Sobre Dicionário de Falares dos Açores Vocabulário regional de todas as ilhas, de J.M. Soares de Barcelos Um estudo mais ou menos atento do romanceiro, do cancioneiro, do adagiário e da fraseologia dos Açores levar-nos-á a concluir que, mais do que uma cultura popular açoriana, existe uma criatividade popular açoriana. Diz-se, e parece que com razão que, de todas as partes do território nacional, logo a seguir a Trás-os-Montes, tem sido nos Açores onde melhores e mais abundantes recolhas de temas romancísticos têm sido efectuadas. Isto só pode significar que oralidade e arcaísmo sempre foram duas características fundamentais da nossa cultura popular. E porquê? Porque os Açores, desde o século XV, sempre constituíram território (ultra)periférico relativamente ao Continente português, à Europa e às Américas; ou seja, estas ilhas foram sempre um espaço fechado e, como tal, não muito permeável a influências linguísticas exteriores. Resultado: este fechamento das ilhas, acompanhado de cinco séculos de contacto permanente com o mar e de isolamento físico, a que se juntou uma religiosidade gerada no terror sagrado de sismos, vulcões e tempestades, foram factores determinantes no sentido de, nos Açores, se armazenar e manter a expressão portuguesa mais pura, mais autêntica e mais genuína. Com efeito, muita da linguagem popular dos Açores é um exemplo da expressão arcaica, quer nos termos utilizados, quer na fonia dominante, pois não é difícil encontrar, nos falares açorianos, palavras e expressões muito próximas da escrita dos nossos cronistas de Quinhentos. E posso aqui dar uma achega. Conheço uma idosa da ilha Graciosa que ainda hoje diz tôdolos e tôdolas, em vez de todos e todas, à boa maneira das crónicas de Fernão Lopes. Esta criatividade popular açoriana está também patente na diversidade das variantes dialectais dos Açores, sendo que em todas as ilhas há um traço comum: a preservação da estrutura arcaica. Os povoadores, vindos do norte, do centro e do sul de Portugal, ao fixarem-se em diferentes ilhas, deram origem a diferentes sotaques, havendo a considerar este dado inapelável: as pronúncias dos Açores variam não só de ilha para ilha, como também, dentro de cada ilha, de freguesia para freguesia e de lugar para lugar. (Há mais de 20 anos que me dedico ao estudo deste fenómeno linguístico e, a título de exemplo, posso aqui referir que, só na ilha do Pico, recolhi 47 variantes dialectais…Como estou a fazer, sozinho, este trabalho a nível das 9 ilhas, sem pressas académicas e sem ânsias editoriais, facilmente se perceberá que vou precisar de outros 20 anos para concluir o projecto)… “Para nós, açorianos, a Geografia vale outro tanto como a História”, escreveu Vitorino Nemésio. O conceito da açorianidade (por ele criado em 1932 por decalque de hispanidad de Miguel Unamuno) remete-nos precisamente para a influência do meio geográfico no espírito dos açorianos. E porque somos produto da geografia e da geologia, o açoriano já não é mais o minhoto ou o alentejano que para cá veio nas naus do povoamento. Não é mais o berbere ou o flamengo – é, sim, a mistura do fidalgo lusitano com o escravo moiro; do judeu tornado cristão novo com o artesão da Flandres; do espanhol conquistador com o aventureiro sem eira nem beira e, também, o descendente acidental do corsário inglês ou do pirata argelino… São estes, na minha opinião, os pressupostos a ter em linha de conta antes de consultarmos este livro que faltava e que eu pessoalmente tanto ansiava: Dicionário de Falares dos Açores – Vocabulário regional de todas as ilhas (Almedina, 2008). O seu autor, João Maria Soares de Barcelos, natural da ilha das Flores e médico de profissão, já havia publicado em 2001, e a expensas suas, o livro Fala da Ilha das Flores – Vocabulário Regional (Coingra, Lda.). A presente obra abre com avisado Prefácio do escritor Cristóvão de Aguiar (que, nas suas obras de ficção, tem vindo a dar estatuto literário à linguagem popular micaelense), a que se seguem “Algumas Generalidades nas Falas Açorianas”, “Breves Conclusões” e “Metodologias” – Soares de Barcelos explica e explica-se relativamente a este (monumental) trabalho sobre o léxico das nove ilhas açorianas, fruto de aturada e minuciosa pesquisa. Quero saudar o autor e a obra. O autor porque, felizmente, não faz parte do rol daqueles académicos que teimam em fazer pesquisa por inquérito e à distância... E a obra porque, tenho a certeza, constituirá, a partir de agora, uma referência obrigatória no âmbito dos estudos linguísticos. Observador atento da idiossincrasia açoriana, denotando uma bem conseguida articulação de ideias, Soares de Barcelos está bem informado e apetrechado em termos teóricos, com capacidade de informar, esclarecer, decifrar e avaliar. De resto, este autor incorpora, na sua análise, os métodos e as preocupações dos mais diversos ramos da linguística. Mas mais do tudo isto, há, neste florentino, um declarado amor, um maravilhamento e uma ternura pelos sons e pelos tons das palavras, ou não fossemos nós herdeiros de uma tradição musical e poética com raízes fundas e profundas na melhor poesia trovadoresca… O resultado está à vista: tudo, neste Dicionário, está (em notas de rodapé) devidamente fundamentado, minuciosamente contextualizado, criteriosamente abonado em termos de citações de autores e obras. Além disso, o livro apresenta-se com cuidado esteticismo e esmerada apresentação gráfica, havendo a considerar a inclusão de fotografias, desenhos e gravuras que muito o valorizam. Está aqui, armazenada, muita da riqueza lexical da língua portuguesa. Em tempo de globalização, de massificação e de uniformização linguística, saúde-se este Dicionário de Falares dos Açores – obra fundamental e sem precedentes entre nós e, por isso mesmo, a merecer a nossa melhor atenção. Horta, 6 de Abril de 2008 Victor Rui Dores