OS CON CEITOS DE GUERRA E VITORIA EM ROMA 1 Humberto Nuno Lopes Mendes de Oliveira 1 0 presente trabalho resulta da adapta~ao para publica~ao na Lusfada. Hist6ria do estudo final apresentado no ambito da 1.• P6s-Gradua~ao em Hist6ria Militar, realizada na Universidade Lusfada de Lisboa no ano lectivo de 1999/2000. Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Resumo: No patrim6nio militar da humanidade a civiliza<_;ao romana ocupa, indiscutivelmente, urn lugar de destaque. Ha, todavia, aspectos desse riqufssimo patrim6nio que nao vem sendo abordados, deixando-se a margem desse estudo, esmagado por interessantes quest6es estrah~gicas e tacticas, aspectos de uma riqueza e transcendencia que nao devem ser esquecidos. E esse o caso de urn dos aspectos fundamentais da Guerra- o conceito de Vit6ria- e de que modo este evoluiu no decurso da hist6ria de Roma. De igual modo associada aquela e sua directa consequencia se aborda a questao do Triunfo. Palavras-chave: Roma I Vit6ria I Triunfo I Guerra I Marte Abstract: Rome has an undutiful prominent place in the military patrimony of civilization. However there are aspects of this wealthy patrimony that have been forgotten, leaving almost unstudied, jammed for interesting strategically and tactical questions, aspects of a wealth and transcendence that should not be forgotten. That is the case of one of the basic aspects of roman War - the concept of Victory. To seek how it was established and its evolution in Rome's history is what we have intended. Due to its association with the former, Triumph issues and ritual will also be scoped. Key-words: Rome I Victory I Triumph I War I Mars Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 15 Humberto Nuno de Oliveira 1. Introdu~ao No patrim6nio militar da humanidade e no desenvolvimento geral da hist6ria ocidental a civilizac;:ao romana ocupa, indiscutivelmente, urn lugar de destaque, convidando, assim, a uma continua revisitac;:ao por parte dos historiadores. Ha, todavia, aspectos desse riqufssimo patrim6nio que nao vem sendo abordados, deixando-se assim a margem desse estudo, esmagado por interessantes quest6es estrategicas e tacticas, aspectos de uma riqueza e transcendencia que nao devem ser esquecidos. 0 principal objectivo deste estudo, motivado pelo interessante e pouco conhecido trabalho de Alvaro d'Ors (1946), eo de tentar aprofundar como conceberam os romanos alguns dos aspectos fundamentais da Guerra - a sua legitimidade e o conceito de Vit6ria - e de que modo estes evolufram no decurso da hist6ria de Roma. Aspecto que aquele autor abordou apenas numa interessante mas exclusiva perspectiva jurfdica, embora o assunto da Guerra e da Vit6ria, naturalmente, tivesse despertado ja o interesse da literatura militar do seculo XIX, veiculada entre n6s pela Revista Militar. Na realidade, como grande poder, Roma, tal como os presentes grandes poderes, sempre se preocupou em caracterizar como justa a sua actividade belica, embora marcadamente caracterizada por grande ferocidade e uma inescrupulosa busca de vit6ria. De consciencia tranquila, pode assim Roma impor a sua paz, crente e assente na justeza da sua actuac;:ao, que no feliz dizer de Tacito mais nao foi que criar desolac;:ao chamando-lhe paz. Como a hist6ria dos grandes imperios se repete ... A cultura romana valorizou como poucas o sucesso na guerra, a virtus - coragem aliada a qualidades de chefia - era apresentada como a qualidade suprema na guerra e o triunfo, celebrando uma grande vit6ria sobre o inimigo, o mais desejado premio pelos generais que haviam conduzido e decidido sobre a guerra. E na pr6pria lenda da fundac;:ao de Roma que se selou, desde a genese, o seu destino sob os auspfcios de Marte, logo da guerra. Tal facto conferiu-lhe duas caracterfsticas essenciais que a acompanhariam ao longo da sua Hist6ria: urn caracter profundamente teol6gico e uma muito particular concepc;:ao da Guerra, frequentemente independente da conduc;:ao e da concepc;:ao em concreto damesma. A hist6ria inicial de Roma e, assim, constitufda por uma deliciosa mistura entre o domfnio de uma lenda her6ica e factos hist6ricos que sumariamente relembraremos, para urn necessario enquadramento. 16 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 2. A Lenda da Funda~ao de Roma. Sob o signo de Marte Afirma-se que a cidade de Roma foi fundada pelos deuses, ou quase, pois os seus fundadores, R6mulo e Remo, eram filhos do deus da Guerra - Marte2 e de uma sacerdotisa, Rhea Silvia3. Esta havia sido entregue pelo seu tio Amulius a deusa Vesta4, para que permanecesse virgem para o resto da vida5. Contudo, tendo quebrado os seus votos sagrados, ela e os seus filhos foram atirados ao rio Tibre. Porem, o deus Tiberinus6 salvou-a corn ela casando. Os gemeos, segundo a lenda, foram amamentados no monte Palatino, uma das sete colinas de Roma, por uma loba, animal que frequentemente se confunde corn a propria representa<;ao iconografica de Roma (sendo os romanos considerados como os filhos da loba) e animal favorito do pai Marte. Esta tao forte liga<;ao a Marte levou a que os romanos ao longo da sua hist6ria sempre se consideras- A loba amamentando R6mulo e Remo sem igualmente "filhos de Marte", e por ele Musei Capitolini (Roma) favorecidos no domfnio militar. Os gemeos foram recolhidos por pastores, Faustulus e Acca Laurentia, tambem referenciada nos escritos como "A Loba"7, que os criaram ate a idade adulta. Regressaram entao os gemeos ao seu antigo reino, devolvendo o trono ao seu av6 Numitor. Decidiram, entao, construir uma cidade, justamente a partir do Palatino, local onde haviam sido amamentados pela loba, sendo esta a razao lendaria da edifica<;ao da cidade. Existem diversas lendas acerca da morte de Remo e sobre o nome de Roma, sendo que nao existe unanimidade na resposta. Afirma-se que numa discussao havida entre os irmaos, R6mulo matou Remo num acesso de furia e tendo-se, 2 Deus romano da guerra e urn dos mais importantes e adorados deuses, filho de JUpiter e Juno. No inicio da civilizao;ao romana foi tido como deus da primavera, fertilidade, protector do gado, em suma, como deus da abundancia. Deus telurico, acabou por transitar para o domfnio da morte e depois da guerra. 3 Vestal, filha do rei Numitor de Alba Longa. 4 Parece ser claro, porem, que o "Colegio das Vestais" s6 foi posteriormente institufdo por Numa Pompilius (715-673 a. C.). 5 0 rei Amulius de Alba Longa, usurpador do legftimo rei Numitor, seu irmao, soubera num oraculo que os seus filhos poderiam ser uma ameao;a para o seu poder e por isso entregara Rhea Silvia para vestal, tentando assim, ao impedir a sua descendencia, garantir a sua continuidade no trono. 6 0 deus romano do rio Tibre. Na fase inicial da hist6ria de Roma o seu culto era muito popular, decaindo progressivamente. Hoje pouco se sabe sabre ele. 7 Daqui resultando, porventura, a lendaria associao;ao ao animal e nao a Acca Laurentia. Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 17 Humberto Nuno de Oliveira posteriormente, arrependido do acto fratricida, tera decidido, em sua homenagem, chamar Roma a cidade. Tal ter-se-ia verificado em 21 de Abril de 753 a.C., correspondente ao terceiro ano da sexta olimpfada, data lendaria da cria<;:ao da cidade. Por fim, R6mulo levou a cabo a constru<;:ao de refugios no monte Capit61io8 para escravos e criminosos fugitivos e conduziu o rapto das Sabinas, mulheres de outra tribo do Tibre9, para que os homens que a ele se haviam unido tivessem mulheres. Ap6s algumas guerras, as sabinas acabariam por proclama-lo como seu rei. Diz a lenda que R6mulo foi o primeiro rei de Roma, falecido em 715, sendo elevado aos ceus num carro de fogo pelo seu pai Marte e passando a ser venerado como o deus Quirino. E pois esta a tradi<;:ao lendaria latina que ha que compaginar corn os dados que a hist6ria e a arqueologia nos apresentam, naturalmente, aspectos bastante diversos. Na realidade, funcionando como travao aos povos etruscos que, procedentes da Asia menor, se tinham instalado a norte do rio Tibre, os latinos que viviam no Lacio ocuparam urn dos cumes do monte Palatino e af fundaram uma pequena aldeia. A sua fun<;:ao inicial, longe da descrita grandeza mftica, nao era outra senao vigiar o curso de tao importante rio. Nao obstante, corn os anos af floresceria uma notavel cidade que haveria de conquistar o mundo. Estes acontecimentos situa-os a hist6ria pr6ximo do ano 1000 a.C. Vemos pois que Roma desde o seu humilde come<;:o como aldeia vigia se transformou rapidamente numa pujante potencia militar. Mal podiam suspeitar os outrora temidos etruscos que seriam urn dos primeiros povos que Roma haveria de submeter. 3. 0 deus Marte como condutor do fen6meno belico Marte condicionou a condu<;:ao do fen6meno militar em Roma e toda a vivencia militar lhe veio a ser naturalmente subordinada, nao se estranhando que os seus varios santuarios detivessem urn papel bem definido no estruturado processo belico. 0 santuario principal de Marte situava-se no Capit6lio, o local sagrada por excelencia, posi<;:ao que repartia corn os templos de JupiterlO e Quirino. Era o 8 A mais alta das sete colinas de Roma era o centro hist6rico e religioso da cidade. Na Idade Media a colina do Capit6lio manteve-se como centro polftico de Roma. Ainda hoje o governo municipal de Roma se encontra af instalado. 9 Tribo vizinha que ocupava as colinas do Capit6lio, Quirinal e Viminal. IO 0 grande templo de Jupiter Capitolino era o maior templo e onkulo de Roma, tendo sido dedicado em 509 a.C .. Foi destrufdo por incendios tres vezes e reconstrufdo pela ultima vez pelo imperador Domiciano (52-96 d .C.). 