UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná Delciane Martini Silva FERCAPO: FESTIVAL REGIONAL DA CANÇÃO POPULAR NO FIM DA ERA DOS FESTIVAIS Cascavel 2006 UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná FERCAPO: FESTIVAL REGIONAL DA CANÇÃO POPULAR NO FIM DA ERA DOS FESTIVAIS Monografia apresentada ao Curso de Especialização em História da Educação Brasileira da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, como requisito para obtenção do grau de Especialista, sob orientação do Prof. Dr. Paulino José Orso. Cascavel 2006 2 Agradeço aos meus pais, Dilva e Delci, pelo incentivo que sempre me deram em relação a todos os meus projetos e ideais. 3 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 05 2 A IDÉIA DE MÚSICA E SUA GÊNESE NO BRASIL.................................................. 08 3 A EFERVESCÊNCIA MUSICAL DA DÉCADA DE 60................................................ 10 4 FESTIVAIS DE MÚSICA NO BRASIL, UMA HISTÓRIA.......................................... 14 5 FERCAPO, NO FIM DA ERA DOS FESTIVAIS.......................................................... 51 6 CONCLUSÃO.................................................................................................................... 71 4 INTRODUÇÃO Na década de 60 ocorreu um verdadeiro turbilhão de acontecimentos importantes. Esta foi a década do Cinema Novo, do golpe militar, dos movimentos estudantis, dos hippies, da ideologia nacional-desenvolvimentista, da censura, da Jovem Guarda, do Vietnã, do Bicampeonato mundial de futebol, do Ato Institucional nº 5, do Rock`n roll, de Che Guevara, da Tropicália, enfim, foi uma década emblemática na construção de uma nova identidade para a juventude “mundial” e brasileira como também para a sociedade em geral. Tinha-se a clara idéia de que era o crescimento econômico do país que propiciaria um poder aquisitivo maior para todo o povo, através do trabalho e do consumo. Era preciso deixar o bolo crescer para depois dividi-lo. Não sem razão, os anos JK, até 1961, foram entendidos como os anos dourados da cultura brasileira. O clima de otimismo, de bom humor e de esperança que Juscelino transmitia, contagiou positivamente toda uma geração de músicos e artistas brasileiros. Para a nova geração de compositores brasileiros, o movimento da Bossa Nova (cujo marco foi a gravação de Chega de Saudade de João Gilberto, em junho 1958, na mesma data em que JK inaugurava o Palácio da Alvorada) dava maior sofisticação, vigor e visibilidade a música brasileira. A solução para as mazelas brasileiras deslocava-se agora do plano cultural para o econômico. Neste bojo, uma elite cultural, inicia um trabalho no qual a produção e o consumo da arte não seriam mais mero entretenimento. Na música popular, no teatro, na literatura, no cinema, nas artes plásticas, cada vez mais havia o enlace entre cultura e poder. Em suas diferentes linguagens o artista adota estratégias de um discurso político, atuando como agente social. Esse posicionamento dos artistas frente os acontecimentos políticos e sociais inaugura uma mudança no estatuto da cultura brasileira, que deve ser bem localizada e delineada, pois, dá inicio a uma nova forma de ação política até então desconhecida por aqui, que é a conscientização do povo através da idéia de uma cultura popular nacional. Em períodos de ditadura militar, tanto a instituída em 1937 quanto a de 1964, o governo constrói e impõe ao país uma cultura oficial, algo que não abale os alicerces do poder e ao mesmo tempo valide a ideologia dominante, dessa forma, a população é inserida nesta cultura 5 de forma automática, numa posição de passividade e aceitação em relação a posição que ocupa na hierarquia social. Surge neste momento, através destes setores da elite cultural, uma cultura mais engajada, da qual, ao menos teoricamente, a população é sua fonte e sua finalidade. Em linhas gerais podemos situar esse momento histórico brasileiro como produtor de uma contracultura.1 As canções de protesto, que tiveram como palco os festivais, canalizaram para a canção popular esta relação entre cultura e poder, buscando na ampla aceitação popular desta música, um local perfeito para a difusão deste novo discurso. Os festivais de música cumpriram magistralmente esse papel. E é justamente a tentativa de traçar uma trajetória histórica deste formato de evento no Brasil, as influências que sofreu e qual a importância desse tipo de evento para a formação cultural das pessoas envolvidas, tanto na criação quanto na apreciação, que este estudo se propõe a discutir. No primeiro capítulo, o estudo procura mostrar como se deu o encontro entre índios, portugueses e africanos na produção de uma musicalidade brasileira própria. O segundo capítulo descreve a música urbana do século XX, mais especificamente na década de 50 e 60, quando eclodem os três gêneros que antecedem à MPB dos festivais de música. O terceiro e mais extenso dos capítulos, constrói uma trajetória dos festivais de MPB no Brasil, o que representaram para a sociedade brasileira em meio a uma ditadura militar, quais influências deixaram para as pessoas e a relação que a educação teve com esses eventos. No quarto e último capítulo, há uma tentativa de mostrar como se gerou o FERCAPO – Festival Regional da Canção Popular, que ocorre desde 1971, como e com que finalidade se 1 A Contracultura pode ser definida como um ideário veemente que coloca em dúvida valores centrais vigentes e instituídos na cultura ocidental. Com o vultoso crescimento dos meios de comunicação, a difusão de normas, valores, gostos e padrões de comportamento se libertavam das amarras tradicionais e locais – como a religiosa e a familiar –, ganhando uma dimensão mais universal e aproximando a juventude de todo o globo. (CARVALHO, 2002, p. 7) De um lado, o termo contracultura pode se referir ao conjunto de movimentos de rebelião da juventude [...] que marcaram os anos 60: o movimento hippie, a música rock, uma certa movimentação nas universidades, viagens de mochila, drogas e assim por diante. [...] Trata-se, então, de um fenômeno datado e situado historicamente e que, embora muito próximo de nós, já faz parte do passado”. [...] “De outro lado, o mesmo termo pode também se referir a alguma coisa mais geral, mais abstrata, um certo espírito, um certo modo de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente, de caráter profundamente radical e bastante estranho às forças mais tradicionais de oposição a esta mesma ordem dominante. (PEREIRA, 1992, p. 20) 6 deu o festival, que tipo de músicas participavam e ganhavam, até que ponto a classe estudantil e a sociedade em geral se envolviam. Para a construção do quarto capítulo foram feitas entrevistas com músicos que participaram tanto dos primórdios do festival quanto das últimas edições. Além de registros encontrados no clube promotor do evento e biblioteca municipal. 7 A IDÉIA DE MÚSICA E SUA GÊNESE NO BRASIL O termo música, segundo o dicionário Aurélio, significa a “Arte e ciência de combinar os sons de modo agradável aos ouvidos”. Etimologicamente, origina-se da palavra grega mousikós, musical, relativo às musas. Referia-se ao vínculo do espírito humano com qualquer forma de inspiração artística. A música tem acompanhado os homens desde os primórdios. O ritmo contido na música é comparado com pulsações do próprio corpo humano e sons oriundos da natureza: ritmo do coração, da respiração, das ondas do mar, o canto dos pássaros. Por esse motivo a música tem historicamente se constituído como uma necessidade humana. Durante um longo tempo a música esteve ligada às crenças e rituais religiosos: os cânticos gregorianos nos mosteiros, as danças invocando deuses por parte dos indígenas e escravos. Com o advento do Cristianismo essa relação se estreitou e passaram a ser comuns manifestações como: procissões, missas, novenas, louvores, etc. A mais remota referência à música no Brasil encontra-se na carta de Pero Vaz de Caminha, que relata ao rei de Portugal Dom Manuel, a musicalidade dos nativos e o encontro com a cultura musical dos europeus: [...]E depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamos a pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina começaram a saltar e dançar um pedaço. [...] E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. 2 Outras referências aparecem nas anotações do padre Manoel da Nóbrega que chega ao Brasil com os primeiros Jesuítas, a partir de 1549, mencionando a música de catequese. O encontro entre a música dos jesuítas e a música dos indígenas é a pré-história da música popular do Brasil. A evolução desses ritmos primitivos, como o cateretê ou o cantochão, são ainda hoje tocados em festas populares. 2 Disponível em: WWW.UFSC.BR Acesso em 13/12/2005. 8 A música popular do Brasil só se tornaria mais forte no final do século XVII, com o lundú, dança africana de maneios e sapateados, e a modinha, canção de origem portuguesa de cunho amoroso e sentimental. Esses dois padrões, a influência africana e a européia, alternaram-se e combinaram-se das mais variadas e inusitadas formas durante o percurso que desembocou, junto a outras influências posteriores, na música popular dos dias de hoje. Durante o Período Colonial e o Primeiro Império, além dos já citados lundú e modinha, também as valsas, polcas e tangos de diversas origens estrangeiras encontraram no Brasil uma nova forma de expressão. Já no século XIX surgem os conjuntos de chorões, que adaptam formas musicais européias, como a mazurca, a polca e o scottisch ao gosto brasileiro e à forma brasileira de se tocar essas composições. Surge então, a partir da brasileirização dessas formas, o choro, e firmam-se novas danças, como o maxixe. Outras duas coisas que ajudaram decisivamente o aparecimento da canção popular no Brasil foram o carnaval carioca e o gramofone. Pixinguinha, João da Baiana, Donga, autor de Pelo Telefone, primeiro samba gravado, em 1917, foram grandes nomes nesse período, junto com os continuadores dos chorões. O samba urbano só se firmaria na década de 30, época em que surge a primeira escola de samba, a Deixa Falar, fundada em 1929. Depois, com a popularização do rádio e do disco a música popular se consolida e chega ao mundo de opções musicais que hoje o Brasil possui. 9 A EFERVESCÊNCIA MUSICAL DA DÉCADA DE 60 Na década de 60 dá-se início no Brasil ao fenômeno dos Festivais de Música de MPB3. Surgem num momento em que o País está passando por intensa militância política com a instauração de uma nova ditadura a partir do golpe militar de 31 de março de 1964. Não por outro motivo o estilo musical que se cantava nos festivais era a MPB, por seu caráter de “comprometimento com a denúncia da realidade sócio-política brasileira e seu anseio pela transformação, fomentando a instauração de um contra-discurso e contribuindo na constituição de uma memória nacional autêntica”. (VILARINO, 1999:94) É essencial ressaltar que a sigla MPB, apesar de parecer abrangente e capaz de englobar toda e qualquer música consumida e/ou produzida pelas camadas populares, possui um significado restrito. Trata-se de um denominado estilo, como samba, bolero, rock, etc. A sigla MPB possui um significado próprio dentro da música popular brasileira, constitui um movimento autônomo dentro do próprio movimento da música popular no país. São várias as significações atribuídas a MPB: música de protesto, música dos festivais, música politicamente engajada, dentre outras. Não é, entretanto, tão popular quando possa aparentar. Tinha a princípio, um público seleto, em sua grande maioria pertencentes a classe média e universitários. Mas nem somente de MPB se constituiu a década de 60 (década dos festivais), a Jovem Guarda, a Bossa Nova e a Tropicália também imprimiram suas marcas ao período. A Bossa Nova nasce na euforia desenvolvimentista do Governo JK, época em que os veículos de comunicação em massa, entre eles a televisão, expandem-se. É nesse contexto que surge em 1958 a expressão “bossa nova”, segundo Waldenyr Caldas, num mero acaso: Roberto Menescal, convidado para apresentar-se com o seu conjunto no Grupo Universitário Hebraico-Brasileiro, encontra o seguinte aviso escrito no quadro negro: ‘hoje, João Gilberto, Silvinha Teles e um grupo bossa-nova apresentando sambas modernos’. A expressão foi tão feliz (seu criador permanece até hoje no anonimato) que os profissionais daquele show ficaram conhecidos como os ‘artistas da bossa nova’. (CALDAS, 1989:46-47) 3 “A expressão MPB, aqui, é tomada para identificar um momento da música popular brasileira, localizado entre meados da década de 60 e 80, caracterizado pelo compromisso com a realidade, por uma intencionalidade informativa e participante”. (VILARINO, 1999:20) 10 A Bossa Nova sofreu a influência da música clássica e principalmente do Jazz, e, segundo José Ramos Tinhorão, a “Bossa Nova não é um gênero musical e sim uma maneira de tocar especial, intimista”. (VILARINO, 1999:16) Houve na década de 50, no Rio de Janeiro, em termos de produção musical, uma separação social, nos morros e na Zona Norte situavam-se os pobres e na Zona sul, os ricos e os remediados. Esse fator contribuiu para o surgimento de uma leva de jovens desligados da tradição musical popular, os bossanovistas. Nessa fase inicial o discurso da Bossa Nova ainda não havia se envolvido com as questões político-ideológicas do país. Enquanto o Cinema Novo4 mostrava ao público o Brasil que ninguém gostaria de ver, a Bossa mostrava o que de melhor havia no país. Augusto de Campos cria a expressão cor local, para adjetivar essa primeira fase da Bossa Nova. Segundo o mesmo autor as principais características desse movimento nesse primeiro momento era o clima coloquial, descontraído, cheio de humor, ironia e malícia. Mas a Bossa Nova tem também o seu momento participante, ainda com denominação criada por Augusto de Campos. Nesta fase, as canções abordam questões relativas ao subdesenvolvimento brasileiro, como a exploração no trabalho, a reforma agrária, o latifúndio, o subemprego, as condições de miséria no morro, no Nordeste etc. Outro movimento musical que surgiu ao lado da MPB foi a Jovem Guarda, comumente chamada de iê-iê-iê.5 Baseava-se no ritmo internacional que estava em voga no momento, o rock’n roll, preconizado pêlos ícones, Elvis Presley, Paul Anka, Neil Sedaka e posteriormente The Beatles. A Jovem Guarda era composta por um grupo de jovens cantores e compositores, liderados por Roberto e Erasmo Carlos, que tinham uma postura aparentemente rebelde, mas que uma análise mesmo que superficial do que propunham em suas canções, perceber-se-á que se trata de uma atitude bastante conservadora. Waldenyr Caldas constata: 4 Movimento neo-realista liderado por Nelson Pereira do Santos (e mais Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman, David Neves, Ruy Guerra e Luiz Carlos Barreto), viera “para descolonizar a produção brasileira”, condicionada até então a imitar os filmes de Hollywood. Tratava-se da "libertação completa da linguagem cinematográfica de seus entraves coloniais (BOJUNGA,2001:38). 5 A expressão iê-iê-iê vinha dos gritos Yeah yeah yeah dos Beatles na interpretação da canção She Loves you(TINHORÃO: 2003,335) 11 Se o tipo de vestimenta e o uso de cabelos longos podiam representar rebeldia às normas sociais vigentes ou desejo de transformações, o conteúdo das canções o desmentia. A música Quero que vá tudo pro inferno, a mais importante na ascensão de Roberto Carlos, resume, de forma extremamente feliz, as tendências e perspectivas dos jovens e adultos da Jovem Guarda: individualismo, desinteresse pelos acontecimentos da época, certo comodismo e até apatia. A expressão e que tudo mais vá pro inferno, caracteriza muito bem (ainda que os autores não tivessem a intenção ) o desinteresse por tudo o que estava ocorrendo na sociedade brasileira. (CALDAS, apud CAMPOS, 1978: 55) Em setembro e outubro de 1967, mais especificamente no III Festival da Música Popular Brasileira, o País pôde conhecer um outro movimento da música popular, a Tropicália. O Tropicalismo ou Tropicália foi um movimento cultural que procurou expressar através das artes plásticas, da música e de todo um entorno imagético, o que seria na verdade a gênese e a identidade do Brasil. Os representantes da Tropicália enfatizavam a “coragem de assumir todos os pecados dos que nascem nos trópicos” (OITICICA apud CALADO, 1997,163), assumir nossa real natureza: um país exótico, eclético culturalmente e subdesenvolvido em todos os aspectos e contendo no seu interior uma multi-racialidade; assim, somos um pouco índios, negros, portugueses, italianos, sul-americanos, norte-americanos, etc. De acordo com o artista plástico Hélio Oiticica6 – tropicalista que batizou o movimento através de sua obra Tropicália– A pureza é um mito: [...] creio que a Tropicália veio contribuir fortemente para a objetivação dessa imagem brasileira total, para a derrubada do mito universalista da cultura brasileira, toda calcada na Europa e na América do Norte, num arianismo inadmissível aqui: na verdade, quis eu com a Tropicália criar um mito de miscigenação – somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo -, nossa cultura nada tem a ver com a européia, apesar de estar até hoje a ela submetida: só o negro e o índio não capitularam a ela.