EM BUSCA DE CONCEITOS MUSICAIS DA ESCOLA Ana Judite de Oliveira Professora de Arte e Regente do Coral do CEFET/RN Dentre os diversos conteúdos curriculares trabalhados na escola, a música sempre esteve presente. Porém sua atuação na educação escolar esteve ligada a instrumentalidade do recurso musical como auxilio e complemento das demais áreas de conhecimento, sejam nas de códigos e linguagens ou nas ciências da natureza. Essa instrumentalidade compreende desde as festas e programações especiais da escola à realização de atividades em sala de aula. O recurso musical em sala de aula é utilizado, na sua maioria, para um momento de descontração e relaxamento, utilizando assim, apenas um dos recursos musicais, que por sua vez é o isolamento acústico dos sons externos permitindo a concentração no ambiente no qual se escuta música1. Contudo, a música como conhecimento, não tem sido trabalhada como tal e isso não se deve apenas à carência de professores habilitados em música, mas a própria concepção já cristalizada de que a música é um recurso educacional e não um conteúdo escolar. É um meio para alcançar um determinado fim, e não um fim em si próprio. Na educação brasileira, a atitude de tratar a música como um meio, é proveniente de uma cultura colonizadora. As primeiras sistematizações do ensino de música foi na época jesuítica. A música tinha um papel relevante nas atividades da catequese. “Como exemplo, temos os jesuítas que organizaram as escolas onde ensinavam música, canto, coros e instrumentos” (FUSARI e FERRAZ, 1993, p. 130). A música era para um determinado fim e não para refletir sobre algo ou relacionar a experiências a um novo conhecimento. Na construção do ensino de arte no Brasil, ora houve um enfoque integrado incluindo a música, ora tendia apenas para as artes plásticas e o desenho, com caráter utilitarista, colocando o aluno ao adestramento em substituição à sua formação cultural. Considerando a educação brasileira de modo global, admite-se que a música não conseguiu conquistar um espaço definitivo, isto é, com abrangência e qualidade na educação escolar. Por um lado isto deveu ao predomínio das artes plásticas na Educação Artística. Por outro, inserida na Educação Artística, a música teve diluído os conteúdos de sua linguagem, com a prática polivalente das artes. A música dentro da disciplina de Arte encontrou dificuldades para desenvolver objetivos propriamente musicais, passando a optar por: “Uma ação pedagógica mais centrada no falar sobre música do que o fazer musical propriamente dito ou com a convivência com os modelos de estruturação da linguagem musical em cada contexto cultural, ou ainda, por certas práticas devido tão somente ao prazer imediato que possam proporcionar enquanto atividades lúdica, recreativa, promovendo a descontração, o desenvolvimento psicomotor, a fixação de outros conhecimentos (a música como vínculo de transmissão da palavra), a integração grupal, a liberdade emocional” (SANTOS, 1990, p. 31). A música como recurso educacional é reconhecida e aceitável. Não negamos o seu benefício para a ação pedagógica, mas o que se pretende abordar e investigar é a habilidade de uma proposta de ensino de música centrada no processo de elaboração conceitual possibilitando tanto o aprofundamento dos conteúdos musicais, quanto à articulação desses conteúdos com os demais conhecimentos. A maneira de pensar em música na escola, diferente do convencional instrumentalismo, ainda é um campo a se investigar. Os conteúdos musicais na escola, quando muito, são abordados de modo tão isolado e fragmentado, que se pode ler e escrever numa pauta sem chegar a ter consciência dos princípios básicos que regem a notação tradicional. Não são, portanto, conteúdos desse tipo que buscamos preservar ou resgatar, pois não são eles capazes de conduzir, na educação escolar, um trabalho que promova a 1 CANDÉ, Roland. História universal da música. Volume 1. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 30. apreensão de novos conhecimentos, a formação de conceitos sobre música, a compreensão do fenômeno musical, a apreciação e fruição das manifestações culturais. A música como componente de conhecimento, requer uma instrução que não pode ser puramente estética, não deve ser apenas um privilégio para os que têm acesso as escolas especializadas, academias, conservatórios, escolas de música, onde podem desenvolver sua habilidade musical. Segundo SCHAFER, “todos devem ter acesso a música, e o local ideal para que isso aconteça é a escola onde a grande massa é formada de pessoas com inteligência mediana. Não é preciso ser dotado para aprender música. Na escola, música não é um dom, é um exercício intelectual” (1991, p. 54). A música é indispensável à educação de todo homem, não apenas pelo seu valor estético, ético e cultural, mas também por proporcionar a formação de gostos diferenciados. O ensino da música na escola, compreendido como conhecimento e não apenas como instrumento para a ação pedagógica, volta-se ao desenvolvimento