AS SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE A BÍBLIA E O ALCORÃO 2 Março de 2016 Charles Guimarães Filho 1 2 INTRODUÇÃO No mês anterior – fevereiro - elaboramos 34 textos para postagens no Facebook do Centro Cultural do Paraíso Terrestre perfazendo um total de 236 páginas, ou seja, em média mais de um artigo por dia com a proximidade de 7 páginas por artigo. Não sabendo se a qualidade e a quantidade estavam do agrado dos amigos, pedimos que eles se manifestassem a esse respeito, bem como sugerissem questões que lhes fossem de intensa dúvida para que as abordássemos. Para isso, bastariam usar a opção “comentários” na postagem que enviamos com o título “Comunicação 3”. E dissemos que na medida do possível procuraríamos atende-los. E relembramos que os temas desenvolvidos por Meishu-Sama são sobre: Deus, Mundo, Homem, Messias, Religião, Cultura, Johrei, Agricultura, Belo, Governo, Economia, Ideologia, Saúde, Prosperidade, Paz, Felicidade, Cidade e Paraíso. Diante dos comentários elogiosos que recebemos e ficamos gratos por estes, pois assim termos tidos comprovação de estarmos servindo. Porém, não houve nenhuma sugestão de questão para ser tratada, o que nos deixou com a seguinte questão: o que postar? Lembramos que quando estivemos com problema semelhante foram nos sugeridos que abordássemos sobre o Belo, o que foi feito no mês passado. Nesta trilha consultamos o nosso controle sobre as manifestações dos amigos no nosso Facebook e observamos que os cinco primeiros temas pela ordem são: Cultura, Governo, Belo, Religião e Mundo. 3 Ao notarmos que Cultura, Governo e Belo perfaziam um total de cerca de 90% relativo às manifestações, enquanto Religião tinha apenas pouco mais de 2% o que nos fez decidir a tratar deste tema. E começamos a pensar que muitos livros são tidos como patrimônio religioso, cultural e politico, em vários países do mundo. Sagrados ou não, eles são distribuídos gratuitamente como uma forma de construir um conceito e raciocínio para todos os interessados. Há muitos relatos colocando esses livros á frente de todos os outros, mas não existem dados exatos das quantidades de vendas feitas. A Bíblia, por exemplo, estimam que já fossem impressos e distribuídos mais de 6 bilhões de unidades. O Alcorão, livro sagrado do Islã foi fabricado entre 600 a 800 milhões de cópias, impulsionado por uma prática sagrada de que o livro não deve ser vendido, e sim dado. Se esses dois não forem os mais vendidos do mundo, com certeza são os mais lidos. E aí escolhemos que o nosso objetivo que seria o de divulgar a analise do que une e separa o Alcorão e a Bíblia acerca da imagem do ser humano e de Deus, segundo o pensamento de Maomé, Jesus, Moisés e outros, levando em conta o pano de fundo histórico da compreensão mútua. Para isso iniciaríamos apresentando o que se deve saber para aproveitar plenamente a leitura do Alcorão e da Bíblia. A Bíblia se sabe que ela compreende dois testamentos: Antigo e Novo. No total a Bíblia possuí nove livros, sendo quatro do Antigo Testamento e cinco do Novo Testamento. Sobre a Bíblia seria feito em dez itens. 4 ANTIGO TESTAMENTO: (1º) Pentateuco; (2º) Livros Históricos; (3º) Livros Poéticos e Sapienciais; (4º) Livros Proféticos. NOVO TESTAMENTO: (5º) Introdução aos Evangelhos Sinóticos; (6º) Introdução aos Atos dos Apóstolos; (7º) Introdução às Epístolas de são Paulo; (8º) Introdução à Epístola aos Hebreus; (9º) Introdução às Epístolas Católicas; (10º) Introdução ao Apocalipse. Sobre o livro sagrado do Islã também seria feito em dez itens. ALCORÃO: (1º) O que é o Alcorão; (2º) Sua importância; (3º) Conteúdo; (4º) Extensão e ordem dos capítulos; (5º) As duas classificações: cronológica e literária; (6º) O dogma do Islã; (7º) A lei; (8º) Narrativas históricas; (9º) Comportamento pessoal e social; (10º) O estilo. Finalmente o que une e separa os dois livros sagrados mais lidos no mundo seriam elaborado em vinte e um itens. BÍBLIA E ALCORÃO: (1º) Introdução; (2º) Judeus e cristãos na Arábia antes de Maomé; (3º) Maomé e Jesus – Aspectos biográficos; (4º) Reconhecimento histórico mútuo; (5º) Surgimento da Bíblia e do Alcorão; (6º) Valorização e avaliação; (7º) Visões gerais e subdivisões; (8º) A Bíblia no Alcorão; (9º) A linguagem figurada; (10º) A imagem de Deus; (11º) O mundo como criação de Deus; (12º) Mediadores da criação; (13º) A missão dos enviados de Deus e seu destino; (14º) Jesus – Cristologia; (15º) Ditos de Jesus no Alcorão?; (16º) A comum referência e Abraão; (17º) A imagem da pessoa humana; (18º) Escatologia; (19º) Judeus – Cristãos – Muçulmanos; (20º) Instrução ética: Decálogo, guerra santa etc.; (21º) Conclusão. 5 Para motivarmos a leitura deste trabalho deixamos um exemplo da semelhança entre estes dois livros sagrados. Quando Osama Bin Laden declarou guerra contra o Ocidente, em 1996, ele citou o comando do Alcorão para cortar as cabeças dos infiéis. “Massacre os idólatras, onde quer que os encontre, prenda-os, cerque-os, faça emboscadas em todos os lugares” são algumas instruções de Alá ao profeta Maomé (Alcorão, 9: 5). E Ele continua: “Faça guerra contra os infiéis e os hipócritas... O inferno será sua casa!”