[...] Para a criação de uma verdadeira cultura, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita européia e americana terá de ser absorvida, antropofagicamente, pela negra e índia de nossa terra, que na verdade são as últimas significativas, pois a maioria dos produtos da arte brasileira é hibrida, intelectualizada ao extremo, vazia de um significado próprio. (OITICICA apud CALADO, 1997, 163) 6 A obra do artista plástico Hélio Oticica, que inspirou o nome do movimento tropicália (a princípio Caetano Veloso pensava chamar o movimento de Ensaio Geral), consistia num labirinto cheio de árvores que tinha ao fundo uma TV ligada, demonstrando que o Brasil era ao mesmo tempo exótico, subdesenvolvido e moderno. 12 Foi no sentido de considerar a MPB intelectualizada demais em relação ao nível social, político e econômico da maioria dos brasileiros que, Caetano Veloso e Gilberto Gil preconizaram a Tropicália nos festivais de música, até então, reduto exclusivo da MPB e seu público. De acordo com Haroldo de Campos, a tarefa do Movimento Tropicalista era: [...] assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangeira e reinventá-la em termos nossos, com qualidades ineludíveis que dariam ao produto resultante um caráter autônomo e lhe confeririam, em princípio, a possibilidade de passar a funcionar por sua vez, num confronto internacional, como produto de exportação. (CAMPOS apud VELOSO, 1997, 247) A década de 60, considerou a Tropicália um movimento de Vanguarda que procurou assimilar elementos da música estrangeira num ritmo abrasileirado e não apenas negar essa influência nem tampouco reproduzi-la apenas. Os tropicalistas ofereciam outra proposta aquele momento histórico, diferente da direita e da esquerda. Entendiam que, antes de transformar a sociedade, era necessário uma transformação individual na qual a arte estaria sempre presente. De acordo com a autora, Patrícia Marcondes de Barros,(2000) o Tropicalismo incorporou em seu ideário os elementos antropofágicos contidos no Manifesto de Oswald de Andrade, publicado em 1928: A antropofagia cultural propõe devorarmos e saborearmos “o inimigo, principalmente, se for esteticamente e festivamente aproveitado, ou seja, ao invés de excluir “o outro”, devemos reaproveitá-lo naquilo que possa ter de melhor. O Brasil faria assim uma “filtragem” daquilo que seria interessante ou não assimilar (filtragem quase sempre inconsciente, produzida pelo sentimento do ressentido colonizado). Na relação devorador/devorado, seria criado um outro indivíduo típica e festivamente brasileiro. (BARROS: 2000, 7) Muitos não compreenderam ou simplesmente não aceitaram a forma de ver e de mostrar tropicalista. No entanto, é interessante notar que esse movimento de se apropriar de ritmos e instrumentos oriundos de outras terras e dar-lhes nova roupagem é prática comum na história da música e na história da própria constituição de brasilidade desde os tempos do lundú e da modinha 13 FESTIVAIS DE MÚSICA NO BRASIL, UMA HISTÓRIA A década de 60, abarcou, como pudemos verificar no capítulo anterior, quatro movimentos da música brasileira: a Bossa Nova, gerada nos anos dourados do governo JK, a Jovem Guarda, a MPB e a Tropicália, as três últimas frutos da Ditadura Militar. Sendo a Bossa Nova anterior aos outros três movimentos citados, pode-se observar influências desta sobre os demais movimentos. João Gilberto, considerado o pioneiro da Bossa Nova com sua clássica gravação de Chega de Saudade, é tido como referencial tanto para Roberto Carlos como para Chico Buarque e Caetano Veloso. A MPB tornou-se portadora de uma mensagem crítica, reforçada pelo arranjo musical. Para que essa mensagem chegasse ao público, foram usados prodigamente os Festivais, tão em voga durante toda a ditadura militar. Dessa forma a MPB, ao menos nos primeiros anos, manteve um estreito vínculo com a televisão, a qual exibiu os festivais, fundamentais para constituir um público para essa música. Segundo o jornalista e historiador Zuza Homem de Mello (2003), os festivais, em alguns países, dentre eles o Brasil, é um evento que possui duas concepções diferentes. Uma das formas é a reunião de exibições artísticas sobre um gênero musical ou outra área artística, não havendo assim, competitividade e sim uma amostra de arte, podendo ou não ter apelo comercial. O objetivo destes festivais é oportunizar ao povo o acesso a novas tendências, ou revisitar a obra de artistas consagrados. Neste primeiro modelo pode-se citar alguns dentre os mais aclamados: Festival de Edimburgo, Festival de Bayreuth ou os Festivais de Jazz dos anos 50. No Brasil, o primeiro neste modelo, foi o I Festival da Velha Guarda, promovido em 1954. O outro modelo de festival, o qual nós iremos abordar neste estudo, é marcado pela competitividade. Os Festivais de Cannes e Veneza são exemplos de festivais competitivos. Viña del Mar, no Chile e San Remo, na Itália também competem, visto que as novas participações geralmente implicam em obras inéditas (MELLO, 2003: 13). Esse conceito de Festival de música popular ou Festival de canção, que se estabeleceu no Brasil nos anos 60, trata-se de uma nova roupagem dos concursos de música carnavalesca que tiveram grande sucesso nos anos 30, embora, segundo Zuza Homem de Mello, em 1919 já tivesse ocorrido, sem muita repercussão, um concurso realizado por Eduardo França. Em 1932 14 é oficializado o Carnaval e a partir daí abre-se terreno para as premiações e subvenções, gerando controvérsias similares as que existem até hoje nos desfiles de escola de samba. De acordo com Marcos Napolitano: Quando Donga registrou a música Pelo Telefone, colocando-lhe o rótulo de Samba, ele realizou um gesto comercial e simbólico a um só tempo: comercial porque registrava uma música que reunia elementos de circulação pública, e simbólico na medida em que tanto o registro de autoria (na Biblioteca Nacional em 1916) quanto o fonográfico (com o selo Odeon, em 1917) permitiam uma ampliação do círculo de ouvintes daquela música. (NAPOLITANO: 2002,50) Grifo nosso. Os critérios para a escolha das músicas premiadas variavam bastante, mas no geral o público sempre esteve bastante presente nessas escolhas, tanto que os aplausos sempre foram uma forma bastante utilizada para escolha das canções. Sobre esse aspecto resume, Zuza Homem de Mello: Como se nota nos concursos de carnaval que proliferavam então, os principais ingredientes que fariam parte dos festivais, mais de 30 anos depois, já estavam presentes: a rivalidade, a participação do público e os estratagemas para vencer.” (MELLO, 2003:16) Mesmo os concursos e posteriormente os festivais contando com um corpo de jurados, composto por integrantes de diversos setores da comunicação, atores, radialistas, músicos, etc, e obedecendo a critérios divulgados com antecedência, as injustiças referentes a escolha das canções eram freqüentes. Em 1959, Tito Fleury, jornalista e diretor do rádio-teatro da TV Excelsior, estava prestigiando um festival nos moldes do que viriam a ser os festivais no Brasil na década de 60. Era o Festival de San Reno, na Itália, naquela ocasião o radialista ficou tão entusiasmado com a possibilidade de criar um concurso semelhante, com canções brasileiras, que trouxe em sua bagagem uma cópia do regulamento. (MELLO, 2003: 18-19) O primeiro Festival então se deu, com a apresentação da idéia de Tito para o jornal Última hora, que estava promovendo na ocasião um concorrido concurso de misses o Miss Luzes da cidade de São Paulo. O Festival aconteceu no Guarujá, balneário que na época era o que havia de mais charmoso e parecido com San Reno no estado de São Paulo. 15 A parcela ocupada pelo festival no evento como um todo foi pequena, era apenas mais um item da programação da Rede Record, não contando com a mesma promoção do concurso de misses. Apesar de prometido pela emissora o Festival nunca foi divulgado pela televisão, saindo apenas no jornal impresso. Poucos registros se tem desse momento da história dos festivais, entretanto, conhecendo os que vieram a ser e representar em termos de participação popular os festivais que se seguiram a este, pode-se dizer deste que foi elitizado e portando excludente, voltado para minorias e com caráter comercial. Ainda não era intuito, nesse primeiro momento, promover a música em si e sim utiliza-la como mais um fator de entretenimento. O nome dado a esse evento foi, I Festa da Música Popular Brasileira, que se constituiu no primeiro evento em caráter nacional, uma vez que eram aceitas composições de várias regiões do Brasil. No início dos aos 60, a maioria das formas de manifestação artística se auto-submetem a uma transformação, os fatores políticos e sociais inerentes ao momento que o País vive, passa a ser tema básico e obrigatório a nova postura da arte. Nos anos 50, o Teatro feito no Brasil ainda não trabalhava a realidade do país como mote. Grande parte dos diretores teatrais da época eram italianos, franceses e belgas, dessa forma, o que se assistia era apenas o olhar europeu, distante e frio. Em contraposição a esse formato de teatro surge o Teatro Arena, composto por artistas mais ligados a esquerda, com uma perspectiva mais enraizadamente brasileira a ser contemplada. Em 1958, a peça Eles Não Usam Black–Tie, de autoria de Gianfrancesco Guarnieri, dirigida por José Renato Pécora, apresentou o homem brasileiro comum como personagem e com direito a conteúdo popular dentro da realidade sócio-política. Os atores do Arena também escreviam suas opiniões sobre o mundo na ótica do teatro, criando um estilo que recebeu a adesão de pintores, arquitetos, jornalistas (como Benedito Rui Barbosa) e músicos. As peças do Arena provocaram tamanho interesse no meio musical que o contato entre os bossanovistas e os integrantes do Arena não tardaria a acontecer. Dessa união surgiu a idéia de se montar o CPC, Centro Popular de Cultura, que foi efetivamente criado em dezembro de 1961 por músicos, teatrólogos, cineastas, artistas plásticos e líderes estudantis, que se tornou o braço cultural da União Nacional dos Estudantes, a UNE. Nessas reuniões, organizadas por Chico de Assis, os freqüentadores do CPC costumavam orientar suas discussões em torno da realidade social brasileira. As parcerias tornaram-se 16 inevitáveis, os músicos passaram a compor com o pessoal do teatro e do cinema. Uma das canções pioneiras oriundas dessa parceria foi a Canção do Subdesenvolvido, de Carlos Lyra e Chico de Assis, que vendeu bastante no interior das universidades e se tornou um ícone da época. Geraldo Vandré, Carlos Lyra e Sérgio Ricardo, por sua ligação com o cinema, foram os compositores que mais se envolveram nesse processo de mudança de enfoque da música popular brasileira, processo que Chico de Assis, Ruy Guerra e Glauber Rocha, apesar de não serem músicos, exerceram influência decisiva. Toda essa euforia musical ocorre junto com a culminância da TV Excelsior, que em 1965, já era líder de audiência segundo o Instituto IBOPE. E foi aproveitando esse entorno que a referida TV designou Solano Ribeiro para produzir o que seria considerado na história da música brasileira, o primeiro Festival da Música Popular Brasileira. As inscrições foram feitas mediante a entrega de partituras das canções nos pontos estipulados pela TV Excelsior no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Foi formada uma comissão para avaliar todo o material. A Segunda etapa do trabalho seria indicar um grupo de intérpretes que seriam importantes para dar credibilidade ao evento. Alguns dos cantores convocados a interpretar as canções foram os novatos Wilson Simonal, Claudete Soares e Geraldo Vandré além dos já consagrados Agnaldo Rayol, Altemar Dutra, Cauby Peixoto, Elizeth Cardoso, entre outros. O patrocínio deste primeiro festival de música da Excelsior foi proposto à Rhodia, um conglomerado de origem francesa da indústria química. O diretor de marketing da divisão têxtil da Rhodia, a Rhodiaceta, era Lívio Rangan, que tratou logo de deixar seus traços no evento. Tal como ocorreu na I Festa da Música Popular Brasileira, o festival de música não seria a única atração da festa, que contaria com desfiles e outras novidades. A idéia, era dar um maior realce a música dentro das festividades equiparando-a em importância com os desfiles, promovendo, assim, a participação de músicos, cantores e dançarinos. I Festival Nacional de Música Popular Brasileira foi o nome dado ao evento, que contou com 12 músicas inéditas. Os prêmios somavam um total de 21 milhões de cruzeiros, divididos proporcionalmente entre os 5 primeiros colocados. Solano Ribeiro da TV Excelsior e Lívio Rangan da Rhodia não concordavam com a linha que o festival deveria seguir. Quando a intérprete Elis Regina conquistou o público e os jurados com uma interpretação nada convencional, provocou um certo desconforto em Lívio que acreditava que a música mais de 17 acordo com a linha do patrocinador7 era Rio do Meu Amor, uma verdadeira Ode à cidade. Houve três eliminatórias e, em cada uma delas, o nível das canções se elevavam. A favorita do público e jurados era Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, defendida por Elis Regina. Segundo Zuza Homem de Mello : Arrastão nascera numa festa na casa dos Caymmi, quando se cantava a terceira parte da História de Pescadores, o trecho denominado ‘temporal’. Ao improvisar um contra canto para o nome de cada um dos pescadores (Pedro, Chico, Lino e Zeca), Edu percebeu que estava nascendo uma música sob a inspiração de Dorival Caymmi. Guardou a idéia e completou a música depois, mostrando a Vinícius quando este voltou de uma viagem. (MELLO, 2003:67) Grifo nosso. Arrastão foi um marco para a música popular brasileira, um divisor de águas. Ainda segundo Zuza, “não era uma ruptura com a bossa nova, nem uma corrente contrária, e sim uma decorrência da estrutura harmônica da Bossa Nova”(TINHORÃO, 1978:221-222). Surgiu até mesmo uma nova sigla para designar esse novo formato de música MPB, para que esse momento característico não ficasse diluído como sendo parte de toda a música brasileira de cunho popular, MMPB (Moderna Música Popular Brasileira). Assim, alguns críticos como Augusto de Campos e Walnice Pereira Galvão utilizavam essa expressão para deixar evidente que tratava-se de um estilo dentro da música popular brasileira. Essa nova concepção se deve em muito ao jeito único de Elis Regina de interpretar, com muito movimento (principalmente com os braços, chegando a lembrar uma hélice, rendendolhe o apelido Hélice Regina) e outros elementos como a desdobrada, criando assim um outro enfoque à música popular brasileira até então limitada ao modelo banquinho e violão. Esses expedientes foram tão importantes que passaram a determinar o modelo das músicas de festival. A nova música popular brasileira, aclamada nos festivais “tinha por modelo a temática como uma mensagem, como na letra de Vinícius; a melodia contagiante, como na música de Edu Lobo; o arranjo peculiar, que levanta a platéia, e a interpretação épica de Elis Regina” 7 A empresa patrocinadora entre suas inúmeras atividades, tinha a linha têxtil, apresentada a alta sociedade em seus desfiles, portanto não interessava a ela músicas que submetessem o funcionamento da sociedade a uma análise mais cuidadosa como era a tônica dos festivais de MPB. 18 (MELLO, 2003:73). Esse foi também o ponto de partida da música na televisão e do programas de auditório, um espaço até então inexistente. Com os festivais nascia uma nova torcida no Brasil, a exemplo do futebol havia a disputa e a empolgação, cantores e compositores no lugar de times, palcos no lugar de estádios. Foi a primeira vez que o público que estava em casa teve a oportunidade de avaliar as canções, opinar e torcer, influenciados ou não pela opinião das platéias. Esse simples ato representou na época a liberdade de avaliar cada canção e nela cada idéia, cada grito por liberdade. Fato que significou muito para uma época e num país em que a liberdade de pensar vinha sendo tolhida pouco a pouco há quase um ano. Em 31 de março de 1964 o Golpe Militar instaurou-se no Brasil. O presidente João Goulart com suas reformas comunistas foi o estopim. Os militares começaram, então, a promulgar decretos, chamados de AI, Atos Institucionais, que tinham o objetivo de limitar o poder do congresso, embora este se mantivesse funcionando, e reprimir a liberdade de expressão da população e principalmente da classe artística, intensificado no AI 5. A situação da TV Excelsior com a instauração da Ditadura ficou complicada, uma vez que as posições assumidas por Mario Wallace Simonsen, o cabeça do grupo Excelsior, a favor de João Goulart passaram a ser alvo dos militares. Após sua morte em 1965, em Paris, Wallace, teve seus bens seqüestrados, fato que desencadeou um longo e irreversível processo de perdas, como os salários atrasados, as ações de despejo, o controle das ações da TV Excelsior Rio pelo Estado, cassações, mudanças de diretoria e outras ações que levariam a emissora a sua definitiva derrocada em abril de 1970. Para o II Festival promovido pela TV Excelsior, em 1966, a Rhódia manteve-se como patrocinadora, aliando-se a revista Manchete e ao jornal Folha de São Paulo. As eliminatórias ocorreram em cidades diferentes, Guarujá, Porto Alegre, Recife, Ouro Preto e Rio de Janeiro, segundo exigência da Rhodia que fazia turnês pelo Brasil e aproveitava os festivais de música para agregar valor a seus eventos de moda, contrariando a idéia inicial de Solano Ribeiro, que, com a movimentação dos festivais pretendia promover a vida cultural local. Diante desse impasse Solano Ribeiro pediu demissão e Roberto Palmari, homem de confiança de Livio Rangan, assumiu a organização do festival. Essa mudança na direção do festival é historicamente importante, pois explica as mudanças no enfoque do Festival (MELLO, 2003: 76). 