18 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n.0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 designado templo de Marte Gradivus - aquele que antecede o exercito em batalha - por ser o local onde os exercitos se concentravam pedindo protecc;ao antes de partir para batalha. No Forum de Augusto, situava-se outro dos templos dedicados a Marte, ode Marte Ultor- Marte o vingador. Na Regia guardavam-se a lanc;as de Marte "hastce Martice" que possufam inegavel valor simb6lico. Na realidade, quando tais lanc;as eram transportadas, esse facto era considerado como urn prenuncio de guerra. Assim, o chefe designado para conduzir os exercitos em batalha, devia move-las enquanto pro feria a expressao "Mars vigila" - Marte desperta. Tal como Marte Gradivus sob esta invocac;ao, o deus precederia o exercito em batalha e conduzi-los-ia a vit6ria. 0 Campus Martiusll - o famoso Campo de Marte - situado para la das muralhas da cidade, ou seja fora dos limites do Pomerio12, era-lhe igualmente dedicado, sendo por excelencia o local destinado ao adestramento do exercito e igualmente o local de reuniao das Cornices centuriates (Assembleia Popular). Do mesmo modo, tambem o calendario romano era profundamente influenciado por Marte. A 19 de Outubro, celebrava-se, sob os seus auspfcios, o Armilustrium, dia em que as armas dos soldados eram ritualmente purificadas e armazenadas para o longo Inverno. A 24 de Marc;o, na celebrac;ao do Tubilustrium, eram retiradas dos armazens e em conjunto corn as trombetas de guerra limpas de novo13, afirmava-se assim, ritualmente, que as armas estavam de novo prontas para a sua func;ao belica. Como se ve a ritualizac;ao do fen6meno marcial e profundae intensa no universo romano. 0 mes de Marc;o - Martius - era assim designado em sua honra pois, coma foi constante ate que a moderna tecnologia finalmente superasse as adversidades da natureza, ao longo de varios seculos, a maior parte das guerras iniciavase, de facto, corn o advento da Primavera e cessava no Outono quando o mau tempo comec;ava a afectar a normal conduc;ao da actividade militar. 11 Vasta area plana que se situava a norte do Capit6lio. Na fase final da Republica a sua extremidade sui come~ou a ser ocupada por ediffcios para uso e beneficia do povo, como por exemplo os banhos de Agrippa (ai foi tambem construfdo o Panteao). Corn o crescimento da urbe o Carnpo foi progressivarnente desaparecendo e na sua area norte edificados o Mausoleu de Augusto, o Ustrium (cremat6rio) ea Ara Pacis (Altar da Paz). 12 Assim designavam os romanos o limite sagrado da cidade, para la do Pomerio apenas existiam "terras pertencentes" a Roma. 13 Marte possufa ainda outras celebra<;5es: a Feri;r Marti a 1 de Mar<;o, o Quinquatros a 19 de Mar<;o e a Equirria a 27 de Fevereiro e 14 de Mar<;o, quando se realizavam grandiosas corridas de cavalos. De cinco em cinco anos celebrava-se a Suovetaurilia, urn grandioso festival de fertilidade e purifica<;ao, onde se sacrificavarn urn porco, uma ovelha e urn touro. Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 19 Humberto Nuno de Oliveira 4. 0 fen6meno belico e as no~oes de guerra justa e vit6ria Urn dos problemas principais problemas que a Guerra traduziu para os romanos (como alias para quase todas as civiliza~6es posteriores) foi, sem duvida, toda a complexa e sempre buscada teoriza~ao e argumenta~ao, em torno das no~6es de guerra justa e vit6ria. Este trabalho visa, justamente, indagar sobre a concep~ao te6rica que entre os romanos tiveram as no~6es de guerra e vit6ria legftima. Torna-se, assim, fundamental analisar as condi~6es que eram exigidas pelos romanos para que urn feito de armas - guerra justa - pudesse ser considerado como Vit6ria, dado que tal, ao inves do que uma visao simplista poderia supor, implicava profundfssimos aspectos teol6gicos. Estarfamos assim, como sugeriu Alvaro D'Ors, perante uma teologia paga da Vit6ria. Todavia, paralelamente a tao complexo universo teol6gico sabemos, tambem, que para os romanos a guerra comportava ainda urn lado casufstico, a Vit6ria, qual fruto de ocasiao, deveria ser agarrada, como uma especie de apreciada bebida ao nosso alcance. Restava toma-la. Restava possuir a ousadia para beber de tao desejado calice. Aspectos que parecendo contradit6rios, ou mesmo antag6nicos, foram magistralmente conciliados pelos romanos. Quando se concebe, entao, a Vit6ria como resultado de tao interessante simbiose, encontramo-nos porventura perante essa concep~ao paga da Vit6ria. A referenda e naturalmente ao paganismo romano, urn universo complexo preenchido par urn sentimento de legitimidade e apego religiose, que jamais permitiria conceber a Vit6ria como apenas urn directo feito da for~a. Assim, para os romanos, a Vit6ria nao era urn feito afortunado de armas mas algo muito superior ao simples desfecho belico. Nao devemos estranhar pois que, nesta conformidade, a mfstica da Vit6ria fizesse uso de todo urn espectaculo, de honras do triunfo, no fundo de uma complexa mfstica polftica. 0 Triunfo deveria mostrar ao Senado e ao povo que a guerra era necessaria para a sobrevivencia de Roma, que apenas e sempre agia defensivamente sob o conceito romano de agressao. Os romanos consideraram sempre e s6 travar guerras justas - ou seja como resposta a provoca~6es ou agress6es - o que a ser rigoroso colocaria a expansao romana como urn dos mais interessantes acasos da hist6ria europeia, uma vez que Roma teria que se ter "defendido" de amea~as vindas de todos os sentidos. De facto, Roma logrou, ano ap6s ano, partir para a guerra em resposta a provoca~6es - reais ou mais frequentemente imaginarias - apenas porque conseguiu definir cuidadosamente os seus interesses e estabelecer cada vez mais distantes alian~as, assim em caso de amea~a aos seus aliados, a provoca~ao a Roma estava garantida. Os romanos revelaram-se, assim, mestres na manipula~ao das circunstancias para for~ar os seus oponentes a agirem de urn modo que pudesse ser interpretado como provocat6rio. Assim, a interpreta~ao romana de guerra justa e a sua necessidade universal de conquista nao se revelaram necessaria- 20 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 mente contradit6rias. Embora possamos considerar que o conceito de guerra justa poderia justificar uma dada guerra, dificilmente explicaria a perpetua disponibilidade de Roma para a guerra. Par ultimo devemos relembrar que em nao poucos casos foram claramente os comandantes romanos que provocaram a guerra de modo a obter o triunfo. 5. A Declara~ao de Guerra As mais precisas informa<;6es sabre a curiosa e complexa forma ritual e classica de declarar a guerra, sao as transmitidas pelo historiador Ti.to Livio. E pelos seus escritos que, numa fase a que chamaremos ltalica, ou seja aquela a que corresponderam campanhas militares exclusivamente nessa peninsula, conhecemos tal processo. Sabemos, assim, que para ser declarada a guerra, em representa<;ao do colegio sacerdotal dos Fetialesl4, o pater patratus se deveria aproximar solenemente das fronteiras do povo ofensor (verificando-se assim que a guerra para Roma era entao encarada coma meramente punitiva e defensiva) e recitar um carmenl5 pelo qual se aclaravam as reclama<;6es do povo Romano, invocando os deuses coma testemunhos da iustitia e pietas de tais reclama<;6es. Depois, avan<;ando, repetia a mesma reclama<;ao16 ante a primeira pessoa que encontrava no territ6rio inimigo; avan<;ando ainda mais, ante as portas da cidade e, par ultimo, na pra<;a publica desta. Se o povo ofensor entregasse os culpados as maos do pater patratus, a ofensa ficava saldada e nao ha via necessidade de guerra; caso contrario oferecia-se um prazo de trinta dias, ap6s o qual o pater patratus voltava a invocar os deuses e regressava seguidamente a Roma para solicitar a delibera<;ao do Senado. Se o Senado decidisse que a ofensa deveria ser vingada pelas armas, o pater patratus voltava a fronteira e, em presen<;a de tres testemunhas, lan<;ava ao solo inimigo uma lan<;a molhada em sangue, ao mesmo tempo que pronunciava a declara<;ao solene de guerra contra aquele povo e ainda contra cada um dos seus membros individualmente considerados. Dissemos ser este velho rito do direito fecial - ius Fetiale - exclusivo da dita fase ltalica tendo, naturalmente, desaparecido quando Roma levou a guerra, nao ja contra outros povos italicos, aos quais estava, nao obstante as rivalidades, unida par uma comunidade religiosa, mas para la das fronteiras da sua peninsula, contra povos estranhos aos seus costumes, deuses, procedimentos e cultura. 14 Os feciais eram os antigos sacerdotes romanos, que se constitufam em colegio sacerdotal, e que intervinham nas declarac;oes de guerra e conclusao dos tratados. 15 Composic;ao em verso, eventualmente cantada, que continha uma mescla de predicas magicas, judiciarias e morais. 16 A expressao clarigatio para os romanos pressupunha a acc;ao de reclamar ao inimigo aquilo que foi injustamente tornado. Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 21 Humberto Nuno de Oliveira Tal procedimento e desde logo 6bvio pois tais rituais careciam de uma certa reciprocidade, na verdade tambem os povos italicos inimigos possufam os seus Fetiales e o seu pater patratus; assim, tambem Roma, eventualmente, teria que entregar os seus ofensores para satisfazer outro povo ofendido. Esta especie de "direito internacional italico" pressupunha uma ampla comunidade de concepc;oes religiosas. Na realidade, tais enfrentamentos no processo de declarac;ao de guerra nao se fundavam tanto no reconhecimento de qualquer direito por parte do inimigo, mas num sentimento recfproco de escrupulo religiose. 0 mesmo Tito Lfvio informa-nos que, a religio17 impedia o infcio das operac;oes belicas sem mais, porque todos reconheciam que era obrigat6rio cumprir previamente corn aquela cerimonialidade, caso contrario se a guerra tivesse sido fmpia jamais os deuses a favoreceriam corn a Vit6ria. Mas ainda mais duradouro que esse requisite do direito fecial e o requisite dos auspfcios favoraveis. Como e sabido, todo o sistema politico romano se baseava na pratica dos auspfcios, ou seja, nas consultas da vontade divina mediante a observac;ao das aves que todo o magistrado deveria realizar ao empreender uma acc;ao belica- a extaspicina18 -,tal como ante qualquer outro acto decisivo no desempenho do seu cargo. A forc;a desta instituic;ao era tal que sem auspfcios favoraveis, todos os actos ficavam constitucionalmente invalidos, uma vez que tal assentimento por parte da divindade possufa urn caracter intransferfvel. De tal modo que, se por qualquer motivo era urn magistrado que obtinha os auspfcios e outro o que de facto conduzia a guerra, a Vit6ria e consequentemente as honras do triunfo correspondiam ao primeiro e nao ao segundo. Distinguiam-se, assim, entao, claramente os auspicia do ductus. Sera precisamente nesta peculiaridade religioso-constitucional que posteriormente se apoiara Augusto para assumir sempre ele as honras da Vit6ria e evitar assim o ensombramento por parte de algum general mais afortunado. Ao faze-lo, Augusto criou uma nova mfstica polftica do Imperio, cuja pec;a fundamental foi precisamente essa de que s6 o Imperador pode ser vencedor, de que s6 a ele podem outorgar os deuses o desfgnio da Vit6ria. 6. 