival da TV Record, a TV Globo transmitia as segundas
eliminatórias do II FIC, dando aos telespectadores duas programações diferentes da música
popular brasileira. No primeiro, artistas já consagrados, como Chico Buarque, Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Edu Lobo, Elis Regina, Jair Rodrigues, o MPB e Geraldo Vandré no segundo,
nenhum grande nome, mas com uma grande revelação: Milton Nascimento.
O palco deste II FIC e de todos os outros que foram realizados a seguir continuou sendo
o Maracanãzinho, terror de todo músico, devido a péssima acústica. Mas não era só na acústica
que o II FIC e o III Festival da Record, que aconteciam concomitantemente, no Rio de Janeiro
e em São Paulo, respectivamente diferiam. A diferença já estava constituída, o status de cada
um dos eventos já estava posto, dizia-se até que os compositores da nata da música popular
brasileira como Edu Lobo, Chico Buarque Gil, Vandré, entre outros, guardavam suas melhores
composições para apresentá-las como concorrentes no Festival da Record. Ainda segundo essas
diferenças, Zuza Homem de Mello afirma:
Se algum daqueles compositores, maestros e arranjadores, a fina flor da
música americana reunida no festivo conclave do Rio, tomasse a ponte aérea
para São Paulo, ficaria abismado com o que veria no Teatro Record. Pensaria
30
estar em outro país. Talvez nem entendesse o que acontecia, mas seguramente
ficaria muito mais próximo do estado de ebulição que iria mandar para os ares
a tampa que sufocava os pensamentos da juventude no mundo. (MELLO,
2003:232)
A música ouvida e cantada em São Paulo era a verdadeira “expressão sonora do
inconformismo, da verbalização do inconsciente, da política inserida na arte e até da
antropofágica redescoberta de valores nacionais, plataforma do Tropicalismo”.(MELLO,
2003:250)
A direção da TV Record adotava a política da boa vizinhança com elementos da
crônica do Rio, numa tentativa de minimizar as diferenças de enfoque entre as duas cidades.
Três das figuras da noite carioca, Sergio Porto, Lúcio Rangel e Sergio Cabral argumentavam
que o tipo de música apresentado nos festivais forçava a empolgação mas que não expressava
verdadeiramente a música brasileira de todo dia. Dessas e outras indagações surgiu a idéia de
criar um festival só de Samba, já que no modelo atual o samba era praticamente discriminado e
quando participava ocupava sempre posições sem muito destaque. Seria o festival do ritmo
brasileiro por excelência, o Samba. Solano Ribeiro assumiu o comando do evento que se
chamou I Bienal do Samba. Ao invés dos participantes se inscreverem, eram convidados, e para
isso foi formada uma comissão de 15 pessoas. A I Bienal do Samba ocorreu no Teatro Record.
Na bienal, ocorreu o encontro do passado com o futuro. O Samba de Donga abria alas para a
mais recente promessa da música brasileira, Milton Nascimento, que na ocasião interpretou
uma música um tanto inexpressiva, Tião, Braço forte.
Em 1968 todas as crenças, revoltas e anseios de grande parte da juventude brasileira
entraram em ebulição. Revoltaram-se contra o sistema capitalista, que ao longo da história da
humanidade só produziu a desumanização e, naquele momento, não foi capaz de evitar a guerra
no Vietnã. Guiados pela teoria Marxista, um tanto romantizada, acreditavam que o sistema
somente poderia ceder pela violência. No Brasil, a face mais violenta desse sistema era o
Governo Militar, e esse era o alvo da revolta da juventude. A falta de sintonia que antes havia
em relação a música entre Rio e São Paulo não existia, quando o assunto era a luta contra o
sistema, inclusive capitais internacionais, Paris, em especial, estavam nesse movimento ao
mesmo tempo. No Rio de Janeiro as ruas foram transformando-se em praça de guerra, os
confrontos entre tropas de choque e estudantes tornaram-se cada vez mais freqüentes,
armamento pesado e carros blindados entram em cena contra os cassetetes, pedras e paus dos
31
estudantes. Os artistas e a classe religiosa também aderiram a esse movimento contra o sistema
capitalista e seus horrores, no dia 26 de junho realizaram a passeata dos Cem Mil, com
participação de Chico Buarque, Gil, Caetano e Milton. O III FIC que se gestaria neste ano
estava alheio a todo esse movimento da história.
Os conflitos avançam no Brasil e no mundo. No fim de agosto a Checoslováquia é
invadida pelas tropas comunistas da União Soviética. Simultaneamente, em São Paulo há uma
nova passeata, culminando em 500 estudantes detidos. No dia 29 de agosto, a Universidade de
Brasília é invadida por soldados e agentes do DOPS, estudantes são feridos. A atitude violenta
gera veemente protesto do deputado Federal Marcio Moreira Alves, ele propõe que se boicotem
as comemorações da Independência em repúdio às Forças Armadas. Sendo a música popular
um privilegiado meio de representação da consciência política estudantil e da sensibilidade
artística do país, não poderia ignorar as tensões sócio-políticas da atualidade. Os Festivais se
constituiriam no ambiente ideal.
O arranjador Rogério Duprat buscava agora em seus arranjos acordes dissonantes,
ruídos e sons não muito musicais, como o conseguido para a música Caminhante Noturno, dos
Mutantes, para demonstrar a desarmonia da vida real.
Caetano Veloso foi o responsável pela maior polêmica da noite, com sua composição É
proibido Proibir. Apresentava uma cabeleira que lembrava a do roqueiro Jimi Hendrix, uma
camisa de plástico verde, colete prateado, colares de fios elétricos e correntes metálicas com
dentes de animais dependurados: a própria antibeleza. O objetivo pretendido por Caetano era
abalar
as
estruturas
tão
convencionais
da
música
popular
brasileira
cutucando
escandalosamente a platéia. Caetano que era tido como ídolo da juventude mais esclarecido,
era por ela mesma, ao final da apresentação vaiado calorosamente.
A juventude brasileira não compreendeu o intuito da Tropicália, corporificada por
Caetano, que era abalar padrões, promover o mal estar para mostrar que se querem uma
revolução ela deve passar por todos os setores, inclusive pela própria estética da música.
Caetano pretendia mudanças não só no conteúdo das canções, mas criar possibilidades de
formas... Para a Tropicália isso era a liberdade. O público viu no uso de guitarras elétricas uma
afronta a brasilidade e não uma possibilidade de incorporação de novos elementos a própria
música brasileira. Para a juventude brasileira daquele momento, que freqüentava festivais e
participava de movimentos estudantis, apenas o talento não era suficiente, era preciso tê-lo
32
acompanhado de uma posição política, como Chico Buarque e Geraldo Vandré demonstravam
em suas músicas. Caetano e Gil não assumiam.
Em recente entrevista ao Jornal Folha da Bahia, Carlos Lyra fala sobre a Tropicália:
Gil e Caetano ouviam meus discos o tempo inteiro e se dizem herdeiros da
Bossa Nova. A Tropicália era o lixo da Bossa Nova, eles mesmos diziam isso.
Foi uma tentativa muito válida e interessante de dar um passo à frente, como
vai ter que ter sempre. A intenção era maravilhosa, mas não chegou a ser o
que eles queriam. Qual é a filosofia, o que é a música? Ninguém sabe o que
ficou, a Bossa Nova é clara. Sobraram as cabeças de Caetano e Gil. A
Tropicália não foi definitiva e aceito que me convençam do contrário. Já a
nossa perda de visibilidade foi natural. Com a ditadura, acabou a cultura que
era limpa e transparente. Desde o golpe que a cultura brasileira foi lá pra baixo
e lá está até hoje. A Tropicália era nova, revolucionária, sem ser tão agressiva
politicamente. Mexia menos com a ditadura que com os valores estéticos.
Tudo era mais interessante para a mídia do que a postura contra a
ditadura.(FOLHA DA BAHIA, 18/08/2005)
Durante o período inicial do Governo de Costa e Silva, da linha dura que sucedeu
Castelo Branco, inicia-se outra etapa da vida política do país, que vai desde a data da posse,
março de 1967, e atravessa quase todo o ano de 1968. No início do Governo de Costa e Silva
há uma interlocução do presidente com o Congresso, e é justamente nesse momento que surge a
face contestatória da população brasileira, um período de grande mobilização da sociedade,
que vai para as ruas. É o momento das passeatas, manifestações populares, estudantis e
artísticas, e, como por conseqüência, é o período dos “maiores festivais da era dos festivais”.
(MELLO, 2003:289)
Para concorrer ao III FIC, Festival Internacional da Canção, da TV Globo, Antônio
Carlos Jobim compôs a música Sabiá, que foi interpretada por Cynara e Cybele, ou melhor, que
intencionava ser interpretada, porque essa apresentação acabou não acontecendo devido as
vaias ensurdecedoras e impiedosas do público que cantou poucos minutos antes em coro de
aproximadamente 20 mil vozes a música, Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo
Vandré. O público tornou-se com as vaias nos festivais, mais participativo, mas também mais
injusto, pois não se dignou ao menos a ouvir a bela composição, de simplicidade aparente mas
bastante elaborada, e fez Tom quase pedir desculpas por ter composto mais uma melodia
destinada a ser um clássico da música de seu país. Vandré falou o que as multidões queriam e
precisavam ouvir naquele momento e o público respondeu. Segundo Ramon Casas Vilarino:
33
O público do festival preteriu a poesia e a denúncia sublime de Sabiá em favor
daquela que anunciava explicitamente um refrão experimentado naquele ano
de 1968, sobretudo a partir de maio, com as barricadas do Quartier Latin ou
com a invasão da Universidade de Sorbone, em Paris. 1968 é o momento em
que emerge uma nova cultura política, menos centralizada sobre o Estado e
mais sobre a luta contra todas as formas de autoridade e repressão que se
exercem sobre o indivíduo, nos aspectos de sua vida sociocultural.