19 Quando a TV Record anunciou no mesmo ano, que promoveria o II Festival da Música Popular Brasileira muitos pensaram que seria o segundo pelo fato da TV Excelsior já ter feito em 1965, contudo, poucos se lembravam que seis anos antes houvera o primeiro, promovido pela Record, no Guarujá. O ponto em comum entre o Festival da Excelsior e o da Record que faria a diferença era o produtor, Solano Ribeiro, o homem que segundo Zuza Homem de Mello, sabia fazer Festivais. O compositor Geraldo Vandré teve a primeira vitória em Festivais de sua carreira com a composição Porta Estandarte, interpretada por Airto Moreira e Tuca, campeã do II Festival da Excelsior. Foi com essa composição que Vandré iniciou sua caminhada para se tornar, anos mais tarde, um dos grandes mitos de sua geração na música popular brasileira. Caetano Veloso conseguiu a Quinta colocação com a música Boa Palavra, Baden Powell e Lula Freire ficaram com o quarto lugar com a música Cidade Vazia, em terceiro lugar Adilson de Godoy e Luiz Roberto com a música Chora Céu, em segundo lugar ficaram Vera Brasil e Maricene Costa com a música Inaê, Geraldo Vandré e Fernando Lona foram os primeiros colocados com a música Porta Estandarde. A música que levou Vandré e Fernando Lona à vitória possuía uma importante característica em comum com outra música vencedora, Arrastão. O ano de 1966 abarcou também outras manifestações musicais além daquelas demonstradas nos festivais, tratava-se da Jovem Guarda. Em termos de audiência, “o pessoal da Bossa Nova perdia espaço para a garotada do iê-iê-iê”(MELLO: 2003, 92). A guerra estava declarada, a TV Excelsior atacava com programas promovendo a Jovem Guarda, com participações de astros do estilo como Os Vips, Demetrius, Marcos Roberto, e programas como Juventude e ternura. A Tupi também apresentava aos sábados um programa intitulado, Na onda do iê-iê-iê, com participação de ídolos internacionais como Neil Sedaka, Rita Pavone e outros. A Record contra-atacava, com o intuito de salvar a moderna música popular brasileira desse tal iê-iê-iê. Zuza Homem de Mello retrata a forma e proporção com que a Jovem Guarda conquistou parcela significativa da juventude brasileira: Naquele verão de 1966, ao mesmo tempo que Elis passeava pelo Velho Mundo, a audiência da Jovem Guarda crescia assustadoramente, alavancada pelo novo sucesso de Roberto Carlos, Quero Que Vá Tudo Pro Inferno. A garotada iconoclasta superlotava o Teatro Record nas tardes de Domingo, identificando-se com os cabeludos de roupas extravagantes, acolhendo o alheamento como forma de revolta contra as preocupações e formalidades, adotando as novas gírias como a linguagem de sua preferência e entregando-se 20 à espontaneidade ingênua das letras e à alegria do ritmo para cantar e dançar livremente. O iê-iê-iê começava a dominar a bossa. (MELLO, 2003:118) O governo militar começou a prestar maior atenção aos espetáculos de música engajada tipo Opinião8, por se tratarem de um espaço privilegiado de formação de opinião e engajamento político. Os novos ídolos da música popular passaram a ser o foco. Nara Leão, por ter assumido suas posturas publicamente, depois de ter sido publicado no jornal Diário de Notícias, em manchete: “Nara é de opinião: esse exército não vale nada”, correu o risco de ser presa. (MELLO, 2003:121) Geraldo Vandré, que já tinha a experiência de vencer um Festival, sabia que tipo de música ia dar certo. Zuza Homem de Mello narra um vislumbre sobre a música vencedora do II Festival da Record: Geraldo Vandré, que tinha um Fusquinha, saiu com Alberto Helena e o produtor Luis Vergueiro. De repente, parou o carro e disse: “eu vou cantar para vocês a música que vai ganhar o Festival. É a maior revolução, porque é o sertanejo moderno com Guimarães Rosa; vocês não tem a menor idéia do que vai ser”. E cantou Disparada. Os dois ficaram se olhando abismados. Foi uma porrada, era uma música revolucionária, coisa de um visionário. (MELLO, 2003:125-126) A música Disparada foi cantada por Jair Rodrigues acompanhado pelo Trio Marayá e pelo Trio Novo, com uma estranha instrumentação: viola caipira, uma queixada de burro e violão. A música provocou uma vibração generalizada, francamente superior a qualquer outra concorrente. A música tinha como temática a esperança num dia melhor, num mundo melhor, segundo Ramom Casas Vilarino – o dia que virá (VILARINO, 1999:56). Prepare o seu coração Pr ’as coisas que eu vou contar Eu venho lá do sertão E posso não lhe agradar Aprendi a dizer não Ver a morte sem chorar A morte, o destino, tudo Estava fora de lugar 8 O LP Opinião de Nara, se por um lado rachou a Bossa Nova, por outro deu origem ao espetáculo Opinião, escrito por Oduvaldo Viana Filho, Armando Costa e Paulo Pontes e dirigido por Augusto Boal. Esse espetáculo mescla o musical com o teatro, constituindo-se num primeiro ato de resistência ao golpe militar. 21 Eu vivo pra consertar Na boiada já fui boi Mas um dia me montei Não por um motivo meu Ou de quem comigo houvesse Que qualquer querer tivesse Porém por necessidade Do dono de uma boiada Cujo vaqueiro morreu Boiadeiro muito tempo Laço firme, braço forte Muito gado, muita gente Pela vida segurei Seguia como num sonho E boiadeiro era um rei Mas o mundo foi rodando Nas patas do meu cavalo E nos sonhos que fui sonhando As visões se clareando Até que um dia acordei Então não pude seguir Valente em lugar-tenente Como dono de gado e gente Porque gado a gente marca Tange, ferra, engorda e mata Mas com gente é diferente Se você não concordar Não posso me desculpar Não canto pra enganar Vou pegar minha viola Vou deixar você de lado Vou cantar noutro lugar... O autor descreve o trabalhador sertanejo tratado como gado e um tanto passivo diante de sua situação, pois até quando muda de posição não é por vontade própria e sim por necessidade do sistema. Mesmo aqueles com posições mais bem situadas na hierarquia social precisam agir conforme o sistema impõe, mesmo que ilusoriamente se considerem donos de seus destinos. Há donos e bois. Temos uma sociedade dividida em classes. Acordar, para tal classe submissa, é tomar as rédeas do seu destino, assumir a vontade própria. É interessante o destaque da música, em que se lembra que o autor não canta para enganar, e sim sua música é uma tomada de posição diante de uma 22 realidade que provoca interpretações opostas, desde os que com ela convergem, até aqueles que não a toleram. Daí o lembrete, pois se o ouvinte não concordar com sua posição, recolhesse a viola e busca-se outro lugar para cantá-la. (VILARINO, 1999:28) A outra finalista, concorrente de Disparada, foi a música A Banda, que revivia a pureza de espírito das cidades do interior nos anos 30. A intérprete foi Nara Leão, que cantou à frente de uma bandinha de coreto do interior, com tuba e bumbo, num arranjo de Geny Marcondes. A voz de Nara ficou encoberta pelo som da banda, não impressionou tanto quanto Disparada, embora tivesse sido a mais aplaudida. O conteúdo segundo Ramon Casas Vilarino: É um tanto desalentador, não apontando o dia que virá como redenção para o presente, mas anotando naquele momento uma possibilidade de esquecer a dor, uma oportunidade fugaz, mas é na passagem da banda que se anuncia um mal-estar presente.(VILARINO, 1999:57) A música acena para a idéia de que através da própria MPB, seria feita a catarse do momento politicamente difícil que o povo brasileiro passava. O breve momento de passagem de uma banda de música, trazia à tona todos os problemas da vida cotidiana, proporcionando uma tomada de posição frente a realidade. Estava à toa na vida O meu amor me chamou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor A minha gente sofrida Despediu-se da dor Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor O homem sério que contava dinheiro, parou O faroleiro que contava vantagem, parou A namorada que contava as estrelas, parou Pra ver, ouvir e dar passagem A moça triste que vivia calada, sorriu A rosa triste que vivia fechada, se abriu E a meninada toda se assanhou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor... (...) Mas para meu desencanto O que era doce acabou 23 Tudo tomou seu lugar Depois que a banda passou E cada qual no seu canto E em cada canto uma dor Depois da banda passar Cantando coisas de amor. Nessa final, a mobilização nacional em torno da música popular foi tanta que pode ser comparada as discussões causadas pela final da copa do mundo, em todos os cantos as pessoas discutiam sobre as qualidades das duas finalistas e apostavam em suas prediletas. O tema ganhou amplitude nacional. O povo estava pela primeira vez se envolvendo verdadeiramente com assuntos pertinentes à cultura musical do país e vendo que Música Popular Brasileira era coisa séria. “Acontecia na rua uma discussão sobre estética, o gari e o jornaleiro argumentavam sobre o que era mais bonito, mais antigo, mais moderno, qual letra ou melodia era melhor” (MELLO, 2003:129). Nas palavras de Zuza Homem de Mello, “com essas duas músicas, a bucólica A Banda e a telúrica Disparada, o II festival da TV Record mostrou para os brasileiros de todas classes sociais a grandeza da sua música popular, um bem dotado do mais alto valor artístico do qual tinham por que se orgulhar”(MELLO, 2003:145). A música A Banda, foi posteriormente gravada por Nara Leão, sua intérprete no Festival. A música começou a tocar em todas as rádios, dando imensa vantagem ao seu compositor Chico Buarque, até então sem nenhum grande sucesso reconhecido. O ano de 1966 foi um ano musicalmente agitado, foi também neste ano que Augusto Marzagão, o “discreto e ultra bem informado personagem dos bastidores da vida política brasileira”,(MELLO, 2003:148) pediu a Negrão de Lima, eleito Governador do Estado da Guanabara com sua ajuda na campanha de Marketing, que gostaria de produzir um Festival de música, justificando que poderia ser benéfico à juventude brasileira. Assim gerou-se o I FICFestival Internacional da Canção. A novidade do FIC foi reunir dois festivais num só. Uma fase nacional e outra internacional. O Festival foi realizado no Maracanãzinho, um estádio com capacidade para 13.163 espectadores, com péssima qualidade de som. As músicas defendidas no festival, de modo geral, eram músicas que na opinião do público e da critica, principalmente os estrangeiros, podiam ser consideradas tristes, sem o vigor dos festivais anteriores. Registrou-se 24 inclusive a participação de uma composição chamada Canto Triste, um pressentimento do compositor sobre a nova aura que pairaria sobre os festivais. Um dos grandes pontos positivos, oriundos desse festival foi o amadurecimento do público, mais crítico e participativo. Devido a essa participação verdadeira do público, a essa tomada de posição, em pleno Maracanãzinho, a música que mais agradou não foi nenhuma das concorrentes do FIC e sim uma vencedora do Festival da Record. Após serem proclamadas as vencedoras, Saveiros em primeiro lugar, o público gritou pela Banda e Chico Buarque teve que emprestar um violão e subir ao palco. A música Saveiros foi designada para representar o Brasil na fase internacional e perdeu para a estrangeira Frag den wind de Helmut Zacharias e Carl Schaubler. Os festivais não estavam movimentando apenas a opinião pública mas também a economia, “como se deu com a bossa nova, naqueles meses de outubro e novembro de 1966, as gravadoras brasileiras estavam descobrindo uma nova área de atuação, a dos discos de festival, que atingiram picos a partir desse ano” (MELLO, 2003:170). Com os festivais que já haviam ocorrido, um novo perfil na Música Popular Brasileira havia se delineado, e não é de se admirar que tenha sido neste festival, o I FIC, que o público tenha inaugurado as vaias, pois nenhuma das concorrentes apresentava o perfil das já conhecidas como músicas de Festival, mesmo possuindo algumas das canções de indiscutível qualidade técnica. Foi o primeiro festival que não contou com músicas características de festival. Antes do III Festival da TV Record, 1967, a atividade de compositor era ignorada do grande público, ficavam conhecidas a canção e o intérprete. A música ganhava ou perdia pela atuação do intérprete. Os autores começaram a perceber que seus ganhos com direitos autorais eram bem menores do que os oriundos da simples exposição após o sucesso da música. Foi então que vários compositores decidiram subir ao palco defender suas próprias canções. Nas palavras de Zuza Homem de Mello: A nata da música popular, de Pixinguinha ao novato Martinho da Vila, estava concorrendo. Era um verdadeiro Grande Prêmio, com 36 canções alinhando-se na fita de partida, pilotadas pela fina flor dos intérpretes brasileiros que, pela primeira vez, corriam lado a lado com compositores, defendendo sua obra. (MELLO, 2003:184) 25 Para o público dos festivais, qualquer símbolo que lembrasse o Rock, ritmo importado e apelidado de iê-iê-iê, causava repúdio. Ronnie Von, estreante em festivais, e que defendia essa corrente da música, ao entrar no palco do III Festival da Record, foi recebido com rosas por meia dúzia de fãs e estrepitosas vaias da grande maioria do público presente. Gilberto Gil que nessa época já via o Rock de uma maneira mais cautelosa, ficou inconformado com essa manifestação do público e não fosse o apelo de amigos, Nana e Dori Caymi, teria desistido de concorrer no festival. Gil e Caetano estavam boquiabertos desde que ouviram o disco Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, que provocou nos dois uma leitura diferente do Rock. Perceberam que havia uma música inteligente no estilo que estava vindo de fora. Em 1967, Solano Ribeiro convidou Caetano Veloso para ouvir um disco. O disco era Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band. Caetano ficou bastante impressionado com o LP e o mostrou a Tom Zé. Gilberto Gil também ficara entusiasmado com o disco, percebendo que havia algo de muito inteligente na música que vinha de fora. Gil e Caetano consideravam o iêiê-iê banal, mas percebiam que aquele disco mostrava uma nova maneira de incorporá-lo a música popular brasileira. Com os próprios compositores subindo aos palcos concorrendo com profissionais da voz, a disputa alcançava um alto nível de competitividade. Foi quando as gravadoras tiveram a idéia de lançar um LP com as finalistas de cada etapa do festival nos dias seguintes a cada eliminatória. Foi um golpe de mestre. A organização dos Festivais estava sempre na corda bamba, tinha a firme intencionalidade de ser o palco das manifestações de intérpretes que usavam a música como instrumento político, de desvelamento da realidade a qual atravessava o país, mas por outro lado, tem estreita relação com a direita do país, já que a ditadura sempre exerceu rigoroso controle das mensagens transmitidas nas músicas dos festivais. De acordo com Zuza Homem de Mello (2003), Solano Ribeiro demonstrava esse cuidado até na escolha dos jurados, equilibrando entre membros representantes da esquerda e da direita. Nem sempre esse convencimento se dava com facilidade. A Censura fazia um trabalho rigoroso junto as composições concorrentes. Todas as músicas eram