A indústria da pesca costeira nos Açores, Portugal – Uma questão

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A indústria da pesca costeira nos Açores, Portugal – Uma questão de soberania,
sustentabilidade e espaço*
Alison Laurie Neilson (Universidade dos Açores, Portugal)
Emma Cardwell (Universidade de Oxford, Reino Unido)
Carlos de Bulhão Pato (Portugal)
com Luís Rodrigues (Universidade Aberta, Portugal)
e Laurinda Sousa (Portugal)
*Tradução de Carlos de Bulhão Pato
Neilson, A. L., Cardwell, E., Bulhão Pato, C. (2012). Coastal fisheries in the Azores, Portugal – A question of
sovereignty, sustainability and space. In K. Schriewer & T. Højrup (Eds.) European Fisheries at a tipping-point. /
La Pesca Europea ante un cambio irreversible. pp. 465-505, Murcia, Es: Cátedra Jean Monnet Universidade de
Murcia.
“O mar, para mim, é tudo; Eu sem o sem o mar não sou nada. O mar é tudo para a gente”
Rúben1
As ilhas dos Açores emergem do oceano num local onde as três placas continentais se
entrechocam, formando montanhas na profundidade do meio do Atlântico. São uma região
autónoma de Portugal, constituída por nove pequenas ilhas vulcânicas, a meio caminho entre a
Terra Nova e Lisboa. Ao contrário de outras áreas costeiras da Europa continental, estas ilhas
têm somente uma estreita faixa de área “costeira” rica em recursos pesqueiros. No meio do mar
é uma expressão que define bem as condições dos pescadores e de outros habitantes destas ilhas
portuguesas. Neste capítulo focamos o modo como as realidades da Política Comum de Pescas
se materializam no meio do oceano para a indústria pesqueira regional dos Açores. Tratamos da
identidade dos pescadores e de como a especificidade da região dos Açores e da sua indústria
pesqueira pode ser facilmente deixada de lado na Política Comum das Pescas.
1. Viver como parte do oceano
Cerca de 240.000 pessoas habitam as ilhas dos Açores e a população varia com o fluxo
intermitente de viajantes, emigrantes e reformados que haviam emigrado e agora regressam
(SREA 2006). Para os habitantes dos Açores, o oceano está cheio de história e gera histórias
novas. O oceano flui por cima e através de grande parte das suas vidas e não para bruscamente
na costa, pelo contrário, rebenta e puxa e rasteja por dentro das casas e pelas estradas das
comunidades piscatórias, tanto aqui nos Açores, como nas américas e mesmo mais longe ainda,
levado pelos emigrantes das ilhas. Os perigos costeiros, como maremotos, deslizamento de
terras, terramotos e vulcões, são uma realidade recorrente para quem vive nos Açores (Calado et
al. 2011), especialmente para as comunidades situadas perto das zonas da costa particularmente
vulneráveis.
A economia dos Açores tem uma das dependências mais fortes da indústria pesqueira em
Portugal (10% da frota e tonelagem) e na União Europeia (Iborra Martin 2011). A indústria
1
Do projeto EDUMAR, 2008-2010.
1
pesqueira local é fundamentalmente artesanal (tradicional, de trabalho intensivo e com métodos
passivos de captura; veja-se Rodrigues 2008) e de pequena escala (90% dos barcos tem menos
do que 15 metros; Carvalho Edward-Jones & Isidro 2011). A pesca nos Açores implica
normalmente uma tripulação de familiares. Muitos dos barcos pequenos são de boca aberta:
abertos no seu interior, exceto na proa e na popa onde pode haver uma pequena coberta. Estes
barcos saem para a faina e voltam dentro de 24 horas e só se fazem ao mar com bom tempo. Os
pescadores usam principalmente dois tipos de aparelhos para os peixes demersais ou de fundo:
A linha de mão com chumbada e o palangre de fundo (Dámaso 2006). Variam dependendo do
tipo de peixe que se busca, mas consistem, como a primeira denominação sugere, simplesmente
de uma linha de aparelho com anzóis. A indústria de pesca do atum dos Açores utiliza canas de
pesca para capturar individualmente os peixes (Pinho & Menezes 2003).
Muitos habitantes dos Açores falam com sentimento de profundo orgulho da sua idiossincrasia
de gentes do mar: “Eu acho que também o facto de vivermos numa ilha, também nos faz ligar
ao mar”2. Há níveis nesta identidade: para os de fora, todos são dos Açores, mas as pessoas têm
também fortes ligações com as suas ilhas e as suas comunidades de origem. A sua identidade
como pescadores está marcada por um forte orgulho de estarem inseridos no oceano e no fluxo
de ciclos naturais do mar e da meteorologia.