0 inicio de urn longo processo. A vota~ao pelo Triunfo Ap6s a vit6ria decisiva do general ou comandante militar (dux - aquele que detem o ductus) as suas tropas deveriam aclama-lo informalmente como 17 Sob este conceito abrigam-se o conjunto das rela<;6es entre os homens e os deuses. Inicialmente assume uma atitude respeitosa perante o sagrado, progressivamente, gra<;as a confian<;a nos rituais, adquire urn aspecto quase contratual. Assim, face a uma oferenda, a uma prece exacta, o deus nao podera furtar-se e concedera o que !he foi pedido. 18 Exame das entranhas dos animais sacrificados, corn o objectivo de se conhecer as disposi<;6es dos deuses no m omen to do sacriffcio. 22 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 Imperator, indicando assim que pensavam ser aquela campanha ou batalha digna de urn triunfo. Ap6s a sua saudac;:ao como Imperator o general enviaria urn mensageiro a Roma corn as novas detalhadas da sua vit6ria. Tal mensageiro seria portador dos fachos atados corn ramos de loureiro. 0 loureiro19 simbolizava que o general sentia que a sua vit6ria era digna de triunfo, e ao enviar esta mensagem a frente do seu exercito de regresso concedia ao Senado, ou a Cornices centuriates, tempo para reflectir sobre o seu necessario futuro voto. Ao regressar a Roma o general formalmente deveria solicitar ao senado uma votac;:ao sobre a purificac;:ao e gl6ria da atribuic;:ao da procissao triunfal. 0 senado deveria entao discutir e votar o pedido de nomeac;:ao de Imperator solicitado pelas suas tropas. Se o senado decidisse pelo merito da celebrac;:ao triunfal da vit6ria alcanc;:ada e o general tivesse ja desempenhado cargo publico, o triunfo seria concedido. Nenhum privado20 poderia receber, entao, semelhante honra, reservada, assim, a senadores ou consules que poderiam ser considerados como triumphator. Nesta fase desempenhava naturalmente papel de grande importancia a politica interna e os l6bis de facc;:6es. Casos houve de triunfadores, merecedores de tal distinc;:ao, que a viram recusada, bem como a de generais, menos afortunados, que viram os seus triunfos aprovados. Na realidade, a decisao, ainda que aparentemente contrariasse a evidencia dos factos, nao era passfvel de apelac;:ao. No perfodo imperial, porem, estes procedimentos ver-se-iam profundamente transformados. A que requisitos se sujeitava, entao, a concessao do triunfo? Quando tratamos esta questao nao devemos pensar em requisitos meramente formais como por exemplo uma autorizac;:ao constitucional, pois ainda que normalmente fosse o Senado, corn intervenc;:ao frequente dos tribunos, da plebe e dos comfcios quem, ap6s as oportunas preces21, outorgava a honra do triunfo, a decisao dependia na realidade do vencedor e a autorizac;:ao senatorial era fundamentalmente uma concessao de gastos para o festejo. Os requisitos de uma Vit6ria adequada a motivar a cerim6nia do triunfo eram bem mais profundos. A primeira condic;:ao era, naturalmente, urn exito militar consideravel. Se o inimigo se havia rendido espontaneamente, se nao se lhe houvesse infligido pelo menos 5.000 baixas em batalha, se a vit6ria tivesse sido precedida por urn fracasso, se tivesse havido grande dano nas pr6prias for19 Os louros eram frequentemente usados como grandes ofertas para feitos pessoais, assim, o uso de louro nos fachos era a maneira de o general afirmar que obtivera urn notavel feito de armas. 20 Lembremos o caso de Publio Cornelio Cipiao, que ap6s quatro anos de sucessos militares na Iberia, corn vit6rias significativas em Nova Cartago, Baecula e Ilipa, partiu para Roma a tempo das elei<;5es consulares de 205 a. C.. Apesar de uma partida muito confiante, crente que transportava para Roma urn glorioso triunfo e vit6ria, Cipiao como apenas privatus cum imperio, nao poderia celebrar urn triunfo, entrando assim na cidade como mero cidadao privado, nao obstante o publico entusiasmo pelos seus feitos. 21 As supplicationes cumpriam a dupla fun<;ao de preces publicas e simultaneamente a de ac<;ao de gra<;as dirigida aos deuses. Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 23 Humberto Nuno de Oliveira <;as, ou se o adversario fosse pouco numeroso, o exito poderia merecer eventualmente as honras de uma ova<;ao ou "pequeno triunfo"22 mas jamais as altas honras do Triunfo. A vit6ria deveria ter sido decisiva, contribuindo para o termo da campanha e deixando de tal modo subjugado o inimigo que se pudesse verificar o regresso do exercito a Roma sem perigo de perturba<;ao da paz. De igual modo, e ainda que a antiga exigencia se tenha relaxado corn o tempo, quando 0 exito fosse obtido corn artimanhas nao conformes a cortesia de beligerante, nao haveria igualmente lugar a triunfo. Por outro lado era requisito imprescindfvel que a Vit6ria tivesse sido obtida em guerra justa, porque s6 sobre urn iustus hostis se pode obter uma Vit6ria legftima. Jamais poderia ter lugar triunfo devido a vit6ria obtida numa guerra civil, ou seja, entre inimici e nao entre hostes, numa persegui<;ao de piratas, numa sufoca<;ao de uma subleva<;ao de escravos ou qualquer outra revolta. Nestes casos nao poderia haver triunfo nem tampouco sequer ouatio. Assim, de igual modo, se a guerra nao fora declarada regularmente, rite - segundo os ritos, ritualmente. De facto, em nenhum destes casos a guerra poderia trazer despojos, nem escravos para o erario publico e esse aspecto era, sem duvida, determinante. Requisito era igualmente que o general vencedor fosse urn magistrado corn imperium (visitador, consul ou pretor)23. Urn particular, urn chefe improvisado, urn magistrado depois de haver terminado o seu imperium ou depois de haver transmitido as for<;as ao seu sucessor, ou numa provfncia que nao era sua, nao podiam de modo algum ser considerados como triunfadores. 0 ius triumphandi - direito ao triunfo - era algo inerente ao imperium, ou seja, a esse poder militar absoluto, unitario e originario que encarna a soberania. Mas, na realidade, nao bastava o imperium, era igualmente preciso que a Vit6ria como vimos se tivesse seguido a uma campanha iniciada por urn magistrado depois de ter obtido auspfcios favoraveis, tal relaciona-se, de certa maneira, corn o requisito antes formulado da guerra declarada rite. Assim, pois, os dois requisitos da ac<;ao belica que poderia conduzir a uma vit6ria legitima eram: que se tratasse de urn bellum rite indictum, ou seja, conforme as regras do direito fecial; que o magistrado vencedor tivesse conseguido auspfcios favoraveis. 56 verificando estes requisitos se poderia falar de bellum pium. Esta concep<;ao quase religiosa iniciara-se nos finais da Republica Romana, quando a exalta<;ao da chefia militar progressivamente tendeu a concentrar numa pessoa determinada uma gra<;a divina especial, a Felicitas, uma vez que s6 ela 22 Para os romanos sob a designac;ao de ouatio. A ovac;ao era a honra inferior ao Triunfo, caracterizada por rituais pr6prios mas de inferior importancia aquela; caiu em desuso no tempo de Ch1udio 40 a. C .. 23 Diz-se do direito de comando, civil ou militar, de origem sagrada e consagrado pelos auspfcios, que transformam o seu detentor em muito mais do que urn eleito pelos cidadaos. Este poder atribufa-lhe o direito de convocar e consultar o povo e o Senado, comandar as legioes e ser juiz, decisoes que nao eram passfveis de recurso. 24 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 pode permitir a Vit6ria. Assim, ao longo da hist6ria de Roma constatamos uma inversao de momentos: se na Republica se divinizava o vencedor legftimo, no Imperio s6 ao divinizado se reconhece como possfvel o estatuto de vencedor. Esta altera<;:ao acentuava claramente a inicial dissocia<;:ao entre os auspicia e o ductus. Levando mesmo a que paradoxalmente embora a direc<;:ao da guerra - o ductus pudesse corresponder a uma dada pessoa, seria o agraciado pela Felicitas que devia tomar os auspfcios e por conseguinte receber as posteriores honras do triunfo. Assim o Princeps24, unico possfvel portador de Felicitas, converte-se, em Imperator e vencedor (Victor) perpetuo, ao mesmo tempo que refon;a o seu ius auspiciorum, muito superior em significado devido a honra do augurado, portador do titulo de Augustus. A teologia polftica do Principado cimenta-se, bem como a raiz do poder, na auctoritas. Mas deixemos a evolu<;:ao para o Imperio e atentemos, ainda, nos aspectos mais puros do infcio do fen6meno. Os vencedores romanos celebraram triunfos por mais de mil anos e pelo menos 320 prociss6es triunfais foram realizadas desde o come<;:o de Roma ate ao reinado de Vespasiano (69-79 d.C.). Em 403 d.C. o imperador Hon6rio (395-423 d.C.) desfrutou o ultimo verdadeiro triunfo romano. Impressionante no seu esplendor e caracter simb6lico, a cerim6nia do Triunfo tornou-se uma parte congenita da cultura romana que celebrava os extraordinarios servi<;:os a Roma e que constitufa a maior honra que o Estado podia conceder primeiro a urn her6i, depois, mais importante, a si mesmo. 0 verdadeiro Triunfo, aquele nascido na antiguidade classica, sempre se destinou a comemorar a vit6ria militar, ganhando em Roma a caracterfstica de celebra<;:ao do poder da cidade, da sua missao de conquista e domfnio e da bravura e coragem dos seus soldados. Porem, urn dos mais relevantes aspectos era, indiscutivelmente, a suplica a Jupiter para que assegurasse e mantivesse a prosperidade romana. Era, assim, por excelencia a cerim6nia em que os deuses e os homens se encontravam em maior proximidade. 7. 0 Cortejo Triunfal As descri<;:6es que chegaram ate n6s sao geralmente de triunfos individuais, logo muito especfficas, registadas sobretudo para assegurar e perpetuar maior gl6ria do triunfador, mas que, nao obstante estas limita<;:6es, nos permitem descortinar urn padrao geral para tais prociss6es, que nao obstante o maior esplendor na Roma republicana, sao quase certamente de origem etrusca, portanto anteriores a ela. Assim, os pormenores e detalhes deste complexo e interessante ritual for am adquiridos pelos romanos dos seus rivais etruscos. N a realidade 24 Literalmente aquele que ocupa o primeiro lugar. Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 25 Humberto Nuno de Oliveira aspectos como a toga purpura, o carro, os aneis, os atributos militares foram recuperados daquela outra pujante civiliza<;ao, acrescentando-lhe novas elementos e transformando-a na maior honra de Roma. Todo este complexo processo se iniciava corn urn louvor do comandante as suas tropas, a elas se dirigindo colectivamente e mencionando alguns individualmente. Estes seriam premiados corn dinheiro e honrados corn condecora<;6es. 56 ap6s o cumprimento desta fase se iniciaria o cortejo propriamente dito. A comitiva triunfal, corn urn trajecto bem definido, safa do Campo de Marte, entrava na cidade pela porta triumphalis25 atravessando as ruas de Roma pela Via Triumphalis (sensivelmente correspondente a actual Via dei Fori Imperiali), Circa Flaminio, Forum Boarium, Circa Maxima, circundava o Palatino, cruzava o Forum e subia o Capit6lio ate ao templo de Jupiter. Ao som de trombetas, abriam o cortejo os soldados portadores dos despojos destinados a serem distribufdos e dos cartazes que louvavam o vencedor e ilustravam, de modo quase animado, os momentos mais importantes das batalhas, enumeravam as regi6es e cidades conquistadas, bem como o nome dos generais vencidos26. Nao devemos deixar de referir que tal era a solenidade da ocasiao que era a unica em que era permitida a entrada de homens armadas na urbe. Na realidade, desde a Republica que os exerPercurso do cortejo triunfal (Segundo VERSNEL) citos nao eram autorizados sequer a 25 A porta triumphalis e uma constante no mundo classico, porem, na Grecia ela constitufa uma porta de entrada na cidade pela qual o general passava no decurso da procissao triunfal. Em Roma, contudo, ela ve a sua func;:ao alterada. E uma porta externa que e encerrada ap6s a cerim6nia, encerrando assim dentro da cidade a benc;:ao que o triunfador trouxe a mesma. 26 Embora as pinturas encomendadas pelos generais romanos nao tenham chegado ate n6s, prevaleceu, todavia, o seu testemunho que nos atesta o seu papel na modelac;:ao da cultura artfstica e politica do perfodo republicano. Durante a republica, a pintura romana corn temas hist6ricos serviu para celebrar as grandes conquistas: Cartago (201), Sardenha (174), Maced6nia (168), etc. Os temas inclufam representac;:6es quase iconograficas a par de realistas representac;:oes de batalhas, assegurando as mem6rias privadas dos participantes nos acontecimentos, servindo, igualmente, prop6sitos didacticos e propagan- 26 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 atravessar o Rubid1o, uma vez que a sua presen<;a nas imedia<;6es da cidade se poderia transformar numa situa<;ao potencialmente perigosa para o Senado, que tera institufdo esta medida para prevenir a actua<;ao de algum caudilho militar mais ambicioso. Desfilavam depois os prisioneiros, precedidos pelos seus chefes, agrilhoados e que nada esperam da vida. Por decisao do Triumphator alguns deles seriam posteriormente executados no Tarquinium e os restantes reduzidos a escravatura. Sao os prisioneiros, alias, que conferem predominantemente urn caracter militar a cerim6nia. Sempre foi, de facto, considerado maior feito a captura de prisioneiros de elevado estatuto do pafs derrotado27. 0 papel dos dfsticos na esfera publica das instituio;oes polfticas e religiosas. A classe governante encomendava tais obras para informar uma audiencia especffica sobre as suas conquistas e as suas polfticas, convencendo-os, assim, a aceitar determinadas condutas. Usava-se, entao, a pintura para implementar uma determinada ideologia. Roma recuperava argumentos ja entao testados da superioridade da pintura sobre outras formas de comunicao;ao como meio de cativar e manipular uma audiencia. Mais, os romanos abrao;aram a ideia que a pintura hist6rica era tao mais eficaz quanto mais realista se afigurasse. 0 desenvolvimento da pintura hist6rica romana facultou, igualmente, as classes dirigentes novos meios de compreensao e de propaganda da sua conduta, tao importante como os eventos em si. 0 rumo da polftica de meados para final da Republica revela urn fmpeto da arte para a auto-promoo;ao. 0 prestfgio social era indispensavel para uma elite romana que exercitava o seu controlo indirectamente, atraves de eleio;6es e assembleias. A competio;ao pela maior estima dos concidadaos provou ser intensa entre os romanos que manifestavam urn desesperado desejo de laudao;ao e de gl6ria. Por tal razao, durante a Republica sempre a gl6ria se constituiu como domfnio exclusive da aristocracia. 0 sucesso militar era o unico e mais importante meio de a obter. Tal nao era apenas importante para o Estado romano, mas representava uma importancia vital para os interesses pessoais dos aristocratas romanos. Jovens ambiciosos da elite romana eram obrigados ao cumprimento do servio;o militar, devendo cumprir dez anos como oficiais subalternos antes de aspirar a promoo;ao aos postos mais baixos da magistratura romana; a guerra era pois a actividade curricular normal do jovem aristocrata de sucesso. As pinturas triunfais transformaram-se assim em parte integrante desta exibio;ao didactica. 0 principal objective das pinturas triunfais era cimentar o prestfgio do triunfador, documentando os feitos que haviam conduzido a celebrao;ao triunfal. Os seus objectives eram fundamentalmente propagandfsticos, frequentemente corn escopos polfticos e eleitorais. As pinturas triunfais utilizaram diversos modos de representao;ao, eram frequentemente executadas em grandes paineis, designados tabulae, que podiam ser facilmente transportados na procissao, pintadas em grandes panos. Ap6s a procissao os triunfadores frequentemente as exibiam em ediffcios publicos ou nos temples das divindades a quem se devia a vit6ria. A exibio;ao publica destas pinturas ap6s a parada destinava-se a perpetuar a imagem de tais feitos. Assim exibidas as pinturas nao s6 comemoravam as vit6rias dos generais romanos mas contribufam ainda para relembrar as suas espectaculares celebrao;6es para as gerao;6es futuras. Deste modo as pinturas triunfais transformaram-se num elemento fundamental da urbe romana. (Holliday 1997 e 2002). 27 Este facto e claramente atestado, por exemplo, pela hist6ria de Cle6patra, que se viu foro;ada a cometer suicfdio de modo a nao participar na parada triunfal de Octavio Cesar Augusto. A importancia deste facto veio a ser perpetuada na imagetica europeia. Na realidade, nao devemos esquecer que na 6pera Aida de Giuseppe Verdi, a hist6ria da batalha entre a Eti6pia e o Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 27 Humberto Nuno de Oliveira prisioneiros e alias facilmente compreensivel face ao estatuto de estrangeiro (entendido verdadeiramente coma urn corpo estranho), tao imbuido na sociedade e civiliza<;ao romana. Tudo o que era estrangeiro era considerado barbaro e inferior. Serviam os p risioneiros, sobretudo de elevada importancia, o prop6sito de exaltar a vit6ria romana, assegurando a sublime humilha<;ao de desfilarem acorrentados perante o povo romano. Sofreram tal humilha<;ao, entre outros, Perseus, Jugurta e Vercingetorix (degolado em 46 ap6s o triunfo de Cesar) . Seguem-se os carros carregados corn os valores- escravos incluidos- obtidos no decurso da campanha e que virao a integrar o patrim6nio do Senatus Populus Que Romanus (S.P.Q.R.). Desfilam ainda os lictores, corn as suas varas laureadas, os bezerros que vao ser sacrificados no templo. Junta ao carro triunfal28, parentes a cavalo e oficiais que, a cavalo ou a pe acompanham o general. A frente, magistrados e senadores29. Atras, urn grupo de libertos e os soldados coroados de louro que alternam as serias predicas corn anedotas indecentes e que se misturam corn as aclama<;6es rituais corn que o publico acompanha: io triumphe, io triumphe, io triumphe. De pe no currus triumphalis, puxado por quatro cavalos brancos, conduzidos pelo filho mais velho, e adornado de ouro e marfim, vem o vencedor, rodeado pelos demais filhos vestidos de branco. Glorioso, resplandecente tal coma o proprio Jupiter Capitolino, a cujo templo se dirige, e corn quem, por urn dia, se busca a semelhan<;a e se assegura o tratamento divino30, surge o Triumphator, vestido corn o antigo traje dos reis, o manto de purpura bordado corn palmas douradas e eventualmente estrelas (toga picta). Pintado de minio31, o rosto altivo, transportava na mao direita urn ramo de oliveira, simbolo da paz instaurada pela sua campanha, e na outra mao urn ceptro de ouro e marfim (scipio eburneus), simbolo do poder. Por tras, urn escravo publico sustem sabre a cabe<;a, onde ja repousa a coroa de louros - laurea insignis -, outra de ouro- corona aurea -, ao mesmo tempo que lhe vai proferindo as express6es : "recorda-te que es apenas urn homem" (memento homo) e "toda a vit6ria e efemera". Cumpre assim a fun<;ao de lhe recordar, num momento quase divino, a sua humilde condi<;ao e o caracter meramente perene do acontecimento, lembrando no dia seguinte o seu regresso a condi<;ao de simples mortal. Quem sabe se tallembrete possuia tambem urn valor apotroEgipto. Radames, o triunfador egfpcio, conduz a marcha triunfal, onde os prisioneiros desempenham papel fulcra!, que constitui o climax da gl6ria militar daquela 6pera (2. 0 Acto, cena 2."). 28 Este carro era diverso dos demais, quer de combate quer de corrida, pois possufa a forma de uma torre redonda. 29 No perfodo imperial os senadores marchavam atras do imperador vitorioso, reflectindo a queda do poder senatorial. 30 Este tratamento excepcional concedido aos generais vencedores produzia igualmente entre os romanos algum temor, uma vez que nao desejavam que tallhes concedesse a no<;:ao de que o seu papel e poder poderiam ser permanente, assumindo assim urn poder ditatorial. 31 Tinta obtida a partir do 6xido de chumbo de cor de zarcao (vermelhao). 