(VILARINO, 1999:81)
Geraldo Vandré passou a ser tão perseguido pelos setores radicais da repressão militar
que foi obrigado a se esconder. Foi maquiado, e rinsado para envelhecer, conseguiu fotografar
para conseguir um passaporte e foi para o Chile. Aqui, sua música, intitulada pelo povo de
caminhando, tornou-se hino contra a ditadura militar:
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer
Pelos campos a fome
Em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Inda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão...
Boni, o diretor da Rede Globo, não imaginava que a música fosse ter tamanha
repercussão. Um setor do Exército via até mesmo influências maoístas na música, tendo o
General Luiz de França Oliveira, Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, pedido a
proibição da música sob a argumentação de que a música continha “letra subversiva e cadência
musical do tipo Mao Tsé Tung, que fatalmente servirá de hino para as manifestações de rua”.
(CONCEIÇÃO,1968:24) A música acabou sendo proibida por 20 anos.
Tom Jobim e seu companheiro de composição em Sabiá, conseguiram a vitória da fase
nacional do III FIC, mesmo sem a devida consagração popular. Tom Jobim inscreveu a canção
para não ter de participar do júri. Não tinha expectativas de vencer o festival e até apostou com
34
o amigo Vinícius de Moraes, e documentou: se a canção vencesse, o poeta ganharia uma caixa
de uísque Johnnie Walker Black Label; se perdesse Tom é quem ganharia”. (MELLO,
2003:295) Tom nunca imaginaria que seria o vencedor, inclusive da fase internacional e ao
mesmo tempo que desagradaria tanto o público. A canção:
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá, e ainda é lá
Que eu hei de ouvir
Cantar uma sabiá
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há...
(...)
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
E é pra ficar
Sei que o amor existe
Eu não sou mais triste
E que a nova vida
Já vai chegar
E que a solidão vai se acabar.
O ano de 1968 além da I Bienal do Samba e do III FIC gestou também o IV Festival da
TV Record e os LP´s marco da história da Tropicália. O primeiro dos três álbuns célebres do
Tropicalismo era um álbum solo de Caetano Veloso, o segundo da trilogia é de Gilberto Gil
que também tinha como título o nome do autor, o terceiro foi intitulado Tropicália ou Panis et
Circencis (sic), uma composição coletiva de Gil , Caetano, Mutantes, Gal Costa, Tom Zé e
Nara Leão, com duas faixas para cada compositor com eventuais músicas interligadas umas às
outras como no disco Sgt. Pepper’s dos Beatles. Caetano se aproximou dos poetas concretistas
como, Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos, execrados pelos acadêmicos, pois
considerava que as duas propostas tinhas semelhanças conceituais.
Esses três discos, marcos da Tropicália, e ainda A banda tropicalista de Duprat, um
outro disco pouco falado do maestro Rogério Duprat, foram a ordem do dia que antecedeu o IV
Festival da Record. Neste festival, Tom Zé, adepto da Tropicália, rouba a cena com sua
35
composição São, São Paulo meu amor, uma crítica com cara de afeto, foi recebida com ótimos
olhos pelos paulistas. O público, novamente num abuso participativo, vaia ostensivamente
diversas canções sem se dar ao luxo de ouvi-las e derruba Chico Buarque do trono dos
festivais.
Inseridos naquele contexto histórico, a classe estudantil, “supostamente politizada não
conseguiu perceber o intuito daquele movimento criado e defendido por Caetano e Gil”
(MELLO, 2003:334).
Contrário a essa afirmação, José Ramos Tinhorão entende:
[...] que os tropicalistas renunciaram a qualquer tomada de posição políticoideológica de resistência e, partindo da realidade da dominação do rock
americano (então enriquecido pela contribuição inglesa dos Beatles) e seu
moderno instrumental, acabaram chegando a tese que repetia no plano cultural
a do governo militar de 1964 no plano político-econômico.(TINHORÃO,
1998:325)
De
qualquer
forma,
esses
“porta-vozes
das
angústias
pequeno-burguesas”,
(TINHORÃO, 1998:325) confundiram até mesmo a própria ditadura, quanto mais a classe
estudantil e o público em geral. Segundo Mello (2003), foi esse o festival que inaugura a curva
descendente da parábola dos festivais.
No ano de 1969 fazer Festival de música tinha virado moda. Com o desfalque sofrido
pela música popular brasileira depois do IV da Record, a idéia foi evoluir quantitativamente.
Foram realizados o Festival Universitário da Guanabara, pela Tupi Rio, o I Festival
Universitário de Música Popular em Porto Alegre, o II Festival Fluminense da canção em
Niterói, o I Festival de Juiz de Fora, o Brasil Canta no Rio pela TV Excelsior, o II Festival
Estudantil no Teatro João Caetano, e outros mais.
Se retomar-mos a história da I Festa da Música Popular Brasileira, notaremos que esse
IV FIC nada mais é do que um retorno às origens. A Rede Globo pensou numa programação
bastante extensa, dentre os atrativos estava o festival de música. Entre os eventos da
programação estavam planejados: jantares, coquetéis, recepções e festas nos clubes mais
badalados, espetáculos em boates, feijoada e vatapá com show de passistas, passeios de lancha
e pela floresta da Tijuca, reuniões, drinks à volta da piscina, bailes de gala, enfim, uma
seqüência de programação pra inglês ver, gostar e comprar.
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Houve uma ruptura chave entre o conceito do IV FIC e os festivais realizados
anteriormente, ninguém mais imaginava, comentava e ousava fazer música com mensagem
política. A música de festival, que chegou a se delinear enquanto gênero, perde a sua fonte. A
nova idéia agora era a comunicação, e nesse assunto Wilson Simonal reinava absoluto. Nesse
novo formato de Festival, borbulhavam novos compositores como que para compensar a
debandada sofrida pela fina flor da música brasileira, que dissera adeus aos festivais como que
prevendo que a era já estava se esgotando.
A extravagância visual e as coreografias também eram esperadas como parte integrante
da interpretação do cantor. As vaias e torcidas ainda continuavam como antes. Uma das
canções que sentiu as duas sensações ao mesmo tempo, pois foi calorosamente aplaudida por
uns e intensamente vaiada por outros, foi Charles Anjo 45, com o autor Jorge Bem, de letra
crua sem métrica ou rima de espécie alguma, sendo praticamente declamada pelo autor, que
segundo Zuza Homem de Mello (2003), uma das precursoras do Rap, gênero que só
aconteceria muitos anos mais tarde.
A música de Jards Macalé e José Carlos Capinan,
Gotan City, confundiu a censura e foi liberada. Tratava-se de uma metáfora sobre o regime
militar através da cidade imaginária de Batman, “meu amor não dorme/ meu amor não sonha/
não se fala mais de amor em Gotham City/ Só serei livre se sair de Gotham City/ Agora vivo o
que vivo em Gotham City/ Mas vou fugir com meu amor de Gotham City/ a saída é a porta
principal”. Essa é a falha ao delegar a técnicos o cuidado de assuntos restritos a área musical.
Alguém com a sensibilidade um pouco mais aguçada perceberia que, substituindo Gotham City,
por Brasil, teria matado a charada.
A grande campeã do IV FIC foi Cantiga por Luciana, de Edmundo Souto e Paulinho
Tapajós, que caíra definitivamente no gosto popular. Na final internacional a finalista brasileira
Cantiga por Luciana, concorreu com Love is All, do cantor inglês Malcolm Roberts. E, numa
demonstração do quanto a democracia é perigosa, a canção que tanto havia agradado o público
na primeira fase do festival era agora vaiada estridosamente até por aqueles defensores
ferrenhos da primeira etapa. O balanço do IV FIC foi tranqüilo, um dos mais tranqüilos
festivais de uma Era. As canções eram praticamente dançantes ou românticas, nada que desse
muito trabalho a censura. A cena que o Brasil exportou ao final desse festival foi pessoas
pacíficas e felizes saindo do Maracanãzinho cantarolando Love is All, com a performance de
Wilson Simonal, ídolo da Jovem Guarda ou somente iê-iê-Iê, em mente. Em janeiro, março e
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julho de 1969 vários edifícios da TV Record pegaram fogo. Em menos de seis meses a história
da música brasileira perdeu os palcos de suas maiores conquistas. Ninguém acreditava que os
incêndios tivessem sido acidentais, mas nada pôde ser provado.
O fato é que tais acontecimentos arrefeceram os ânimos dos Machado de Carvalho,
proprietários da Record. A emissora perdeu o rumo, o time de astros ficou desfalcado e a
direção da emissora começou a apostar em programas polêmicos, como fator de resgate de
audiência. Os anunciantes também começaram a desaparecer, pois, a concorrência com a TV
Globo tornava a nova emissora bem mais atrativa, pois, com um pequeno acréscimo de valor os
anunciantes poderiam alcançar o Brasil todo.
O V Festival da Record precisou se adequar as novas exigências da emissora, precisava
ter algo novo, algum componente polêmico. Foi então que se pensou em juntar a competição de
canções com debates do tipo júri, opinando sobre cada concorrente.
O V Festival da Record, com a saída de Solano Ribeiro dando lugar a seu assistente
Marcos Rizzi, se daria da seguinte forma: as canções depois de avaliadas por um júri oficial
seriam submetidas a um tribunal formado por dois grupos debatedores adversários que,
deveriam se comportar entre o Cômico e o irônico. “O esquema montado não agradou nem a
cantores nem a compositores, apenas alongou o evento. A grande maioria das candidatas não
empolgou nem público nem corpo de jurados e o Festival nem parecia ser a evolução de
eventos tão bem prestigiados”. (MELLO, 2003:302)
O Jornal da Tarde apresentou a manchete no dia seguinte: “Responda: você já viu
festival pior do que este?” a conclusão da matéria afirmava que o festival merecia que a música
de Paulinho da Viola não fosse classificada, pois ela era boa demais. O que se ouvia nos
bastidores entre cantores e compositores era unânime: a falência dos festivais. Sinal Fechado
foi a vencedora deste festival. De acordo com Zuza Homem de Mello a canção foi uma das
mais estranhas, atraentes e hipnóticas da Era dos Festivais. Era composta por acordes
arpejados, mudanças rítmicas e letra evasiva, retratando a falta de tempo para tratar do
essencial como a manutenção da amizade, o cuidado com as pequenas coisas, enterradas pela
rotina. Talvez um último suspiro da MPB nos festivais:
Olá, como vai
Eu vou indo e você tudo bem
Tudo bem eu vou indo
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Correndo pegar meu lugar
No futuro e você
Tudo bem eu vou indo
Em busca de um sono tranqüilo
Quem sabe
Quanto tempo, pois é quanto tempo
Me perdoe a pressa...