Quero salientar a beleza espetacular desta paisagem recheada de botes e de lanchas. É
todo o património baleeiro vivo e sobretudo a reposição (dos botes baleeiros e da cultura
– agora usados nas regatas)... uma história fantástica, de uma história fabulosa, de um
povo que não tendo na terra o sustento procurou no mar e fez no mar mais do que
qualquer outro povo. (Manuel).3
Dominam o oceano do mesmo modo que outros dominam a linguagem. Os pescadores falam
com um profundo sentido de pertença ao ecossistema, como diz Ritinha, “ Pois o mar é a
sobrevivência de toda a pessoa, pessoas humanas. O mar é uma riqueza”4. Não dominam o mar,
mas lidam com ele: às vezes prosperam, outras vezes lutam, mas têm capacidades físicas e
emocionais para viver no mar. O mar cria os açorianos. Precisam dele.
Eu não podia viver assim algum tempo afastado do mar. Não conseguia e o tempo que
estive, por exemplo, quando estive no exército. Recordo-me que uma vez fiquei mais
algum tempo sem ir para o mar e às tantas tive que ir mesmo para um sítio próximo se
não já não me estava a sentir bem, a adoecer seguramente. Eu não consigo viver muito
tempo longe do mar. (Madruga).5
Dá-lhes tranquilidade de espírito6 e acalma-os, “Eu quando estou nervosa, sento-me à beira do
mar, pesco e a olhar para o mar e começo a ficar calminha”7(Maria).
À volta dos Açores o oceano é muito profundo (uma profundidade média de 3.000 metros) e a
plataforma continental é estreita ou inexistente. As suas águas profundas são pontuadas
ocasionalmente por bancos e montanhas marinhas. Há uma grande diversidade entre cada um
2
EDUMAR.
EDUMAR.
4
EDUMAR.
5
EDUMAR.
6
“É uma paz de espírito”, EDUMAR
7
“ O mar para mim é um calmante. Eu quando estou nervosa, sento-me à beira do mar, pesco e a olhar para o mar
e começo a ficar calminha”. EDUMAR.
3
2
destes picos, sendo por isso considerados habitats importantes, embora pouco se saiba acerca
das dinâmicas deste micro-ecossistemas (Pinho & Menezes 2009). A maior parte da atividade
pesqueira está concentrada na orla costeira e nos bancos de pesca (áreas com menos de 600
metros de profundidade). Apenas 0,8% das 200 milhas náuticas à volta das ilhas inclui águas
com profundidades inferiores a 600 metros e somente 7,6% tem profundidades entre 600 e 1500
metros.
2. A história da política de pescas
Ainda que diminutas em termos de terra, o isolamento e a dispersão geográfica do arquipélago
dos Açores faz com que as ilhas tenham um imenso território marinho consubstanciado na
maior Zona Económica Exclusiva (ZEE) da Europa (Oliveira 2006). As Zonas Económicas
Exclusivas são áreas marítimas cobrindo até 200 milhas náuticas a partir de qualquer ponto da
costa (ou até uma linha média onde dois territórios convergem), nas quais as nações têm certos
direitos exclusivos, incluindo o direito à gestão ambiental e aos recursos da pesca. As ZEE
foram reclamadas pelas nações de todo o mundo no decurso de um processo que conduziu à
Convenção da Nações Unidas sobre o Direito do Mar que sacralizou estes espaços marítimos
legais em lei internacional, em 1982. A República Portuguesa reclamou a sua ZEE em 28 de
maio de 1977 e esta é a 10ª maior ZEE do mundo, com cerca de 517.000 milhas náuticas
quadradas (948 439 km2 Instituto hidrográfico 1981). Cerca de 278 200 mn2 desta área é
representada pela ZEE dos Açores.8 A lei da República Portuguesa (Lei n.º 33/77) que
reconhece a ZEE, estabeleceu jurisdição nacional exclusiva sobre a conservação e gestão dos
recursos vivos nesta área, proibindo ainda a pesca a navios estrangeiros (Smith 1986).
Os Açores foram constitucionalmente reconhecidos como uma região autónoma no quadro da
República Portuguesa desde 1976, com estatuto político e administrativo próprio e também
governo próprio. Embora os negócios estrangeiros, a política monetária e a administração da
justiça sejam controladas por Lisboa, a constituição portuguesa contém uma cláusula de
especial interesse, outorgando às ilhas dos Açores autonomia governamental sobre áreas de
especial importância, incluindo as pescas (Murray 2012). O governo dos Açores optou pela
adesão à Comunidade Europeia (mais tarde União Europeia) em 1986, quando Portugal aderiu.