28 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 paico32, tal como a cor do manto ou os amuletos pendentes que vao atados ao carro, urn chicote e urn sino, para evitar que, invejosos do seu triunfo, os espfritos malignos acometam nesse momento o afortunado mortal. E igualmente possfvel que tenham o mesmo valor as anedotas da soldadesca, embora af se possa igualmente ver a manifesta<;ao do desejo popular de afirma<;ao da sua liberdade politica, ao entrar na grande Urbe, mediante essa manifesta<;ao constante, instintiva e por vezes exclusiva da liberdade popular: a capacidade de insultar o governante. Assim, esse mesmo povo zeloso das suas liberdades quebra a constitui<;ao dos seus maiores para exaltar ou mesmo insultar agora a figura do vencedor. Maior gloria nao se pode conceber dentro do sagrada recinto do Pomerio! De igual modo, mimetizando o seu general tambem as tropas se engalanavam para tao importante ocasiao, para alem das fun<;6es espedficas que deveriam desempenhar no cortejo. 0 general escolhera no infcio do cortejo de entre as suas tropas aqueles que haviam tido comportamento de particular destaque na campanha, ou mesmo conjuntos de tropas ou legi6es que merecessem destaque pela sua actua<;ao. A estes haviam sido distribufdas phalerae33, torques (aplica<;6es metalicas gravadas usadas nos ombros), armillae (bra<;ais), asta pura (lan<;as de prata ou de ouro), cornicula (astes ou cornos em forma de meia lua que se fixavam nos capacetes) e as coronas triumphalis (coroas de prata ou ouro)34, que deveriam relembrar o papel do portador na memoria de tao importante vitoria. Esta escolha dos dignos de condecora<;ao determinaria o seu papel proprio e bem definido no cortejo do Triunfo. Dizia-se dos deuses cujo auxilio se invocava para afastar uma desgra<;a que se temia. Galardao militar pr6prio de Roma e que constitui antepassado das actuais condecora<;6es, cujo estudo se denomina falerfstica. Era normalmente uma placa mebilica redonda que se aplicava na coura<;a. 34 Estas eram vulgarmente consideradas como a maior distin<;ao individual por valor pessoal e por isso distribufdas corn maior parcim6nia. Das coroas iniciais de louro se evoluiu em breve para urn universo bastante mais complexo. Existiam as seguintes coroas: a graminaea ou obsidionalis (fabricada de flores e ervas; para aqueles que tivessem contribufdo para descercar uma for<;a romana que se achara naquela situa<;ao), a oleaginea (de folhas de oliveira; para oficiais ou soldados que ainda nao distinguidos na ac<;ao tivessem, pelos seus bons alvitres, contribufdo para aquele exito. A escolha da oliveira - arvore de Minerva- simbolizava a prudencia do conselho), a muralis (imitando as ameias e concedida como premio aos que primeiro penetrassem numa cidade amuralhada inimiga), a vallaris ou castrensis (similar a uma pali<;ada e concedida pela captura de urn acampamento inimigo) e finalmente a navalis ou rostrata (corn uma decora<;ao de barcos e velas, concedida aos que primeiro abordavam uma embarca<;ao inimiga ou ao que dirigira o combate). De entre as coroas a mais importante era a denominada corona civica (grinalda de folhas de carvalho corn fruto; entregue ao soldado que em batalha salvara a vida a urn camarada matando-lhe o inimigo Cesar ganhou a sua corn apenas 18 anos em Mitilene. Estas coroas, para alem do seu valor simb6lico, comportavam ainda honras e privilegios do Estado que eram transmitidos aos ascendentes (pai e av6 paterno) e descendentes masculinos durante varias gera<;6es. 32 33 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 29 Humberto Nuno de Oliveira Mas trataria toda esta cerim6nia triunfal apenas de exaltar a pessoa do vencedor? De modo algum. Nao devemos encara-la como uma demonstra<;ao de jubilo esponti:ineo, uma embriaguez popular provocada pelo exito militar, mas, de facto, de algo elaborado e preparado que assume papel de verdadeiro acto liturgico colectivo. Na realidade o general vencedor encaminha-se, em ultima instancia, para o templo de Jupiter Capitolino, onde em ac<;ao de gra<;as pela Vit6ria que os deuses lhe facultaram ira proceder aos seus sacriffcios. Porque essa vit6ria, nao e urn produto da fortuna, nem resultado do esfor<;o genial de urn homem, mas urn dom legftimo que a divindade oferece ao ... Estado Romano. A cerim6nia durava pelo menos Memorial de Marcus Caelius, urn dia, durante o qual aos romanos era centuriao superior da 18. • Legiao, caido na floresta oferecida uma grande parada que cede Teutonberg (9 d. C.), nas guerras da Germania. Este interessante memorial mostra-nos lebrava a gl6ria do general vitorioso. as representa~oes de quase todas as distin~oes Havia todavia casos em que o triunfo individuais sendo visiveis a corona triumph a lis, demorava dois ou tres dias, os necessaos torques, as phalerae, os armillae e ainda a asta pura. rios para fazer introduzir na cidade se(GOLDSWORTHY) melhantes tesouros trazidos dos pafses estrangeiros. A magnffica cerim6nia do triunfo detinha urn profunda significado religioso; era por urn lado uma ao;ao de gra<;as - em rela<;ao corn os uota que se ofereciam ao iniciar a guerra - e daf ao sacriffcio e a ora<;ao de gra<;as que faz o vencedor (ap6s o qual, tirado o manto, volta a ser urn simples particular responsavel pelos seus aetas) e e ao mesmo tempo urn acto de purifica<;ao pela irremediavel matan<;a da batalha, por isso o passeio catartico pela porta triumphalis e o louro purificador. Nao se trata, portanto, como dissemos de uma mera manifesta<;ao popular para exaltar o exito de urn homem num dado feito de armas, mas de todo urn rito plena de sentido mfstico em que se evoca a Vit6ria legftima. De facto, encontramos varias provas de que, quando se negava a honra oficial do triunfo o vencedor podia celebra-la, a suas expensas, embora fora do Pomerio, no vizinho Monte Albano35. Na realidade como referido por Mommsen (1996: 43), o Monte Albano torna-se o local de para os generais que o haviam solicitado em vao ou sem perspectivas de o obter, datando o primeiro registo hist6rico de tal ocorrencia de 523 a.C. 35 celebra~6es 30 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 No Capit6lio terminava o triunfo corn o cumprimento dos deveres rituais e as oferendas aos deuses. Come<;aria, enUio, a festa jantando o general nos porticoes perto da colina do Capit6lio. Ap6s longos festejos o general retornaria a casa, onde continuaria as celebra<;6es domesticas. Procissao Triunfal Adaptada do arco de Trajano- vit6ria sobre os Dacios Portadores de Insignias I Estatua de Jupiter I Saque I Musicos Toiros para o sacrificio I Prisioneiros e guardas I Charameleiros Chefes cativos I Prisioneiros e suas armas I Prisioneiros agrilhoados Lictores I General Triunfador I Senadores e Magistrados (HAD AS) Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 31 Humberto Nuno de Oliveira 8. Distribui~ao dos despojos. Os monumentos triunfais Os despojos do pafs inimigo eram trazidos para Roma e distribufdos pelo general vencedor. Assim, os criterios de distribui~ao variaram, naturalmente, de general para general, embora comportassem habitualmente determinados procedimentos comuns. A maior parte destinava-se a pagar aos soldados pelos seus esfor~os pelo pafs, urn outro quinhao destinava-se a pagar os custos do triunfo e os festejos subsequentes. Considerados estes e dependendo da quantidade dos despojos, poderia 0 general proceder ainda a distribui~ao pela popula~ao e pelo tesouro publico. Porem, antes de contemplar e pagar todas as despesas, habitualmente assegurava-se de reservar algum dinheiro para a constru~ao de obras publicas, usualmente urn templo, uma coluna ou sobretudo urn arco triunfal. E pois a memoria de pedra de tais triunfos que sumariamente se analisa seguidamente. 0 objectivo dos arcos triunfais, introduzidos pelos romanos, era o de perpetuarem na memoria publica os feitos de uma particularmente notoria vitoria militar (sempre importantes numa futura eventual candidatura a urn lugar publico onde tais servi~os poderiam ser lembrados). Os arcos iniciais eram bastante simples, corn uma so passagem e por vezes adornados corn relevos e colunas. Os arcos posteriores, verdadeiros monumentos a gloria militar, tornaram-se mais elaborados, quer na decora~ao quer na forma e atingiram o seu apogeu corn os arcos de Septimo Severo e Constantino. 0 primeiro Arco da era Imperial foi erigido Moeda da era de Augusto corn imagem do Arcus Augusti por Augusto (Arcus Augusti) em 29 a.C. para celebrar a sua vitoria na batalha de Actium. Situava-se no Forum entre os Templos de Castor e Pollux e o de Cesar, perto do Templo de Vesta. A certeza da sua localiza~ao advem da descoberta, em 1546, de urn grande fragmento de uma inscri~ao corn uma dedicatoria ao Imperador. Resta muito pouco do arco, apenas as funda~6es, mas a sua imagem pode ser reconstitufda pelas moedas da epoca. No topo do arco central, de acordo corn os registos numismaticos contemporaneos, situava-se uma quadriga e por cima dos arcos laterais estatuas. Segundo as teorias, as fasti, placas de marmore corn a listagem dos consules e generais a quem tinham sido atribufdas prociss6es triunfais, estariam afixadas nos lados dos arcos laterais. 0 arco de Tito (Arcus Titi) e o arco triunfal que comemora a vitoria dos imperadores Vespasiano e Tito na Judeia (70 d . C.), que conduziu a conquista de Jerusalem e a destrui~ao do templo e a procissao triunfal de ambos em 32 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 Arco de Tito (Roma). (Fotografia do autor) Roma, em 71 d.C.. Situa-se a entrada do Forum Romanum, na Via Sacra, a sul do Templo de Amor e Roma e perto do Coliseu. Foi erigido seguramente ap6s a morte de Tito, em 81 d.C., uma vez que este e referido como Divus na inscri<;ao e a deifica<;ao do Imperador apenas se verificou postumamente por decisao do Senado. Teni sido construfdo provavelmente por Domiciano, que sucedeu ao irmao Tito nesse ano. E urn arco simples, cujas decora<;6es externas incluem as figuras da Vit6ria, corn trofeus, e nos timpanos as imagens de Roma e do Genio de Roma. A inscri<;ao no lado E e a dedicat6ria original do arco pelo senado: Senatus Populusque Romanus diva Tito diva Vespasiani j(ilio) Vespasiano Augusto (0 Senado eo povo de Roma ao divino Tito, filho do divino Vespasiano, Vespasiano Augusto). 