enviadas para a apreciação da Polícia Federal, que depois de examiná-las, convocava os responsáveis pela organização do festival e indicavam frases que continham 26 duplo sentido ou conteúdo marcadamente de esquerda. Os responsáveis, então, procuravam os músicos e tentavam convencê-los a modificar a música. O III Festival da Record também foi o responsável pela institucionalização da vaia. Os cantores e compositores ficavam aterrorizados com a possibilidade de serem vaiados. O público se organizava em pequenos grupos dispostos a eleger uma canção e vaiar qualquer outra independente da qualidade que apresentasse. Os cantores eram vaiados antes mesmo de iniciarem as apresentações. Uma verdadeira injustiça. Caetano Veloso concorreu com a música Alegria, Alegria, uma letra de empatia instantânea com a juventude que assistia o Festival, fosse da linha esquerdista ou do iê-iê-iê. A letra tratava da aversão às convenções. Segundo Décio Pignatari, “Alegria, alegria é uma letracâmara-na-mão” (VILARINO, 1999:44) colhendo a realidade casual por entre fotos e nomes: Caminhando contra o vento Sem lenço, sem documento No sol de quase dezembro, eu vou O sol se reparte em crimes Espaçonaves, guerrilhas Em Cardinales bonitas, eu vou Em caras de presidentes Em grande beijos de amor Em dentes, pernas, bandeiras Bombas e Brigitte Bardot O sol nas bancas de revista Me enche de alegria e preguiça Quê lê tanta notícia, eu vou Por entre fotos e nomes Os olhos cheios de cores O peito cheio de amores vãos Eu vou, por que não? Por que não?... (...) O sol é tão bonito, eu vou Em lenço, sem documento Nada no bolso ou nas mãos Eu quero seguir vivendo, amor Eu vou, por que não? Por que não? Chico Buarque concorreu com Roda Viva, que levou ao delírio mesmo aqueles que não torciam pela canção. Segundo Zuza Homem de Mello, o sucesso da música em grande parte se deveu ao arranjo, um dos mais perfeitos da Era dos Festivais. Na euforia do impacto causado 27 pela música, poucos foram os que compreenderam o real significado da canção, que as mocinhas cariocas cantavam em coro, apaixonadas. Falava da fatalidade com que a história política interrompeu os sonhos dos brasileiros. De acordo com Ramon Casas Vilarino, “nessa composição, o destino e o livre arbítrio, o tempo como agente inibidor da tomada de ações, a saudade simbolizando a memória, e a repressão são algumas questões presentes”. (VILARINO, 1999:62) Tem dias que a gente se sente Como quem partiu ou morreu A gente estancou de repente Ou foi o mundo então que cresceu A gente quer ter voz ativa No nosso destino mandar Mas eis que chega a roda-viva E carrega o destino pra lá Roda mundo, roda gigante Roda moinho, roda pião O tempo rodou num instante Nas voltas do meu coração A gente vai contra a corrente Até não poder resistir Na volta do barco é que sente O quanto deixou de cumprir Faz tempo que a gente cultiva A mais linda roseira que há Mas eis que chega a roda-viva E carrega a roseira pra lá A roda da saia, a mulata Não quer mais rodar, não senhor Não posso fazer serenata A roda de samba acabou A gente toma a iniciativa Viola na rua, a cantar Mas eis que chega a roda-viva E carrega a viola pra lá... A música de Chico Buarque foi contemplada com o terceiro lugar e foi música-tema de uma peça homônima, lembrando os tempos do Teatro Arena, em que música e teatro subiam juntos ao palco. 28 Edu Lobo venceu o Festival com a música Ponteio, que ofereceu ao país mais um bordão contra a ditadura militar. A música também tocava na questão do dia que virá, aquele no qual o momento será mais propício para se cantar: Era um, era dois, era cem Era o mundo chegando e ninguém Que soubesse que eu sou violeiro Que me desse um amor ou dinheiro Era um, era dois, era cem Vieram pra me perguntar Ò você, de onde vai, de onde vem Diga logo o que tem pra contar Parado no meio do mundo Senti chegar meu momento Olhei pro mundo e nem via Nem sombra, nem sol, nem vento Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar... (...) Certo dia que sei por inteiro Eu espero não vá demorar Este dia estou certo que vem Digo logo que vim pra buscar Correndo no meio do mundo Não deixo a viola de lado Vou ver o tempo mudado E um novo lugar pra cantar A platéia dos festivais era formada em sua maioria pela juventude estudantil, que estava sintonizada com aquele movimento musical que se distinguia da Jovem Guarda, tanto no conteúdo quanto na forma, pois falava e tinha por obrigação falar da realidade brasileira. As músicas tinham nos festivais, que unir beleza estética e posicionamento político. Era como se fosse uma prestação de contas à população brasileira, pois a grande maioria dos músicos envolvidos nos festivais era oriunda de Universidades, portanto, tiveram acesso a educação formal, e tinham como obrigação, através de sua música, “dar voz ao povo”, principalmente aos excluídos. Evidentemente, os compositores perceberam que, em se fazendo porta vozes do povo, eram por ele admirados e mais facilmente chegariam próximos a vitória, uma vez que a premiação além de levá-los a popularidade, representava boas quantias em dinheiro. Os festivais juntaram públicos diferentes que antes se limitavam a aplaudir suas canções prediletas, mas agora, neste festival de 1967, iam além, queriam prejudicar as concorrentes, 29 como torcedores de times de futebol. Daí as vaias, os protestos, as perturbações e os aplausos das torcidas que se organizavam. As músicas de festival passam a ter como bordão obrigatório, o protesto contra a política econômica e as conseqüentes mazelas causadas pela má distribuição de renda no país, principalmente com a instauração da ditadura militar. Os compositores, por sua vez, perceberam esse tipo de reação e procuraram criar músicas que contivessem essas mensagens e é nesse ponto que o amadurecimento da platéia se tornou imprescindível, pois a censura estava com as antenas ligadas para detectar e cortar qualquer menção ao sistema político. A canção tinha de ser inocente aos olhos da censura e consistente e emblemática aos olhos do público. Compositores prediletos à parte, a negação a qualquer manifestação da Jovem Guarda era ponto comum nas platéias dos Festivais de MPB. A grande maioria vaiava estrepitosamente contra o iê-iê-iê e seus símbolos, cantores e guitarras. Os participantes que representavam a Jovem Guarda não se surpreendiam com tais manifestações, sabiam que os festivais era um reduto da MPB, mas mesmo assim levavam suas canções aos festivais e consigo suas torcidas organizadas. No mesmo dia da final do Festival da TV Record, a TV Globo transmitia as segundas eliminatórias do II FIC, dando aos telespectadores duas programações diferentes da música popular brasileira. No primeiro, artistas já consagrados, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Elis Regina, Jair Rodrigues, o MPB e Geraldo Vandré no segundo, nenhum grande nome, mas com uma grande revelação: Milton Nascimento. O palco deste II FIC e de todos os outros que foram realizados a seguir continuou sendo o Maracanãzinho, terror de todo músico, devido a péssima acústica. Mas não era só na acústica que o II FIC e o III Festival da Record, que aconteciam concomitantemente, no Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente diferiam. A diferença já estava constituída, o status de cada um dos eventos já estava posto, dizia-se até que os compositores da nata da música popular brasileira como Edu Lobo, Chico Buarque Gil, Vandré, entre outros, guardavam suas melhores composições para apresentá-las como concorrentes no Festival da Record. Ainda segundo essas diferenças, Zuza Homem de Mello afirma: Se algum daqueles compositores, maestros e arranjadores, a fina flor da música americana reunida no festivo conclave do Rio, tomasse a ponte aérea para São Paulo, ficaria abismado com o que veria no Teatro Record. Pensaria 30 estar em outro país. Talvez nem entendesse o que acontecia, mas seguramente ficaria muito mais próximo do estado de ebulição que iria mandar para os ares a tampa que sufocava os pensamentos da juventude no mundo. (MELLO, 2003:232) A música ouvida e cantada em São Paulo era a verdadeira “expressão sonora do inconformismo, da verbalização do inconsciente, da política inserida na arte e até da antropofágica redescoberta de valores nacionais, plataforma do Tropicalismo”.(MELLO, 2003:250) A direção da TV Record adotava a política da boa vizinhança com elementos da crônica do Rio, numa tentativa de minimizar as diferenças de enfoque entre as duas cidades. Três das figuras da noite carioca, Sergio Porto, Lúcio Rangel e Sergio Cabral argumentavam que o tipo de música apresentado nos festivais forçava a empolgação mas que não expressava verdadeiramente a música brasileira de todo dia. Dessas e outras indagações surgiu a idéia de criar um festival só de Samba, já que no modelo atual o samba era praticamente discriminado e quando participava ocupava sempre posições sem muito destaque. Seria o festival do ritmo brasileiro por excelência, o Samba. Solano Ribeiro assumiu o comando do evento que se chamou I Bienal do Samba. Ao invés dos participantes se inscreverem, eram convidados, e para isso foi formada uma comissão de 15 pessoas. A I Bienal do Samba ocorreu no Teatro Record. Na bienal, ocorreu o encontro do passado com o futuro. O Samba de Donga abria alas para a mais recente promessa da música brasileira, Milton Nascimento, que na ocasião interpretou uma música um tanto inexpressiva, Tião, Braço forte. Em 1968 todas as crenças, revoltas e anseios de grande parte da juventude brasileira entraram em ebulição. Revoltaram-se contra o sistema capitalista, que ao longo da história da humanidade só produziu a desumanização e, naquele momento, não foi capaz de evitar a guerra no Vietnã. Guiados pela teoria Marxista, um tanto romantizada, acreditavam que o sistema somente poderia ceder pela violência. No Brasil, a face mais violenta desse sistema era o Governo Militar, e esse era o alvo da revolta da juventude. A falta de sintonia que antes havia em relação a música entre Rio e São Paulo não existia, quando o assunto era a luta contra o sistema, inclusive capitais internacionais, Paris, em especial, estavam nesse movimento ao mesmo tempo. No Rio de Janeiro as ruas foram transformando-se em praça de guerra, os confrontos entre tropas de choque e estudantes tornaram-se cada vez mais freqüentes, armamento pesado e carros blindados entram em cena contra os cassetetes, pedras e paus dos 31 estudantes. Os artistas e a classe religiosa também aderiram a esse movimento contra o sistema capitalista e seus horrores, no dia 26 de junho realizaram a passeata dos Cem Mil, com participação de Chico Buarque, Gil, Caetano e Milton. O III FIC que se gestaria neste ano estava alheio a todo esse movimento da história. Os conflitos avançam no Brasil e no mundo. No fim de agosto a Checoslováquia é invadida pelas tropas comunistas da União Soviética. Simultaneamente, em São Paulo há uma nova passeata, culminando em 500 estudantes detidos. No dia 29 de agosto, a Universidade de Brasília é invadida por soldados e agentes do DOPS, estudantes são feridos. A atitude violenta gera veemente protesto do deputado Federal Marcio Moreira Alves, ele propõe que se boicotem as comemorações da Independência em repúdio às Forças Armadas. Sendo a música popular um privilegiado meio de representação da consciência política estudantil e da sensibilidade artística do país, não poderia ignorar as tensões sócio-políticas da atualidade. Os Festivais se constituiriam no ambiente ideal. O arranjador Rogério Duprat buscava agora em seus arranjos acordes dissonantes, ruídos e sons não muito musicais, como o conseguido para a música Caminhante Noturno, dos Mutantes, para demonstrar a desarmonia da vida real. Caetano Veloso foi o responsável pela maior polêmica da noite, com sua composição É proibido Proibir. Apresentava uma cabeleira que lembrava a do roqueiro Jimi Hendrix, uma camisa de plástico verde, colete prateado, colares de fios elétricos e correntes metálicas com dentes de animais dependurados: a própria antibeleza. O objetivo pretendido por Caetano era abalar as estruturas tão convencionais da música popular brasileira cutucando escandalosamente a platéia. Caetano que era tido como ídolo da juventude mais esclarecido, era por ela mesma, ao final da apresentação vaiado calorosamente. A juventude brasileira não compreendeu o intuito da Tropicália, corporificada por Caetano, que era abalar padrões, promover o mal estar para mostrar que se querem uma revolução ela deve passar por todos os setores, inclusive pela própria estética da música. Caetano pretendia mudanças não só no conteúdo das canções, mas criar possibilidades de formas... Para a Tropicália isso era a liberdade. O público viu no uso de guitarras elétricas uma afronta a brasilidade e não uma possibilidade de incorporação de novos elementos a própria música brasileira. Para a juventude brasileira daquele momento, que freqüentava festivais e participava de movimentos estudantis, apenas o talento não era suficiente, era preciso tê-lo 32 acompanhado de uma posição política, como Chico Buarque e Geraldo Vandré demonstravam em suas músicas. Caetano e Gil não assumiam. Em recente entrevista ao Jornal Folha da Bahia, Carlos Lyra fala sobre a Tropicália: Gil e Caetano ouviam meus discos o tempo inteiro e se dizem herdeiros da Bossa Nova. A Tropicália era o lixo da Bossa Nova, eles mesmos diziam isso. Foi uma tentativa muito válida e interessante de dar um passo à frente, como vai ter que ter sempre. A intenção era maravilhosa, mas não chegou a ser o que eles queriam. Qual é a filosofia, o que é a música? Ninguém sabe o que ficou, a Bossa Nova é clara. Sobraram as cabeças de Caetano e Gil. A Tropicália não foi definitiva e aceito que me convençam do contrário. Já a nossa perda de visibilidade foi natural. Com a ditadura, acabou a cultura que era limpa e transparente. Desde o golpe que a cultura brasileira foi lá pra baixo e lá está até hoje. A Tropicália era nova, revolucionária, sem ser tão agressiva politicamente. Mexia menos com a ditadura que com os valores estéticos. Tudo era mais interessante para a mídia do que a postura contra a ditadura.(FOLHA DA BAHIA, 18/08/2005) Durante o período inicial do Governo de Costa e Silva, da linha dura que sucedeu Castelo Branco, inicia-se outra etapa da vida política do país, que vai desde a data da posse, março de 1967, e atravessa quase todo o ano de 1968. No início do Governo de Costa e Silva há uma interlocução do presidente com o Congresso, e é justamente nesse momento que surge a face contestatória da população brasileira, um período de grande mobilização da sociedade, que vai para as ruas. É o momento das passeatas, manifestações populares, estudantis e artísticas, e, como por conseqüência, é o período dos “maiores festivais da era dos festivais”. (MELLO, 2003:289) Para concorrer ao III FIC, Festival Internacional da Canção, da TV Globo, Antônio Carlos Jobim compôs a música Sabiá, que foi interpretada por Cynara e Cybele, ou melhor, que intencionava ser interpretada, porque essa apresentação acabou não acontecendo devido as vaias ensurdecedoras e impiedosas do público que cantou poucos minutos antes em coro de aproximadamente 20 mil vozes a música, Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré. O público tornou-se com as vaias nos festivais, mais participativo, mas também mais injusto, pois não se dignou ao menos a ouvir a bela composição, de simplicidade aparente mas bastante elaborada, e fez Tom quase pedir desculpas por ter composto mais uma melodia destinada a ser um clássico da música de seu país. Vandré falou o que as multidões queriam e precisavam ouvir naquele momento e o público respondeu. Segundo Ramon Casas Vilarino: 33 O público do festival preteriu a poesia e a denúncia sublime de Sabiá em favor daquela que anunciava explicitamente um refrão experimentado naquele ano de 1968, sobretudo a partir de maio, com as barricadas do Quartier Latin ou com a invasão da Universidade de Sorbone, em Paris. 