Na opinião de Zuza, é lamentável que a TV Record que era uma emissora
essencialmente musical e tinha um telespectador encantado e envolvido com a música, tenha
fechado seu ciclo de festivais com um tão pouco expressivo:
Foi uma lástima que o quinto e último festival da Record tenha sido tão
melancólico. Em compensação, com apenas dois dos festivais anteriores, os de
1966 e 1967, a TV Record é mais lembrada na Era dos Festivais que qualquer
outra emissora de televisão brasileira. (ZUZA, 2003:366)
O governo de Costa e Silva foi sucedido pelo governo Médici, ambos amigos íntimos.
Durante o Governo de Emílio Garrastazu Médici o Brasil viveu um clima de expansão
econômica. A massa da população tinha a nítida sensação de prosperidade, período que
coincidiu inclusive com a conquista da Copa do Mundo de Futebol reafirmando a grandeza e
confiança no país. O coro cantado agora, por mais de 90 milhões de pessoas, era “Todos
juntos, vamos/ Pra frente Brasil, Brasil/ Salve a Seleção”.
A Rede Globo que já vinha expandindo sua rede desde com o crescimento nas vendas
de aparelhos de televisão domésticos, alcançando 40% das residências urbanas, em
conseqüência das facilidades do crédito pessoal, foi amplamente beneficiada. Zuza Homem de
Mello é categórico em afirmar que a Rede Globo foi beneficiada pela complacência para com o
Regime Militar. E era este o panorama que gerou e abarcou o V FIC.
Gradativamente os festivais foram se transformando, “de espaço de contestação para
uma grande janela escancarada para mostrar a felicidade do povo brasileiro”. (MELLO,
2003:368)
Isso se deve a estreita ligação entre o então governo Médici e o V FIC, o seguinte
excerto deixa clara tal ligação:
No dia seguinte à eliminatória, o reservado presidente Médici fez chegar à
organização do festival a confirmação de que iria receber os jornalistas
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visitantes para uma audiência no Palácio das Laranjeiras. A finalidade do
encontro era, segundo o Jornal do Brasil, buscar “dar aos estrangeiros uma
melhor e maior imagem do Brasil no exterior”, bem diferente da que tinham
na Europa, onde as informações sobre o país estavam muito distorcidas. Ali
estava o FIC para não deixar ninguém mentir. (MELLO, 2003:375)
A sétima candidata a se apresentar no V FIC foi Wanderléia, representante do dito iê-ieiê que em outros festivais foram banidos pela vontade popular, porém nesta apresentação foi
aclamada por torcidas organizadas. O próprio Roberto Carlos, em apresentações em Festivais
anteriores, fora completamente rejeitado, porém o momento histórico tornava-se propício a
outro tipo de canção.
A música vencedora do festival, BR 3, composta por Antônio Adolfo e interpretada por
Toni Tornado, verdadeira personificação do estilo Black power, que estava em voga no festival,
era dançante e contava com espaço para improvisos estrangeirados, do tipo, “baby, baby, só
morro na Br 3”, revirando do avesso a tônica dos primeiros festivais. Na final nacional, em que
se tornou campeão, Toni Tornado causou furor na platéia e nos jurados, fato que não se repetiu
na final internacional, uma vez que para um negro na sociedade brasileira da época, ele já havia
ido longe demais, chegando a abalar os padrões das famílias tradicionais brancas. Ele era
excêntrico, aceitável apenas por um curto período.
O mesmo constrangimento causou na elite brasileira o arranjador que pretendia dar uma
guinada na carreira estreando como cantor, Erlon Chaves, que interpretou a música, Eu também
quero Mocotó, de Jorge Bem. A gíria remetia as bem torneadas pernas da habituées. a letra era
simplista e repetitiva, mas o ritmo e a performance do intérprete animou a platéia. Para
completar a ousadia Erlon era beijado por duas louras no palco durante a apresentação, uma
verdadeira afronta para os padrões dos anos 70. Nas palavras de Zuza Homem de Mello,
plasticamente, Eu também quero mocotó e BR – 3, foram de longe as duas campeãs do V FIC,
mas um componente racista as destruiu.
Para quem ainda tinha alguma dúvida do interesse e influência da ditadura militar no V
FIC, o preconceito que se viu contra a raça negra, justamente aquela que tanto contribuiu para a
música brasileira no seu elemento de maior diferencial, o ritmo, não deixa a menor dúvida. Os
festivais eram janelas utilizadas pela ditadura para mostrar ao mundo a alegria que fazia parte
do dia-a-dia do povo brasileiro.
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Em 1971 alguns artistas que estavam exilados, como Caetano Veloso, Edu Lobo e
Carlos Lyra puderam retornar ao Brasil. Encontraram por aqui a repressão, a censura à música
e ao teatro, dentre todas as demais arbitrariedades. As melodias que podiam ser veiculadas pela
mídia tinham intensa carga nacionalista. Um dos exemplos mais emblemáticos é a composição
de Dom e Ravel, Eu te amo, Meu Brasil, elaborada com tamanho rigor científico que a música
foi cogitada como Hino Nacional oficial. Ainda segundo Zuza Homem de Mello, o V FIC foi o
mais medíocre da era dos festivais.
É justamente nesse momento de desgaste dos Festivais do Rio de Janeiro e São Paulo
que começam a pipocar festivais de música pelo interior país. Exemplo disso é a Califórnia da
Canção, de Uruguaiana no Rio Grande do Sul e o próprio FERCAPO, em Cascavel.
Gutemberg Guarabira, até então assessor da produção do VI FIC, apelou aos grandes
nomes que fizeram dos festivais grandes eventos para participarem de mais este festival e assim
tentar salvá-lo do inevitável desgaste que estes eventos estavam passando, ao menos no eixo
Rio/São Paulo. A Censura ainda representava o grande empecilho a organização de um
espetáculo genuíno, criativo e crítico. E foi justamente pela arbitrariedade dos vetos da censura
que o grupo de compositores convidados enviou a direção do FIC um comunicado renunciando
a participação dos mesmos no festival. A carta foi assinada por, Paulinho da Viola, Ruy Guerra,
Sérgio Ricardo, Tom Jobim, José Carlos Capinan, Chico Buarque, Vinícius de Moraes,
Toquinho, Marcos e Paulo César Valle, Edu Lobo e Egberto Gismonti.
A desistência dos compositores causou estrondoso alvoroço na TV Globo, que se via
obrigada a realizar o Festival sem os maiores nomes do Brasil. O festival FIC sendo utilizado
pelo governo militar como propaganda do Brasil para gringo.
Os Festivais constituíam um privilegiado veículo de propaganda de um outro Brasil, e o
Governo Militar, mesmo leigo musicalmente, já havia percebido isso. O governo Brasileiro não
gozava de muito prestígio lá fora, pelos horrores que uma ditadura militar podem causar,
portanto, através da divulgação de belas imagens de festivais com artistas cantando
alegremente e contando com a participação popular de um público animado, essa visão podia
ser revertida.
Gutemberg Guarabira trabalhava para o FIC, mas era contra essa falsa idéia do Brasil.
Decidiu então, divulgar na imprensa a informação de que seriam convidados a participar do
festival alguns nomes consagrados da música popular brasileira, e que depois de divulgada a
41
lista eles não se negariam. Na verdade, Gutemberg queria justamente a participação desse
primeiro time da música como convidados, portanto, sem passar pelo crivo da censura, para se
utilizar dos palcos do festival e da maior emissora nacional para denunciar os desmandos do
governo militar. Dessa forma, alguns dos maiores compositores brasileiros iriam dar o troco a
quem usava seu nome para uma divulgação de segundas intenções em caráter internacional. Era
mesmo uma conspiração usando a própria TV Globo, promotora do VII FIC, para um protesto
contra a censura. Funcionaria como uma pesada contrapropaganda ao que o governo fazia
através do festival internacional da canção. Assim, foi espalhado aos quatro ventos todos os
nomes do rol dos já consagrados, que praticamente na véspera do festival fizeram um abaixo
assinado explicando que não participariam do festival, causando um verdadeiro pandemônio
entre os organizadores e destruído qualquer possibilidade de sucesso do VI FIC. O festival não
pôde ser salvo, faltava matéria-prima: música.
A campeã da fase nacional foi Kyriê, inspirada nas melodias sacras do século XV e sob
a performance do Trio Ternura e arranjo de Leonardo Bruno.
O idealizador do FIC, Augusto Marzagão, desiludido com o desfecho do festival foi
para o México em 1972, e acabou tornando-se vice-presidente da Cadeia Televisa. Só retornou
do México quando recebeu um convite do então presidente José Sarney para ocupar o cargo de
secretário do presidente em 1989 e tornar-se chefe da assessoria de Comunicação de outro
presidente, Itamar Franco. (MELLO, 2003:412)
Com a ida de Marzagão para o México, Boni, um dos diretores da Rede Globo,
convidou novamente Solano Ribeiro, o mestre dos festivais, para tomar a frente da organização
do FIC. Solano que voltara da Alemanha especialmente para planejar o festival não prometia
grandes astros e sim novos talentos, e foi o que aconteceu. Entre os estreantes estava Oswaldo
Montenegro, aos 16 anos, apresentando a composição Automóvel, Murilo Antunes com Viva
Zapátria, Antônio Carlos Belchior e José Ednardo Costa Souza com Bip...Bip, Raul Seixas, até
então conhecido como produtor musical com duas concorrentes Eu Sou Eu, Nicuri É o Diabo e
Let Me Sing, Let Me Sing, Sérgio Sampaio com Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua,
Raimundo Fagner com Quatro Graus, Alceu Valença e Geraldo Azevedo com Papagaio do
Futuro, entre outros.