. Alguém duvida que os sequestradores, ao embarcarem nos respectivos aviões, em 11 de setembro de 2001, tinham esses trechos do Livro Sagrado em suas mentes? Que as instruções que eles seguiam vinham prioritariamente do Alcorão? E o que dizer da Bíblia? Há passagens no Antigo Testamento tão ou mais sangrentas que as do próprio Alcorão. No Livro de Samuel, por exemplo, Deus ordena, com todas as letras e sem meias palavras, um autêntico genocídio contra o povo amalequita. “Destrói totalmente tudo que eles têm, não os poupe”, diz Ele a Saul, através do profeta Samuel. “Matarás homens e mulheres, meninos, crianças e bebês, bois e ovelhas, camelos e jumentos.” No fim, como Saul cometeu o pecado terrível de não cumprir exatamente aquela ordem, Deus retirou dele o seu reino. Segundo o historiador Philip Jenkins, autor de alguns livros sobre o tema, a história do cristianismo está cheia de referência aos amalequitas. Durante as Cruzadas, na Idade Média, os Papas católicos os compararam aos muçulmanos. Nas grandes guerras religiosas nos séculos XVI, XVII e XIX, protestantes e católicos acreditavam que do outro lado estavam 6 os amalequitas, os quais deveriam ser totalmente destruídos. O mesmo raciocínio vale para os confrontos entre colonizadores americanos e os índios locais. Em resumo trataremos do tema Religião, mais precisamente de “As semelhanças e diferenças entre a Bíblia e o Alcorão” em quatro partes: Antigo Testamento; Novo Testamento; Alcorão; Bíblia e Alcorão. As três primeiras partes são apenas introduções a Bíblia e ao Alcorão a fim de facilitar estas leituras. Tendo em vista que este trabalho ficou em mais de 400 páginas, resolvemos editá-lo em dois livros. Livro 1 abordando a “Antigo Testamento” e “Novo Testamento”, enquanto o Livro 2 constituído pelo “Alcorão” e “A Bíblia e o Alcorão”. 7 8 ÍNDICE Alcorão 011 O que é, importância e conteúdo Capítulos e classificações O dogma do Islã A lei, narrativas e comportamento O estilo 013 018 022 027 030 Bíblia e Alcorão 037 Introdução 039 I - Antecedentes Históricos 042 Judeus e cristãos na Arábia antes de Maomé Maomé e Jesus – Aspectos biográficos Reconhecimento histórico mútuo 042 045 052 II - Comparação Geral 060 Surgimento da Bíblia e do Alcorão Valorização e avaliação Visões gerais e subdivisões A Bíblia no Alcorão A linguagem figurada 061 062 068 072 078 9 III - Temas Teológicos 087 A imagem de Deus O mundo como criação de Deus Mediadores da criação A missão dos enviados de Deus e seu destino Jesus – Cristologia Ditos de Jesus no Alcorão? A comum referência e Abraão A imagem da pessoa humana Escatologia Judeus – Cristãos – Muçulmanos Instrução ética: Decálogo, guerra santa etc. Conclusão 087 095 101 103 107 114 115 123 130 136 145 155 10 ALCORÃO 11 12 O QUE É, IMPORTÂNCIA E CONTEÚDO No dia 24 de janeiro fizemos uma postagem intitulada “Maomé e o Islamismo” que teve boa aceitação no Facebook do CCPT. Esse tema envolvendo essa religião também foi bem assistido no nosso site www.charlesguimaraesfilho.com.br em três publicações descritas abaixo. Publicações > Livros > Livros de Nova Cultura > Encontros de Temas em Reflexão > Muçulmano é incivilizado Publicações > Vídeos > Vídeos de Nova Cultura / Política, Arete, etc. > Encontros de Temas em Reflexão > 7. Muçulmano é incivilizado Publicações > Vídeos > Vídeos de Nova Cultura / Política, Arete, etc. > Encontros de Temas em Reflexão > 07. Muçulmano é incivilizado Então resolvemos apresentar o que se deve saber para aproveitar plenamente a leitura do Alcorão. O que será, repetindo o que foi dito na Introdução, feito nesses dez itens: (1º) O que é o Alcorão; (2º) Sua importância; (3º) Conteúdo; (4º) Extensão e ordem dos capítulos; (5º) As duas classificações: cronológica e literária; (6º) O dogma do Islã; (7º) A lei; (8º) Narrativas históricas; (9º) Comportamento pessoal e social; (10º) O estilo. Aqui foi empregada a tradução do Alcorão feita por Mansour Chalita, considerada a edição mais recomendada pelos estudiosos brasileiros. 13 (1º) O que é o Alcorão Ele é o livro sagrado que contém o código religioso, moral e político dos muçulmanos. O texto original em árabe clássico é considerado pelos muçulmanos a palavra textual de Deus, revelada ao Profeta Maomé por intermédio do arcanjo Gabriel. (2º) Sua importância Há algumas décadas, bastava ao homem culto saber que o Alcorão era o livro que havia fundado uma das três grandes religiões monoteístas do mundo [que é o Islamismo, as outras duas são o Judaísmo e o Cristianismo com seus livros sagrados Torá e Bíblia, respectivamente]. Hoje raramente um dia se passa sem que o Alcorão seja mencionado no cenário internacional. O aiatolá Khomeini afirmava que obedecia ao Alcorão quando impunha o xador (traje feminino usado em alguns países muçulmanos) às mulheres ou quando mandava apedrejar adúlteros e adúlteras, executar homossexuais e contrabandistas, proibir a música e a dança ou fechar as escolas mistas. Paralelamente, temos assistido nos últimos anos ao renascimento do Islã militante que, invocando ainda o Alcorão, está transformando as feições e reorientando a vida de muitos países desde o norte da África até o sul da Ásia. Em nome dele, as bebidas alcóolicas são proibidas em todo o reino da Arábia Saudita. Em nome dele, um ladrão é açoitado em praça pública no Paquistão. Em nome dele, milhões de mulheres muçulmanos continuam a cobrir o rosto com véu. Que outro texto legislativo 14 do século VII continua a ser respeitado a aplicado como o Alcorão? Decorre desses fatos um contraste que ninguém procura disfarçar entre a sociedade muçulmana e a atual sociedade ocidental, liberal e permissiva – contraste que, às vezes, assume a forma de um conflito de civilizações. O mesmo conflito se manifesta, aliás, nos próprios países muçulmanos entre o modernismo e o tradicionalismo. Ataturk na Turquia e Riza Khan no Irã rejeitaram, no começo do século XX, a lei do Alcorão e seus costumes e impuseram a lei e os costumes europeus. Mal haviam morrido, porém, e