0 lado S mostra o infcio da entrada triunfal do imperador e suas tropas em Roma. Os soldados, marchando da esquerda para a direita, transportam os despojos de guerra, que incluem os candelabras e as trompas do templo de Jerusalem. Os cartazes transportados indicam os nomes dos povos e cidades conquistadas. A direita a procissao entra na cidade pela Porta Triumphalis. 0 lado N e decorado corn urn relevo do imperador na sua quadriga durante a procissao triunfal, sendo conduzido pela deusa Roma e coroado pela Vit6ria que voa sobre ele. Os lictores marcham a £rente do carro corn os seus longos machados cerimoniais. Ap6s o imperador urn jovem, representando o povo de Roma, e urn idoso de toga, representando o Senado. No meio sob a ab6bada urn pequeno relevo mostra a apoteose de Tito, voando para os ceus nas costas de uma aguia. 0 Arco de Septimo Severo (Arcus Septimii Severi) foi erigido em 203 d.C. para celebrar as vit6rias do Imperador e seus filhos Caracalla e Gaeta nas guerras contra os partos e os osroeni em 195 d.C .. Situa-se no Forum Romanum entre a Curia e a Rostra, perto da Via Sacra no caminho das prociss6es triunfais Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 33 Humberto Nuno de Oliveira mesmo antes da subida para o monte Capitolino em direc<;ao ao Templo de Jupiter. E urn area de tres passagens, corn urn area central maior ligado aos laterais par passagens. A numismatica da epoca mostra o area encimado par uma quadriga conduzida pelos imperadores. N a generalidade o area encontra-se bem preservado, embora na Idade Media tenha estado incorporado parte numa igreja e parte numa fortaleza. Arco de Septimo Severo (Roma). (Fotografia do autor) Este area possui interessantfssimas representa<;6es da guerra contra os partos e do triunfo posteriormente celebrado, presentes nos relevos centrais e que constituem, verdadeiramente, uma narrativa que come<;a do lado esquerdo (virado para o Forum) e se desenrola pela direita ao redor do area, relatando desde os preparativos, as arengas as tropas, aos cercos corn suas maquinas ate a entrada nas cidades conquistadas. Num tipo de narrativa similar a das colunas de Trajanus e Marcus Aurelius. Nos tfmpanos do area centrallugar ainda para a deusa Vit6ria corn os seus trofeus e igualmente imagens de Marte. Nos areas laterais aparecem divindades fluviais e ainda eventualmente Hercules. 0 area de Constantino, foi erigido em 315 d.C. para comemorar a vit6ria do Imperador sabre Maxencio, na batalha da Ponte Mflvia tres anos antes. Situa-se no vale do Coliseu entre o monte Palatino e aquele monumento junta ao percurso das prociss6es triunfais. E urn dos tres areas sobreviventes em Roma (Tito e Septimo Severo). Esta batalha constituiu urn momento decisivo na busca de poder par Constantino. Havia sido proclamado Augusto pelas suas tropas na Inglaterra em 306 d.C., ap6s a morte do seu pai em Iorque, e ainda que nao tivesse direito legal ao titulo, recusou-se a abandona-lo. De igual modo, Maxencio reclamou o titulo de Augusto do Arco de Constantino (Roma). (Fotografia do autor) 34 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 imperio oddental. Este conflito resolveu-se naquela batalha ao norte de Roma, quando o exercito de Constantino derrotou as muito mais numerosas tropas de Maxendo que morreu ao tentar fugir por uma ponte de barcos sabre o Tibre. Constantino entrou vitoriosamente em Roma e o Senado outorgou-lhe urn arco triunfal. A constrw;:ao come~ou imediatamente e o area ficou conclufdo em poucos anos, sendo consagrado em 3151316 d.C. no dedmo aniversario da subida de Constantino ao poder. 0 monumento nao e mendonado em qualquer fonte antiga mas e claramente identificado pelas inscri~oes, o ano da dedica~ao encontra-se no proprio arco: Votis X. Os elementos decorativos sao de diferentes perfodos e sao geralmente considerados spolia, ou seja elementos de monumentos anteriores. 0 arco tern partes de elementos de Trajano, Adriano, Marco Aurelio e do proprio Constantino. Algumas das mais antigas e reutilizadas partes forma alteradas de modo a que as imagens se assemelhassem a Constantino. Quando a Via Appia foi prolongada para la de Capua, a primeira extensao foi para Beneventum (Benevento), a cerea de 55 km de Capua. Aqui localizase o impressionante arco sobre a Via Appia construfdo entre 114 e 166 d.C. em honra de Trajano. Os seus baixosrelevos relatam a historia e conquistas de Trajano e a sua vitoria sabre os dados (antigos habitantes da actual Romenia) na sua face NW (voltada para Roma). Para alem da amostragem dos arcos e das colunas ja referenciadas no texto tambem as inscri~oes epigraficas Arco de Trajano (Benevento). (Fotografia do autor) nos auxiliam na reconstitui~ao desta parte da historia. E o caso daquela encontrada em Celio di Roma em que se verifica a dedicatoria de urn templo a Hercules por L. Mummio (144 a.C.) L(ucius) Mummi(us) L(uci) j(ilius) co(n)s(ul). Duct(u), I auspicio imperioque I I eius Achaia capt(a est). Corinto deleto Romam redieit I triumphans. Ob hasce I res bene gestas, quod I in bello voverat, hanc aedem et signu(m) Herculis Victoris imperator dedicat. (Ludo Mummio, filho de Ludo, consul. Sob o seu comando, os seus auspfdos e o seu imperium a Greda foi conquistada. Destrufda Corinto retornou Epigrafe de L. Mummio (Cristofori) Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 35 Humberto Nuno de Oliveira a Roma celebrando o triunfo. Pelo sucesso desta empresa, como fizera votos durante a guerra, dedica como imperator este templo e a estatua a Hercules vencedor). Trata-se de uma inscric;ao dedicat6ria de urn templo e de uma estatua, por Lucio Mummio, comandante na guerra contra a Liga Aqueia e que se traduziu numa grande vit6ria romana e pela destruic;ao da principal cidade da Liga, Corinto. De notar que na onomastica do personagem ainda nao existe cognomen, fen6meno frequente em meados da Republica entre as familias que nao pertenciam a mais alta aristocracia romana. L. Mummio, em seguida a vit6ria sobre os aqueus, assume o cognomen ex virtute Achaicus que transmite aos seus descendentes. De notar sobretudo ainda as referenda ao ductus da guerra, mas ainda aos auspicia e ao imperium, condic;6es fundamentais, como anteriormente referido, para que pudesse celebrar a vit6ria. Ja foi notado que o conteudo desta epigrafe parece ser proximo dos cartazes que desfilavam nos triunfos. Nesta epigrafe nao se encontra referenciado corn que fundos foi construido o templo e a estatua de Hercules vencedor, mas e sabido que L. Mummio transportou da Grecia urn enorme saque, no qual se contavam numerosas obras de arte, que Mummio generosamente distribuiu por varias cidades de ltalia (a generosidade deste acto e registado nas diversas inscric;6es denominadas tituli mummiani); nao e, assim, dificil presumir a origem dos fundos para a obra (Cristofori 1998-2002). 9. Alguns grandes triunfadores De entre os muitos generais de Roma, alguns ha que se elevaram ao patamar da imortalidade, merecendo clara distinc;ao entre os demais. Foram, assim, honrados corn mais do que uma distinc;ao dessas celebrac;6es gloriosas que, ainda que episodicamente, os elevavam ao estatuto de divindade. De acordo corn os escritos de Dionisio de Halicarnasso os primeiros triunfos de Roma devem ser atribuidos a R6mulo (753-715 a.C.) que assim teria dado inicio a uma nova e honrosa tradic;ao de celebrac;ao do Triunfo. Na monarquia existiram reis corn caracteristicas muito diversas, ao quase santo Numa Pompilius (715-672 a.C.), entregue a uma profunda reforma dos institutos religiosos, haveria de suceder o turbulento guerreiro Tullius Hostilius (672-641 a.C.) a quem se deve a conquista dos territ6rios circundantes, a guerra corn Alba Longa e outros povos que dominou. Ja na Republica, implementada em 509 a.C. quando Tarqufnio "0 Soberbo" foi afastado pelo povo, o primeiro grande triunfador parece ter sido Marcus Furius Camillus (446-365 a.C.), que, fruto das suas campanhas contra, entre outros, os etruscos, veios e gauleses experimentou por quatro vezes as honras do Triunfo (Eutrope, I, XIX), sendo saudado como urn segundo R6mulo, segundo fundador da patria. 36 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 Referenciaremos, apenas, e numa escolha naturalmente questionavel, alguns dos triunfadores romanos. Tal selec<;ao advem fundamentalmente de quatro factos: o puro merecimento do feito, o destaque na hist6ria romana do personagem agraciado, a novidade introduzida no ritual do Triunfo ou, ainda, o relato mais detalhado do evento. Assumidos apenas, na ordem de enumera<;ao, o criterio cronol6gico e a sua exclusiva fixa<;ao no perfodo republicano. Gaius Duilius Nepos (300-225 a.C.) Comandante romano que venceu a mais importante batalha naval sobre os cartagineses no decurso da Primeira Guerra Punica (264-241). Como consul em 260, era o responsavel pelo exercito na Sidlia quando lhe foi acometida a tarefa de comando da recentemente criada frota romana. Consciente das debilidades dessa for<;a decidiu que a mesma deveria operar nas condi<;6es mais pr6ximas das de urn envolvimento terrestre. Foi, assim, o responsavel pela inven<;ao das famosas pontes de abordagem fixadas corn espig6es de ferro (corvi). Logrou, corn esta concep<;ao tactica, derrotar a poderosa frota cartaginesa na batalha de Mileto (260), na costa norte da Sicflia. 0 seu triunfo celebrado em Roma, foi o primeiro triunfo naval da hist6ria romana, sendo erigidas em honra da sua vit6ria duas colunas evocativas - columna rostrata - adornadas corn partes dos navios capturados (localizavam-se pr6ximo do Arco de Septimo Severo, tendo sido recuperada uma delas no seculo XVI). M. Claudius Marcellus (sec. Ill a.C.) Em 211 a.C. o general M. Claudius Marcellus regressou aRoma ap6s a sua notavel campanha contra Siracusa. Trazia consigo urn impressionante conjunto de despojos helenfsticos e acampado nos arrabaldes da cidade ter-se-a dado conta de que os mesmos poderiam corresponder a uma parte impressionante do seu triunfo, constituindo, simultaneamente, urn excelente ornamento para a urbe. Parece ter sido da sua iniciativa a utiliza<;ao de impressionantes pinturas da captura de Siracusa no decurso do seu triunfo. As pinturas das prociss6es triunfais, propositadamente encomendadas para o efeito, contribufram de modo significativo para refor<;ar a natureza do ritual, aumentando, assim, o seu poder sociopolftico. Lucius Aemilius Paullus (229-160 a.C.) Paullus foi urn temfvel e brutal general, corn uma diversificada e longa carreira militar. Combateu na Peninsula lberica, na Liguria, ainda como praetor, mas haveria de ser ja como consul que obteria a sua memoravel vit6ria em Pidna (Junho de 168) que poria termo a terceira Guerra Maced6nica. Ap6s o regresso recebeu urn triunfo pelo seu feito monumental: uma longa e diffcil batalha que durou tres dias. Trata-se de urn triunfo razoavelmente bem conhecido por compara<;ao corn outros . 