As condições da adesão açoriana foram estabelecidas numa “Declaração Conjunta”, anexada à
Acta de Adesão de Portugal que estabelecia as circunstâncias particulares, tanto sociais, como
económicas, das áreas remotas das ilhas dos Açores e Madeira, que seriam membros de pleno
direito, sujeitas a uma provisão especial, dadas as suas circunstâncias geográficas e
necessidades económicas (Murray 2012). Desde então, ao longo dos anos, estas necessidades
foram reconhecidas através de generosa ajuda económica europeia aos Açores.
A adesão à Europa transformou a relação bilateral entre os Açores e Portugal numa relação
triangular, com o poder político partilhado entre as ilhas, Portugal e a Comunidade Europeia
(Lewis & Williams 1994). As alterações na soberania açoriana com a adesão à Europa são
particularmente pertinentes no caso das pescas. Esta indústria estava reconhecida na
Constituição da República Portuguesa como pertencente às competências exclusivas Governo
dos Açores. Porém, com a adesão à Comunidade Europeia, o poder de gestão das pescas mudou
para a Europa, sob a Política Comum de Pescas. Os termos da Política Comum de Pescas
retiram o direito nacional de gestão da ZEE, a favor de um “espaço comum” de águas
europeias, a ser gerido por Bruxelas. Para além disto, de acordo com a lei europeia, o governo
português e não o governo dos Açores, é responsável pela garantia da aplicação da legislação da
UE nas ilhas, incluindo a Política Comum de Pescas (Murray 2012). No caso das pescas a
8
954.496km2 (Região Autónoma dos Açores, Governo Regional, 2012).
3
adesão à Europa reduziu significativamente a soberania dos Açores sobre a maior parte do seu
território geográfico e de alguns dos seus mais importantes recursos. Porém, os impactos desta
mudança só vieram a ser sentidos no início do Séc. XXI.
Depois da adesão à Comunidade Europa, “provisões transitórias” temporárias excetuaram os
Açores das regras gerais da Política Comum de Pescas e permitiram que continuasse o controlo
por parte das ilhas sobre a ZEE até ao limite das 200 milhas. Semelhantes exceções temporárias
sobre as águas nacionais até às 12 milhas têm vigorado na UE desde a implementação da PCP.
Apesar de nominalmente temporária, a grande oposição dos estados costeiros aos direitos de
pesca “até à linha da praia”, manteve o limite das 12 mn em vigor até hoje e não é provável que
seja alterado na reforma em curso (2012 -2013). A perspetiva territorial relativamente aos
direitos da pesca é frequentemente considerada favorável aos pescadores costeiros e artesanais
que, devido à pequena dimensão das suas embarcações, têm o seu alcance geográfico limitado a
áreas relativamente perto da costa, ao contrário dos barcos de pesca do alto de grande dimensão
que podem percorrer enormes distâncias em direção a águas estrangeiras (ver “Invisible
Fishers, neste livro).
Houve desenvolvimentos posteriores, em leis europeias de 1995, das normas transitórias que
permitiam aos açorianos o controlo sobre as 200 milhas náuticas da ZEE. Os barcos espanhóis
pescando com palangre foram interditos na pesca do atum nos Açores, barcos estrangeiros
foram impedidos da pesca demersal e o uso da pesca de arrasto foi proibido. Apesar da Política
Comum de Pescas proteger a ZEE açoriana durante este período, pouca ou nenhuma
fiscalização foi levada a cabo de modo a impedir ou perseguir a pesca ilegal. Os pescadores
locais observavam barcos de pesca estrangeiros e começaram a ficar preocupados com o
excessivo esforço de pesca. Porém, a França e Espanha argumentaram que sob os termos do
Tratado de Lisboa estavam autorizados a capturar a sua quota em qualquer área da União
Europeia. Em 1997, os pescadores, através das suas associações, propuseram uma modo de
gestão das licenças de pesca de forma a restringir a pesca no interior das 200 milhas náuticas
das águas açorianas e proteger os recursos pesqueiros. Porém, em 1998, os pescadores e as suas
associações sentiam-se frustrados com a falta de esforço por parte da República Portuguesa no
patrulhamento e proteção9 da ZEE açoriana e enviaram uma Petição à Assembleia da República
para que fosse realizado um referendo nos seguintes termos:
Concorda que Portugal deixe de ter direitos de soberania para fins de exploração e
aproveitamento, conservação e gestão dos recursos biológicos do mar, passando a
competência exclusiva da gestão dos recursos biológicos para a União Europeia?10
A Política Comum de Pescas reduziu a soberania açoriana no que respeita às pescas, uma vez
que não reconhece a autoridade regional; então a preocupação dos pescadores era que por
ignorar a pesca ilegal, o governo português estivesse a recusar o direito às 200 milhas náuticas
da ZEE, assim preparando as condições para entregar à União Europeia a total soberania dos
mares à volta dos Açores. Os pescadores acreditavam que este era um assunto de interesse
nacional e como tal deveria ser referendado. A petição foi apresentada ao Presidente da
República, Jorge Sampaio, durante a sua visita aos Açores, em junho de 1998. Porém, a
9
O ministério da Defesa de Portugal é responsável pelo patrulhamento das águas territoriais açorianas; os Açores
não dispõem de Marinha de Guerra, nem de Polícia Marítima.