uma reação terrível arrasou suas reformas e restabeleceu a lei islâmica. Embora em diferentes intensidades, o mesmo conflito renasceu em vários países muçulmanos entre os que defendem as tradições e os que defendem a evolução, com reflexos imprevisíveis sobre o futuro. O interesse despertado pelo Alcorão ultrapassa assim o quadro da cultura geral para integrarse na atualidade política. O Alcorão é ao mesmo tempo um livro religioso e a obraprima da literatura árabe – nunca igualada antes dele ou depois. Seu estilo distingue-se pela força e pela originalidade, pela majestade da palavra inspirada, pela musicalidade e pelo colorido da poesia oriental. Como é o caso da maioria dos livros sagrados que fundaram uma religião, o Alcorão não foi escrito por Maomé [isso aconteceu no Torá, Bíblia e mesmo com a Messiânica]. Ele, aliás, não sabia ler ou escrever. Pregava suas ideias ao sabor da inspiração e das circunstâncias; e naquela época de literatura oral, seus seguidores retinham-lhe as palavras na memória ou as 15 inscreviam em qualquer material disponível: pele de cabra, omoplatas de camelo, folhas de tamareira, pedras, pergaminhos. Após a morte do Profeta, seu sucessor, Abu Bakr, receando que a mensagem se perdesse com o desparecimento dos primeiros companheiros e as flutuações dos textos memorizados, encarregou Zaid Ibn Thabet de reunir todos os fragmentos. E Osman, terceiro sucessor de Maomé, mandou organizar o livro definitivo que chegou até nós. (3º) Conteúdo Os textos foram repartidos em 114 capítulos (suras), subdivididos em versículos, num total de 6.235. Cada sura é como uma preleção na qual os ouvintes são exortados a seguir determinadas normas morais ou a aplicar determinadas leis ou a crer em determinadas verdades ou a tirar conclusões dos fatos históricos que lhes são narrados. Cada sura possui um título: As mulheres, As abelhas, A aurora, Os poetas ... Mas não se trata de um título que resume o assunto como nos livros comuns: é apenas uma palavra ou uma expressão empregada na sura e que foi escolhida como título. Por exemplo, note que ocorre com a sura 89 'A Aurora' com 30 versículos. Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso 89.1. Pela aurora, 89.2. E pelas dez noites, 89.3. E pelo par e pelo ímpar, 89.4. E pela noite, quando se retira (que sereis castigados)! 89.5. Porventura, não há nisso um juramento adequado, para o sensato? 16 89.6. Não reparaste em como o teu Senhor procedeu, em relação à (tribo de), 89.7. Aos (habitantes de) Iram, (cidade) de pilares elevados, 89.8. Cujo similar não foi criado em toda a terra? 89.9. E no povo de Samud, que perfurou rochas no vale? 89.10. E no Faraó, o senhor das estacas, 89.11. Os quais transgrediram, na terra, 89.12. E multiplicaram, nela, a corrupção, 89.13. Pelo que o teu Senhor lhes infligiu variados castigos? 89.14. Atenta para o fato de que o teu Senhor está sempre alerta. 89.15. Quanto ao homem, quando seu Senhor o experimenta, honrando-o e agraciando-o, diz (empertigado): Meu Senhor me honra! 89.16. Porém, quando o prova, restringindo a Sua graça, diz: Meu Senhor me afronta! 89.17. Qual! Vós não honrais o órfão, 89.18. "Nem nos estimulais a alimentar o necessitado;" 89.19. E consumis avidamente as heranças, 89.20. E cobiçais insaciavelmente os bens terrenos! 89.21. Qual! Quando a terra for triturada fortemente, 89.22. E aparecer o teu Senhor, com os Seus anjos em desfile, 89.23. "E o inferno, nesse dia, for destacado, então o homem recordará; porém de que lhe servirá a recordação!" 89.24. Dirá: Oxalá tivesse diligenciado (na prática do bem), durante a minha vida! 89.25. Porém, nesse dia, ninguém castigará como Ele (o fará), 89.26. "Nem ninguém acorrentará, como Ele (o fará);" 89.27. E tu, ó alma em paz, 89.28. Retorna ao teu Senhor, satisfeita (com Ele) e Ele satisfeito (contigo)! 89.29. Entre no número dos Meus servos! 17 89.30. E entra no Meu jardim! Nessas preleções, os assuntos não são tratados sob forma de dissertações filosóficas ou teológicas, esgotando-se cada tema antes de outro ser abordado. Os assuntos são diversos e um mesmo tema pode retornar mais adiante no texto. Inevitavelmente há, portanto, muitas repetições, pois vários assuntos foram desenvolvidos em diferentes ocasiões, perante públicos distintos. CAPÍTULOS E CLASSIFICAÇÕES (4º) Extensão e ordem dos capítulos Suras e versículos variam muito em extensão. A sura mais longa (intitulada: A vaca) contém 286 versículos. As três mais curtas contêm três versículos cada uma (por exemplo, a suma 108 – A abundância - com os três versículos: 01. Sim, cumulamos-te com a abundância. 02. Reza, pois, a teu Senhor e a Ele imola os sacrifícios. 03. Quem te odeia não terá posteridade.). E há versículos formados de uma única palavra (Suma 74 – O emantado – versículo 040: Perguntarão), e outros compostos de várias frases (suma 2 – A vaca – versículo 25: Anuncia aos que creem e praticam o bem que deles será o Paraíso onde correm os rios; cada vez que lhe provarem os frutos, exclamarão: “São iguais ao que comíamos na terra”. Lá terão esposas puras, e lá permanecerão para todo o sempre.) Oitenta e seis das 114 suras foram reveladas em Meca, onde Maomé nasceu, em 570, e viveu até a idade de 52 anos; 28 18 suras foram reveladas em Medina, onde se refugiou e morreu em 632. Por algum motivo que desconhecemos, nem os versículos dentro das suras, nem as suras dentro do livro, foram colocados em ordem cronológica, ou reunidos por assunto. Os temas se repetem nas diversas suras. Ademais, alguns versículos revelados em Meca foram incluídos em suras reveladas