O corpo de jurados para a final do festival foi composto somente por estrangeiros por
que a censura exigiu que Nara Leão fosse cortada do júri. Para não explicitar tal situação
42
Solano decidiu por mudar o júri todo. Raul Seixas com Eu sou eu, Nicuri é o Diabo, um
samba-rock com entrecho de tango, vestido de Elvis Presley agradou ao público uma vez que o
som das guitarras lhes era familiar. Fio Maravilha interpretada por Maria Alcina também
levantou o público. Mais uma vez as vaias apareceram no FIC, foi com a música Cabeça de
Walter Franco, considerada genial por Solano Ribeiro. Let Me Sing, Let Me Sing, outro Rock
de Raul Seixas foi a última concorrente e conseguiu novamente empatia dos jurados.
As concorrentes em sua maioria estavam agradando ao público e jurados, o que não
havia ficado claro para os jurados brasileiros, porém, era o motivo pelo qual tinham sido
destituídos do direito a voto. Prepararam então um manifesto, assinado por todos eles indicando
as canções escolhidas por eles, Cabeça de Walter Franco e Nó Na Cama de Ari do Cavaco e
César Augusto, e manifestando a estranheza diante de tamanha arbitrariedade pela censura.
Zuza Homem de Mello(2003) relata que, Roberto Freire, psicanalista, jornalista,
teatrólogo e um dos membros do primeiro corpo de jurados foi o escolhido para subir ao palco
ao final da apresentação das concorrentes da eliminatória e ler a mensagem. Tão logo iniciou a
leitura do manifesto foi agarrado pelas costas e violentamente arrastado pelos seguranças da
TV Globo e levado para uma sala onde um grupo de policiais o aguardava. Foi violentamente
espancado tendo fraturados os dois braços, fratura do molar, quatro costelas e sofreu
escoriações em todo o rosto. No meio desse alvoroço foram anunciadas as duas finalistas da
fase nacional, Fio Maravilha e Diálogo. Roberto Freire, ficou uns 15 dias internado com
despesas pagas pela Rede Globo. Ao retornar foi recebido de braços abertos por Boni para
acertar o contrato da série que escreveria, A Grande Família. A grande final deu vitória no júri
popular a música italiana Aeternum, com o conjunto Fórmula Tre, e no juri internacional Sweat
end tears interpretada por David Clayton Thomas.
A Globo acabou por não realizar o Festival de 1973, por falta de interesse dos
patrocinadores. Nas quase três décadas seguintes foram realizados festivais esporádicos que em
nada lembraram a euforia dos primeiros festivais. Segundo Zuza Homem de Mello:
Se alguém ainda mantinha expectativas de que se pudesse reviver a Era dos
Festivais, o Festival da TV Globo em 2000 foi uma prova dos nove a sepultar
qualquer nesga de esperança, à qual se podem aduzir os ridículos e
pretensiosos programas, também da Globo, Música do Século. Em ambos se
revela que na cúpula da produção não havia o elemento indispensável: não
havia quem tivesse ouvidos de músico. (MELLO, 2003:424)
43
O autor ainda contribui afirmando que, Boni, diretor da Rede Globo, ao não produzir
mais os Festivais, a emissora perdeu seu grande contato com a alma brasileira, uma perda
comparável com a morte de Ayrton Senna, por se tratar de atrações que realmente mexiam
com o público. Para Solano Ribeiro, a Rede Globo se desinteressou de tentar resolver
problemas políticos, cansou de Festivais e parou.
São muitas as razões que podemos atribuir ao fim dos Festivais. Uma delas é, segundo a
historiadora Angela de Castro, que os artistas participantes dos festivais participavam
ativamente da vida política do país, então, quando o general Ernesto Geisel tomou posse, essa
forma de luta mostrou-se superada. Não havendo mais clima político, não havia mais o pano de
fundo da resistência ao regime militar. (MELLO apud CASTRO:1998,434)
O primordial é ressaltar a importância que tiveram esses eventos na vida e na formação
de uma geração. Segundo Roberto Freire, o protagonista da derrocada dos festivais de MPB,
esses eventos foram responsáveis pela participação do povo na renovação da música brasileira,
como também foram palco do nascimento de grandes talentos que teriam trajetórias outras não
fossem os festivais, como é o caso de Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, entre
muitos outros, e, principalmente é importante ressaltar, que os festivais sempre estiveram
intimamente ligados aos movimentos estudantis. A intelectualidade voltada a melhoria das
condições da vida em sociedade através do desvelamento da realidade.
Entretanto, mesmo historicamente os estudantes tendo registrado seu lugar na história
cultural do país, em muitos dos festivais que pipocaram a partir da década de 70, não houve
essa participação efetiva.
O FERCAPO, é um desses casos, no qual a esfera educacional oficial pouco contribuiu
para sua efetivação. No capítulo seguinte abordaremos um pouco como se deu a criação desse
festival, por quem ela foi proposta, qual era o cunho do evento, e, finalmente, qual a relação
deste com a educação e com a sociedade em geral.
44
FERCAPO, NO FIM DA ERA DOS FESTIVAIS
O Festival Regional da Canção Popular, foi iniciado na cidade de Cascavel no Paraná,
em 1971. Coordenado pelo empresário Luiz Picoli, ex-vereador e candidato a prefeito em
1676. O festival foi promovido pelo Tuiuti Esporte Clube e sempre foi voltado para a música
urbana.
De acordo com a narrativa de Alceu Sperança no livro Tuiuti: presença Azul, desde a
década de 50, o Clube já esboçava a idéia de realizar um festival de música. Como o autor
salienta, que este primeiro festival que foi realizado em 1º de maio de 1950, tinha um sentido
mais amplo do que décadas depois passou a se entender por festival. Este podia ser entendido
como Grande Festa e foi incorporado aos festejos do dia do trabalhador. Tais festejos musicais
não tinham, nesta ocasião, a finalidade de expor as músicas enquanto concorrentes, como
começou a ocorrer duas décadas mais tarde com o início do FERCAPO.
Como já pudemos verificar nos capítulos anteriores, a década de 60 foi a fase áurea para
os festivais de música e para a cultura brasileira em geral. Nas palavras de Alceu Sperança,
“um choque direto contra o chamado ‘colonialismo cultural’, uma digna herança da Semana de
Arte Moderna de 1922 que promoveu uma revolução qualitativa na cultura nacional.”
(SPERANÇA,1994:181) Todas as tensões políticas, sociais, éticas e estéticas que a sociedade
brasileira estava vivendo encontravam voz na música popular e em conseqüência, nos Festivais
o porta-voz mais eficiente, àquelas canções que conseguiram passar pelo crivo da censura, é
claro.
Luiz Picolli, que em 1969 presidia o Tuiuti Esporte Clube, o qual possuía uma banda,
The Blue Star. Picolli intencionava expandir as atividades da banda e pediu ao então maestro da
mesma, Ramiro Rebouças que produzisse o regulamento de um festival de música. O clube
então decidiu envolver o movimento estudantil para dar mais visibilidade ao evento. No texto
de Alceu Sperança o Clube Tuiuti também intencionava, com o festival, “assumir a liderança
completa na sociedade local, ameaçada por questões internas e pela criação recente da forte
Associação Atlética Comercial”. (SPERANÇA, 2004:183)
Nesta época, Miguel Porfírio se candidatou a presidência da ACES – Associação
Cascavelense dos Estudantes Secundários. Ele representava a oposição renovadora contra a
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situação que, segundo Alceu Sperança, utilizava os estudantes secundários como massa de
manobra político-eleitoral. Nessa época o Colégio Estadual Wilson Joffre vinha adquirindo
importância dentro dos movimentos estudantis e Dione Wanderley Martins, representante deste
colégio, fez parte de sua chapa. Uma das primeiras ações da chapa de Porfírio na ACES, foi
participar da realização do festival de música popular, a convite do Clube Tuiuti, para
movimentar a sociedade oestina.
A idéia do festival e de outras ações a serem realizadas pela ACES era propagada num
programa radiofônico chamado Voz do Estudante, transmitido, todas as tardes de sábado, pela
rádio Colméia, a única emissora da cidade na época. Miguel Porfírio por motivos pessoais
renunciou neste mesmo ano a presidência da ACES e seu vice Aldemiro de Oliveira assumiu,
mas a idéia de participar da organização do festival de música, graças principalmente, a Dione
Wanderley Martins, permaneceu.
Havia, como em todo o restante do país, um controle das mensagens contidas nas
músicas devido a ditadura e do clima de repressão que ela trouxe consigo.
É importante ressaltar que na época a ACES era um movimento de vanguarda, não
havia ainda ensino superior na cidade e todas as conquistas comunitárias eram lideradas pelos
estudantes secundaristas. A ACES pretendia com a realização do festival arrecadar recursos
para levar adiante suas demais programações visando novas conquistas para os estudantes.
No final de 1970 toda a imprensa local já anunciava a realização do festival. O
informativo do Tuiuti, Azulão, anunciou: “O Tuiuti Esporte Clube, continuando a prestigiar a
classe estudantil, promoverá em conjunto com a ACES o 1º Festival de Interpretação da Música
Jovem, nos dias 27, 28 e 30 de janeiro.” (SPERANÇA, 1994:185)
O Festival acabou sendo batizado de 1º Festival Estudantil, com a intenção de ser mais
geral. Luiz Picolli, representando o Tuiuti e Dione Wanderley Martins, representando a ACES,
foram os responsáveis pela organização deste primeiro festival, o precursor do Fercapo.