10
Petição à República Portuguesa não publicada, 1998.
4
Assembleia da República viria a rejeitar a Petição, não autorizando um referendo sobre esta
matéria.
Estas normas transitórias da Política Comum de Pescas que permitiam aos Açores o controlo
sobre a sua ZEE expiraram em 2002. Era uma expetativa durante o processo de revisão da
Política Comum das Pescas de 2002 que a Comissão Europeia permitisse que se conservassem
restrições territoriais de acesso, considerando o estatuto especial de ultraperiferia das ilhas (ver
Com 2002/793). Bruxelas decidiu porém que o controlo nacional deveria ser reduzido das 200
para as 100 milhas náticas, com a pesca para além das 100 milhas náticas aberta a todas as
embarcações europeias, com a gestão desta área englobada na nova regulamentação do
Atlântico Norte, o Regulamento para o Esforço de Pesca das Águas Ocidentais. Este
Regulamento proponha a gestão das pescas através de um conjunto de limites de pesca, baseado
no registo do histórico de capturas de qualquer barco de um estado membro da União Europeia.
Em janeiro de 2002, quando as águas açorianas apenas estavam legalmente acessíveis aos
açorianos (e a um pequeno número de barcos portugueses), os barcos espanhóis de palangre
começaram a pescar nas águas à volta das ilhas. Aparentemente a frota espanhola antecipava a
alteração da regulamentação e ousava estabelecer um direito histórico de pescar nas águas
açorianas quando a cláusula expirasse mais tarde, ainda naquele ano. O peixe capturado por
estes grandes barcos de alto mar foi descarregado no porto açoriano da Horta, na ilha do Faial,
para ser enviado para o continente europeu por via aérea. No final de fevereiro, os pescadores
da Horta não conseguiam exportar o seu peixe fresco, uma vez que todo o espaço de carga da
SATA Air Açores11 estava completamente preenchido pelos espanhóis. O isolamento geográfico
dos Açores e a dispersão comparativa do arquipélago por uma vasta área do oceano, leva a que
o transporte aéreo signifique uma parte importante da estratégia local de exportação de pescado,
tanto por este ser muito perecível, como por o transporte marítimo ser muito mais moroso do
que o aéreo. Uma vez que as capturas dos espanhóis tinham ocupado a capacidade dos aviões
na Horta, os pescadores locais foram obrigados a navegar 150 milhas (numa viagem de cerca de
15 horas) para Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel, para conseguirem encontrar espaço de
carga aérea para transportar o seu peixe para o continente. Face a esta situação os pescadores da
Horta solicitaram uma reunião de emergência com Ricardo Rodrigues, Secretário das Pescas,
no Governo Regional, para protestar sobre esta situação. Entretanto, o Presidente Jorge
Sampaio continuava a atrasar qualquer ação visando o patrulhamento e a proteção da ZEE dos
Açores de frotas estrangeiras e assim começaram a aparecer mais barcos espanhóis.
Sem resposta por parte do governo, os pescadores açorianos convocaram uma manifestação
para o dia 15 de Março de 2002. O Presidente do Governo Regional não desejava essa
manifestação porque 15 de março era o dia das eleições para a Assembleia da República e a
ação proposta iria provavelmente favorecer os candidatos da oposição em detrimento dos
titulares do poder. Foi dito aos pescadores que a sua associação, Porto de Abrigo, perderia todos
os protocolos com o governo (incluindo financiamentos) se a manifestação fosse em frente.
Neste momento, a falta de transporte aéreo levava a que os pescadores estivessem a perder mais
de 90% do seu rendimento porque tinham que vender o peixe apenas no mercado local que não
tinha capacidade de absorver um influxo de peixe que era anteriormente exportado. Os
pescadores garantiram que cancelariam a manifestação se o Presidente declarasse publicamente
que partilhava as preocupações da Porto de Abrigo e desse passos para impedir que os
11
“Sata Air Açores” é uma empresa estatal tutelada pelo Governo Regional dos Açores.
5
pescadores estrangeiros desembarcassem o seu peixe nas ilhas e se comprometesse a defender a
soberania de Portugal através da proteção da ZEE da região. O Presidente não aceitou estas
condições e assim a manifestação foi levada a cabo. O partido no governo perdeu as eleições.