posteriormente em Medina. A única ordem seguida foi colocar as suras mais longas em primeiro lugar e as mais curtas em último lugar. É essa ordem tradicional que se encontra em todas as edições árabes do Alcorão e que foi adotada, naturalmente, na tradução de Mansour Chalita. (5º) As duas classificações: cronológica e literária Há exegetas (aqueles que comentam ou interpretam), contudo, que procuram substituir essa classificação por duas outras. A primeira, baseada em estudos minuciosos, dispõe as suras por ordem cronológica: o que permite acompanhar a evolução do pensamento de Maomé desde as primeiras revelações até as últimas, embora haja algumas variações de um exegeta a outro. Classificação Cronológica Para acompanhar a evolução do pensamento de Maomé da primeira revelação à última, ler as suras na seguinte ordem: 19 96, 74, 73, 93, 94, 113, 114, 1, 109, 112, 111, 108, 104, 107, 102, 92, 68, 90, 105, 106, 97, 86, 91, 80, 87, 95, 103, 85, 101, 99, 82, 81, 84, 100, 79, 77, 78, 88, 89, 75, 83, 69, 51, 52, 56, 53, 70, 55, 54, 37, 71, 76, 44, 50, 20, 26, 15, 19, 38, 36, 43, 72, 67, 21, 23, 25, 17, 27, 18, 32, 41, 45, 16, 30, 11, 14, 12, 40, 28, 39, 29, 31, 42, 10, 34, 35, 7, 46, 6, 13, 2, 98, 64, 62, 8, 47, 3, 61, 57, 4, 65, 59, 33, 63, 24, 58, 22, 48, 66, 60, 110, 49, 9, 5. A segunda classificação segue uma ordem subjetiva, determinada pelo gosto pessoal de cada um, no afã de apresentar ao leitor, primeiro, as suras mais curtas e mais poéticas e depois as mais longas e mais dogmáticas. O objetivo é tornar a leitura do Alcorão mais fácil e atraente. Classificação Literária Para conhecer, em primeiro lugar, as páginas mais poéticas do Alcorão, ler as suras na seguinte ordem: 1, 99, 82, 81, 76, 55, 71, 100, 113, 114, 95, 93, 92, 89, 94, 96, 97, 102, 103, 104, 107, 108, 101, 98, 91, 88, 90, 87, 19, 86, 12, 85, 84, 83, 80, 79, 78, 77, 75, 74, 70, 73, 69, 68, 10, 67, 28, 27, 64, 63, 18, 14, 62, 61, 57, 56, 53, 52, 51, 50, 47, 46, 45, 11, 13, 44, 43, 42, 41, 40, 37, 36, 35, 34, 32, 31, 30, 29, 26, 25, 24, 23, 20, 17, 15, 7, 105, 106, 11, 112, 72, 60, 59, 58, 49, 48, 39, 38, 33, 21, 16, 8, 9, 2, 4, 65, 5, 109, 110, 22, 3, 6, 66. Cada sura tem um número, e cada versículo dentro das suras também. Geralmente, nas traduções do Alcorão, coloca-se o número de cada versículo antes de iniciá-lo, o que dá ao livro 20 um aspecto de código e contribui para afastar a mente do leitor da ideia de que o Alcorão, além de livro santo, seja uma obra literária de grande beleza. Nas edições árabes, por oposição, o número é colocado depois do versículo num pequeno círculo artístico que não atrapalha a leitura. Seguindo um método similar, Mansour Chalita coloca o número de cada versículo em uma coluna à direita, ao lado de um losango vazado que remete à arte árabe. Desse modo, o leitor poderá consultar qualquer versículo pelo número. Nestas anotações, o primeiro número se refere à sura, o segundo, ao versículo. Assim, 24:40 indica o versículo número 40 da sura número 24, o que foi visto anteriormente: Suma 74 – O emantado – versículo 040: Perguntarão. Todas as suras, exceto uma, começam com a saudação: “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.” De acordo com a tradição muçulmana, foi numa noite do mês do Ramadã do ano 610 que, enquanto dormia ou estava em transe, Maomé, então com 40 anos, viu o anjo Gabriel na sua frente. Ordenou o anjo: “Recita!”. “Que recitarei?”, perguntou Maomé. “Recita!”, repetiu o anjo. “Que recitarei?”, voltou Maomé a perguntar. “Recita!”, disse o anjo pela terceira vez. Recita em nome de teu Senhor que criou, Criou o homem de sangue coagulado. Recita. E teu Senhor é o mais generoso, Que ensinou com a pena, Ensinou ao homem o que não sabia. Eram os primeiros versículos do Alcorão, que fariam parte da sura intitulada O coágulo. 21 Até a sua morte, 22 anos depois, Maomé recitaria aos seus seguidores versículos do Alcorão que dizia receber diretamente de Deus por intermédio do anjo Gabriel. È uma blasfêmia atribuir este Alcorão a outro que não a Deus. Ele é a confirmação do que o precedeu e a elucidação do Livro incontestável do Senhor dos Mundos. (10:37). Isto é o que foi dito na sura 10 – Jonas – versículo número 37. O DOGMA DO ISLÃ (6º) O dogma do Islã O dogma pregado por Maomé é o seguinte: Deus havia revelado sua vontade aos judeus e aos cristãos pela voz de seus Mensageiros. Mas eles desobedeceram às ordens de Deus e dividiram-se em seitas cismáticas [o Cisma judaico na era bíblica com a divisão do reino entre Judá ao sul formado por duas tribos, enquanto Israel ao norte de 977-830 a.C. com dez tribos; o Cisma do Oriente separou a Igreja Católica em duas: Igreja Católica Apostólica Romana e Igreja Católica Apostólica Ortodoxa, a partir do ano 1054]. O Alcorão acusa os judeus de terem corrompido as Escrituras, e os cristãos, de adorarem Jesus como o Filho de Deus, quando Deus nunca teve filhos e quer ser adorado com absoluta exclusividade. Tendo-se assim desencaminhado, judeus e cristãos devem ser chamados de novo para a senda da retidão, a religião verídica fundada por Abraão e que Maomé, o último dos Profetas, veio pregar. Completam o dogma as cinco seguintes proposições: 22 1ª). Deus é único e onipresente. É o criador e o Senhor absoluto dos céus e da terra e de tudo quanto existe neles. Sabe tudo (onisciente) e pode tudo (onipresente). Nada acontece senão por Sua vontade. Faz o que Lhe apraz. Seu poder é ilimitado e discricionário. Os homens são Seus servos. Desgraça alguma acontece senão com a permissão de Deus (64:11) Se teu senhor quisesse, todos os habitantes