1968 é o momento em que emerge uma nova cultura política, menos centralizada sobre o Estado e mais sobre a luta contra todas as formas de autoridade e repressão que se exercem sobre o indivíduo, nos aspectos de sua vida sociocultural. (VILARINO, 1999:81) Geraldo Vandré passou a ser tão perseguido pelos setores radicais da repressão militar que foi obrigado a se esconder. Foi maquiado, e rinsado para envelhecer, conseguiu fotografar para conseguir um passaporte e foi para o Chile. Aqui, sua música, intitulada pelo povo de caminhando, tornou-se hino contra a ditadura militar: Caminhando e cantando E seguindo a canção Somos todos iguais, braços dados ou não Nas escolas, nas ruas, campos, construções Caminhando e cantando E seguindo a canção Vem, vamos embora Que esperar não é saber Quem sabe faz a hora não espera acontecer Pelos campos a fome Em grandes plantações Pelas ruas marchando indecisos cordões Inda fazem da flor seu mais forte refrão E acreditam nas flores vencendo o canhão... Boni, o diretor da Rede Globo, não imaginava que a música fosse ter tamanha repercussão. Um setor do Exército via até mesmo influências maoístas na música, tendo o General Luiz de França Oliveira, Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, pedido a proibição da música sob a argumentação de que a música continha “letra subversiva e cadência musical do tipo Mao Tsé Tung, que fatalmente servirá de hino para as manifestações de rua”. (CONCEIÇÃO,1968:24) A música acabou sendo proibida por 20 anos. Tom Jobim e seu companheiro de composição em Sabiá, conseguiram a vitória da fase nacional do III FIC, mesmo sem a devida consagração popular. Tom Jobim inscreveu a canção para não ter de participar do júri. Não tinha expectativas de vencer o festival e até apostou com 34 o amigo Vinícius de Moraes, e documentou: se a canção vencesse, o poeta ganharia uma caixa de uísque Johnnie Walker Black Label; se perdesse Tom é quem ganharia”. (MELLO, 2003:295) Tom nunca imaginaria que seria o vencedor, inclusive da fase internacional e ao mesmo tempo que desagradaria tanto o público. A canção: Vou voltar Sei que ainda vou voltar Para o meu lugar Foi lá, e ainda é lá Que eu hei de ouvir Cantar uma sabiá Vou voltar Sei que ainda vou voltar Vou deitar à sombra De uma palmeira Que já não há... (...) Vou voltar Sei que ainda vou voltar E é pra ficar Sei que o amor existe Eu não sou mais triste E que a nova vida Já vai chegar E que a solidão vai se acabar. O ano de 1968 além da I Bienal do Samba e do III FIC gestou também o IV Festival da TV Record e os LP´s marco da história da Tropicália. O primeiro dos três álbuns célebres do Tropicalismo era um álbum solo de Caetano Veloso, o segundo da trilogia é de Gilberto Gil que também tinha como título o nome do autor, o terceiro foi intitulado Tropicália ou Panis et Circencis (sic), uma composição coletiva de Gil , Caetano, Mutantes, Gal Costa, Tom Zé e Nara Leão, com duas faixas para cada compositor com eventuais músicas interligadas umas às outras como no disco Sgt. Pepper’s dos Beatles. Caetano se aproximou dos poetas concretistas como, Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos, execrados pelos acadêmicos, pois considerava que as duas propostas tinhas semelhanças conceituais. Esses três discos, marcos da Tropicália, e ainda A banda tropicalista de Duprat, um outro disco pouco falado do maestro Rogério Duprat, foram a ordem do dia que antecedeu o IV Festival da Record. Neste festival, Tom Zé, adepto da Tropicália, rouba a cena com sua 35 composição São, São Paulo meu amor, uma crítica com cara de afeto, foi recebida com ótimos olhos pelos paulistas. O público, novamente num abuso participativo, vaia ostensivamente diversas canções sem se dar ao luxo de ouvi-las e derruba Chico Buarque do trono dos festivais. Inseridos naquele contexto histórico, a classe estudantil, “supostamente politizada não conseguiu perceber o intuito daquele movimento criado e defendido por Caetano e Gil” (MELLO, 2003:334). Contrário a essa afirmação, José Ramos Tinhorão entende: [...] que os tropicalistas renunciaram a qualquer tomada de posição políticoideológica de resistência e, partindo da realidade da dominação do rock americano (então enriquecido pela contribuição inglesa dos Beatles) e seu moderno instrumental, acabaram chegando a tese que repetia no plano cultural a do governo militar de 1964 no plano político-econômico.(TINHORÃO, 1998:325) De qualquer forma, esses “porta-vozes das angústias pequeno-burguesas”, (TINHORÃO, 1998:325) confundiram até mesmo a própria ditadura, quanto mais a classe estudantil e o público em geral. Segundo Mello (2003), foi esse o festival que inaugura a curva descendente da parábola dos festivais. No ano de 1969 fazer Festival de música tinha virado moda. Com o desfalque sofrido pela música popular brasileira depois do IV da Record, a idéia foi evoluir quantitativamente. Foram realizados o Festival Universitário da Guanabara, pela Tupi Rio, o I Festival Universitário de Música Popular em Porto Alegre, o II Festival Fluminense da canção em Niterói, o I Festival de Juiz de Fora, o Brasil Canta no Rio pela TV Excelsior, o II Festival Estudantil no Teatro João Caetano, e outros mais. Se retomar-mos a história da I Festa da Música Popular Brasileira, notaremos que esse IV FIC nada mais é do que um retorno às origens. A Rede Globo pensou numa programação bastante extensa, dentre os atrativos estava o festival de música. Entre os eventos da programação estavam planejados: jantares, coquetéis, recepções e festas nos clubes mais badalados, espetáculos em boates, feijoada e vatapá com show de passistas, passeios de lancha e pela floresta da Tijuca, reuniões, drinks à volta da piscina, bailes de gala, enfim, uma seqüência de programação pra inglês ver, gostar e comprar. 36 Houve uma ruptura chave entre o conceito do IV FIC e os festivais realizados anteriormente, ninguém mais imaginava, comentava e ousava fazer música com mensagem política. A música de festival, que chegou a se delinear enquanto gênero, perde a sua fonte. A nova idéia agora era a comunicação, e nesse assunto Wilson Simonal reinava absoluto. Nesse novo formato de Festival, borbulhavam novos compositores como que para compensar a debandada sofrida pela fina flor da música brasileira, que dissera adeus aos festivais como que prevendo que a era já estava se esgotando. A extravagância visual e as coreografias também eram esperadas como parte integrante da interpretação do cantor. As vaias e torcidas ainda continuavam como antes. Uma das canções que sentiu as duas sensações ao mesmo tempo, pois foi calorosamente aplaudida por uns e intensamente vaiada por outros, foi Charles Anjo 45, com o autor Jorge Bem, de letra crua sem métrica ou rima de espécie alguma, sendo praticamente declamada pelo autor, que segundo Zuza Homem de Mello (2003), uma das precursoras do Rap, gênero que só aconteceria muitos anos mais tarde. A música de Jards Macalé e José Carlos Capinan, Gotan City, confundiu a censura e foi liberada. Tratava-se de uma metáfora sobre o regime militar através da cidade imaginária de Batman, “meu amor não dorme/ meu amor não sonha/ não se fala mais de amor em Gotham City/ Só serei livre se sair de Gotham City/ Agora vivo o que vivo em Gotham City/ Mas vou fugir com meu amor de Gotham City/ a saída é a porta principal”. Essa é a falha ao delegar a técnicos o cuidado de assuntos restritos a área musical. Alguém com a sensibilidade um pouco mais aguçada perceberia que, substituindo Gotham City, por Brasil, teria matado a charada. A grande campeã do IV FIC foi Cantiga por Luciana, de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, que caíra definitivamente no gosto popular. Na final internacional a finalista brasileira Cantiga por Luciana, concorreu com Love is All, do cantor inglês Malcolm Roberts. E, numa demonstração do quanto a democracia é perigosa, a canção que tanto havia agradado o público na primeira fase do festival era agora vaiada estridosamente até por aqueles defensores ferrenhos da primeira etapa. O balanço do IV FIC foi tranqüilo, um dos mais tranqüilos festivais de uma Era. As canções eram praticamente dançantes ou românticas, nada que desse muito trabalho a censura. A cena que o Brasil exportou ao final desse festival foi pessoas pacíficas e felizes saindo do Maracanãzinho cantarolando Love is All, com a performance de Wilson Simonal, ídolo da Jovem Guarda ou somente iê-iê-Iê, em mente. Em janeiro, março e 37 julho de 1969 vários edifícios da TV Record pegaram fogo. Em menos de seis meses a história da música brasileira perdeu os palcos de suas maiores conquistas. Ninguém acreditava que os incêndios tivessem sido acidentais, mas nada pôde ser provado. O fato é que tais acontecimentos arrefeceram os ânimos dos Machado de Carvalho, proprietários da Record. A emissora perdeu o rumo, o time de astros ficou desfalcado e a direção da emissora começou a apostar em programas polêmicos, como fator de resgate de audiência. Os anunciantes também começaram a desaparecer, pois, a concorrência com a TV Globo tornava a nova emissora bem mais atrativa, pois, com um pequeno acréscimo de valor os anunciantes poderiam alcançar o Brasil todo. O V Festival da Record precisou se adequar as novas exigências da emissora, precisava ter algo novo, algum componente polêmico. Foi então que se pensou em juntar a competição de canções com debates do tipo júri, opinando sobre cada concorrente. O V Festival da Record, com a saída de Solano Ribeiro dando lugar a seu assistente Marcos Rizzi, se daria da seguinte forma: as canções depois de avaliadas por um júri oficial seriam submetidas a um tribunal formado por dois grupos debatedores adversários que, deveriam se comportar entre o Cômico e o irônico. “O esquema montado não agradou nem a cantores nem a compositores, apenas alongou o evento. A grande maioria das candidatas não empolgou nem público nem corpo de jurados e o Festival nem parecia ser a evolução de eventos tão bem prestigiados”. (MELLO, 2003:302) O Jornal da Tarde apresentou a manchete no dia seguinte: “Responda: você já viu festival pior do que este?” a conclusão da matéria afirmava que o festival merecia que a música de Paulinho da Viola não fosse classificada, pois ela era boa demais. O que se ouvia nos bastidores entre cantores e compositores era unânime: a falência dos festivais. Sinal Fechado foi a vencedora deste festival. De acordo com Zuza Homem de Mello a canção foi uma das mais estranhas, atraentes e hipnóticas da Era dos Festivais. Era composta por acordes arpejados, mudanças rítmicas e letra evasiva, retratando a falta de tempo para tratar do essencial como a manutenção da amizade, o cuidado com as pequenas coisas, enterradas pela rotina. Talvez um último suspiro da MPB nos festivais: Olá, como vai Eu vou indo e você tudo bem Tudo bem eu vou indo 38 Correndo pegar meu lugar No futuro e você Tudo bem eu vou indo Em busca de um sono tranqüilo Quem sabe Quanto tempo, pois é quanto tempo Me perdoe a pressa... Na opinião de Zuza, é lamentável que a TV Record que era uma emissora essencialmente musical e tinha um telespectador encantado e envolvido com a música, tenha fechado seu ciclo de festivais com um tão pouco expressivo: Foi uma lástima que o quinto e último festival da Record tenha sido tão melancólico. Em compensação, com apenas dois dos festivais anteriores, os de 1966 e 1967, a TV Record é mais lembrada na Era dos Festivais que qualquer outra emissora de televisão brasileira. (ZUZA, 2003:366) O governo de Costa e Silva foi sucedido pelo governo Médici, ambos amigos íntimos. Durante o Governo de Emílio Garrastazu Médici o Brasil viveu um clima de expansão econômica. A massa da população tinha a nítida sensação de prosperidade, período que coincidiu inclusive com a conquista da Copa do Mundo de Futebol reafirmando a grandeza e confiança no país. O coro cantado agora, por mais de 90 milhões de pessoas, era “Todos juntos, vamos/ Pra frente Brasil, Brasil/ Salve a Seleção”. A Rede Globo que já vinha expandindo sua rede desde com o crescimento nas vendas de aparelhos de televisão domésticos, alcançando 40% das residências urbanas, em conseqüência das facilidades do crédito pessoal, foi amplamente beneficiada. Zuza Homem de Mello é categórico em afirmar que a Rede Globo foi beneficiada pela complacência para com o Regime Militar. E era este o panorama que gerou e abarcou o V FIC. Gradativamente os festivais foram se transformando, “de espaço de contestação para uma grande janela escancarada para mostrar a felicidade do povo brasileiro”. (MELLO, 2003:368) Isso se deve a estreita ligação entre o então governo Médici e o V FIC, o seguinte excerto deixa clara tal ligação: No dia seguinte à eliminatória, o reservado presidente Médici fez chegar à organização do festival a confirmação de que iria receber os jornalistas 39 visitantes para uma audiência no Palácio das Laranjeiras. A finalidade do encontro era, segundo o Jornal do Brasil, buscar “dar aos estrangeiros uma melhor e maior imagem do Brasil no exterior”, bem diferente da que tinham na Europa, onde as informações sobre o país estavam muito distorcidas. Ali estava o FIC para não deixar ninguém mentir. (MELLO, 2003:375) A sétima candidata a se apresentar no V FIC foi Wanderléia, representante do dito iê-ieiê que em outros festivais foram banidos pela vontade popular, porém nesta apresentação foi aclamada por torcidas organizadas. O próprio Roberto Carlos, em apresentações em Festivais anteriores, fora completamente rejeitado, porém o momento histórico tornava-se propício a outro tipo de canção. A música vencedora do festival, BR 3, composta por Antônio Adolfo e interpretada por Toni Tornado, verdadeira personificação do estilo Black power, que estava em voga no festival, era dançante e contava com espaço para improvisos estrangeirados, do tipo, “baby, baby, só morro na Br 3”, revirando do avesso a tônica dos primeiros festivais. Na final nacional, em que se tornou campeão, Toni Tornado causou furor na platéia e nos jurados, fato que não se repetiu na final internacional, uma vez que para um negro na sociedade brasileira da época, ele já havia ido longe demais, chegando a abalar os padrões das famílias tradicionais brancas. Ele era excêntrico, aceitável apenas por um curto período. O mesmo constrangimento causou na elite brasileira o arranjador que pretendia dar uma guinada na carreira estreando como cantor, Erlon Chaves, que interpretou a música, Eu também quero Mocotó, de Jorge Bem. A gíria remetia as bem torneadas pernas da habituées. a letra era simplista e repetitiva, mas o ritmo e a performance do intérprete animou a platéia. Para completar a ousadia Erlon era beijado por duas louras no palco durante a apresentação, uma verdadeira afronta para os padrões dos anos 70. Nas palavras de Zuza Homem de Mello, plasticamente, Eu também quero mocotó e BR – 3, foram de longe as duas campeãs do V FIC, mas um componente racista as destruiu. Para quem ainda tinha alguma dúvida do interesse e influência da ditadura militar no V FIC, o preconceito que se viu contra a raça negra, justamente aquela que tanto contribuiu para a música brasileira no seu elemento de maior diferencial, o ritmo, não deixa a menor dúvida. Os festivais eram janelas utilizadas pela ditadura para mostrar ao mundo a alegria que fazia parte do dia-a-dia do povo brasileiro. 