Apesar de não ter havido negociações ou mesmo pressão oficial sobre a frota espanhola que
descarregava peixe nos Açores, na sequência de ameaças de violência por parte dos pescadores
locais, os barcos espanhóis cessaram a sua atividade nas ilhas. Com uma compreensão renovada
sobre a importância política do setor da pescas, o Secretário das Pescas contatou a Porto de
Abrigo e propôs-lhe que uma delegação composta por representantes dos partidos com assento
na Assembleia Regional, do Departamento de Oceanografia e Pescas das Universidade dos
Açores e das associações locais da pesca, fosse a Bruxelas para explicar as suas preocupações
acerca da abertura do acesso à ZEE açoriana12.
Em junho de 2002 esta grande comitiva açoriana foi a Bruxelas. Argumentou que seria
desastrosa limitação da soberania açoriana na sequência das alterações de 2002 à PCP. De
acordo com esta Política, as autoridades nacionais apenas podem ter jurisdição sobre barcos
nacionais; tanto os Açores, como Portugal seriam incapazes de regular os barcos que pescassem
entre as 100 e as 200 milhas náuticas na sua ZEE. Argumentaram que apesar da ZEE dos
Açores cobrir uma área enorme, esta era caraterizada por montanhas submarinas em águas
muito profundas, com pouca plataforma costeira. Como nas áreas de plataforma costeira se
concentra a maioria dos recursos da pesca, uma pequena plataforma costeira significa recursos
pesqueiros relativamente limitados. A ZEE dos Açores apenas disponha de pequenas
quantidades de peixe, concentrado à volta das montanhas submarinas. As populações de peixe
ao longo de todas as 200mn da ZEE estavam estimadas em apenas 50% das existentes no
interior das 12mn, o limite nacional territorial português (Crespo 2011), com cerca de 97% da
ZEE açoriana cobrindo águas profundas com pouco peixe (Pinho & Menezes 2003). Face a esta
situação, o governo arguiu que as 200 mn da ZEE dos Açores eram tanto económica, como
ecologicamente comparáveis às 12mn desfrutadas por outros estados (Região Autónoma dos
Açores, Governo Regional, 2012) Para além disto, os Açores argumentaram na base de estarem
no direito a proteção especial por serem uma Região Ultraperiférica da União Europeia: às
regiões ultraperiféricas é permitida uma potencial derrogação das normas da União Europeia,
por serem consideradas as particularidades das suas circunstâncias geográficas. Descobriram,
porém, que a sua posição negocial tendente a impedir o pleno acesso às suas 200mn da ZEE era
especialmente difícil por serem considerados uma entidade regional e o poder de uma
delegação regional, em confronto com uma nacional não é reconhecido nas normas europeias.
Uma caraterística chave do Regime das Águas Ocidentais da PCP era que, ao contrário do
regime açoriano, as normas permitiriam o uso nos frágeis ecossistemas dos Açores de arrasto
com elevado potencial destrutivo. Os grandes protestos acerca desta situação levaram a UE, em
2004, a banir temporariamente o arrasto nesta área. A proibição do arrasto em conjunto com a
proibição das redes de emalhar, a profundidades superiores a 200 metros, tornou-se permanente
em 2005. Estes controlos não territoriais do esforço de pesca, por não serem discriminatórios
com os barcos europeus, estavam mais em linha com a ética e o espírito da União Europeia e da
Política Comum de Pescas.
Como as espécies de peixes de águas profundas que se encontram à volta dos Açores são de
crescimento lento e também se reproduzem lentamente, são muito sensíveis à sobre pesca
12
Descrição dos acontecimentos a partir de uma entrevista realizada em 27/03/2012 a Francisco Liberato
Fernandes, Presidente da Cooperativa Porto de Abrigo.
6
(Pinho & Menezes 2005). Assim sendo, o governo açoriano argumentou com a necessidade de
um sistema de gestão muito precaucionário, considerando especialmente a relativamente fraca
base de conhecimento da ecologia dos habitats de águas profundas (Pinho & Menezes 2003).
Apesar da proibição do arrasto nas águas açorianas, no âmbito da PCP, a abertura da ZEE até às
100 mn tinha permitido a entrada de um fluxo de barcos espanhóis de palangre com potencial
para a sobre exploração e elevados níveis de capturas acessórias, particularmente de tubarões e
tartarugas (Região Autónoma dos Açores, Governo Regional 2012). A propósito, o Fundo
Mundial para a Natureza (WWF) informou que o número de barcos de palangre tinha crescido
rapidamente aquando da abertura da ZEE, passando de um pequeno número inicial, para mais
de uma centena (Lutter 2008).
À luz destes receios, em 2004 o Governo Regional dos Açores recorreu ao Tribunal Europeu de
Justiça, pedindo a anulação do regulamento de 2003 ou que a Europa proibisse a pesca de atum
por espanhóis ou qualquer outra pesca internacional de espécies demersais em águas profundas.