da terra seriam crentes (10:99) Possui as chaves do desconhecido, e só Ele as possui. E sabe o que há na terra e no mar. Nenhuma folha cai sem Seu conhecimento. E não existe grão no seio da terra escura ou coisa alguma seca ou verde, que não esteja registrado no Livro evidente. (6:59) Se quiséssemos, poríamos todas as almas no caminho da retidão. Mas, digo-o em verdade, encherei o inferno de djins [entidade sobrenatural do mundo intermediário entre o angélico e o humano que pode ser associada ao bem ou ao mal, que rege o destino de alguém ou de um lugar] e de homens. (32:13) E Ele perdoa a quem Lhe apraz e castiga que Lhe apraz. (2:284) A Ele pertencem os nomes mais sublimes. Sua grandeza é representada por metáforas inesquecíveis. E quando Moisés chegou ao nosso Encontro e seu Senhor lhe falou, disse: “Senhor meu, deixa-me ver Tua face.” Respondeu o Senhor: “Não me verás. Observa, porém, o monte. Se ele permanecer no seu lugar, poderás Me ver.” Mas quando Deus desvelou Sua face ao monte, o monte caiu em pó. E Moisés perdeu os sentidos. (7:143) 23 Sua imagem completa forma-se traço por traço, de um versículo a outro. Ele sabe castigar com vigor, sabe mesmo ser vingativo e astucioso; mas como sabe também ser generoso e liberal! E como sabe ser justo e clemente! Quem praticar uma boa ação receberá dez vezes seu equivalente e quem cometer uma ação má, receberá apenas o seu equivalente, e ninguém será lesado. (6:160) Ó vós que credes, sede firmes na distribuição da justiça, testemunhado por Deus, mesmo contra vós mesmos ou contra vosso pai, vossa mãe e vossos parentes, trate-se de um rico ou de um indigente. Deus vela sobre todos. (4:135) Sendo o poder de Deus ilimitado e discricionário, e considerando-se que nada acontece senão com a Sua permissão e conforme Sua presciência, nasceu à ideia da predestinação, da fatalidade, do matkub (já estava escrito). Está mesmo tudo escrito no Livro? E em que sentido? Descobrir as respostas nos pronunciamentos do Alcorão não é um dos menores atrativos da leitura. Impressionados com essa dominação absoluta de Deus, alguns descrentes ironizavam: “E quando se lhes diz: ‘Gastai do que Deus vos concedeu’, os que descreem dizem aos que creem: Alimentaríamos os que Deus alimentaria se Ele quisesse?” (36:47) 2ª) Outros elementos da religião muçulmana são a ressurreição dos mortos, o juízo final, a Geena (inferno) e o Paraíso. A ressurreição de todos os homens precederá o dia do julgamento. E após o julgamento, os condenados irão para a Geena “e lá permanecerão enquanto permanecerem os céus e a 24 terra”, (11:07) e os eleitos, para o Paraíso “onde permanecerão enquanto permanecerem os céus e a terra.” (11:08) As delícias do Paraíso são descritas sob a forma alegórica das delícias deste mundo que mais sensibilizam o beduíno do deserto: jardins e rios, frutas e água de nascente, e esposa formosas. Mas é tanto a ressurreição como a Geena que são descritas com as imagens mais impressionantes. Assim, quando a trombeta soar uma só vez, e a terra e as montanhas forem erguidas e, depois, esmagadas de um só golpe, naquele dia será a ressurreição. (69: 13 a 15) Nesse dia, os homens serão como borboletas dispersas e as montanhas, como lã cardada. (lã que já passou pela carda) (101:4 e 5) Naquele dia, enrolaremos o céu como se enrola um pergaminho. E como iniciamos a primeira criação, iniciaremos a segunda. (21:104) Os que rejeitam Nossos sinais, breve os jogaremos ao Fogo. Cada vez que suas peles forem queimadas, as substituiremos por outras para que continuem a experimentar o suplício. (4:56) 3ª) Maomé é o mensageiro de Deus, encarregado de transmitir Sua palavra aos homens. O Alcorão liga inúmeras vezes o nome de Maomé ao nome de Deus e exorta: obedecei a Deus e a Seu Mensageiro. Crentes são os que creem em Deus e em Seu Mensageiro (24:62) 25 Para aqueles que não creem em Deus e em Seu Mensageiro preparamos um fogo flamejante. (48:13) 4ª) O Alcorão não classifica os homens conforme sua raça, cor, nacionalidade, cultura, posses econômicas, classes sociais. Não obstante essas diferenças, todos os homens são iguais perante Deus. O que os distingue é sua fé. O mundo é dividido em dois campos: o dos muçulmanos (crentes) e dos não muçulmanos (os descrentes ou infiéis). Com certeza Deus separará, no dia da Ressurreição, os que creem dos judeus e nazarenos e magos e idólatras. (22:17) O crime mais citado como merecedor dos suplícios do inferno é a descrença: Se persistirdes na descrença, como vos defendereis de um dia que tornará branco o cabelo das crianças? (73:17) A atitude para com os judeus e os cristãos, chamados “os adeptos do Livro”, é mais diferente do que a reservada aos idólatras. Assim mesmo, varia segundo as relações que se desenvolveram entre eles e os muçulmanos. Alguns versículos lhe são favoráveis; outros desfavoráveis. 