No regulamento constava a idade mínima de 14 anos, mas a organização do Festival fez
vistas grossas a participante Jeanine De Bona, que tinha apenas 12 anos de idade. Cada cantor
tinha o direito de interpretar três músicas para avaliação do corpo de jurados. O Festival só não
foi apenas de interpretação pelo fato de dois dos candidatos apresentarem composições
próprias, eram eles Jeanine De Bona e Alexandre Molinari. Jeanine criou três músicas, uma
para cada dia de eliminatória, Casinha Pequenina, Senhora e Cantiga pela Paz.
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(SPERANÇA,1994:187) Com vistas a autoria de Jeanine a comissão organizadora do evento
criou às pressas a categoria Composição e conseguiu inclusive um troféu para premiar Jeanine
pela canção Cantiga pela Paz, na categoria inaugurada por ela. A premiada na categoria
Interpretação foi Eleuza Pereira Godoy, com a música Barracão de Zinco. E foram Jeanine e
Alexandre que apontaram os rumos dos futuros festivais da canção, com a separação das
categorias Composição e Interpretação.
A música de Jeanine trazia em sua singeleza um pedido que traduzia os anseios de toda
uma sociedade: a transformação da violência, da repressão e das mortes por elas causadas, num
mundo mais cheio de música e tolerância. Vale a pena o registro da primeira composição
vencedora da história do FERCAPO:
Belo verso, verso de amor
Paz na voz de seu cantador
Canta a paz, canta o beija-flor
Canta verso pro meu amor.
Belo verso, canção antiga
Quanto amor há nesta cantiga
Canta, canta meu violão
Canta, canta, meu coração
Guerras, mortes, falta alegria
Canta é tempo, ainda é dia
Vamos todos unir as mãos
Somos homens todos irmãos.
Como era a proposta de Luiz Picolli, essa primeira experiência de festival foi animada
pela banda própria do Tuiuti, The Blue Star.
Em termos de resultados o Tuiuti ficou bastante satisfeito com a realização do festival
por ter atingido os objetivos a que se propôs, movimentar a cena cultural local. Para a ACES,
esse também foi um ponto bastante positivo, porém, os lucros esperados não vieram, fecharam,
inclusive, no vermelho. O Tuiuti ficou tão satisfeito com os resultados do festival que Luiz
Picolli já esboçou o projeto do segundo festival em agosto do mesmo ano, estendendo-o a
canção popular em geral. Segundo consta no livro de Alceu Sperança, o regulamento do
segundo festival não era nada liberal devido aos desmandos do AI-5, dessa forma, a censura
proibiu de serem citadas nas canções nomes de apelo popular como Pelé, Nossa Senhora
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Aparecida, Jesus Cristo, entre outros. Falar bem ou mal do governo também era vetado assim
como se posicionar ante qualquer facção.
Desta forma o segundo festival se deu de forma bastante amena, os vencedores foram
Eleuza Pereira Godoy na categoria composição, interpretando a música Tempo, Estória, Hora e
Lugar de autoria de Ramiro Carlos Rebouças. A música, apesar da repressão local, apresenta a
temática contrária a Ditadura Militar, propõe que os homens emanados por uma vontade
coletiva de mudança do cenário político atual se pautem no amor e na justiça para superá-lo. É
uma canção de mobilização política e esperança:
A história e o tempo
Ninguém consegue parar
Vai haver transformação
Muita coisa vai mudar
É o homem que se levanta
Resolveu se libertar
Não há cadeia ou algema
Que o possa segurar
Cruzar os braços à guerra
Ser mais forte no amor
É transformar esse mundo
Em riso, trabalho e amor
Encarar a realidade
Não matar pra não morrer
Ser livre com honestidade
Ter mais vida pra viver
Com a certeza de quem sabe
Aonde vai o caminho
Com a coragem e a certeza
De não caminhar sozinho
Se há tanta mão acenando
Se há tanto peito a pulsar
Tanta cabeça pensando
É questão de hora e lugar.
Na categoria interpretação amadora o vencedor foi Jair Duarte Leal com Custe o que
Custar.
Foi apenas na terceira edição, em 1972, que o festival passou a se denominar
FERCAPO – Festival Regional da Canção Popular. O controle das letras ainda era bastante
48
rígido, as letras das músicas concorrentes eram entregues datilografadas e gravadas em cassete.
Depois disso, eram enviadas à Polícia Federal de Foz do Iguaçú.
O III Fercapo foi mais politizado, conseguiu da maneira subliminar tocar nas feridas
políticas passando pela censura, principalmente com a melodia que dividiu o primeiro lugar
2000 Depois de Cristo. Os finalistas do III FERCAPO foram Caio Gotlieb, Ayrton Fracaro e
Wilson Bez com a referida canção e Jeanine De Bona com a música Canção Por Minha
Saudade, na categoria composição. Na categoria interpretação profissional o vencedor foi
Alberto Braz dos Santos e na amadora Ademar Rocha da Silva. Houve duas vencedoras porque
o advogado Alcides Pereira (sócio do pai de Jeanine De Bona), não quis dar o voto Minerva.
O resultado desta terceira edição do FERCAPO abarcou o romantismo e o saudosismo a
tempos felizes da canção de Jeanine De Bona e a crítica política à todos os governos do planeta,
na canção 2000 Depois de Cristo mesmo tendo de passar pelo crivo da censura.
Pela trajetória que o FERCAPO começava a traçar é possível perceber que este festival
mesmo tendo sido iniciado numa época em que, de acordo com o capítulo anterior, se
encontrava na fase descendente dos festivais precursores, mantinha a temática e a
intencionalidade dos primeiros festivais, a denúncia e a crítica a realidade político-social, além,
é claro das canções românticas que fizeram parte de toda a história do FERCAPO.
A exemplo dos grandes festivais da TV Excelsior e Record e os que vieram depois, o
FERCAPO também gerava torcidas organizadas munidas de faixas, cartazes, camisetas
temáticas, chapeuzinhos, o que pode claramente demonstrar o grande envolvimento da
sociedade para com o evento. Entretanto, essa participação se deu de forma mais maciça nos
primeiros tempos do festival, na época que ainda havia a categoria interpretação, havendo
assim um maior números de concorrentes da cidade e músicas conhecidas. A partir de 79,
quando a TV Tarobá passou a fazer a cobertura do evento pela televisão e os músicos com
músicas desconhecidas começaram a vir de outras cidades o clima de euforia das torcidas
começou a esfriar.
Alceu Sperança lembra que nessa gênese o Fercapo era mantido financeiramente pelo
Tuiuti, sem nenhum tipo de auxílio da prefeitura ou de empresa privada, exceto alguns
patrocinadores que a organização do Tuiuti conseguia em troca de cartazes de cartolina.
O IV FERCAPO teve as finalistas colocadas na seguinte ordem: Moacir Borges em 1º
lugar com a música Mensagem, Lídia Luchesa em segundo com a música Oi, Maria, Jeanine
49
De Bona com Por Um Amor em terceiro e Zezé Borges e Hélio da Igreja com Herói Vencido
em quarto lugar, na categoria composição. Na categoria interpretação profissional o cantor
vencedor foi Ricardo Cardez e na amadora, Luiz Carlos Steffen.
O Rock and Roll já começa a dar as caras por aqui, o arranjo da melodia vencedora
tinha esse tom, assumindo a tendência que os últimos FIC’s vinham assumindo, principalmente
na figura de Raul Seixas e na própria Tropicália.
Em 1974, o V FERCAPO veio com uma tendência baseada em motivos folclóricos e de
raiz, e contou com a participação maciça dos cantores curitibanos. Essa participação de
músicos de fora acirrou uma batalha entre cascavelenses e visitantes, fato que ficaria ainda
mais evidente no FERCAPO seguinte. Os vencedores do V FERCAPO foram, Antônio Carlos
Bueno com a música Ladainha, Elídio José Pinheiro com Eclipse e Grupo Odum com a música
Deus te Guie, na categoria Composição. Nas categoria interpretação profissional e amadora se
classificaram Vicente Ferreira de Foz do Iguaçú e Orly Bach de Guarapuava, respectivamente.
Para o VI FERCAPO que ocorreu no ano seguinte, as categorias foram ampliadas, além
de composição, interpretação profissional, agora havia interpretação amadora – adulto e
interpretação amadora – infanto – juvenil. Na categoria composição classificaram-se Moacir
Borges, Grupo Ogum e Pedro & Paulo com as músicas Poema para um amor ausente, joão sem
medo e Escolinha do arraiá, respectivamente.
Em 1976 a diretoria do Tuiuti decidiu por não realizar o FERCAPO. Luíz Picolli que
era o idealizador e articulador do festival também era figura política e decidiu pleitear o cargo
de Prefeito Municipal. Para não correr riscos do festival ser utilizado para fins eleitoreiros o
evento não foi realizado.
A próxima edição do festival aconteceu em 1977, novamente com predomínio de
músicos cascavelenses. Esta edição conseguiu reunir 146 concorrentes e foi transmitida pela
televisão em nível estadual. Nesta edição do FERCAPO, a rádio Colméia, ainda a única
emissora da época en Cascavel, chegou a exigir exclusividade de transmissão do evento por
cinco anos, visto que haviam rumores de instalações de novas emissoras na cidade, sob pena de
não transmitir o evento nesse ano. O radialista que tomou frente nesta exigência foi Paulo
Martins. O caso acabou não indo à frente e a rádio Colméia prestigiou o evento.
O ranking dessa edição do festival ficou da seguinte maneira: na categoria Composição,
foram premiados Mozy Tancredo, José Roberto Oliva & Olga Vlrath e Jeanine De Bona com as
50
músicas, Tubo de ensaio, Cobra-Cega e Problema Meu, respectivamente. Houve também as
categorias criadas no festival anterior.
No ano de 1978 novamente o festival não pode ser realizado. O coordenador Luiz
Picolli entrou no páreo eleitoral mais uma vez e novamente não queria que o FERCAPO
pudesse ter qualquer mácula em sua reputação por possíveis utilizações do evento para fins
eleitoreiros.