40 Em 1971 alguns artistas que estavam exilados, como Caetano Veloso, Edu Lobo e Carlos Lyra puderam retornar ao Brasil. Encontraram por aqui a repressão, a censura à música e ao teatro, dentre todas as demais arbitrariedades. As melodias que podiam ser veiculadas pela mídia tinham intensa carga nacionalista. Um dos exemplos mais emblemáticos é a composição de Dom e Ravel, Eu te amo, Meu Brasil, elaborada com tamanho rigor científico que a música foi cogitada como Hino Nacional oficial. Ainda segundo Zuza Homem de Mello, o V FIC foi o mais medíocre da era dos festivais. É justamente nesse momento de desgaste dos Festivais do Rio de Janeiro e São Paulo que começam a pipocar festivais de música pelo interior país. Exemplo disso é a Califórnia da Canção, de Uruguaiana no Rio Grande do Sul e o próprio FERCAPO, em Cascavel. Gutemberg Guarabira, até então assessor da produção do VI FIC, apelou aos grandes nomes que fizeram dos festivais grandes eventos para participarem de mais este festival e assim tentar salvá-lo do inevitável desgaste que estes eventos estavam passando, ao menos no eixo Rio/São Paulo. A Censura ainda representava o grande empecilho a organização de um espetáculo genuíno, criativo e crítico. E foi justamente pela arbitrariedade dos vetos da censura que o grupo de compositores convidados enviou a direção do FIC um comunicado renunciando a participação dos mesmos no festival. A carta foi assinada por, Paulinho da Viola, Ruy Guerra, Sérgio Ricardo, Tom Jobim, José Carlos Capinan, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Toquinho, Marcos e Paulo César Valle, Edu Lobo e Egberto Gismonti. A desistência dos compositores causou estrondoso alvoroço na TV Globo, que se via obrigada a realizar o Festival sem os maiores nomes do Brasil. O festival FIC sendo utilizado pelo governo militar como propaganda do Brasil para gringo. Os Festivais constituíam um privilegiado veículo de propaganda de um outro Brasil, e o Governo Militar, mesmo leigo musicalmente, já havia percebido isso. O governo Brasileiro não gozava de muito prestígio lá fora, pelos horrores que uma ditadura militar podem causar, portanto, através da divulgação de belas imagens de festivais com artistas cantando alegremente e contando com a participação popular de um público animado, essa visão podia ser revertida. Gutemberg Guarabira trabalhava para o FIC, mas era contra essa falsa idéia do Brasil. Decidiu então, divulgar na imprensa a informação de que seriam convidados a participar do festival alguns nomes consagrados da música popular brasileira, e que depois de divulgada a 41 lista eles não se negariam. Na verdade, Gutemberg queria justamente a participação desse primeiro time da música como convidados, portanto, sem passar pelo crivo da censura, para se utilizar dos palcos do festival e da maior emissora nacional para denunciar os desmandos do governo militar. Dessa forma, alguns dos maiores compositores brasileiros iriam dar o troco a quem usava seu nome para uma divulgação de segundas intenções em caráter internacional. Era mesmo uma conspiração usando a própria TV Globo, promotora do VII FIC, para um protesto contra a censura. Funcionaria como uma pesada contrapropaganda ao que o governo fazia através do festival internacional da canção. Assim, foi espalhado aos quatro ventos todos os nomes do rol dos já consagrados, que praticamente na véspera do festival fizeram um abaixo assinado explicando que não participariam do festival, causando um verdadeiro pandemônio entre os organizadores e destruído qualquer possibilidade de sucesso do VI FIC. O festival não pôde ser salvo, faltava matéria-prima: música. A campeã da fase nacional foi Kyriê, inspirada nas melodias sacras do século XV e sob a performance do Trio Ternura e arranjo de Leonardo Bruno. O idealizador do FIC, Augusto Marzagão, desiludido com o desfecho do festival foi para o México em 1972, e acabou tornando-se vice-presidente da Cadeia Televisa. Só retornou do México quando recebeu um convite do então presidente José Sarney para ocupar o cargo de secretário do presidente em 1989 e tornar-se chefe da assessoria de Comunicação de outro presidente, Itamar Franco. (MELLO, 2003:412) Com a ida de Marzagão para o México, Boni, um dos diretores da Rede Globo, convidou novamente Solano Ribeiro, o mestre dos festivais, para tomar a frente da organização do FIC. Solano que voltara da Alemanha especialmente para planejar o festival não prometia grandes astros e sim novos talentos, e foi o que aconteceu. Entre os estreantes estava Oswaldo Montenegro, aos 16 anos, apresentando a composição Automóvel, Murilo Antunes com Viva Zapátria, Antônio Carlos Belchior e José Ednardo Costa Souza com Bip...Bip, Raul Seixas, até então conhecido como produtor musical com duas concorrentes Eu Sou Eu, Nicuri É o Diabo e Let Me Sing, Let Me Sing, Sérgio Sampaio com Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua, Raimundo Fagner com Quatro Graus, Alceu Valença e Geraldo Azevedo com Papagaio do Futuro, entre outros. O corpo de jurados para a final do festival foi composto somente por estrangeiros por que a censura exigiu que Nara Leão fosse cortada do júri. Para não explicitar tal situação 42 Solano decidiu por mudar o júri todo. Raul Seixas com Eu sou eu, Nicuri é o Diabo, um samba-rock com entrecho de tango, vestido de Elvis Presley agradou ao público uma vez que o som das guitarras lhes era familiar. Fio Maravilha interpretada por Maria Alcina também levantou o público. Mais uma vez as vaias apareceram no FIC, foi com a música Cabeça de Walter Franco, considerada genial por Solano Ribeiro. Let Me Sing, Let Me Sing, outro Rock de Raul Seixas foi a última concorrente e conseguiu novamente empatia dos jurados. As concorrentes em sua maioria estavam agradando ao público e jurados, o que não havia ficado claro para os jurados brasileiros, porém, era o motivo pelo qual tinham sido destituídos do direito a voto. Prepararam então um manifesto, assinado por todos eles indicando as canções escolhidas por eles, Cabeça de Walter Franco e Nó Na Cama de Ari do Cavaco e César Augusto, e manifestando a estranheza diante de tamanha arbitrariedade pela censura. Zuza Homem de Mello(2003) relata que, Roberto Freire, psicanalista, jornalista, teatrólogo e um dos membros do primeiro corpo de jurados foi o escolhido para subir ao palco ao final da apresentação das concorrentes da eliminatória e ler a mensagem. Tão logo iniciou a leitura do manifesto foi agarrado pelas costas e violentamente arrastado pelos seguranças da TV Globo e levado para uma sala onde um grupo de policiais o aguardava. Foi violentamente espancado tendo fraturados os dois braços, fratura do molar, quatro costelas e sofreu escoriações em todo o rosto. No meio desse alvoroço foram anunciadas as duas finalistas da fase nacional, Fio Maravilha e Diálogo. Roberto Freire, ficou uns 15 dias internado com despesas pagas pela Rede Globo. Ao retornar foi recebido de braços abertos por Boni para acertar o contrato da série que escreveria, A Grande Família. A grande final deu vitória no júri popular a música italiana Aeternum, com o conjunto Fórmula Tre, e no juri internacional Sweat end tears interpretada por David Clayton Thomas. A Globo acabou por não realizar o Festival de 1973, por falta de interesse dos patrocinadores. Nas quase três décadas seguintes foram realizados festivais esporádicos que em nada lembraram a euforia dos primeiros festivais. Segundo Zuza Homem de Mello: Se alguém ainda mantinha expectativas de que se pudesse reviver a Era dos Festivais, o Festival da TV Globo em 2000 foi uma prova dos nove a sepultar qualquer nesga de esperança, à qual se podem aduzir os ridículos e pretensiosos programas, também da Globo, Música do Século. Em ambos se revela que na cúpula da produção não havia o elemento indispensável: não havia quem tivesse ouvidos de músico. (MELLO, 2003:424) 43 O autor ainda contribui afirmando que, Boni, diretor da Rede Globo, ao não produzir mais os Festivais, a emissora perdeu seu grande contato com a alma brasileira, uma perda comparável com a morte de Ayrton Senna, por se tratar de atrações que realmente mexiam com o público. Para Solano Ribeiro, a Rede Globo se desinteressou de tentar resolver problemas políticos, cansou de Festivais e parou. São muitas as razões que podemos atribuir ao fim dos Festivais. Uma delas é, segundo a historiadora Angela de Castro, que os artistas participantes dos festivais participavam ativamente da vida política do país, então, quando o general Ernesto Geisel tomou posse, essa forma de luta mostrou-se superada. Não havendo mais clima político, não havia mais o pano de fundo da resistência ao regime militar. (MELLO apud CASTRO:1998,434) O primordial é ressaltar a importância que tiveram esses eventos na vida e na formação de uma geração. Segundo Roberto Freire, o protagonista da derrocada dos festivais de MPB, esses eventos foram responsáveis pela participação do povo na renovação da música brasileira, como também foram palco do nascimento de grandes talentos que teriam trajetórias outras não fossem os festivais, como é o caso de Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, entre muitos outros, e, principalmente é importante ressaltar, que os festivais sempre estiveram intimamente ligados aos movimentos estudantis. A intelectualidade voltada a melhoria das condições da vida em sociedade através do desvelamento da realidade. Entretanto, mesmo historicamente os estudantes tendo registrado seu lugar na história cultural do país, em muitos dos festivais que pipocaram a partir da década de 70, não houve essa participação efetiva. O FERCAPO, é um desses casos, no qual a esfera educacional oficial pouco contribuiu para sua efetivação. No capítulo seguinte abordaremos um pouco como se deu a criação desse festival, por quem ela foi proposta, qual era o cunho do evento, e, finalmente, qual a relação deste com a educação e com a sociedade em geral. 44 FERCAPO, NO FIM DA ERA DOS FESTIVAIS O Festival Regional da Canção Popular, foi iniciado na cidade de Cascavel no Paraná, em 1971. Coordenado pelo empresário Luiz Picoli, ex-vereador e candidato a prefeito em 1676. O festival foi promovido pelo Tuiuti Esporte Clube e sempre foi voltado para a música urbana. De acordo com a narrativa de Alceu Sperança no livro Tuiuti: presença Azul, desde a década de 50, o Clube já esboçava a idéia de realizar um festival de música. Como o autor salienta, que este primeiro festival que foi realizado em 1º de maio de 1950, tinha um sentido mais amplo do que décadas depois passou a se entender por festival. Este podia ser entendido como Grande Festa e foi incorporado aos festejos do dia do trabalhador. Tais festejos musicais não tinham, nesta ocasião, a finalidade de expor as músicas enquanto concorrentes, como começou a ocorrer duas décadas mais tarde com o início do FERCAPO. Como já pudemos verificar nos capítulos anteriores, a década de 60 foi a fase áurea para os festivais de música e para a cultura brasileira em geral. Nas palavras de Alceu Sperança, “um choque direto contra o chamado ‘colonialismo cultural’, uma digna herança da Semana de Arte Moderna de 1922 que promoveu uma revolução qualitativa na cultura nacional.” (SPERANÇA,1994:181) Todas as tensões políticas, sociais, éticas e estéticas que a sociedade brasileira estava vivendo encontravam voz na música popular e em conseqüência, nos Festivais o porta-voz mais eficiente, àquelas canções que conseguiram passar pelo crivo da censura, é claro. Luiz Picolli, que em 1969 presidia o Tuiuti Esporte Clube, o qual possuía uma banda, The Blue Star. Picolli intencionava expandir as atividades da banda e pediu ao então maestro da mesma, Ramiro Rebouças que produzisse o regulamento de um festival de música. O clube então decidiu envolver o movimento estudantil para dar mais visibilidade ao evento. No texto de Alceu Sperança o Clube Tuiuti também intencionava, com o festival, “assumir a liderança completa na sociedade local, ameaçada por questões internas e pela criação recente da forte Associação Atlética Comercial”. (SPERANÇA, 2004:183) Nesta época, Miguel Porfírio se candidatou a presidência da ACES – Associação Cascavelense dos Estudantes Secundários. Ele representava a oposição renovadora contra a 45 situação que, segundo Alceu Sperança, utilizava os estudantes secundários como massa de manobra político-eleitoral. Nessa época o Colégio Estadual Wilson Joffre vinha adquirindo importância dentro dos movimentos estudantis e Dione Wanderley Martins, representante deste colégio, fez parte de sua chapa. Uma das primeiras ações da chapa de Porfírio na ACES, foi participar da realização do festival de música popular, a convite do Clube Tuiuti, para movimentar a sociedade oestina. A idéia do festival e de outras ações a serem realizadas pela ACES era propagada num programa radiofônico chamado Voz do Estudante, transmitido, todas as tardes de sábado, pela rádio Colméia, a única emissora da cidade na época. Miguel Porfírio por motivos pessoais renunciou neste mesmo ano a presidência da ACES e seu vice Aldemiro de Oliveira assumiu, mas a idéia de participar da organização do festival de música, graças principalmente, a Dione Wanderley Martins, permaneceu. Havia, como em todo o restante do país, um controle das mensagens contidas nas músicas devido a ditadura e do clima de repressão que ela trouxe consigo. É importante ressaltar que na época a ACES era um movimento de vanguarda, não havia ainda ensino superior na cidade e todas as conquistas comunitárias eram lideradas pelos estudantes secundaristas. A ACES pretendia com a realização do festival arrecadar recursos para levar adiante suas demais programações visando novas conquistas para os estudantes. No final de 1970 toda a imprensa local já anunciava a realização do festival. O informativo do Tuiuti, Azulão, anunciou: “O Tuiuti Esporte Clube, continuando a prestigiar a classe estudantil, promoverá em conjunto com a ACES o 1º Festival de Interpretação da Música Jovem, nos dias 27, 28 e 30 de janeiro.” (SPERANÇA, 1994:185) O Festival acabou sendo batizado de 1º Festival Estudantil, com a intenção de ser mais geral. Luiz Picolli, representando o Tuiuti e Dione Wanderley Martins, representando a ACES, foram os responsáveis pela organização deste primeiro festival, o precursor do Fercapo. No regulamento constava a idade mínima de 14 anos, mas a organização do Festival fez vistas grossas a participante Jeanine De Bona, que tinha apenas 12 anos de idade. Cada cantor tinha o direito de interpretar três músicas para avaliação do corpo de jurados. O Festival só não foi apenas de interpretação pelo fato de dois dos candidatos apresentarem composições próprias, eram eles Jeanine De Bona e Alexandre Molinari. Jeanine criou três músicas, uma para cada dia de eliminatória, Casinha Pequenina, Senhora e Cantiga pela Paz. 46 (SPERANÇA,1994:187) Com vistas a autoria de Jeanine a comissão organizadora do evento criou às pressas a categoria Composição e conseguiu inclusive um troféu para premiar Jeanine pela canção Cantiga pela Paz, na categoria inaugurada por ela. A premiada na categoria Interpretação foi Eleuza Pereira Godoy, com a música Barracão de Zinco. E foram Jeanine e Alexandre que apontaram os rumos dos futuros festivais da canção, com a separação das categorias Composição e Interpretação. A música de Jeanine trazia em sua singeleza um pedido que traduzia os anseios de toda uma sociedade: a transformação da violência, da repressão e das mortes por elas causadas, num mundo mais cheio de música e tolerância. Vale a pena o registro da primeira composição vencedora da história do FERCAPO: Belo verso, verso de amor Paz na voz de seu cantador Canta a paz, canta o beija-flor Canta verso pro meu amor. Belo verso, canção antiga Quanto amor há nesta cantiga Canta, canta meu violão Canta, canta, meu coração Guerras, mortes, falta alegria Canta é tempo, ainda é dia Vamos todos unir as mãos Somos homens todos irmãos. Como era a proposta de Luiz Picolli, essa primeira experiência de festival foi animada pela banda própria do Tuiuti, The Blue Star. Em termos de resultados o Tuiuti ficou bastante satisfeito com a realização do festival por ter atingido os objetivos a que se propôs, movimentar a cena cultural local. Para a ACES, esse também foi um ponto bastante positivo, porém, os lucros esperados não vieram, fecharam, inclusive, no vermelho. O Tuiuti ficou tão satisfeito com os resultados do festival que Luiz Picolli já esboçou o projeto do segundo festival em agosto do mesmo ano, estendendo-o a canção popular em geral. Segundo consta no livro de Alceu Sperança, o regulamento do segundo festival não era nada liberal devido aos desmandos do AI-5, dessa forma, a censura proibiu de serem citadas nas canções nomes de apelo popular como Pelé, Nossa Senhora 47 Aparecida, Jesus Cristo, entre outros. Falar bem ou mal do governo também era vetado assim como se posicionar ante qualquer facção. Desta forma o segundo festival se deu de forma bastante amena, os vencedores foram Eleuza Pereira Godoy na categoria composição, interpretando a música Tempo, Estória, Hora e Lugar de autoria de Ramiro Carlos Rebouças. A música, apesar da repressão local, apresenta a temática contrária a Ditadura Militar, propõe que os homens emanados por uma vontade coletiva de mudança do cenário político atual se pautem no amor e na justiça para superá-lo. É uma canção de mobilização política e esperança: A história e o tempo Ninguém consegue parar Vai haver transformação Muita coisa vai mudar É o homem que se levanta Resolveu se libertar Não há cadeia ou algema Que o possa segurar Cruzar os braços à guerra Ser mais forte no amor É transformar esse mundo Em riso, trabalho e amor Encarar a realidade Não matar pra não morrer Ser livre com honestidade Ter mais vida pra viver Com a certeza de quem sabe Aonde vai o caminho Com a coragem e a certeza De não caminhar sozinho Se há tanta mão acenando Se há tanto peito a pulsar Tanta cabeça pensando É questão de hora e lugar. Na categoria interpretação amadora o vencedor foi Jair Duarte Leal com Custe o que Custar. Foi apenas na terceira edição, em 1972, que o festival passou a se denominar FERCAPO – Festival Regional da Canção Popular. O controle das letras ainda era bastante 48 rígido, as letras das músicas concorrentes eram entregues datilografadas e gravadas em cassete. Depois disso, eram enviadas à Polícia Federal de Foz do Iguaçú. O III Fercapo foi mais politizado, conseguiu da maneira subliminar tocar nas feridas políticas passando pela censura, principalmente com a melodia que dividiu o primeiro lugar 2000 Depois de Cristo. Os finalistas do III FERCAPO foram Caio Gotlieb, Ayrton Fracaro e Wilson Bez com a referida canção e Jeanine De Bona com a música Canção Por Minha Saudade, na categoria