A causa requeria que a parte do Regulamento das Águas Ocidentais em que se abria a ZEE dos
Açores à pesca comunitária fosse revogada por oferecer uma proteção ambiental mais fraca do
que a sua predecessora e ameaçar seriamente e de forma irreparável tanto o ambiente marinho,
como a economia açoriana. A ONGAs Seas at Risk, WWF e Greenpeace intervieram nesta
causa a favor dos Açores, enquanto o Reino de Espanha interveio em favor do Conselho
Europeu, o arguido. O Governo do Açores requeria que se estabelecesse uma proibição
transitória de pesca na área durante o período em que se esperava o trânsito em julgado. Esta
proposta não foi acolhida pelo tribunal, por a considerar desproporcionada e discriminatória,
não tendo sido promulgada a proibição temporária da pesca durante o julgamento.
Em 2008, o Tribunal rejeitou a causa dos Açores, argumentando que apesar de Estados
Membros terem o direito de questionar medidas comunitárias, o Governo Regional dos Açores
não era um Estado Membro e como tal não tinha o direito à defesa do seu território, uma vez
que o estatuto legal dos Estados Membros não se estende a governos regionais e locais (Bethell
2009). A revindicação dos Açores foi assim considerada no quadro de uma “denúncia
individual”, cujos requisitos são muitos mais restritivos no questionamento de políticas: os
denunciantes têm que provar que são individualmente afetados de uma forma diferente da dos
outros. Na base desta falta de fundamento jurídico a reclamação foi rejeitada (Bethell 2009).
O Governo Regional inicia então a defesa da proposta de uma área sensível “Box dos Açores”
(Região Autónoma dos Açores 2012), uma ideia inicialmente proposta pela APASA Associação de Produtores de Atum e Simulares dos Açores, baseada no precedente da Irish
Box. Apesar da proposta de Box poder potencialmente proteger uma área idêntica à zona das
200 mn, é baseada no princípio de que Portugal rejeita a sua soberania, situação esta que
implica uma alteração à Constituição, por também implicar a rejeição da Convenção das
Nações Unidas de 1982 sobre o Direito do Mar, integrada na lei fundamental portuguesa.
3. Reconhecimento da ZEE sem vigilância?
Para muitos pescadores a questão de haver uma zona de pesca de 100 ou 200 mn não afeta sua
prática diária na pesca. Pescam em pequenos barcos, em águas junto à costa e os seis
palangreiros açorianos com capacidade de pescar nas distantes montanhas submarinas, apenas o
podem fazer durante os meses de verão. Porém, os pescadores açorianos sentem que com o
aumento de frotas estrangeiras na ecologicamente frágil ZEE, há cada vez menos peixe para
eles capturarem e os seus bancos de pesca estão a ser roubados. Vêm chegar cada vez mais
7
barcos estrangeiros para pescar no interior das zonas protegidas e sentem-se frustrados ao
verificar que a limitada presença da vigilância está focada na fiscalização dos barcos locais em
detrimento dos intrusos ilegais. A frota açoriana não explora na totalidade do peixe que o
sistema de quotas permite capturar nas suas águas e existe uma grande pressão tanto da França,
como da Espanha, para explorar o “remanescente” (26-03-2012 comunicação pessoal de
Gualberto Rita, Cooperativa de Economia Solidária dos Pescadores da Ribeira Quente).
Ironicamente, o artigo 62º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM)
estipula que os excedentes de uma nação deveriam ser entregues, em vez de permitir que os
recursos recuperem e cresçam:
O Estado costeiro deve determinar a sua capacidade de capturar os recursos vivos da
zona económica exclusiva. Quando o Estado costeiro não tiver capacidade para efetuar a
totalidade da captura permissível, deve dar a outros Estados acesso ao excedente desta
captura, mediante acordos ou outros ajustes e de conformidade com as modalidades,
condições e leis e regulamentos mencionados no n.º 4, tendo particularmente em conta
as disposições dos artigos 69.º e 70.º, principalmente no que se refere aos Estados em
desenvolvimento neles mencionado (CNUDM 1992).
Para alguns pescadores a questão central não é existência de uma ZEE de 200 mn ou da “Box
dos Açores”, enquanto a vigilância continuar a ser a questão mais premente. Assim, os
pescadores levaram o Governo Português a tribunal por não ter controlado as frotas estrangeiras
no interior da ZEE açoriana, entre as 100 e as 200 mn, entre os anos de 2002 e 2004. Em 2009,
o Tribunal Administrativo de Ponta Delgada condenou o Ministério da Defesa de Portugal por
“negligência do dever de supervisão” e ordenou-lhe que pagasse uma compensação por danos
às associações regionais de pescadores (Paulo Faustino, Jornal Açoriano Oriental 24-09-2009).