de esquemas de percepção, expressão e pensamentos, necessário à apreensão da linguagem significativa, sendo também um meio de democratizar o acesso á cultura através do contato com as manifestações musicais e culturais como um todo. Quanto aos valores estéticos, éticos e morais, tende-se a discutir a respeito da importância que a música tem na formação do indivíduo como um todo. Em 1991, A Declaração de Preocupação expõe, como base de suas justificativas, o seguinte: “Desde o início da civilização, música tem sido universalmente reconhecida como fato crucial para educação de qualidade por duas razões: primeiro, toda civilização reconhece que a educação musical, tanto formal quanto informal, prepara a criança para o que a vida requer. Educação musical fomenta criatividade, ensina comunicação efetiva, provê instrumentos básicos para avaliação do mundo que nos envolve, e investiga os valores inabaláveis de auto-disciplina e compromisso. Segundo, música e as outras artes têm sido reconhecidas como inigualáveis em referência às capacidades humanas no sentido de autodescobrimento e auto-expressão, e como parte fundamental da civilização em si. (MENC, 1991 – Music Education National Conference – Conferência nacional de Educadores Musicais – EUA, p. VI). Enquanto fenômeno social, a música evoluiu consideravelmente no curso da história, revelando comportamentos coletivos diferentes. Na escola, a música estimula o desenvolvimento de uma série de virtudes tais como: domínio próprio; auto-estima; criatividade; desenvolve a capacidade acadêmica e pessoal, a habilidade motora, disciplina no ouvir, a facilidade de expressão dos sentimentos. Outras qualidades também são cultivadas, tais como: humildade, disciplina individual e concentração; respeito mútuo; habilidade de entendimento de novos símbolos que, inclusive irão auxiliar no entendimento da matemática; desenvolvimento da capacidade de se tomar decisões, gratificação pelo sucesso em se aceitar e vencer desafios; alegria na liberdade poder se expressar através da música. Segundo Robert SHAW, transcrito por Robinson & Winold (1992), afirma: “Em um mundo de desintegração política, econômica e pessoal, música não é uma luxúria, mas uma necessidade, não simplesmente por ser terapêutica ou por ser a ‘ língua universal ’, mas porque é o foco persistente da inteligência, aspiração e boa vontade do ser humano”. Revendo historicamente a contribuição da música como conhecimento, na Antiguidade a música era uma necessidade educativa. Por muito tempo permaneceu como uma exaltação da ação ligada à magia, à religião, à ética, à terapêutica, à política, ao jogo e ao prazer, constituindo aspectos fundamentais na educação de um povo. “A solução de tarefas construtivas práticas é uma das formas de atividade intelectual do homem. A forma segunda e consideravelmente mais elevada é o pensamento verbal ou lógico verbal, através do qual o homem, baseando-se nos códigos da língua, está em condições de ultrapassar os limites da percepção sensorial imediata do mundo exterior, refletir conexões e relações complexas, formas conceitos e resolver complexas tarefas teóricas” (LURIA, 1991, p. 17). A música, apesar de sua instrumentalidade na educação escolar, não deixou de se constituir um conhecimento e apontar para resoluções complexas de relação e conexão, como cita a autora acima. O conhecimento musical na educação brasileira, apesar de toda fragmentação e omissão, foi significativo desde a época jesuítica, passando pelo predomínio das artes plásticas e do desenho, da contribuição do Canto Orfeônico de Villa-Lobos, dos métodos ativos, da disciplina de Educação Artística com caráter polivalente, até os decretos da Lei de Diretrizes e Bases, e mais recentemente, dos Parâmetros Curriculares Nacionais, os PCN’s. Considerando as mudanças no ensino da Arte, especificamente no ensino da música, as novas tendências propõem um ensino baseado em competência e habilidades. É, portanto, no processo de construção / formação de conceitos que se desenvolvem competências e habilidade exigidas na formação cultural como um todo. Como a fragmentação no ensino é formatação superada, e a interdisciplinaridade é necessidade urgente, foram realizadas pesquisas com dois grupos de diferentes faixas etárias e níveis escolares. Esses dois grupos foram, os alunos do 2º ciclo do ensino fundamental da Escola Estadual Berilo Wanderley, na qual se realizam pesquisas da Base de Pesquisa em Formação de Conceitos no Ensino Fundamental, da UFRN, e também com alunos do ensino médio do CEFET/RN, que desenvolvem atividades musicais de canto coral. Os alunos do ensino fundamental produziram uma opereta baseada em idéias musicais, especificamente na classificação do som: altura, duração, intensidade e timbre. Os elementos de classificação do som constituíram uma rede temática na qual os alunos relacionaram cada tema com os conhecimentos em geografia, história, ciências naturais, matemática e língua portuguesa. Ao final do trabalho, os alunos chegaram à