composição. Na categoria interpretação profissional o vencedor foi Alberto Braz dos Santos e na amadora Ademar Rocha da Silva. Houve duas vencedoras porque o advogado Alcides Pereira (sócio do pai de Jeanine De Bona), não quis dar o voto Minerva. O resultado desta terceira edição do FERCAPO abarcou o romantismo e o saudosismo a tempos felizes da canção de Jeanine De Bona e a crítica política à todos os governos do planeta, na canção 2000 Depois de Cristo mesmo tendo de passar pelo crivo da censura. Pela trajetória que o FERCAPO começava a traçar é possível perceber que este festival mesmo tendo sido iniciado numa época em que, de acordo com o capítulo anterior, se encontrava na fase descendente dos festivais precursores, mantinha a temática e a intencionalidade dos primeiros festivais, a denúncia e a crítica a realidade político-social, além, é claro das canções românticas que fizeram parte de toda a história do FERCAPO. A exemplo dos grandes festivais da TV Excelsior e Record e os que vieram depois, o FERCAPO também gerava torcidas organizadas munidas de faixas, cartazes, camisetas temáticas, chapeuzinhos, o que pode claramente demonstrar o grande envolvimento da sociedade para com o evento. Entretanto, essa participação se deu de forma mais maciça nos primeiros tempos do festival, na época que ainda havia a categoria interpretação, havendo assim um maior números de concorrentes da cidade e músicas conhecidas. A partir de 79, quando a TV Tarobá passou a fazer a cobertura do evento pela televisão e os músicos com músicas desconhecidas começaram a vir de outras cidades o clima de euforia das torcidas começou a esfriar. Alceu Sperança lembra que nessa gênese o Fercapo era mantido financeiramente pelo Tuiuti, sem nenhum tipo de auxílio da prefeitura ou de empresa privada, exceto alguns patrocinadores que a organização do Tuiuti conseguia em troca de cartazes de cartolina. O IV FERCAPO teve as finalistas colocadas na seguinte ordem: Moacir Borges em 1º lugar com a música Mensagem, Lídia Luchesa em segundo com a música Oi, Maria, Jeanine 49 De Bona com Por Um Amor em terceiro e Zezé Borges e Hélio da Igreja com Herói Vencido em quarto lugar, na categoria composição. Na categoria interpretação profissional o cantor vencedor foi Ricardo Cardez e na amadora, Luiz Carlos Steffen. O Rock and Roll já começa a dar as caras por aqui, o arranjo da melodia vencedora tinha esse tom, assumindo a tendência que os últimos FIC’s vinham assumindo, principalmente na figura de Raul Seixas e na própria Tropicália. Em 1974, o V FERCAPO veio com uma tendência baseada em motivos folclóricos e de raiz, e contou com a participação maciça dos cantores curitibanos. Essa participação de músicos de fora acirrou uma batalha entre cascavelenses e visitantes, fato que ficaria ainda mais evidente no FERCAPO seguinte. Os vencedores do V FERCAPO foram, Antônio Carlos Bueno com a música Ladainha, Elídio José Pinheiro com Eclipse e Grupo Odum com a música Deus te Guie, na categoria Composição. Nas categoria interpretação profissional e amadora se classificaram Vicente Ferreira de Foz do Iguaçú e Orly Bach de Guarapuava, respectivamente. Para o VI FERCAPO que ocorreu no ano seguinte, as categorias foram ampliadas, além de composição, interpretação profissional, agora havia interpretação amadora – adulto e interpretação amadora – infanto – juvenil. Na categoria composição classificaram-se Moacir Borges, Grupo Ogum e Pedro & Paulo com as músicas Poema para um amor ausente, joão sem medo e Escolinha do arraiá, respectivamente. Em 1976 a diretoria do Tuiuti decidiu por não realizar o FERCAPO. Luíz Picolli que era o idealizador e articulador do festival também era figura política e decidiu pleitear o cargo de Prefeito Municipal. Para não correr riscos do festival ser utilizado para fins eleitoreiros o evento não foi realizado. A próxima edição do festival aconteceu em 1977, novamente com predomínio de músicos cascavelenses. Esta edição conseguiu reunir 146 concorrentes e foi transmitida pela televisão em nível estadual. Nesta edição do FERCAPO, a rádio Colméia, ainda a única emissora da época en Cascavel, chegou a exigir exclusividade de transmissão do evento por cinco anos, visto que haviam rumores de instalações de novas emissoras na cidade, sob pena de não transmitir o evento nesse ano. O radialista que tomou frente nesta exigência foi Paulo Martins. O caso acabou não indo à frente e a rádio Colméia prestigiou o evento. O ranking dessa edição do festival ficou da seguinte maneira: na categoria Composição, foram premiados Mozy Tancredo, José Roberto Oliva & Olga Vlrath e Jeanine De Bona com as 50 músicas, Tubo de ensaio, Cobra-Cega e Problema Meu, respectivamente. Houve também as categorias criadas no festival anterior. No ano de 1978 novamente o festival não pode ser realizado. O coordenador Luiz Picolli entrou no páreo eleitoral mais uma vez e novamente não queria que o FERCAPO pudesse ter qualquer mácula em sua reputação por possíveis utilizações do evento para fins eleitoreiros. Em 1979 ocorreu o VIII FERCAPO, mas com um ar saudoso, logo após a realização do festival, Luiz Picolli foi vítima fatal de um acidente automobilístico e deixou uma lacuna irreparável na vida cultural local. Os três primeiros colocados foram: Ramiro Carlos Rebouças com a música Sei lá, César Nadal de Souza, com Será e Dilney Stedten com a música Neco da Viola. Com a morte de Luiz Picolli o troféu transitório, oferecido ao vencedor de três FERCAPO´s seguidos ou alternados passou a ter o seu nome. Foi neste ano que a TV Tarobá, emissora da cidade, passou a fazer parte do clima do evento, fazendo sua divulgação e a partir de 1982 começou a fazer as transmissões ao vivo. Os incêndios, famosos na história dos festivais, também ocorreram por aqui. Neste ano, o jornal Fronteira do Iguaçú foi incendiado criminosamente e seu diretor, Antônio Heleno Rodrigues, foi morto a tiros. Certamente uma boa parcela da história da região virou cinzas. O professor Ramiro Rebouças criou um personagem, chamado Kid Ligeiro, cantando o assassinato de Antônio Heleno, uma vez que toda a sociedade local já comentava a respeito da autoria do crime, por um conhecido político e empresário da cidade. Houve então uma tentativa por parte da diretoria do Clube, na figura do então presidente, Edgar Bueno, de convencer o corpo de jurados a desclassificar a música, afim de não haver envolvimento do clube com o acontecido. O fato é que a canção movimentou a platéia e não chegou à final: Fui contratado por um figurão da city Para fazer um servicinho de matança na cidade Ele me disse que um cara entrometido Encomodava a nossa ordeira sociedade Fui ao escritório discutir meus honorários Mas recusei sua proposta inicial E lhe fiz ver que de ... Exigia recompensa especial. Daí começamos a discutir e para evitar 51 prejuízos de ordem inflacionária Decidi fixar meu pro labore em dólares Peguei o cara passeando na avenida Joguei meu carro contra o seu na contra mão Ele pensando que era simples barberagem Não viu nem de passagem o trabuco na minha mão Desferi-lhe o primeiro disparo na região encefálica E pra garantia de pleno êxito da execução Apliquei-lhe o segundo disparo na região cardio vascular E vi que tava concluída a eutanásia No outro dia o Lourival anunciava Que a Dona Justa já tinha pista concreta Que o assassino fora visto fugindo pro Paraguai Atravessando o Paraná de bicicleta E apesar da correnteza atravessou em linha reta. E a Dona Justa em trabalhos exaustivos Com fato estarrecedor E a conclusão a que chegou foi que o defunto Foi abatido por um disco voador...9 Em 1980, sem Picolli, a Secretaria Estadual da Cultura decidiu montar um festival de cunho estadual, chamou-se Festival de Todos os Cantos, organizado em várias etapas divididas entre as principais cidades do Paraná com a finalíssima em Curitiba. A etapa de Cascavel continuou contando com a organização do Clube Tuiuti que bancou custas de viagens, estadia e premiação regional para os compositores classificados para a final em Curitiba. O IX FERCAPO foi, desta forma, a III etapa do Festival de Todos os Cantos. Houve três finalistas classificadas para a final em Curitiba, foram elas: Andarilho de César Nadal de Souza, Imagens de Paulo Roberto Calderari e Mutirão de Carlos Augusto Amêndola. Com a entrada do Fercapo no Festival de Todos os Cantos houve uma inegável profissionalização do evento. No entanto, em 1981 o Festival de Todos os Cantos foi encerrado e o FERCAPO, na figura do então presidente, Mário Pereira, se viu obrigado a manter os mesmos padrões para não perder o prestígio já conquistado. O resultado visto no X FERCAPO, foi bastante positivo, vieram inscrições de diversas partes do país. Os três concorrentes que se classificaram na categoria composição foram: Leontamar Valverde Pereira com a música Como Antigamente, Bido e Gerson Rosa Martins com Trem de Ferro e Carlos Bongannó, Ricardo e Ailton com a música Recompor. 9 Sem referência de gravação, narrada pelo compositor. 52 Ramiro Rebouças afirma que a abertura do festival à participação de todo o Brasil não trouxe apenas a profissionalização do evento, mas gerou também um espetáculo de cartas marcadas, uma vez que o corpo de jurados também era composto por convidados oriundos de vários cantos do país, com o intuito de dar maior credibilidade ao evento, e já traziam na bagagem suas canções preferidas.10 Em 1982, o XI FERCAPO contemplou os seguintes intérpretes na categoria Composição: Leontamar Valverde Pereira com a música Se o Tempo Voltasse, Cícero Jerônimo da Silva com Pra quem saiu de casa, Hardy Guedes Filho com Nem Que Leve a Vida Inteira, Valdomiro Zanini e Alberto Lenzi com a música Mosaico e César Nadal Souza com Noturna. Para essa edição do festival houve mais de 200 composições inscritas, provindas dos mais diferentes pontos do país. No ano seguinte, 1983, por dificuldades conjunturais atravessadas por todo o país e falta de apoio financeiro o FERCAPO deixou de ser realizado. A edição de 1984 procurou compensar a não realização do ano anterior com a utilização de equipamentos de vanguarda emprestados da Bandeirantes. Segundo Jorge Guirado, exdiretor da TV Tarobá “a dificuldade maior era conseguir trazer microondas para se tirar a imagem do Tuiuti para a emissora. Há prédios entre o Tuiuti e a emissora que obstaculizam o transporte do sinal.” (SPERANÇA: 1994, 204) O XII FERCAPO contou com os seguintes compositores como premiados: Vital Lima e Sérgio Lima Netto com a composição Vale a Pena, Ronaldo David, Sérgio Kasprzak e Beto Gauer com Partitura e Ramiro Carlos Rebouças com Ensaio Geral. Em 1985 foi realizado o XIII FERCAPO e os compositores premiados foram: Ronaldo David, Sérgio Kasprzak e Beto Gauer com a música Palco, Luciano Veronese com Mil Cores e Nilson Chaves e Vital Lima com O Tempo e o Destino. Neste mesmo ano o repórter Aramis Millarch, do jornal O Estado do Paraná, publicava que, após o término do festival, não havia sido “prevista sequer a gravação de um compacto simples, com as 5 premiadas, o que, afinal, não custaria mais do que Cr$ 25 milhões, (valor destinado a realização do FERCAPO neste ano foi de Cr$ 150 milhões) o que poderia ser autofinanciável, através de um patrocinador comercial ou, mesmo, com a venda dos 10 Esta informação foi concedida por Ramiro Rebouças em intrevista realizada no dia 24/01/2006. 53 exemplares.”11 O repórter ainda acrescenta que, ao contrário do FERCAPO e dos demais festivais de música realizados no Paraná que, quando se acaba não deixa vestígios, no Rio Grande do Sul, há ao menos uma dúzia de excelentes festivais, que se auto-sustentam independente do Governo. A Califórnia da Canção Nativista, em Uruguaiana, que neste ano realizará a sua 16ª edição, já conta com uma invejável coleção de discos, através da iniciativa do CTG Sinuelo do Pago. Para o ano de 1986 houve rumores de que a TV Tarobá não transmitiria o Festival devido a Copa do Mundo e ao novo convênio com a TV Carimã, os rumores não se sustentaram, tanto que a emissora participou do evento com vários de seus apresentadores, como: Caio Gotlieb, Silvana Veronese, Cidinha Marcon, Marília Barbosa, Baby Garroux e Cristina Prochaska. Nesta edição do festival, a XIV, que ocorreu dos dias 17 a 19 de julho, foram premiados os seguintes compositores: Geraldo Vailatti e Grupo Cigarra com a música Ventania, Nilson Chaves com Nossa Verdade e Marco André com Dor de Amor. Pela primeira vez cinco vencedoras e as demais classificadas foram reunidas em LP da Gravadora Continental. A música vencedora retrata a vida do homem do interior, o poeta sertanejo, que lida com a terra e com o gado e que carrega uma saudade de amor devotado no coração, retratando assim na mesma canção as agruras do mundo do trabalho e o lirismo do poeta que ama: Só quem já carpiu conhece o peso da enxada Só quem já partiu comeu poeira na estrada Quem nunca saiu não tem histórias pra contar Pois não repartiu o seu mundo, o seu lugar Leva boi – leva boiada – levanta poeira na estrada Leva boi – leva boiada – levanta poeira na estrada Na garupa leva um anjo com alma encantada E no pensamento um sonho que sonhar não custa nada Lua nova, vida velha, coisas que o tempo não viu Barco à vela – leva “Vera” – pras corredeiras do rio O ouro dos teus cabelos no rosto desta cidade Por onde o tempo vagueia deixa um gosto de saudade Por onde voam teus olhos? Que as águias não chegam lá Que olhar cigano caminha? Cortando esse temporal Se a ventania desarma o corpo, a alma e a fé 11 Disponível em: www.millarch.org, acesso em 11/08/2006 54 E a poeira da estrada apaga as marcas do pé Já fui peão do pensamento/ capataz da alegria Dono da estância do tempo com meu cavalo Ventania Que tinha um galope ligeiro e que era bom de montaria Mas a boiada quando passa deixa o rastro no chão Teu amor quando passou deixou dor e solidão E uma sodade-matadeira no fundo do coração. Em 1987 ocorreu o XV Festival Regional da Canção Popular e os compositores premiados foram: Francisco de Souza com Menina Nova, Watherly Figueiredo com Momento da Criação e Jean e Paul Garfunkel com Não Minto Pra Mim. A exemplo do ano anterior as canções classificadas foram reunidas em LP da gravadora ERC/Quero Quero. Nestas duas últimas edições do festival houve um considerável recuo dos compositores oestinos que no festival anterior dominaram a cena. Em 1988 foi realizado o XVI FERCAPO e novamente as canções classificadas foram reunidas em LP da gravador Quero Quero. As três primeiras colocadas foras: O Circo de Anízio Rocha, Tua Face Rural, fr Gilberto Ichilara e Francini e Londrina de Luiz Fontana. O XVII FERCAPO teve como primeiros colocados José Alexandre, Jean & Paul Gurfunkel e Ricardo Gonçalves & Sergio Copetti, com as composições América dos Nus, Sintonia e Atrapalho, respectivamente. A fama do FERCAPO por essa época se espalhou, o evento contou com vários convidados como Aramis Millarch, Edilson Leal, Zuza Homem de Mello, Evaldo Lemos, Arlindo Coutinho, Heitor Valente, Cau Pimentel, Simon Curi, Pelão, Sílvia Góes, César Fonseca, Mirian Batucada, Sara Cretien, Luiz Guilherme Favatti entre outros. No XVIII FERCAPO, em 1990, os três primeiros colocados na categoria composição foram: José Carlos Company com Teorema de Pitágoras, Dino Guedes e Lysyas Ênio com Amarras, e André Luiz e Jaime Roberto com O Luar, o Amor e uma Viola. Na edição de 1991, além das tradicionais disputas nas categorias de composição e interpretação houveram oficinas abertas ao público ministradas por professores catedráticos nas universidades Unicamp e Unesp. Estas oficinas (Contrabaixo, bateria, harmonia e arranjo, guitarra, teclado, percussão e viola infantil), foram realizadas em parceria entre o Tuiuti e a Prefeitura Municipal de Cascavel, através da Secretaria da Cultura. O festival pode contar também com algumas atrações que abrilhantaram ainda mais a festa, foram eles: a dupla Sá & Guarabira, Ivan Lins e Jorge Ben. Os três primeiros colocados na categoria Composição e suas 55 respectivas canções, foram: Eudes Fraga e Joãozinho Gomes com Puçangueira, Claudio da Matta e Paulinho Campos com Dias Nacionais e Irinéia Maria e Sueli Correa com Meias Partes. A composição vencedora, a brasileiríssima Puçangueira, trata da riquesa de nossa fauna e o poder de nossa crença e quer dizer, de acordo com o Aurélio, “remédio receitado pelos pajés”: Vens do sangue de todos os Tupis E te criastes na touça dos ananás, Tens a força encantada da raiz E a licença do Deus dos Orixás. Pra curares de vez nossas doenças Foi te dado o poder dos vegetais. O milagre de todas as essências A puçanga dos nossos ancestrais. Cipó-cruz verdadeiro Erva-do-bicho e gengibre Mata-pasto pequeno Olho-de-boi, mulungu. Araça-de-flor grande Barba-de-velho e visgueiro Galho-de-Santa Maria Bênção-de-Deus, Sabugueiro. E que seja louvada tua presença Onde quer que careçam de ter paz Os enfermos da alma e da Existência Os feridos a golpes tão mortais. Toda vez que escutares um Gemido No silêncio de nossos hospitais Colabora com os homens da Ciência Leva os teus elixires naturais. Cipó-cruz verdadeiro...12 A parceria entre Tuiuti e prefeitura foi realmente consolidada na edição de 1992, quando da organização das oficinas de MPB, que duravam além do término do FERCAPO, 12 XXII FERCAPO – Festival Regional da Canção Popular (CD). Gravado ao vivo em Cascavel – PR em 30/07/94, mixado em Curitiba – PR, no estúdio Plínio Oliveira Produções. 