5ª) Além das verdades em que o muçulmano deve crer, há cinco deveres que lhe são prescritos: a prece, o jejum, o pagamento do tributo dos pobres, a peregrinação a Meca e a guerra santa. São realmente crentes os que creem em Deus e em Seu Mensageiro, que não duvidem e que lutam, com sua vida e suas posses pela causa de Deus. (49:15) 26 A LEI, NARRATIVAS E COMPORTAMENTO (7º) A lei A Lei do Alcorão é feita de dois elementos: uma severidade rigorosa (notadamente contra os assassinos, os adúlteros, os ladrões e os renegados) e um espírito de indulgência, de justiça e de perdão. Determina que se cortem as mãos ao ladrão, que se apliquem cem açoites ao adúltero e à adúltera, mas recomenda a clemência para os que se arrependem e repete centena de vezes que Deus é compassivo e misericordioso. Quando dois dentre de vós cometerem um adultério, castigai-os. Mas se se arrependerem e se emendarem, deixa-os em paz. Deus é perdoador e clemente. (4:16) E prescreve a justiça em todas as circunstâncias, mesmo a favor do inimigo. (...) e que vosso ódio não vos impeça de serdes justos para com os que odiais. (5:8) Mesmo para um delito tão secreto quanto o adultério, a lei exige quatro testemunhas. Aquelas de vossas mulheres que forem suspeitas de adultério, chamai quatro testemunhas dos vossos contra elas. Se as testemunhas testemunharem, confinai-as então em vossas casas até que a morte as leve ou até que Deus lhes indique um caminho. (4:15) Além do código penal, há no Alcorão um código civil que regulamenta o casamento, o repúdio, a poligamia, os juros, o vestuário feminino, as relações entre homens e mulheres, o 27 testamento, a filiação, os alimentos permitidos e proibidos, a atitude para com os adeptos de outras religiões, o vinho, os jogos de azar, a caça e dezenas de outros assuntos. Maomé foi perseguido e exilado pelos habitantes de sua cidade natal, Meca, quando começou a pregar a nova religião; e só pela força pôde a ela voltar mais tarde. Ademais, teve que sustentar guerras contra os idólatras, os judeus, os cristãos. O Alcorão contém, portanto, muitas disposições relativas ao comportamento dos muçulmanos na guerra, aos cativos, aos despojos, aos inimigos, aos aliados, às dispensas de combater e numerosos outros assuntos de caráter militar. Constitucionalmente, o Estado que o Alcorão parece favorecer é um Estado teocrático, baseado na orientação de um chefe supremo justo que aplica a palavra de Deus, e na igualdade de todos os muçulmanos, sem discriminação nascida da raça, classe social, nacionalidade, do grau de instrução ou das posses. Todos os crentes são irmãos. Fazei a paz entre vossos irmãos e temei a Deus. Quiçá recebereis misericórdia. (49:10) (8º) Narrativas históricas O Alcorão contém a narração de muitos acontecimentos bíblicos, evangélicos, tais como a criação de Adão e Eva e sua expulsão do Paraíso; a história de José e de seus onze irmãos; a perseguição do Faraó aos judeus e a ida destes para a Terra da Promissão; a história de Salomão e a rainha de Sabá; o nascimento de Jesus; e muitos outros, com similitudes e dissimilitudes em relação às versões da Bíblia e do Evangelho. 28 (9º) Comportamento pessoal e social Dezenas de detalhes de comportamento social são regulamentados no Alcorão desde o asseio pessoal, como as relações íntimas entre marido e mulher, até a maneira de saudar, andar, responder aos insensatos, visitar o Profeta e dirigir-se a ele. Abrange, às vezes, minúcias quase surpreendentes num código tão vasto: Ó vós que credes, quando vos pedem nas assembleias: “Apertai-vos para dar lugar aos demais”, dai lugar aos demais. Deus vos dará lugar no Paraíso. E quando vos dizem: “Levantaivos”, levantai-vos ... (58:11) É, todavia, na pregação das virtudes pessoais e sociais que o Alcorão atinge o sublime. Prega e exalta a generosidade, a caridade, a hospitalidade, a gratidão e condena em termos duros a avareza, a mentira, a hipocrisia, a avidez, a cobiça, a deslealdade, o orgulho, a arrogância. Reflexo dos povos orientais, prega também o culto da família e a bondade para com os pais. Inovação digna de apreço: diversos erros e delitos são punidos, impondo-se ao pecador algum ato de caridade. Por esse lado, o Alcorão ultrapassa os limites de qualquer religião para aplicar-se a todos os homens em todos os tempos. A boa ação e a má ação não são iguais. Repele o mal da melhor maneira, e verás aquele que era teu inimigo agir como se fosse teu amigo leal. (41:34) Meu filho, observa a oração, prescreve a justiça, proíbe o mal e suporta com força de alma o que te atingir. (31:17) E não trate os outros com altivez (31:18) e não caminhes com 29 jactância, pois jamais fenderás a terra e jamais atingirás a altura das montanhas. (17:37) Nos vossos bens, que haja sempre um quinhão para o pobre e o deserdado. (51:18) O ESTILO (10º) O estilo O estilo do Alcorão é diferente de qualquer outro estilo, árabe ou não árabe. Reproduzi-lo é impossível. Mas sacrificá-lo inteiramente e deturpá-lo, como em traduções comuns, equivale a oferecer um Alcorão que não satisfaz ao leitor culto. Fora sua prodigiosa beleza de forma, o estilo do Alcorão apresenta características próprias cujo conhecimento permite ao leitor familiarizar-se mais rapidamente com o texto. (1) A maior parte do Alcorão é escrita na primeira pessoa do singular ou do plural: é Deus que fala pela boca de Maomé. Quando se dirige a uma só pessoa (tu), está dirigindo-se a Maomé; quando se dirige a muitas pessoas (vós), está se dirigindo aos muçulmanos; e quando fala deles, está falando dos não muçulmanos, podendo esses ser todos os não muçulmanos ou determinado grupo deles (os cristãos, os judeus, os idólatras, os habitantes de uma cidade), conforme as circunstâncias. Mas Deus não fala somente na primeira pessoa do singular ou do plural. Fala de si mesmo também na terceira pessoa do singular. Muitas vezes, na mesma frase, fala na primeira e na terceira pessoas: 30 Não vistes, que do céu, Deus faz descer água e com ela, produzimos frutas de cores diversas. (35:27) Estais seguro de que Ele não vos devolva ao mar e não envie uma tempestade que vós afogue por vossa ingratidão sem que possais encontrar quem promova vossa causa contra Nós? (17:69) Da mesma forma, em certas frases, Deus dirige-se ora a Maomé, ora a todos os muçulmanos: Não sabeis que a Deus pertence