Em 1979 ocorreu o VIII FERCAPO, mas com um ar saudoso, logo após a realização do
festival, Luiz Picolli foi vítima fatal de um acidente automobilístico e deixou uma lacuna
irreparável na vida cultural local.
Os três primeiros colocados foram: Ramiro Carlos Rebouças com a música Sei lá, César
Nadal de Souza, com Será e Dilney Stedten com a música Neco da Viola. Com a morte de
Luiz Picolli o troféu transitório, oferecido ao vencedor de três FERCAPO´s seguidos ou
alternados passou a ter o seu nome. Foi neste ano que a TV Tarobá, emissora da cidade, passou
a fazer parte do clima do evento, fazendo sua divulgação e a partir de 1982 começou a fazer as
transmissões ao vivo.
Os incêndios, famosos na história dos festivais, também ocorreram por aqui. Neste ano,
o jornal Fronteira do Iguaçú foi incendiado criminosamente e seu diretor, Antônio Heleno
Rodrigues, foi morto a tiros. Certamente uma boa parcela da história da região virou cinzas.
O professor Ramiro Rebouças criou um personagem, chamado Kid Ligeiro, cantando o
assassinato de Antônio Heleno, uma vez que toda a sociedade local já comentava a respeito da
autoria do crime, por um conhecido político e empresário da cidade. Houve então uma tentativa
por parte da diretoria do Clube, na figura do então presidente, Edgar Bueno, de convencer o
corpo de jurados a desclassificar a música, afim de não haver envolvimento do clube com o
acontecido. O fato é que a canção movimentou a platéia e não chegou à final:
Fui contratado por um figurão da city
Para fazer um servicinho de matança na cidade
Ele me disse que um cara entrometido
Encomodava a nossa ordeira sociedade
Fui ao escritório discutir meus honorários
Mas recusei sua proposta inicial
E lhe fiz ver que de ...
Exigia recompensa especial.
Daí começamos a discutir e para evitar
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prejuízos de ordem inflacionária
Decidi fixar meu pro labore em dólares
Peguei o cara passeando na avenida
Joguei meu carro contra o seu na contra mão
Ele pensando que era simples barberagem
Não viu nem de passagem o trabuco na minha mão
Desferi-lhe o primeiro disparo na região encefálica
E pra garantia de pleno êxito da execução
Apliquei-lhe o segundo disparo na região cardio vascular
E vi que tava concluída a eutanásia
No outro dia o Lourival anunciava
Que a Dona Justa já tinha pista concreta
Que o assassino fora visto fugindo pro Paraguai
Atravessando o Paraná de bicicleta
E apesar da correnteza atravessou em linha reta.
E a Dona Justa em trabalhos exaustivos
Com fato estarrecedor
E a conclusão a que chegou foi que o defunto
Foi abatido por um disco voador...9
Em 1980, sem Picolli, a Secretaria Estadual da Cultura decidiu montar um festival de
cunho estadual, chamou-se Festival de Todos os Cantos, organizado em várias etapas divididas
entre as principais cidades do Paraná com a finalíssima em Curitiba. A etapa de Cascavel
continuou contando com a organização do Clube Tuiuti que bancou custas de viagens, estadia e
premiação regional para os compositores classificados para a final em Curitiba. O IX
FERCAPO foi, desta forma, a III etapa do Festival de Todos os Cantos.
Houve três finalistas classificadas para a final em Curitiba, foram elas: Andarilho de
César Nadal de Souza, Imagens de Paulo Roberto Calderari e Mutirão de Carlos Augusto
Amêndola. Com a entrada do Fercapo no Festival de Todos os Cantos houve uma inegável
profissionalização do evento.
No entanto, em 1981 o Festival de Todos os Cantos foi
encerrado e o FERCAPO, na figura do então presidente, Mário Pereira, se viu obrigado a
manter os mesmos padrões para não perder o prestígio já conquistado.
O resultado visto no X FERCAPO, foi bastante positivo, vieram inscrições de diversas
partes do país. Os três concorrentes que se classificaram na categoria composição foram:
Leontamar Valverde Pereira com a música Como Antigamente, Bido e Gerson Rosa Martins
com Trem de Ferro e Carlos Bongannó, Ricardo e Ailton com a música Recompor.
9
Sem referência de gravação, narrada pelo compositor.
52
Ramiro Rebouças afirma que a abertura do festival à participação de todo o Brasil não
trouxe apenas a profissionalização do evento, mas gerou também um espetáculo de cartas
marcadas, uma vez que o corpo de jurados também era composto por convidados oriundos de
vários cantos do país, com o intuito de dar maior credibilidade ao evento, e já traziam na
bagagem suas canções preferidas.10
Em 1982, o XI FERCAPO contemplou os seguintes intérpretes na categoria
Composição: Leontamar Valverde Pereira com a música Se o Tempo Voltasse, Cícero Jerônimo
da Silva com Pra quem saiu de casa, Hardy Guedes Filho com Nem Que Leve a Vida Inteira,
Valdomiro Zanini e Alberto Lenzi com a música Mosaico e César Nadal Souza com Noturna.
Para essa edição do festival houve mais de 200 composições inscritas, provindas dos mais
diferentes pontos do país.
No ano seguinte, 1983, por dificuldades conjunturais atravessadas por todo o país e falta
de apoio financeiro o FERCAPO deixou de ser realizado.
A edição de 1984 procurou compensar a não realização do ano anterior com a utilização
de equipamentos de vanguarda emprestados da Bandeirantes. Segundo Jorge Guirado, exdiretor da TV Tarobá “a dificuldade maior era conseguir trazer microondas para se tirar a
imagem do Tuiuti para a emissora. Há prédios entre o Tuiuti e a emissora que obstaculizam o
transporte do sinal.” (SPERANÇA: 1994, 204)
O XII FERCAPO contou com os seguintes compositores como premiados: Vital Lima e
Sérgio Lima Netto com a composição Vale a Pena, Ronaldo David, Sérgio Kasprzak e Beto
Gauer com Partitura e Ramiro Carlos Rebouças com Ensaio Geral.
Em 1985 foi realizado o XIII FERCAPO e os compositores premiados foram: Ronaldo
David, Sérgio Kasprzak e Beto Gauer com a música Palco, Luciano Veronese com Mil Cores e
Nilson Chaves e Vital Lima com O Tempo e o Destino.
Neste mesmo ano o repórter Aramis Millarch, do jornal O Estado do Paraná, publicava
que, após o término do festival, não havia sido “prevista sequer a gravação de um compacto
simples, com as 5 premiadas, o que, afinal, não custaria mais do que Cr$ 25 milhões, (valor
destinado a realização do FERCAPO neste ano foi de Cr$ 150 milhões) o que poderia ser
autofinanciável, através de um patrocinador comercial ou, mesmo, com a venda dos
10
Esta informação foi concedida por Ramiro Rebouças em intrevista realizada no dia 24/01/2006.
53
exemplares.”11 O repórter ainda acrescenta que, ao contrário do FERCAPO e dos demais
festivais de música realizados no Paraná que, quando se acaba não deixa vestígios, no Rio
Grande do Sul, há ao menos uma dúzia de excelentes festivais, que se auto-sustentam
independente do Governo. A Califórnia da Canção Nativista, em Uruguaiana, que neste ano
realizará a sua 16ª edição, já conta com uma invejável coleção de discos, através da iniciativa
do CTG Sinuelo do Pago.
Para o ano de 1986 houve rumores de que a TV Tarobá não transmitiria o Festival
devido a Copa do Mundo e ao novo convênio com a TV Carimã, os rumores não se
sustentaram, tanto que a emissora participou do evento com vários de seus apresentadores,
como: Caio Gotlieb, Silvana Veronese, Cidinha Marcon, Marília Barbosa, Baby Garroux e
Cristina Prochaska.
Nesta edição do festival, a XIV, que ocorreu dos dias 17 a 19 de julho,
foram
premiados os seguintes compositores: Geraldo Vailatti e Grupo Cigarra com a música
Ventania, Nilson Chaves com Nossa Verdade e Marco André com Dor de Amor. Pela primeira
vez cinco vencedoras e as demais classificadas foram reunidas em LP da Gravadora
Continental.
A música vencedora retrata a vida do homem do interior, o poeta sertanejo, que lida
com a terra e com o gado e que carrega uma saudade de amor devotado no coração, retratando
assim na mesma canção as agruras do mundo do trabalho e o lirismo do poeta que ama:
Só quem já carpiu conhece o peso da enxada
Só quem já partiu comeu poeira na estrada
Quem nunca saiu não tem histórias pra contar
Pois não repartiu o seu mundo, o seu lugar
Leva boi – leva boiada – levanta poeira na estrada
Leva boi – leva boiada – levanta poeira na estrada
Na garupa leva um anjo com alma encantada
E no pensamento um sonho que sonhar não custa nada
Lua nova, vida velha, coisas que o tempo não viu
Barco à vela – leva “Vera” – pras corredeiras do rio
O ouro dos teus cabelos no rosto desta cidade
Por onde o tempo vagueia deixa um gosto de saudade
Por onde voam teus olhos? Que as águias não chegam lá
Que olhar cigano caminha? Cortando esse temporal
Se a ventania desarma o corpo, a alma e a fé
11
Disponível em: www.millarch.org, acesso em 11/08/2006
54
E a poeira da estrada apaga as marcas do pé
Já fui peão do pensamento/ capataz da alegria
Dono da estância do tempo com meu cavalo Ventania
Que tinha um galope ligeiro e que era bom de montaria
Mas a boiada quando passa deixa o rastro no chão
Teu amor quando passou deixou dor e solidão
E uma sodade-matadeira no fundo do coração.
Em 1987 ocorreu o XV Festival Regional da Canção Popular e os compositores
premiados foram: Francisco de Souza com Menina Nova, Watherly Figueiredo com Momento
da Criação e Jean e Paul Garfunkel com Não Minto Pra Mim. A exemplo do ano anterior as
canções classificadas foram reunidas em LP da gravadora ERC/Quero Quero. Nestas duas
últimas edições do festival houve um considerável recuo dos compositores oestinos que no
festival anterior dominaram a cena.