0 primeiro dia das celebra<;6es foi sobretudo de, chamemos-lhe, espectaculo. Paullus e o seu exercito transporta- Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. o 2/ 2005 37 Humberto Nuno de Oliveira ram inumeras pinturas, estatuas e outras imagens gravadas que percorreram as ruas de Roma em mais de 300 carros. 0 segundo dia apresentou as riquezas infindaveis transportadas em carros que brilharam sob o sol de Roma. 3 000 homens impecavelmente uniformizados, num passo de poucas centenas de metros por hora, puxavam 750 recipientes de prata e moedas. 0 ultimo dia deste enorme triunfo comet;ou corn os tocadores de trompa que nao entoavam as tradicionais musicas de urn cortejo mas antes musicas militares destinadas a encorajar os soldados nos campos de batalha. Jovens envergando tunicas de purpura conduziam 120 bois para serem sacrificados aos deuses como prova de fe . Esses animais encontravam-se decorados e puxavam carro ap6s carro de ouro e j6ias. Entravam entao os prisioneiros. 0 rei maced6nico capturado, Perseus, seguia acompanhado pelos seus filhos que assim adornariam ainda mais o triunfo de Paullus, dois filhos e uma filha, demasiado jovens para compreenderem a gravidade da ocasiao. Esta cena brutal deveria, supostamente, fazer as criant;as gratas ao general por nao as matar. Na realidade, ninguem conseguiu prestar atent;ao ao importante derrotado, a pena dos romanos concentrou-se nas criant;as. Muitos romanos choraram, incapazes de desfrutarem o triunfo. Gnaeus Pompeius Magnus (106-47 a.C.) Ap6s o seu regresso a Roma, Pompeu foi agraciado pelo cumprimento do seu dever aRoma, corn urn enorme triunfo. No decurso do qual desvendou o seu plano de dedicar edificios a cidade. 0 seu maior contributo foi urn enorme teatro de pedra corn urn jardim interior e que foi o primeiro que Roma conheceu. Este tipo de ofertas a Roma e ao seu povo pelos triunfadores eram como vimos comuns, porem+ as oferendas de Pompeu ultrapassaram em muito as dos vulgares generais e os seus concidadaos olharam-no corn profunda gratidao e respeito. Caius Julius Caesar (101-44 a. C.) Cesar, urn dos mais notaveis generais romanos, foi honrado corn cinco triunfos, sendo que quatro deles lhe foram prestados em apenas urn mes, deixando apenas alguns dias de intervalo entre eles para descanso. Os cinco triunfos diferiram na quantidade de despojos e no conteudo. 0 seu triunfo sobre os pontios deu origem a expressao "Veni, vidi, vici". 0 seu triunfo na Galia valeu-lhe urn triunfo corn archotes na cidade e corn quarenta elefantes. Sem duvida que as suas celebrat;6es foram extraordinarias e relembradas por muito tempo. Durante essas celebrat;6es, muitos despojos foram conseguidos e Cesar distribuiu aos seus veteranos 24.000 sestercios, doze vezes mais que os iniciais 2.000. A todos os homens concedeu terras e cereais. Cesar utilizou todos os bens adquiridos para melhorar a sorte do maximo possfvel de pessoas, tornando-o num dos mais conhecidos e sobretudo amados generais de Roma. 38 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p . 13-45 10. Triunfos Romanos durante o Imperio Tal coma em muitos outros aspectos da hist6ria romana o advento do Imperio, em 27 a. C., veio alterar profundamente a rusticidade, pureza e caracteristicas da inicial civiliza~ao romana. 0 Triunfo, coma ja referimos, havia sido a mais desejada honra na Republica, mas todo esse universo se alterou corn a subida de Octavio ao poder. Na realidade desde 36 a.C., antes de se transformar em Augusto, que Octavio lograra assegurar a sua sacro-santidade tribunicia, ou seja a protec~ao do Estado para a sua pessoa e bens. Em 27 a. C. obteria urn imperium proconsular especial sabre diversas provincias (Hispania, Galia e Siria), enquanto o Senado ostensivamente mantinha o controle sabre as remanescentes "provincias senatoriais", a maioria das legi6es encontrava-se nas provincias imperiais, logo sob o controlo de Augusto. Posteriormente tal poder proconsular foi alargado de modo a que os governadores e generais das provincias imperiais fossem nomeados e exclusivamente responsaveis perante o imperador. A Octavio se deve tambem a cria~ao da Guarda Pretoriana36 (McManus 2001: 1), verdadeira guarda pessoal do novo regime. Augusto procurou, de facto, assegurar o controle dos mais variados aspectos da vida publica de Roma, as finan~as passaram a ser mais directamente controladas, os neg6cios estrangeiros directamente tratados e o controle total da administra~ao implementado atraves da completa reorganiza~ao da burocracia 36 Criada por Octavio ap6s a batalha de Actium em 31 a. C., constitufa uma guarda de protec<;iio pessoal (o exemplo da morte de Cesar encontrava-se, ainda, muito vivo ... ). Foi assim designada por referencia as Pr<etoria cohors (tropas escolhidas), que acompanhavam a p essoa do pretor ou general no exercito romano, escolhidas entre os mais bravos soldados. A Guarda organizava-se, tal como as legioes, em 9 cohorts (grupos) de 500 soldados, num total de 4.500 soldados. Dessas apenas tres se encontravam estacionadas na capital, para evitar o aspecto de excessiva pressao militar, embora na cidade andassem sem armadura e escudo. Cada grupo era liderado por urn tribuno da ordem equestre, posteriormente Augusto criou dois lugares para o comando geral da guarda. 0 papel principal da guarda nao impediu que igualmente fosse empregue em actividades de policiamento ou mesmo em campo de batalha, se necessario. Emblematicamente a guarda aparece associada ao escorpiao, talvez devido ao facto de ser esse o signo do imperador Tiberio ou lembran<;a de Africa onde pela primeira vez Cipiao "0 Africano" institufra as Pr<etoria cohors. 0 imperador Tiberio agrupou-os no Castra Pr<etoria (Campo Pretoriano) nos suburbios orientais de Roma, introduzindo, ainda, mais rfgidas normas de disciplina entre eles. Os Pretorianos rapidamente se transformaram no mais poderoso corpo do Estado romano, frequentemente depondo e al<;ando imperadores a seu contento. Ap6s o assassinato de Calfgula pela Guarda Pretoriana, foi ela a grande responsavel pela nomea<;ao imperial de Claudio. Assim, ate mesmo os mais poderosos imperadores se viram na obriga<;ao de cortejar os seus favores. Vitelio aumentou o seu efectivo para 16 cohorts transferindo para ela muitos experimentados soldados ita!icos (69 d. C.). Ap6s uma longa existencia plena de vicissitudes a Guarda foi extinta ap6s a batalha da ponte Mflvia (312) sendo em seu lugar institufda a Schol<e Palatin<e (guarda do palacio). Genericamente a designa<;ao "Guarda Pretoriana" transformou-se numa expressao para qualquer for<;a militar usada para sustenta<;ao de urn regime polftico. Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 39 Humberto Nuno de Oliveira estatal. Habilmente logrando que atraves de novas cargos, existissem maiores oportunidades publicas, mas, na realidade, muito pouca oportunidade para assegurarem o tipo de poder militar que havia destruido a antiga forma de governo. Na pnitica ao cristalizar os simbolos de hierarquia e status aumentado o prestigio social de muita da elite romana, Augusto diminui-lhes de facto o poder (McManus 2001: 1-2). Era pois impassive!, na realidade, ap6s verificar o que urn triunfo contribuia para aumentar o poder pessoal do homenageado, que o Imperador aceitasse semelhante desafio a sua posi<;:ao. Foi pois necessaria uma profunda reformula<;:ao que conduzisse a que a honra do triunfo passasse a ser reservada ao Imperador, sua familia e casa (domus principis ou domus Augusta). De facto, o ultimo triunfo registado por urn general de linhagem nao-imperial ocorreu em 19 a.C.. A partir de entao ao general nao cabia o triunfo mas apenas a triumphalia ornamental. Dois pilares de bronze eternizam em Roma os feitos deste grande general, politico e acima de tudo genial mestre da propaganda politica. Honrado corn tres triunfos pelos seus servi<;:os a Roma, Augusto declinou, ainda, a celebra<;:ao de quatro outros triunfos corn que o Estado o pretendia honrar. Embora estranhamente nao se conhe<;:a muito sabre tais triunfos, sabemos que Augusto chegou a deter sob seu comando 500.000 homens, capturando mais de 6oo navios, urn numero surpreendente para o tempo, que contribuiram para fortalecer o poder naval de Roma. As suas capturas foram imensas e a partilha dos despojos ultrapassou em muito a media do que era habitual. Resultaram estas vit6rias, da batalha de Actium ou Accio (31 a.C.)37, comandada pelo mais fiavel soldado de Augusto - Marcus Vespasianus Agrippa (63-12 a.C.) -, que desempenhou urn papel fundamental nas campanhas de Augusto e mesmo na sua subida ao poder. Inicia-se assim corn Augusto o precedente, no qual se pode basear a actua<;:ao futura - nao se atribuirem triunfos a generais. Tal parece ter resultado da postura de Agrippa, homem de muitas posses que usou em beneficia de Roma38 e de Augusto. Apesar da amizade do Imperador39 e do seu inquestionavel papel, nunca celebrou nenhum triunfo, recusando-os. De postura irrepreensivel jamais alimentou jogos de poder, sendo que facilmente poderia ate ter-se eventualmente proclamado Imperador. Assim, se nao atribuia ao seu fiel e leal Agrippa a honra do Triunfo, que galhardamente o recusara, Augusto criou assim o precedente de evitar atribuir triunfos a generais vitoriosos, que, por compara<;:ao corn Agrippa deveriam necessariamente ver-se for<;:ados a recusa-lo. 37 Trata-se da batalha travada na costa ocidental da Grecia entre as fon;as do jovem Octavio e as de Marco Ant6nio e Cle6patra VII do Egipto. 