56 começando a estender o evento para além da competição. Neste ano os primeiros colocados foram: Cláudio Da Matta e Paulinho Campos, do Rio de Janeiro, com Minas em Linhas Gerais, Milton Edilberto de São Paulo, com Viola de Cantoria e Luciano Veronese e Ramiro Carlos Rebouças, ambos cascavelenses, com Canto de Sereia. Neste ano houve também a categoria Comunicação, conquistada pelo grupo Negritude Júnior, ainda desconhecido do grande público, que aproveitava os palcos do festival para expandir sua fama. Em 1993, diferente do ano anterior, não houve finalistas oriundos da região, fato que fez com que houvesse uma reordenação nas regras do festival. Entre as mudanças houve a redução das 30 músicas concorrentes para 24 e a obrigatoriedade de que três delas fossem selecionadas em uma etapa regional, prévia à etapa nacional. Os primeiros colocados nesta etapa foram: Rafael e Rita Altério de Itapetininga (SP) com Até quando Deus quiser, Nina Miranda do Rio de Janeiro com Aquém das Cordilheiras, Miriam Fernandes do Rio de Janeiro com Melodia e Jean e Paul Garfunkel de São Paulo com Cruzeiro. A nostalgia, a saudade de um tempo bom que se foi e a esperança viva de que esse tempo possa ser reinventado tendo como cenário paisagens tipicamente brasileiras, é o tema da vencedora dessa edição do Festival, Até Quando Deus Quiser: No alvorecer, bem-te-vi vem cantar Na janela Lembra meu tempo, quem dera, Voltar, começar a crescer. A meninice voou com um raio que Passa Deixando luz e fumaça De quem é feliz sem saber. O tempo se cumpriu Nas linhas da minha mão Até quando Deus quiser Saudade no coração. Hoje a saudade invade os olhos Da gente E o corpo todo ressente É como pisar sem ter chão. Lua nascente, lava o olhar de Quem fica, Dói feito tiro no peito De jeito, sangra o coração. O tempo se cumpriu... 57 Olho pros campos, brotar teu amor Nessa terra Lírios, acácias e heras, E o canto de um sabiá. No teu silêncio cresce teu fruto e A beleza De quem viveu a certeza De ter paz onde está.13 Em 1994 foi realizado o XXII Fercapo e como resultado do evento foi produzido um CD com 16 músicas, produzido por Plínio Oliveira, que também participou como compositor, intérprete e tecladista da Banda Fercapo. O CD incluiu a canção vencedora do festival do ano anterior Até Quando Deus Quiser e a vencedora do festival de 1991 Puçangueira. Se observarmos do que tratam as canções podemos perceber que os músicos cantam muito a saudade de um tempo que passou e o orgulho de ser músico e viajar pelo país levando a música a todos os cantos. Uma música que demonstra esse orgulho e essa profissão viajante que o músico exerce é Obra do Criador de Juca Morais do Rio de Janeiro: Vim pra cá no interior De viola pra cantar Na esperança de encontrar o meu Amor Eu vi entre letras e canções Muita festa, outros sons, Vi um povo cantador. De manhã quando o sol brilhou no Céu, Céu azul de Cascavel, Alguém logo comentou: “Eu não esperava encontrar Esse sol do Ceará Que pro Paraná voou, É obra do criador Esse tempo que mudou É obra do criador Esse povo cantador, Vim pra cantar no interior...14 13 XXII FERCAPO – Festival Regional da Canção Popular (CD). Gravado ao vivo em Cascavel – PR em 30/07/94, mixado em Curitiba – PR, no estúdio Plínio Oliveira Produções. 58 De 24 à 26 de julho de 1997 foi realizado o XXIV Fercapo. A composição vencedora foi Marialice de Eugênio Gomes e Tito Neto de Belo Horizonte, Minas Gerais, interpretada por Ivânia Catarina. A música canta o amor e o compara a música, o eterno amor do poeta. A música mostra ainda a nostalgia, a lembrança boa de um tempo que passou e o desejo que ele possa voltar, temática também bastante recorrente nas canções do FERCAPO: De quem que é esse Perfume de lavanda? Quem espalhou toda Essa música no ar? Quem fez nascer a estrela Dalva na varanda? Quem acendeu a luz Na sala de jantar? À flor da pele, quem Deixou o arrepio? O verde vento da infância, Quem soprou? Marialice, não precisa se esconder Sei que você anda por perto Que bom que você voltou Adivinhei quando chegou o trem das 3 Marialice regressou e desta vez Vem pra ficar, veio buscar felicidade Que perdeu noutra cidade Onde nada era seu Risquei o dedo na poeira da mobília Marialice, nós não somos duas ilhas Vem ser feliz em pôr-de-sol Sereno e chuva Vem ouvir meu bandolim Na noite morna, no jardim15 Nos dia 26, 27 e 28 de outubro de 2000 foi realizado o XXV Fercapo que também deu origem a um CD produzido por Luciano Veronese16. O cd conta com 12 canções sendo que 14 XXII FERCAPO – Festival Regional da Canção Popular (CD). Gravado ao vivo em Cascavel – PR em 30/07/94, mixado em Curitiba – PR, no estúdio Plínio Oliveira Produções. 15 XXIV FERCAPO – Festival Regional da Canção Popular (CD). Gravado ao vivo em Cascavel – PR em 26/07/97. Mixado em Curitiba – PR no Estúdio Gaivotas Arte e Cultura. 59 quatro delas tem como mote o amor, outras quatro cantam o próprio cantar, três falam de características do País como a miscigenação, a dor e a alegria típica do povo brasileiro. A música vencedora foi Milagreiro, de Edu Santana e Rita Altério e interpretada pelo próprio Edu Santana e Juca Novaes e embalada pela Banda do FERCAPO. A música campeã mostra a saga de uma personagem tipicamente nacional, homem moreno, iletrado mas com a fé característica e folclórica do povo brasileiro: Herança de toda família Moreno, iletrado, franzino Aos olhos de santa Luzia Meu pai seguiu o peregrino Se foi garrado a esperança Que emana de todo o horizonte Onde promessa não alcança Pr’onde Deus levou, pra onde? E em cada pedra de igreja Surgia a voz milagreira Pregando a paz benfazeja Por terra brasileira Pai seguiu risca traçada O pregador beateiro Guerra de fé consagrada Contra Antônio Conselheiro No sangue se afoga a vergonha Memória dos que viveram Depois de tombar quem sonha Em que sonhos se perderam? E abre as asas sobre este sertão Cobrando a paga de seu redentor O pó da estrada que se come Encarde a pele, arde a alma em vão Em cada cruz um altar Ficando aos prantos e braços Em versos reza ao luar Varre a aflição dos pecados E foi-se a luz de um relâmpo Abatido de loucura Deixou em Belmonte um manto Escarrado em bravura Ficou a história contada 16 Luciano Veronese participa do FERCAPO desde 79 como cantor na categoria interpretação com apenas 9 anos de idade, participou em diversas versões tocando para outros compositores, compôs canções, em 92 conquistou terceiro lugar com uma canção interpretada por sua esposa, Rafaela Veronese e finalmente em 2001 passou a ser produtor musical do evento. 60 Na boca do sertanejo Língua de fel amargada Quando vem no céu um trovejo E abre as asas sobre este sertão Cobrando a paga de seu redentor O pó da estrada que se come Encarde a pele, arde a alma em vão17 Coração de cantador de Daniel Sanches, interpretada pelo grupo Tarumã e tocada pela Banda do FERCAPO, conquistou o terceiro lugar. A XXVI edição do Festival Nacional da Canção Popular se realizou em 2001. Também teve como resultado final um CD reunindo 12 canções, produzido por Luciano Veronese. A temática que já se tornou tradicional no FERCAPO aparece novamente, músicas cantam o orgulho da profissão músico e da missão que é levar essa música a todos os lugares, cantam os ritmos do Brasil e lembram nomes consagrados da nossa história além de cantar muito o amor. Na última edição do FERCAPO, realizada em 2002, dentre as temáticas mais recorrentes nas melodias está o orgulho de ser músico, a homenagem a músicos brasileiros, e o amor que dividia o peso com outras temáticas nas edições anteriores é o mais recorrente nesta última edição. Esta foi a única ocasião em que o festival deixou as dependências do clube Tuiuti e foi realizado no centro cultural Gilberto Mayer e contou com a realização em parceria com o Tuiuti, do Canal 21. O Fercapo, além de ter representado um dos raros canais para que compositores jovens, fora dos esquemas comerciais, pudessem mostrar suas produções na região, também se tornou circuito certo de artistas profissionais, que correm o Brasil participando de Festivais e, bem ou mal, sobrevivem desses eventos competitivos. Na opinião de Luciano Veronese, o FERCAPO ao abrir às portas a participantes de fora proporcionou aos músicos envolvidos um rico intercâmbio cultural e a oportunidade de levar os músicos da cidade pra outros lugares em função de gravar os discos dos festivais, mas trouxe também uma dificuldade, pois os compositores daqui, nem sempre profissionais acabavam não tendo a mesma qualidade técnica para disputar em igualdade de condições, muitos acabaram desanimando.18 17 XXV Fercapo – Festival Regional da Canção Popular (CD). Gravado e produzido por Luciano Veronese. 2000. 18 Esta informação foi concedida por Luciano Veronese em entrevista realizada no dia 14/11/2005. 61 Além disso, grandes nomes da nossa música já abrilhantaram ainda mais o evento em suas mais diversas edições. Nomes como: Dom e Ravel, Alceu Valença, Alcione, Baby Consuelo, Belchior, Carlos Lyra, Elba Ramalho, Ivan Lins, Léo Jaime, Martinho da Vila, Moraes Moreira, Paulinho da Viola, Sandra de Sá, Zizi Possi e na última edição, Zeca Beleiro, entre outros nas várias edições. É inegável que a participação de artistas já consagrados é responsável pela presença de boa parte do público que prestigiou FERCAPO, em suas mais diversas edições. Entretanto, mesmo os que compareceram com a intenção de assistir a esses artistas, tiveram a oportunidade de presenciar uma outra lógica na esfera musical, diferente daquela apresentada mais comumente pela mídia oficial. Algumas músicas apresentavam essa diferença na forma, outras no conteúdo. Um verdadeiro banho de imersão numa cultura paralela. Um momento de acesso a formas diferenciadas de perceber a música e a cultura em geral. 62 CONCLUSÃO Ramon Casas Vilarino (1999) qualifica como constante nas letras de MPB, a temática do dia que virá. Esta temática acredita na possibilidade de redenção no futuro, no amanhã, no dia que sucederá o atual estado de coisas, uma vez que este gênero musical nasce e atinge seu auge criativo em pleno regime militar. O dia que virá enquanto mote das canções de MPB engajada, representa: O sentimento de impotência e a dificuldade de intervir na realidade, não obstante o desejo sincero de faze-lo, deslocam para o futuro o tempo de atuação, numa mensagem até certo ponto triste, mas que não abandona a esperança.(VILARINO:1999,57) A ditadura militar foi um momento bastante presente na vida de cada um dos brasileiros que a viveram. Com um inimigo tão visível não era de admirar que as músicas dos festivais a atacassem diretamente, mesmo de modo subliminar. Dessa forma, a efervescência cultural que conviveu contemporaneamente com a ditadura militar, tem sua explicação histórica. Havia uma necessidade criada pelo meio social que refletia nos ânimos e anseios de toda a população e dos artistas de forma especial, visto que estes têm o papel de captar os estímulos emanados da sociedade como um todo e sublimar suas impressões na produção de sua obra. No momento em que o FERCAPO foi gerado, o país estava no final dos principais e terríveis momentos da ditadura, dessa forma sua música nos primeiros tempos teve um caráter mais crítico em relação ao funcionamento político da sociedade e passou paulatinamente a cantar o amor, as riquezas culturais e folclóricas do país, o orgulho de ser poeta e o saudosismo, numa forma de resgate reinventado de um passado feliz. A temática cantada nos festivais de MPB, num paralelo entre os festivais da Excelsior, da Record e o FERCAPO, parece que sofreram uma inversão, se naqueles cantava-se o dia que virá, neste, ao menos em suas últimas edições, canta-se o dia que se foi e aponta para uma perspectiva de reinventá-lo. Até mesmo o fazer poético do músico e sua eterna viagem por todos os recantos do país para levar sua obra, muito cantado no FERCAPO, sugere uma evocação à força que a música teve enquanto bandeira de luta por ideais durante os primeiros anos de história dos festivais. 63 A idéia de que a educação poderia e deveria funcionar como um pólo emanador de arte para toda a sociedade, como realmente se deu nos festivais da Record e da Excelsior, que os estudantes oriundos de Universidades é que movimentavam a cena cultural local e nacional e promoviam o envolvimento da sociedade, não se deu em Cascavel. Aqui o movimento foi inverso, um clube convidou os estudantes a participarem do evento para dar justamente essa aura saudável do casamento entre arte e educação. No entanto, de acordo com o professor Ramiro Rebouças, essa participação foi superficial, se houve alguma participação foi enquanto platéia e sem a maturidade necessária, nenhum estudante participava interpretando, compondo, tocando, etc. Luciano Veronese, que atualmente possui um estúdio de gravações e atua como músico profissional, sugere que para edições futuras do FERCAPO: [...] deveria ser fortalecido o elo da cidade com o evento: hoje seria importante até que fizessem prévias do festival nas Universidades, os três primeiros colocados garantiriam a participação no FERCAPO, concorrendo com os outros de fora, então haveria um estímulo, já nas Universidades, ao envolvimento, às composições, ao intercâmbio musical, o que aumentaria a quantidade de composições e em conseqüência do envolvimento, a qualidade. Esse elo poderia ser feito também nos Colégios ou simplesmente na cidade.19 É interessante ressaltar que o papel da universidade, além do ensino, é o entrelaçamento com o social. Para alcançar tal meta, a universidade precisa formar pesquisadores e educadores que sejam capazes de intervir na realidade concreta. Dessa forma, o conhecimento que a universidade produz em seu interior não pode estar alheio às demandas da sociedade e deve sim proporcionar o acesso da população aos bens culturais. Neste sentido, é interessante que se promova o desenvolvimento, no seio da universidade, de grupos alternativos, tanto no seu interior (incentivando bandas, grupos de teatro, grupos artísticos, etc) como no exterior (oferecendo à comunidade cursos alternativos, festivais, etc). Atendendo à solicitações da sociedade pelo viés da arte, a universidade possibilitaria o acesso às formas artísticas tanto àquele que faz, que constrói, como àquele que aprecia, que participa da arte enquanto consumidor, contemplador. 19 Informação recebida em entrevista concediada por Luciano Veronese no dia 14/11/2005. 64 Com base na importância que a arte em todas as suas manifestações culturais representa para a formação e identidade de um povo, podemos afirmar que o FERCAPO, a exemplo dos festivais que o antecederam, representou um momento ímpar na formação cultural de Cascavel, uma vez que proporcionou momentos privilegiados para que a população pudesse ter acesso ao fazer artístico e um fazer artístico de qualidade. 65 BIBLIOGRAFIA: BARROS, Patrícia Marcondes de. “Panis et circenses”: a idéia de nacionalidade no Movimento Tropicalista. Londrina: Ed UEL, 2000. CALADO, Carlos. Tropicália: História de uma revolução musical. São Paulo, Editora 34, 1997. CALDAS, Waldenir . Iniciação à música popular brasileira. São Paulo, Editora Ática, 1989. CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1978. CONCEIÇÃO, Gilmar H enrique da. Partidos Políticos e Educação – A extrema esquerda brasileira e a concepção de partido como agente educativo. CASCAVEL: EDUNIOESTE, 2000. MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: Uma Parábola. São Paulo, Ed. 34, 2003. NAPOLITANO, Marcos. História & Música – história cultural da musica popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. __________. Seguindo a Canção: Engajamento Político e Indústria Cultural na MPB (19591964) São Paulo. ANNABLUME:FAPESP, 2001. SPERANÇA, Alceu e SPERANÇA, Regina. Tuiuti: A Presença Azul. Curitiba, Imprensa Oficial, 1994. TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo:Ed. 34, 1998. VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1997. 66 VILARINO, Ramon Casas. A MPB em movimento: música, festivais e censura. São Paulo: Olho d’água, 1999. 67