Até hoje os pescadores aguardam a sua indemnização por ter havido um longo atraso na
audição do recurso interposto pelo governo relativamente à sentença proferida. Apoiantes de
uma ZEE com 200mn consideram que esta foi uma ação importante e olham para a decisão
sobre o recurso como um passo simbólico na manutenção da soberania durante as reformas
eminentes da Política Comum de Pescas (27-03-2012, testemunho pessoal de Francisco
Liberato Fernandes, Presidente da Cooperativa Porto de Abrigo).
4. Sustentabilidade e justiça ambiental
Independentemente do uso excessivo e do abuso do termo “sustentabilidade”, evocamo-lo aqui
simplesmente para nos referirmos à ideia de no mar haver peixe para pescar, de o comer e de no
futuro ser possível disfrutar da vida de modo comparável com economias e culturas do passado.
O Direito Internacional do Mar (CNUDM) tem duas componentes básicas relevantes para a
sustentabilidade da biodiversidade marinha, nomeadamente a liberdade e a herança comum da
humanidade (Scovazzi 2011). Mesmo assim, vemos que encoraja outros pescadores à
exploração do peixe que os pescadores açorianos deixariam para que crescesse e se
reproduzisse. Contrariamente à frequentemente citada tragédia dos comuns (Hardin 1968) ou
mesmo à tendência para apontar todos os pescadores como culpados pela sobre-exploração nas
pescas, a cultura e a realidade da indústria das pescas nos Açores poderia, em diferentes
circunstâncias, ter o potencial para proteger os comuns. Na realidade, Carvalho e outros (2011),
ao comparar a pesca de pequena escala com a de grande escala nos Açores, sugere que o setor
das pescas de pequena escala é mais capaz de cumprir os objetivos da política de “apanhar
peixe para consumo humano direto, garantindo emprego e trazendo maior valor acrescentado
por cada tonelada de peixe descarregado” (pág. 367).
8
A pesca é responsável por 40% do total das exportações das ilhas, envolvendo 5% dos ativos
oficialmente reconhecidos (Rodrigues 2008). Se se explorarem as populações de peixe ao ponto
do colapso da viabilidade da indústria pesqueira, os pescadores açorianos não poderão partir
para pescar noutro lado sem que abandonem a sua vida social e cultural e o seu lugar de vida (a
paisagem marinha açoriana). Serão muito mais afetados pela redução dos recursos marinhos
que os pescadores industriais ou os consumidores de peixe. A injustiça ambiental refere-se ao
modo como algumas pessoas são desproporcionalmente afetadas por perigos ambientais
enquanto outras recebem injustas proporções de benefícios ambientais; estas desproporções
baseiam-se em interseções de raça, classe e género, entre outras construções sociais (Bullard
1994, Shiva 1994). Uma Política Comum de Pescas que não reconheça as diferenças regionais
ameaça as pescas açorianas de sofrer o peso dos efeitos da diminuição das reservas de peixe.
Para além da desatenção generalizada para com todos os membros das pequenas pescarias
costeiras, as mulheres são especialmente afetadas pelas políticas que favorecem a pesca
industrial. As mulheres sempre tiveram um papel importante nas pescas dos Açores; contribuem
em funções produtivas nos setores extrativo e de processamento. Mesmo assim a sua
visibilidade é fraca, uma “dupla invisibilidade” (Sempere & Sousa 2008) porque muito do
trabalho que fazem não é considerado como tal, mas sim como “ajuda familiar não
remunerada”, pela sociedade (meios de comunicação social e comunidade), pelas normas
oficiais e nem sequer é considerado como parte das pescas, por muito desse trabalho feito por
mulheres ser em terra (contabilidade, limpeza dos barcos, preparação dos aparelhos de pesca,
etc.). As mulheres têm-se tornado cada vez mais visíveis pela sua crescente e regular
participação nas organizações sindicais regionais e, internacionalmente, através da sua
participação no Conselho Consultivo Regional das Águas Ocidentais do Sul (CCR-S13) por
exemplo e na Rede Europeia das Organizações Mulheres da Pesca e Aquacultura (AKTEA).
Porém, os valores económicos e culturais das mulheres nas pescas serão seriamente
prejudicados se as reformas da PCP reduzirem a viabilidade das pescas açorianas.
Investigadores preocupados com as comunidades da pesca em pequena escala começam a
documentar o modo como a gestão neoliberal corrente associada à Política Comum de Pescas,
não se baseia no bem-estar das comunidades, tais como as açorianas, numa isolada região
ultraperiférica, mas na realidade, empurra-as, para fora das pescas (Høst 2010).