38 A ele se deve a constrw;ao do Pantheon, de uma nova ponte sobre o Tibre, os primeiros banhos publicos, a reconstrw;ao do sistema de esgotos, o abastecimento de agua a cidade, entre outras. 39 Recordemos que, quando da sua morte, Augusto ordenou mesmo que Agrippa fosse sepultado no mausoleu imperial. 40 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 As honras passariam assim a ser atribufdas a Augusto que nem se preocupava em consultar os generais vitoriosos, a ele cabia a gra<;a especial que lhe permite veneer, a Felicitas40. Os triunfos de Vespasiano e Tito, celebrados em conjunto, sao exemplos de urn triunfo imperial. 0 seu triunfo foi urn dos mais espectaculares do perfodo imperial. A multidao apinhava-se para vera procissao tal coma na Republica. Vespasiano e Tito foram coroados de louro e vestiram a purpura tradicional, entraram pelos p6rticos de Octavia, onde o Senado, os magistrados e os equestrii esperavam a sua chegada. Chegados ao p6rtico realizaram as suas ora<;6es e os seus sacriffcios. Avan<;ando entao pelo teatro para que a multidao os pudesse ver melhor. A guerra era mostrada de numerosas formas, atraves de representa<;6es pormenorizadas dos epis6dios. Viam-se os ediffcios inimigos a serem destrufdos, os seus exercitos a serem dizimados, as suas muralhas derrubadas e o saque dos seus tesouros. 0 montante do saque era impressionante e sem duvida, de entre eles, o trazido do templo de Jerusalem que inclufa placas de ouro, moedas, candelabras de ouro e prata e uma c6pia da lei dos judeus. Ap6s a cisao do Imperio (395 d.C.) a Vit6ria felix foi impulsionada pelas crescentes influencias orientais e converter-se-ia a breve prazo em Vit6ria aeterna, ou seja, aquela que eternamente garante ao Imperador o titulo Invictus. De igual modo a ideia de Aeternitas atribufda ao Estado - a Roma aeterna - surgida na epoca de crise da Republica, quando se temia pela continuidade de Roma; veio a ser refor<;ada pelos modelos helenisticos, tornando-se estavel na teologia politica do Imperio. A no<;ao de Victoria Aeterna aparece na epoca de Adriano (117-138 d.C.). Assim, a vit6ria republicana, que era uma vit6ria do Populus Romanus, por mais que tivesse sido conseguida concretamente por urn general, converte-se, a partir dos finais da Republica, concretamente desde a epoca de Sila, numa Vit6ria pessoal, outorgada, nao ao povo, mas pessoalmente a urn general. Sao as Victoria Sullana, Victoria Caesaris e Victoria Augusti ... Mas a partir do momento em que nao cabe outra vit6ria senao ao Imperador, a Vit6ria torna-se estatizada: identifica-se entao, a Vit6ria corn o Estado, eo Estado corn o Imperador. Deste modo, completa-se o ciclo: a antiga Vit6ria estatal abstracta, a da Roma Victrix, converteu-se em Vit6ria pessoal: voltando a estabilizar-se na Victoria Augusti, pais Augusto representa misticamente a sorte de toda Roma. S6 ele pode ser triumphator. As cerim6nias triunfais vao-se tornando 40 Tal conceito aparece com modalidades claramente orientais na epoca de C6modo (180-192 d. C.), embora nao fosse ja estranha aos chefes militares dos finais da Republica (Sila, por exemplo, fizera-se condecorar com o titulo de Sulla fellix) . Essa Felicitas, nao s6 permitia que num determinado momento o que a desfruta seja Victor, mas concede-lhe de um modo permanente a qualidade de invencfvel, de Inuictus, mas sao os deuses que outorgam ao imperador piedoso essa Felicitas que o converte em Inuictu s: pia imperatori. Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n.0 2/2005 41 Humberto Nuno de Oliveira cada vez mais raras e quando, excepcionalmente, recaem noutra pessoa, e sempre alguem da sua familia que quer designar como sucessor. Este triunfo imperial tern, portanto, urn caracter absolutamente distinto do da velha Republica, subvertendo-o, assim, corn Augusto e seus sucessores numa monopoliza<;ao do triunfo. Como primeira consequencia desta monopoliza<;ao surge o culto a Victoria Augusti, abstrac<;ao que se encontra associada as pessoas dos sucessores dinasticos. Posteriormente, Vespasiano (9-79 d.C.), interessado em aprofundar a teologia imperial da Vit6ria, associou essa Victoria Augusti a sua pr6pria dinastia e converteu-a em algo absolutamente abstracto e transmissfvel, inerente, ja nao a Augusto, nem a sua dinastia, mas a pessoa do Imperador, pelo simples facto de se-lo. Fala-se, entao, de Victoria Augustorum e numa epoca mais tardia, quando se implanta a tetrarquia41 que assinala o come<;o do div6rcio entre Oriente e Ocidente, a Vit6ria pertence aos Imperadores e aos dois Cesares conjuntamente, e a Victoria Augustorum et Caesarum Nostrorum. A ideia de Vit6ria, deste modo, afasta-se cada vez mais do feito real de urn exito militar; da sua pureza inicial. Victor, Invictus convertem-se em puros tftulos honorificos, como Magnus ou Sanctus; tftulos que traduzem, sem duvida, urn sentido carismatico mas que nao se baseiam, de modo algum, numa Vit6ria concreta de armas: Ao ser o Imperador o unico que pode veneer, e natural que se considere permanentemente vencedor, eternamente invencivel: vence porque pode veneer e nao e ja mister que haja vencido alguem em qualquer ocasiao. 11. Reminiscencias Contrariamente ao que seria de supor toda esta teologia paga da Vit6ria nao desapareceu no Imperio cristao, houve apenas que transportar para uma nova teologia politica urn grande numero de elementos, corn ela aparentemente dissonantes. Ate que ponto esta sobrevivencia e intensa descobri-lo-famos numa ainda que breve abordagem das concep<;6es politicas bizantinas, que aqui nao aprofundamos. Na realidade, toda a teologia politica do Imperio Bizantino se apoia, precisamente, nessa concep<;ao do Imperador como Victor omnium gentium, como vencedor eterno. Nao e de estranhar pois, que nas suas cerim6nias apare<;am as aclama<;6es de Vit6ria que tinham sobrevivido: "Venceis em Deus" e "vence a Fe dos Imperadores", e na sua representa<;ao plastica sobreviva a mfstica da Vit6ria eterna alimentada dessa mfstica politica ja cristianizada e presidida eminentemente pela "Cruz vencedora", que corn a legenda "vence corn isto, corn esta cruz", aparece sob o globo pantocratico. 41 Forma de Governo adoptada em Roma na epoca de Diocleciano (245-313 d.C.), segundo a qual o Imperio era dirigido por dois Augustos e dois Cesares. 42 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. 0 2/2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 A cerim6nia romana do Triunfo influenciou de modo permanente a consdos romanos, uma vez que as prociss6es triunfais se mantiveram muito para alem das "classicas". 0 direito ao Triunfo foi verdadeiramente adoptado pelo pontificado, conhecido desde sempre pela sumptuaria dos seus rituais, cujo estudo aqui se nao procura. Mas a mais genuina imita~ao de urn triunfo romano teve lugar durante o Renascimento italiano quando o tribuna do povo Cola (Nicola) di Rienza42, urn amigo de Francesco Petrarca (1304-1374), ap6s assumir o titulo de tribuna e poderes ditatoriais, em 1347, conseguiu ap6s urn periodo de exilio, promover no seu regresso triunfal em 1 de Agosto de 1354, uma procissao bastante similar as da antiga Roma, que era entao restaurada como capital da Ita1ia43 independente e de novo sede do Imperio Romano, liderado por urn italiano. Seria, porem, breve o seu reinado, em 8 de Outubro desse ano aos gritos de "morte ao traidor Rienza", seria morto eo seu corpo arrastado pelas ruas de Roma. Desde entao, porem, o significado do Triunfo alterou-se drasticamente. Gradualmente adquirindo urn caracter mais simb6lico, urn significado mais geral. Inquestionavelmente os Triunfos de Petrarca marcaram de modo profunda os humanistas seus contemporaneos, a natureza da palavra surge quase adulterada transferindo-se progressivamente para triunfos do amor, da castidade, da morte, da fama e da vergonha. Nao haveria, todavia, o Triunfo de desaparecer entao da hist6ria de Roma. Ainda no seculo XX haveria Benito Mussolini de precisar do seu triunfo em 1922- a marcha sobre Roma- para legitimar a sua chegada ao poder? Na realidade, talvez mais que ninguem na sua ansia de recuperar o Imperio, Mussolini, a ele foi buscar diversos e importantes elementos simbol6gicos. Documento inequivoco de tal facto a verdadeira transforma~ao em museu da tradi~ao Romana da pra<;:a que envolve o mausoleu de Augusto e a Ara Pacis na cidade de Roma - Piazza de Augusto Imperatore - onde o ttimulo do primeiro imperador romano foi cuidadosamente enquadrado por urn notavel conjunta arquitect6nico fascista onde pontifica a inscri<;:iio: cH~ncia HVNC LOCVM VBI AVGVSTI MANES VOLITANT PER AVRAS POSTQVAM IMPERATORIS MAVSOLEVM EX SAECVLORVM TENEBRIS EST EXTRACTVM ARAEQVE PACIS DISIECTAMEMBRAREFECTA MUSSOLINI DUX VETERIBVS ANGVSTIIS DELETIS SPLENDIDIORIBVS VIIS AEDIFICIIS AEDIBVS AD HUMANITATIS MORES APTIS ORNANDVM CENSVIT ANNO MDCCCCXL A F R XVIII 42 Que assumia o extraordinario titulo de Candidatus Spiritus Sancti, Imperator Orbis, Zelator Italiae, Amator Orbis et Tribunus Augustus, qualquer coisa como: Candidato do Espfrito Santo, Imperador do Mundo, Zelador da Italia, Amante do Mundo, Tribuno Augusto ... 43 Este fascinante personagem hist6rico inspirou a opera de Richard Wagner, Rienzi. 0 ultimo dos tribunos. Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n .0 2/2005 43 Humberto Nuno de Oliveira Que numa tradw;:ao livre significa que, naquele local sagrado onde a alma de Augusto se eleva resplandecente; depois de o mausoleu imperial ter sido pelos seculos relegado as trevas e apartado do Altar da Paz foi salvo e restaurado pelo Chefe Mussolini que ultrapassou as dificuldades, edificando a arquitectura e ornamenta<;ao indicada ao seu caracter e cultura- Ano de 1940 18. 0 Ano da Revolw;:ao Fascista. Na mesma pra<;a uma outra inscri<;ao (esta em italiano) lembra que "0 Povo Italiano e urn Povo !mortal, que sempre encontra uma Primavera para as suas esperan<;as, para as suas paix6es, para a sua grandeza". Mausoleu de Ochivio - Piazza de Augusto Imperatore (Roma) (Fotografia do autor) Piazza de Augusto Imperatore (Roma) (Fotografia do autor) 44 Lusfada. Hist6ria, Lisboa, n. o 2 I 2005 Conceitos de guerra e de vit6ria em Roma, p. 13-45 Bibliografia AMPARO, M. del (1864) - Recompensas Honorificas. 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