Em 1988 foi realizado o XVI FERCAPO e novamente as canções classificadas foram
reunidas em LP da gravador Quero Quero. As três primeiras colocadas foras: O Circo de
Anízio Rocha, Tua Face Rural, fr Gilberto Ichilara e Francini e Londrina de Luiz Fontana.
O XVII FERCAPO teve como primeiros colocados José Alexandre, Jean & Paul
Gurfunkel e Ricardo Gonçalves & Sergio Copetti, com as composições América dos Nus,
Sintonia e Atrapalho, respectivamente.
A fama do FERCAPO por essa época se espalhou, o evento contou com vários
convidados como Aramis Millarch, Edilson Leal, Zuza Homem de Mello, Evaldo Lemos,
Arlindo Coutinho, Heitor Valente, Cau Pimentel, Simon Curi, Pelão, Sílvia Góes, César
Fonseca, Mirian Batucada, Sara Cretien, Luiz Guilherme Favatti entre outros.
No XVIII FERCAPO, em 1990, os três primeiros colocados na categoria composição
foram: José Carlos Company com Teorema de Pitágoras, Dino Guedes e Lysyas Ênio com
Amarras, e André Luiz e Jaime Roberto com O Luar, o Amor e uma Viola.
Na edição de 1991, além das tradicionais disputas nas categorias de composição e
interpretação houveram oficinas abertas ao público ministradas por professores catedráticos nas
universidades Unicamp e Unesp. Estas oficinas (Contrabaixo, bateria, harmonia e arranjo,
guitarra, teclado, percussão e viola infantil), foram realizadas em parceria entre o Tuiuti e a
Prefeitura Municipal de Cascavel, através da Secretaria da Cultura. O festival pode contar
também com algumas atrações que abrilhantaram ainda mais a festa, foram eles: a dupla Sá &
Guarabira, Ivan Lins e Jorge Ben. Os três primeiros colocados na categoria Composição e suas
55
respectivas canções, foram: Eudes Fraga e Joãozinho Gomes com Puçangueira, Claudio da
Matta e Paulinho Campos com Dias Nacionais e Irinéia Maria e Sueli Correa com Meias
Partes.
A composição vencedora, a brasileiríssima Puçangueira, trata da riquesa de nossa fauna
e o poder de nossa crença e quer dizer, de acordo com o Aurélio, “remédio receitado pelos
pajés”:
Vens do sangue de todos os Tupis
E te criastes na touça dos ananás,
Tens a força encantada da raiz
E a licença do Deus dos Orixás.
Pra curares de vez nossas doenças
Foi te dado o poder dos vegetais.
O milagre de todas as essências
A puçanga dos nossos ancestrais.
Cipó-cruz verdadeiro
Erva-do-bicho e gengibre
Mata-pasto pequeno
Olho-de-boi, mulungu.
Araça-de-flor grande
Barba-de-velho e visgueiro
Galho-de-Santa Maria
Bênção-de-Deus, Sabugueiro.
E que seja louvada tua presença
Onde quer que careçam de ter paz
Os enfermos da alma e da
Existência
Os feridos a golpes tão mortais.
Toda vez que escutares um
Gemido
No silêncio de nossos hospitais
Colabora com os homens da
Ciência
Leva os teus elixires naturais.
Cipó-cruz verdadeiro...12
A parceria entre Tuiuti e prefeitura foi realmente consolidada na edição de 1992,
quando da organização das oficinas de MPB, que duravam além do término do FERCAPO,
12
XXII FERCAPO – Festival Regional da Canção Popular (CD). Gravado ao vivo em Cascavel –
PR em 30/07/94, mixado em Curitiba – PR, no estúdio Plínio Oliveira Produções.
56
começando a estender o evento para além da competição. Neste ano os primeiros colocados
foram: Cláudio Da Matta e Paulinho Campos, do Rio de Janeiro, com Minas em Linhas Gerais,
Milton Edilberto de São Paulo, com Viola de Cantoria e Luciano Veronese e Ramiro Carlos
Rebouças, ambos cascavelenses, com Canto de Sereia. Neste ano houve também a categoria
Comunicação, conquistada pelo grupo Negritude Júnior, ainda desconhecido do grande
público, que aproveitava os palcos do festival para expandir sua fama.
Em 1993, diferente do ano anterior, não houve finalistas oriundos da região, fato que fez
com que houvesse uma reordenação nas regras do festival. Entre as mudanças houve a redução
das 30 músicas concorrentes para 24 e a obrigatoriedade de que três delas fossem selecionadas
em uma etapa regional, prévia à etapa nacional.
Os primeiros colocados nesta etapa foram: Rafael e Rita Altério de Itapetininga (SP)
com Até quando Deus quiser, Nina Miranda do Rio de Janeiro com Aquém das Cordilheiras,
Miriam Fernandes do Rio de Janeiro com Melodia e Jean e Paul Garfunkel de São Paulo com
Cruzeiro.
A nostalgia, a saudade de um tempo bom que se foi e a esperança viva de que esse
tempo possa ser reinventado tendo como cenário paisagens tipicamente brasileiras, é o tema da
vencedora dessa edição do Festival, Até Quando Deus Quiser:
No alvorecer, bem-te-vi vem cantar
Na janela
Lembra meu tempo, quem dera,
Voltar, começar a crescer.
A meninice voou com um raio que
Passa
Deixando luz e fumaça
De quem é feliz sem saber.
O tempo se cumpriu Nas linhas da minha mão
Até quando Deus quiser
Saudade no coração.
Hoje a saudade invade os olhos
Da gente
E o corpo todo ressente
É como pisar sem ter chão.
Lua nascente, lava o olhar de
Quem fica,
Dói feito tiro no peito
De jeito, sangra o coração.
O tempo se cumpriu...
57
Olho pros campos, brotar teu amor
Nessa terra
Lírios, acácias e heras,
E o canto de um sabiá.
No teu silêncio cresce teu fruto e
A beleza
De quem viveu a certeza
De ter paz onde está.13
Em 1994 foi realizado o XXII Fercapo e como resultado do evento foi produzido um CD
com 16 músicas, produzido por Plínio Oliveira, que também participou como compositor,
intérprete e tecladista da Banda Fercapo. O CD incluiu a canção vencedora do festival do ano
anterior Até Quando Deus Quiser e a vencedora do festival de 1991 Puçangueira. Se
observarmos do que tratam as canções podemos perceber que os músicos cantam muito a
saudade de um tempo que passou e o orgulho de ser músico e viajar pelo país levando a música
a todos os cantos. Uma música que demonstra esse orgulho e essa profissão viajante que o
músico exerce é Obra do Criador de Juca Morais do Rio de Janeiro:
Vim pra cá no interior
De viola pra cantar
Na esperança de encontrar o meu
Amor
Eu vi entre letras e canções
Muita festa, outros sons,
Vi um povo cantador.
De manhã quando o sol brilhou no
Céu,
Céu azul de Cascavel,
Alguém logo comentou:
“Eu não esperava encontrar
Esse sol do Ceará
Que pro Paraná voou,
É obra do criador
Esse tempo que mudou
É obra do criador
Esse povo cantador,
Vim pra cantar no interior...14
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XXII FERCAPO – Festival Regional da Canção Popular (CD). Gravado ao vivo em Cascavel – PR em
30/07/94, mixado em Curitiba – PR, no estúdio Plínio Oliveira Produções.
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De 24 à 26 de julho de 1997 foi realizado o XXIV Fercapo. A composição vencedora
foi Marialice de Eugênio Gomes e Tito Neto de Belo Horizonte, Minas Gerais, interpretada por
Ivânia Catarina. A música canta o amor e o compara a música, o eterno amor do poeta. A
música mostra ainda a nostalgia, a lembrança boa de um tempo que passou e o desejo que ele
possa voltar, temática também bastante recorrente nas canções do FERCAPO:
De quem que é esse
Perfume de lavanda?
Quem espalhou toda
Essa música no ar?
Quem fez nascer a estrela
Dalva na varanda?
Quem acendeu a luz
Na sala de jantar?
À flor da pele, quem
Deixou o arrepio?
O verde vento da infância,
Quem soprou?
Marialice, não precisa se esconder
Sei que você anda por perto
Que bom que você voltou
Adivinhei quando chegou o trem das 3
Marialice regressou e desta vez
Vem pra ficar, veio buscar felicidade
Que perdeu noutra cidade
Onde nada era seu
Risquei o dedo na poeira da mobília
Marialice, nós não somos duas ilhas
Vem ser feliz em pôr-de-sol
Sereno e chuva
Vem ouvir meu bandolim
Na noite morna, no jardim15
Nos dia 26, 27 e 28 de outubro de 2000 foi realizado o XXV Fercapo que também deu
origem a um CD produzido por Luciano Veronese16. O cd conta com 12 canções sendo que
14
XXII FERCAPO – Festival Regional da Canção Popular (CD). Gravado ao vivo em Cascavel – PR em
30/07/94, mixado em Curitiba – PR, no estúdio Plínio Oliveira Produções.
15 XXIV FERCAPO – Festival Regional da Canção Popular (CD). Gravado ao vivo em Cascavel – PR em
26/07/97. Mixado em Curitiba – PR no Estúdio Gaivotas Arte e Cultura.
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quatro delas tem como mote o amor, outras quatro cantam o próprio cantar, três falam de
características do País como a miscigenação, a dor e a alegria típica do povo brasileiro.
A música vencedora foi Milagreiro, de Edu Santana e Rita Altério e interpretada pelo
próprio Edu Santana e Juca Novaes e embalada pela Banda do FERCAPO.