o reino dos céus e da terra e que fora d’Ele, não tendes nem defensor nem protetor. (2:107) Segue, como os que se arrependem contigo, o caminho reto, como te foi mandado. E não oprimais. Deus observa o que fazeis. (11:112) (2) Como o Alcorão não foi escrito, mas transmitido oralmente por Maomé, um sinal de mão, um aceno da cabeça ou outro gesto do corpo podiam indicar de quem se falava. Na tradução, para tornar o sentido mais claro, é necessário às vezes substituir o pronome pelo nome das pessoas a que ele se refere. É o caso, entre outros, do próprio Maomé, que é mencionado muitas vezes pelo simples prenome ele (por exemplo, nos versículos 7:184; 10:38; 11:35; 25:4; 32:3; 33:40; 36:69; 37:158; 42:24; 46:8; 47:2; 48:29; 58:8). Quando julgamos que o texto ficava mais explícito substituindo-se o pronome pelo de Maomé, fizemos a substituição, conversando ao nome sua grafia: Muhamad. (3) A língua árabe tem recursos de que as línguas europeias não dispõe. Por exemplo, além do singular e do plural, o árabe tem um terceiro número: o duplo, isto é, tem flexões 31 especiais para o verbo, o substantivo, o adjetivo, o pronome quando se trata de dois objetos ou duas pessoas. Tem também flexões diferentes conforme se trata do plural feminino ou masculino, de coisas ou de pessoas. E os verbos têm afixos que lhe diversificam o sentido muito mais do que nas línguas europeias. Esses e outros recursos possibilitam ao grande escritor uma concisão desconhecida em outros idiomas. No Alcorão, essa concisão chegou a uma virtuosidade nunca atingida antes dele ou depois. Cria por si mesma uma música e um ritmo tão belos e tão intraduzíveis quanto um tema de Mozart. E uma das tarefas mais difíceis do tradutor é respeitar essa concisão tanto quanto possível e evitar prolixidade. (4) O mundo do Alcorão é um mundo masculino. Deus fala aos homens e fala-lhes das mulheres. (5) Há um vocabulário caracteristicamente corânico, mesmo em relação ao árabe clássico. Algumas de suas expressões têm o sabor de frutas desconhecidas, embora seja difícil às vezes apreender-lhes o sentido. Exemplos: O Senhor dos mundos. (1:2) O Senhor dos levantes. (37:5) O Senhor dos levantes e dos poentes. (70:40) O Senhor dos dois levantes e dos dois poentes. (55:17) O Senhor dos sete céus. (23:86) O duplo da vida e o duplo da morte. (17:75) O castigo do último mundo e do primeiro. (79:25) Os levantes e os poentes da terra. (7:137) A distância de dois Orientes. (43:48) Os herdeiros do Paraíso. (59:20) Os herdeiros da Geena. (5:86) 32 Corações incircuncisos. (2:88) Os que têm a doença no coração. (5:52) Estão fechados com cadeados seus corações? (47:24) (6) Outras expressões e imagem refletem o meio e a época nos quais o Alcorão foi revelado. Era um meio de desertos e o oásis, de comércio primitivo e de atividade pastoris. Maomé fala aos seus ouvintes a linguagem que eles entendem. Para marcar o começo do jejum no fim da noite, diz: “E comei e bebei até que comeceis a distinguir, na aurora, a linha branca da linha preta.” (2:187) Diz: “Ninguém será lesado do valor de uma mecha de lampião.” (17:71) Diz: “Deus não prejudica ninguém, nem do peso de uma formiga.” (4:40) Diz: “E o que invocais em vez d’Ele não mandam nem na casca de um caroço de tâmara.” (35:13) Deixamos intatas essas imagens saborosas quando outros tradutores falam do “peso de um átomo” ou escrevem: “Não sereis defraudados no mínimo que seja.” Uma deformação, pitoresca em si mesma, foi perpetrada numa tradução inglesa do Alcorão. Nela, as delícias do Paraíso são descritas sob forma de imagens alegóricas aptas a tocar a sensibilidade dos beduínos, aquém o Alcorão foi primeiro revelado: frutas, sombras densas, jardins (o que ele mais almejava). E promete aos eleitos “água de nascente” (56:18), uma raridade no deserto, particularmente apreciada. Nesse caso, o tradutor achou que água de nascente não era bastante atraente e substituiu-a por vinho (por que não uísque?). (7) Além dessas expressões e imagens, o Alcorão emprega certas palavras e fórmulas comuns, dando-lhes um sentido específico. Exemplos: Gastar significa no Alcorão fazer 33 liberalidades, gastar em benefício dos outros, não de si mesmo. A submissão é a submissão a Deus, isto é, a adoção do Islã como religião. O Livro refere-se, geralmente, ao Alcorão; mas pode referir-se também ao Antigo Testamento ou ao Evangelho. Muitas vezes, o leitor deve adivinhar, pelo sentido, de que livro se trata. Adeptos do Livro são os cristãos e os judeus, os quais receberam um livro revelado (a Torá, a Bíblia, o Evangelho) e nele acreditam. Os associados de Deus são os ídolos a quem os idólatras atribuíam poderes divinos, fazendo deles como associados de Deus no reino dos céus e da terra. Sinal é manifestação, fenômeno, prova, prodígio. Lembremos que Geena, isto é, o inferno, é uma palavra portuguesa de origem árabe, assim como sura, que indica cada um dos capítulos do Alcorão. (8) Um exemplo típico dos problemas de tradução: o Alcorão proíbe o juro ou a usura? O vocábulo árabe aplica-se aos dois termos. E muitos tradutores, achando que seria demais proibir o juro, proibiram a usura (agiotagem, mesquinharia). Basta, porém, comparar os diversos versículos nos quais o assunto é tratado para se convencer de que o Alcorão proibiu mesmo o juro. Esses versículos são, particularmente, os de números 275 a 279 da segunda sura. O versículo 275 diz: Os que vivem de juros não se levantarão de seus túmulos senão como aqueles que o demônio esmaga. É porque dizem: “O juro é como o comércio.” Mas, na verdade. Deus permitiu o comércio e proibiu o juro. Se o juro fosse legal e a usura, proibida, não teria o Alcorão dito: “Deus permitiu o juro e proibiu a usura”? 