A Política Comum de Pescas reivindica a sua construção sobre quatro pilares: proteção dos
recursos piscatórios, apoio a infraestruturas para as pescas, desenvolvimento do mercado e
política externa. Era para se basear em medidas restritivas que permitissem a sustentabilidade
ambiental, mas o poder do dinheiro, o poder eleitoral e a força dos grupos depressão das
grandes companhias esmagaram as perspetivas da pesca de pequena escala, tendo assim
resultado a promoção por parte da UE, de uma frota cujo objetivo principal é obter peixe de
forma barata, em vez de operar uma gestão sustentável e equitativa das quotas. Apesar de as
comunidades locais terem iniciado o debate das questões transnacionais em 2011, os pescadores
dos Açores queixaram-se da falta absoluta de registo de 9 meses de encontros em que
participaram com as suas associações. Esta lacuna é tida como resultado da governação de cima
para baixo, na qual a importância da participação da comunidade local e dos pescadores
individualmente não é compreendida ou reconhecida. Para além disto, a submissão de propostas
ao Parlamento Europeu não é vista como suficiente para que sejam consideradas as perspetivas
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O Conselho Consultivo Regional das Águas do Sudoeste (CCR.S) foi criado em abril de 2007, na sequência de
uma decisão do Conselho de 19 de julho de 2004, na qual se estabeleciam os Conselhos Consultivos Regionais
(CCR). A criação dos CCR's é um dos pilares da reforma da Política Comum de Pescas de 2002. Tem como
objetivo uma maior participação dos parceiros da indústria das pescas na gestão de recursos das águas europeias.
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das organizações de pescadores, em parte devido à força de certos grupos de pressão dentro do
governo (Bulhão Pato, Neilson & Sousa 2011).
Janez Potocnik, Comissário Europeu para o Ambiente, salienta que “temos que proteger os
nossos ecossistemas e sua biodiversidade agora, não só para conservar a natureza, como para
garantir o sustento dos que deles dependem” (2011). A Diretiva Quadro da Estratégia Marítima
reforça as competências dos Estados Membros e as suas responsabilidades dentro das águas
territoriais e das Zonas Económicas Exclusivas guiando “as decisões do Conselho da Indústria
Pesqueira Europeia para objetivos de longo prazo, mesmo a níveis regionais em vez de
preocupações nacionais socioeconómicas de curto prazo” (Ratz et al. 2010). Necessitamos
garantir que a Política Comum de Pescas seja influenciada por estes objetivos e respeite as
identidades e patrimónios regionais com uma cuidadosa consideração da soberania e espaço, se
realmente pretendemos a sustentabilidade dos recursos e da indústria das pescas.
Agradecimentos
Ao Diretor Regional de Ciência e Tecnologia, ao Secretário Regional da Educação e Ciência e
ao DRCT-FRCT da Região Autónoma dos Açores por terem proporcionado apoio financeiro
para parte da investigação utilizada neste capítulo através de “EDUMAR, Perspectives
about the sea and sea life: Cetaceans and tourism in the Azores, Portugal and Newfoundland,
Canada” 2008-2010.
Fotografia 1: Porto de Ribeira Quente, ilha de São Miguel. Foto: Alison Neilson, 2010.
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Fotografia 2: Barco de pesca para uma só pessoa na Horta, ilha do Faial. Foto: Alison Neilson,
2010.
Fotografia 3: Carregando gamelas na Horta, ilha do Faial. Foto: Alison Neilson, 2008.
Fotografia 4: Barco da pesca do atum por salto e vara. Foto: Alison Neilson, 2012.
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Fotografia 5: Porto de pescas da Horta, local de conflitos com os pescadores espanhóis por
causa das suas descargas de peixe em 2002. Foto: Alison Neilson, 2008.
Fotografia 6: Salgando peixe na Horta, ilha do Faial. Foto: Alison Neilson, 2010.
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Fotografia 9: Preparando gamelas para pescar, em São Mateus. (da esquerda para a direita)
Amanda Ficher Veríssimo, Lucie Ficher, Ana Paula Azevedo, Emília Silva. Foto: Alison
Neilson, 2012.
Fotografia 10: Moendo peixe para engodo, em São Mateus, ilha Terceira. Foto: Alison Neilson,
2010.
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Fotografia 11: Investigadores de diferentes países num encontro com membros da Associação
Ilhas Rede, em Rabo de Peixe, ilha de São Miguel, durante uma conferência en 2011. As
mulheres falam entusiasticamente sobre a sua relação com a pesca -a maioria delas filhas, mães
ou mulheres de pescadores. A importância das mulheres na defesa e manutenção da comunidade
piscatória era clara durante os encontros. Foto: Laurinda Sousa, 2011.
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