A música campeã mostra a saga de uma personagem tipicamente nacional, homem moreno,
iletrado mas com a fé característica e folclórica do povo brasileiro:
Herança de toda família
Moreno, iletrado, franzino
Aos olhos de santa Luzia
Meu pai seguiu o peregrino
Se foi garrado a esperança
Que emana de todo o horizonte
Onde promessa não alcança
Pr’onde Deus levou, pra onde?
E em cada pedra de igreja
Surgia a voz milagreira
Pregando a paz benfazeja
Por terra brasileira
Pai seguiu risca traçada
O pregador beateiro
Guerra de fé consagrada
Contra Antônio Conselheiro
No sangue se afoga a vergonha
Memória dos que viveram
Depois de tombar quem sonha
Em que sonhos se perderam?
E abre as asas sobre este sertão
Cobrando a paga de seu redentor
O pó da estrada que se come
Encarde a pele, arde a alma em vão
Em cada cruz um altar
Ficando aos prantos e braços
Em versos reza ao luar
Varre a aflição dos pecados
E foi-se a luz de um relâmpo Abatido de loucura
Deixou em Belmonte um manto
Escarrado em bravura
Ficou a história contada
16 Luciano Veronese participa do FERCAPO desde 79 como cantor na categoria interpretação com apenas 9 anos
de idade, participou em diversas versões tocando para outros compositores, compôs canções, em 92 conquistou
terceiro lugar com uma canção interpretada por sua esposa, Rafaela Veronese e finalmente em 2001 passou a ser
produtor musical do evento.
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Na boca do sertanejo
Língua de fel amargada
Quando vem no céu um trovejo
E abre as asas sobre este sertão
Cobrando a paga de seu redentor
O pó da estrada que se come
Encarde a pele, arde a alma em vão17
Coração de cantador de Daniel Sanches, interpretada pelo grupo Tarumã e tocada pela
Banda do FERCAPO, conquistou o terceiro lugar.
A XXVI edição do Festival Nacional da Canção Popular se realizou em 2001. Também
teve como resultado final um CD reunindo 12 canções, produzido por Luciano Veronese. A
temática que já se tornou tradicional no FERCAPO aparece novamente, músicas cantam o
orgulho da profissão músico e da missão que é levar essa música a todos os lugares, cantam os
ritmos do Brasil e lembram nomes consagrados da nossa história além de cantar muito o amor.
Na última edição do FERCAPO, realizada em 2002, dentre as temáticas mais recorrentes
nas melodias está o orgulho de ser músico, a homenagem a músicos brasileiros, e o amor que
dividia o peso com outras temáticas nas edições anteriores é o mais recorrente nesta última
edição. Esta foi a única ocasião em que o festival deixou as dependências do clube Tuiuti e foi
realizado no centro cultural Gilberto Mayer e contou com a realização em parceria com o
Tuiuti, do Canal 21.
O Fercapo, além de ter representado um dos raros canais para que compositores jovens,
fora dos esquemas comerciais, pudessem mostrar suas produções na região, também se tornou
circuito certo de artistas profissionais, que correm o Brasil participando de Festivais e, bem ou
mal, sobrevivem desses eventos competitivos.
Na opinião de Luciano Veronese, o FERCAPO ao abrir às portas a participantes de fora
proporcionou aos músicos envolvidos um rico intercâmbio cultural e a oportunidade de levar os
músicos da cidade pra outros lugares em função de gravar os discos dos festivais, mas trouxe
também uma dificuldade, pois os compositores daqui, nem sempre profissionais acabavam não
tendo a mesma qualidade técnica para disputar em igualdade de condições, muitos acabaram
desanimando.18
17
XXV Fercapo – Festival Regional da Canção Popular (CD). Gravado e produzido por Luciano
Veronese. 2000.
18
Esta informação foi concedida por Luciano Veronese em entrevista realizada no dia 14/11/2005.
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Além disso, grandes nomes da nossa música já abrilhantaram ainda mais o evento em
suas mais diversas edições. Nomes como: Dom e Ravel, Alceu Valença, Alcione, Baby
Consuelo, Belchior, Carlos Lyra, Elba Ramalho, Ivan Lins, Léo Jaime, Martinho da Vila,
Moraes Moreira, Paulinho da Viola, Sandra de Sá, Zizi Possi e na última edição, Zeca Beleiro,
entre outros nas várias edições.
É inegável que a participação de artistas já consagrados é responsável pela presença de
boa parte do público que prestigiou FERCAPO, em suas mais diversas edições. Entretanto,
mesmo os que compareceram com a intenção de assistir a esses artistas, tiveram a oportunidade
de presenciar uma outra lógica na esfera musical, diferente daquela apresentada mais
comumente pela mídia oficial. Algumas músicas apresentavam essa diferença na forma, outras
no conteúdo. Um verdadeiro banho de imersão numa cultura paralela. Um momento de acesso
a formas diferenciadas de perceber a música e a cultura em geral.
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CONCLUSÃO
Ramon Casas Vilarino (1999) qualifica como constante nas letras de MPB, a temática do
dia que virá. Esta temática acredita na possibilidade de redenção no futuro, no amanhã, no dia
que sucederá o atual estado de coisas, uma vez que este gênero musical nasce e atinge seu auge
criativo em pleno regime militar.
O dia que virá enquanto mote das canções de MPB engajada, representa:
O sentimento de impotência e a dificuldade de intervir na realidade, não
obstante o desejo sincero de faze-lo, deslocam para o futuro o tempo de
atuação, numa mensagem até certo ponto triste, mas que não abandona a
esperança.(VILARINO:1999,57)
A ditadura militar foi um momento bastante presente na vida de cada um dos brasileiros
que a viveram. Com um inimigo tão visível não era de admirar que as músicas dos festivais a
atacassem diretamente, mesmo de modo subliminar. Dessa forma, a efervescência cultural que
conviveu contemporaneamente com a ditadura militar, tem sua explicação histórica. Havia uma
necessidade criada pelo meio social que refletia nos ânimos e anseios de toda a população e dos
artistas de forma especial, visto que estes têm o papel de captar os estímulos emanados da
sociedade como um todo e sublimar suas impressões na produção de sua obra.
No momento em que o FERCAPO foi gerado, o país estava no final dos principais e
terríveis momentos da ditadura, dessa forma sua música nos primeiros tempos teve um caráter
mais crítico em relação ao funcionamento político da sociedade e passou paulatinamente a
cantar o amor, as riquezas culturais e folclóricas do país, o orgulho de ser poeta e o saudosismo,
numa forma de resgate reinventado de um passado feliz.
A temática cantada nos festivais de MPB, num paralelo entre os festivais da Excelsior, da
Record e o FERCAPO, parece que sofreram uma inversão, se naqueles cantava-se o dia que
virá, neste, ao menos em suas últimas edições, canta-se o dia que se foi e aponta para uma
perspectiva de reinventá-lo. Até mesmo o fazer poético do músico e sua eterna viagem por
todos os recantos do país para levar sua obra, muito cantado no FERCAPO, sugere uma
evocação à força que a música teve enquanto bandeira de luta por ideais durante os primeiros
anos de história dos festivais.
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A idéia de que a educação poderia e deveria funcionar como um pólo emanador de arte
para toda a sociedade, como realmente se deu nos festivais da Record e da Excelsior, que os
estudantes oriundos de Universidades é que movimentavam a cena cultural local e nacional e
promoviam o envolvimento da sociedade, não se deu em Cascavel. Aqui o movimento foi
inverso, um clube convidou os estudantes a participarem do evento para dar justamente essa
aura saudável do casamento entre arte e educação. No entanto, de acordo com o professor
Ramiro Rebouças, essa participação foi superficial, se houve alguma participação foi enquanto
platéia e sem a maturidade necessária, nenhum estudante participava interpretando, compondo,
tocando, etc.
Luciano Veronese, que atualmente possui um estúdio de gravações e atua como músico
profissional, sugere que para edições futuras do FERCAPO:
[...] deveria ser fortalecido o elo da cidade com o evento: hoje seria importante
até que fizessem prévias do festival nas Universidades, os três primeiros
colocados garantiriam a participação no FERCAPO, concorrendo com os
outros de fora, então haveria um estímulo, já nas Universidades, ao
envolvimento, às composições, ao intercâmbio musical, o que aumentaria a
quantidade de composições e em conseqüência do envolvimento, a qualidade.
Esse elo poderia ser feito também nos Colégios ou simplesmente na cidade.19
É interessante ressaltar que o papel da universidade, além do ensino, é o entrelaçamento
com o social. Para alcançar tal meta, a universidade precisa formar pesquisadores e educadores
que sejam capazes de intervir na realidade concreta. Dessa forma, o conhecimento que a
universidade produz em seu interior não pode estar alheio às demandas da sociedade e deve sim
proporcionar o acesso da população aos bens culturais.
Neste sentido, é interessante que se promova o desenvolvimento, no seio da
universidade, de grupos alternativos, tanto no seu interior (incentivando bandas, grupos de
teatro, grupos artísticos, etc) como no exterior (oferecendo à comunidade cursos alternativos,
festivais, etc).
Atendendo à solicitações da sociedade pelo viés da arte, a universidade possibilitaria o
acesso às formas artísticas tanto àquele que faz, que constrói, como àquele que aprecia, que
participa da arte enquanto consumidor, contemplador.
19
Informação recebida em entrevista concediada por Luciano Veronese no dia 14/11/2005.
64
Com base na importância que a arte em todas as suas manifestações culturais representa
para a formação e identidade de um povo, podemos afirmar que o FERCAPO, a exemplo dos
festivais que o antecederam, representou um momento ímpar na formação cultural de Cascavel,
uma vez que proporcionou momentos privilegiados para que a população pudesse ter acesso ao
fazer artístico e um fazer artístico de qualidade.
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CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1978.
CONCEIÇÃO, Gilmar H enrique da. Partidos Políticos e Educação – A extrema esquerda
brasileira e a concepção de partido como agente educativo. CASCAVEL: EDUNIOESTE,
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VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
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VILARINO, Ramon Casas. A MPB em movimento: música, festivais e censura. São Paulo:
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