conclusão de que os conhecimentos obtidos em música serviram tanto para os outros conhecimentos, quanto para a música e a realização de um trabalho prazeroso. Segundo VYGOTSKY, “O ato artístico é o processo concluído, embora não acionado, da nossa reação a um fenômeno. Esse processo amplia a personalidade, enriquece-a como novas possibilidades, predispõe para a reação concluída ao fenômeno, ou seja, para o comportamento, tem por natureza um sentido educativo” (1998, p. 325). É possível até aproximar a compreensão de que a música como conhecimento, começa onde o começa o mínimo. É a capacidade de perceber o que se dá nas entrelinhas. Partindo para o campo filosófico, o importante em música é o inaudível, como nas artes plásticas é o invisível. É a idéia sonora que ficou depois da execução, a idéia que se uniu à vivência e à experiência, a possibilidade de articulação de conceitos sobre a idéia musical. A finalidade da música como expressão artística, é ser educativa, e na escola, é mostrar-se como conhecimento para as relações. Com os alunos do ensino médio, a atividade musical não foi específica e momentânea, eles já desenvolvem uma atividade musical de canto coral que é contínua, extraclasse e não obrigatória. Durante as aulas, também chamadas de ensaios, são abordados aspectos técnico-musicais, como também aspecto físico, a emissão sonora; biológico, a respiração diafragmática; histórico, o contexto das músicas ensaiadas; matemático, a divisão rítmica do tempo, do pulso marcado pela música; e também aspectos lingüísticos e estéticos na busca da beleza da sonoridade e da reflexão da idéia musical não verbal. Os alunos que passam pela atividade de canto coral no CEFET/RN, concluem que é relevante tal atividade musical por relacionar-se a outros conhecimentos, e ainda por facilitar a compreensão e interpretação de textos, a habilidade de aprendizagem, audição e percepção, além de habilidades mentais primárias, verbal, perceptível, de números e espacial, e proficiência motora. Tomando exemplo, alguns dados estatísticos, 70% dos corais da cidade de Natal/RN são formados, na sua maioria, por coristas oriundos do Coral “Profª Lourdes Guilherme” do CEFET/RN, desde a década de 70, como também músicos que atuam profissionalmente em instituições especializadas em música na cidade. Certamente que o objetivo da atividade musical de canto coral no CEFET/RN, não é de formar músicos profissionais, mas de oferecer um conhecimento em música que se relacione às artes e à vida, numa atividade criadora, intelectual, física, moral, constituindo também uma forma eficaz de construir um suporte humanístico à educação. O que se pretende, então, de uma educação musical na escola, é o que se constatou nas duas experiências citadas anteriormente, sendo, portanto, a formação de conceitos em música a base para a compreensão do conteúdo musical na educação escolar. Um ensino de música voltado para formação conceitual fundamenta epistemologicamente conceitos que são universais e relacionáveis, proporciona o desenvolvimento das funções mentais básicas, como sensação, percepção, atenção, imaginação e memória, essenciais para aquisição de competências e habilidades exigidas na formação cultural, como também retoma três componentes da educação que devem estar bem claros na sua prática, que são: o ensino-aprendizagem, como processo de aquisição de conhecimento ou destrezas; o desenvolvimento de aptidões, que consiste não apenas o transmitir conhecimento, mas o desenvolvimento de aptidões de ordem intelectual; e os valores que acentuam habilidades humanas e atitudes sociais, sendo, portanto, uma espécie de componente de uma educação invisível, promovidos por situações difíceis que aparecem nas relações de disciplina. “No mundo dos valores, atua uma espécie de educação invisível, da qual muitas vezes não são conscientes nem professores, nem alunos; não por isso, porém, deixa de ser menos real” (HOZ, 1996, p. 46). Para que a educação musical seja concretizada na educação escolar de forma consciente, acreditamos ser produtivo encará-la como um processo contínuo em diversos níveis de profundidade de musicalização. A musicalização é um processo educacional orientado que efetua o desenvolvimento dos instrumentos de percepção, expressão e pensamentos necessários à apreensão da linguagem musical como significativa, também à relação com outros conhecimentos, sendo o objetivo central da música na escola regular, tornar o indivíduo capaz de aprender criticamente as várias manifestações musicais de seu universo cultural e ampliá-lo. BIBLIOGRAFIA BASE DE PESQUISA: Formação de conceito na escola elementar. NEPEB – UFRN, Natal – 2000. BARBOSA, Ana Mãe. Arte-educação: conflitos e acertos. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1998. BARROS, Ermilinda. Heitor Villa-Lobos, o educador. [S.I.]: [S.N], [198]. CANDÉ, Roland. História universal da música. Vol. 1. São Paulo: Martins Fontes, 1994. FUZARI, M. F., FERRAZ, M. 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