Fato estabelecido por historiadores,

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Jornal A Tarde, quinta-feira, 23/02/1972
Assunto:
UM FENÔMENO IMPRESSIONANTE
Fato estabelecido por historiadores, sociólogos e outros estudiosos é a admirável unidade da
cultura brasileira - praticamente reconhecível nos costumes nas idéias, nos valores, na língua,
no fundo religioso comum, em qualquer ponto do País. Apesar da presença aqui e ali, no
passado, de elementos etnicamente diversos, somos produto de um processo civilizatório único
em que os descobridores e colonizadores lusos procuraram integrar os primeiros contingentes
de população com que lidaram - portugueses, eles mesmos, índios e africanos, e, a seguir
beneficiados pela inteligente política dos dois impérios, aplainando antagonismos regionais, e,
mais perto dos nossos dias, assimilando as correntes de imigrantes europeus e asiáticos.
Conseguimos o prodígio de um povo que é um modelo de integração cultural. E isto sem
embargo das distâncias geográficas, da precariedade dos contatos diretos de populações e
dos desníveis econômicos entre classes e regiões. Não há país extenso como o Brasil que
desfrute dessa vantagem. Em nossos dias, o rádio e o avião, seguidos do ônibus e sua
estradas, do telefone e da televisão, concluem esse processo de aproximação entre as
miríades de agregados humanos que vão do Oiapoc ao Chuí e da costa ao mais alto sertão.
É possível que essa seja uma visão etnocêntrica, talvez involuntariamente ufanista. Na verdade
aquela unidade de modos de ser manifesta-se de muitas maneiras. Não quero que a
uniformidade seja em si uma virtude; ao contrário, necessitamos de variedade dentro da
unidade. E isto temos também, como também seria fácil demonstrar. Fiquemos, porém, em
dois índices: o futebol e o carnaval. O gosto universal pelo futebol, a vibração unânime de
todos os brasileiros nas partidas internacionais de que participamos, a simpatia geral,
inconcussa, das nossas multidões pelos seus craques, por Pelé. O carnaval parece, entretanto,
representar melhor do que qualquer outro, fenômeno essa capacidade do Brasil de ser o
mesmo em qualquer de suas partes. Pela primeira vez milhões ele espectadores puderam ver
pelo menos pedaços, momentos, episódios do carnaval de todo o País e ouvir as massas que
cantavam músicas antigas e novas da predileção multipartilhada de todos.
É, de fato, um fenômeno que se diria fenomenal, esse da ubiquidade, da onipresença, da
universalidade simultânea da folia carnavalesca. Não há de haver por outras partes festa assim
que faça movimentar-se e ir às ruas e pular, dançar, cantar, ao mesmo tempo, todo um País de
quase cem milhões, em todas as cidades e arraiais, em todos os bairros e subúrbios, em todas
as casas, todos os clubes e associações... Porque, verdadeiramente, há algo de carnaval em
todos esses lugares, ou a vibração máxima, a loucura que arrebata, o desvario mesmo, ou um
sossego diferente, uma expectativa, qualquer coisa de carnaval! Bem se pode afirmar que
ninguém escapa ao carnaval, de uma forma ou de outra, mesmo quando os dias de Momo são
escolhidos para a meditação e o retiro espiritual.
Ainda mais: o carnaval no Brasil não é nem uma festa dessa ou daquela região e muito menos
de uma classe social ou de outro grupo. Durante aqueles dias há - aqui ou ali mais que acolá uma espécie de identificação das classes atrás do trio elétrico, nos cordões, na multidão que se
comprime nas ruas. Vários anos passados uma socióloga norte-americana, que tem vivido e
trabalhado muito no Brasil, Catarina Kate, observara que o carnaval opera, entre nós, uma
harmonização de cansadas e estratos e segmentos sociais - pobres e ricos, brancos e pretos,
moços e velhos, homens e mulheres. Momentânea que seja essa harmonização e quaisquer
que possam ser as funções psicológicas alcançadas, na realidade o fenômeno é impossível de
verificar-se debaixo de outros céus. Não impossível, mas até agora não verificado da maneira
espontânea como decorre, sem arregimentação intencional, sem induzimento de cima, sem
provocação qualquer. Em países menores e menos populosos mais facilmente ocorreria coisa
desse gênero, mas nem isso é comum. Aqui tudo é surpreendente, no particular. Nas ruas ou
nos salões, indistintamente, é um fenômeno multitudinário incomum.
Todos se divertem da mesma maneira, esquecidos de suas desigualdades, misturados numa
imensa massa, vibrando igualmente como que atingidos por um só frenesi contagiante como se
todos respirassem um mesmo gás inebriante. Não deixa de ser intrigante também essa
capacidade de por de lado, por alguns dias as preocupações cotidianas para todo um povo se
entregar a um rito universal de desintoxicação psicológica ou de realização mítica de desejos
reprimidos... de ser nobre, de mudar de sexo, de trocar a cor!
E muitos, muitíssimos esquecem até valores fundamentais e princípios insubstituíveis. Um
problema alarmante, sobretudo porque envolve, de modo inquietador, a mocidade aparentemente lançada ao desvario pelas próprias famílias. Já fez A TARDE um oportuno
aviso quanto a cenas lúbricas focalizadas naqueles dias, devendo-se fazer a ressalva de que o
povo apenas imita a burguesia... responsável pela sorte do País!
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