34 (9) E quando ... Esta expressão, no começo dos versículos, não introduz uma oração subordinada que pede uma oração principal, mas é a continuação de uma oração principal subentendida. “E lembra-te, ou lembrai-vos de quando houver isso ou aquilo, ou de quando fizermos isso ou aquilo ... “É essencial anotar esta observação para familiarizar-se imediatamente com essa construção, muito frequente. E quando os anjos disseram: “Ó Maria, Deus te anuncia a chegada de seu Verbo, chamado o Messias, Jesus, filho de Maria. Será ilustre neste mundo e no outro, e será um favorito de Deus.” (3:45) E quando vos livramos dos Faraós que vos infligiam os piores suplícios, imolando vossos filhos e poupando vossas mulheres. Vossa humilhação era uma dura provação imposta por vosso Senhor. (2:49) (10) Certas palavras, que aparecem em tradução com letra maiúscula (o árabe não tem letras maiúsculas), são empregadas no Alcorão num sentido incomum. A Hora: o fim do homem ou o fim do mundo, a ressurreição. O Grito: calamidade enviada por Deus e que destrói os homens e suas habitações e propriedades. O Tremor: calamidade enviada por Deus e que atinge mais particularmente os homens. O Indubitável: a morte ou o fim do mundo, o juízo final sobre a chegada dos quais não pode haver dúvida. A Calamidade, a Rebelde, a Algazarra, O Estrondo são também usados no sentido de castigo divino particularmente severo. 35 O Julgamento: o juízo final, o julgamento dos mortos depois de ressuscitados. O Fogo: a Geena, o Inferno. (Quando a palavra começa com letra minúscula, significa apenas as chamas.) O Enganador: o demônio. (11) Assinala-se para terminar diversas construções de frases que mesmo em árabe, são pouco usuais e constituem mais uma característica do estilo corânico. Procuramos salvar o que foi possível da originalidade dessas construções, ao risco de forçar a estrutura da frase em português: E quem vira as costas e se afasta, Deus é autossuficiente, digno de louvores. (57:24) E aqueles que vencem a própria avareza, são eles os vitoriosos. (59,9) Quanto aos que renegaram e desmentiram Nossas revelações, serão eles os herdeiros da Geena. (5:86) Quem dentre vós cometer um mal por desconhecimento e se arrepender e se emendar, Deus é clemente e misericordioso. (6:54) (12) Há um estilo corânico como há um estilo bíblico. Despido desse estilo, o Alcorão não é mais o Alcorão. 36 BÍBLIA E ALCORÃO 37 38 INTRODUÇÃO Sem a graça e a misericórdia de Deus, certamente estaríeis entre os perdedores. Sura 2,64 Rejubilai-vos com alegria inefável e gloriosa ao alcançardes o fim da vossa fé. 1 Pedro 1,8s. Diz-se que o maior problema do século XXI consistirá no choque político, cultural e religioso entre as religiões mundiais. As religiões asiáticas — budismo, hinduísmo, taoísmo— encontram-se a grande distância de nós, embora não deixem de exercer certa fascinação sobre um certo número de pessoas, com suas cores e seus ritos, num mundo cada vez mais aproximado. Bem mais próximo de nós está o islamismo. Milhões de seguidores da fé islâmica vivem há décadas em nosso país [Alemanha]. Mesquitas e centros de oração surgem em grande número em nossas cidades. A atual discussão acerca do uso do véu por parte de professoras em escolas alemãs, bem como a questão que se arrasta por décadas sobre a autorização do ensino religioso islâmico por parte do Estado, demonstram que está mais do que na hora de nos conhecermos mutuamente. Culturas e cosmovisões atropelam-se. Este livro recorre às fontes, a Bíblia e o Alcorão — as Sagradas Escrituras. Ele representa o esforço de uma apresentação comparada. Isso é possível e também foi 39 alcançado, pois cada leitor cristão do Alcorão pode constatar que nele estão presentes elementos bíblicos. Depara-se sempre de novo com nomes bíblicos. Algumas suras até são denominadas de acordo com personagens bíblicos. Nele o leitor sempre volta a deparar-se com narrativas ou recordações bíblicas. Em uma leitura mais atenta, contudo, constata-se que a semelhança dessas tradições de modo algum significa identidade. Pelo contrário: o antigo é reelaborado, interpretado de maneira nova, introduzido em outro grande contexto, marcado por outras experiências. A comparação entre Bíblia e Alcorão, na presente pesquisa, foi subordinada ao interesse em identificar o que une e o que separa as duas Escrituras. É possível que a um muçulmano pareça presunção o fato de um exegeta profissional ocupar-se do Alcorão. Para mim está claro que uma compreensão adequada do Alcorão só é possível a quem vive na comunidade de fé dos muçulmanos. O “círculo hermenêutico” ao qual nós, teólogos cristãos, nos referimos para a compreensão da Bíblia vale na mesma medida para o Alcorão. Com esse círculo hermenêutico quer-se dizer que é preciso estar “dentro”, no círculo da experiência dos que têm a mesma convicção, para acolher a palavra tal qual ela pretende ser acolhida. Mesmo assim, penso que seja possível extrair do próprio Alcorão uma justificativa para que um cristão possa dele ocupar-se, já que ele se dirige repetidas vezes aos cristãos, bem como aos judeus. Ele nos interpela como “as pessoas da Escritura”, “as pessoas do Livro”. A essa interpelação é lícito reagir. Deve-se fazê-lo claramente, com a consciência de que o Alcorão não é um livro qualquer, e sim o livro da fé de uma grande comunidade religiosa. 40 Para o teólogo cristão, o Alcorão não só é interessante pela já citada proximidade com a Bíblia, mas também pelo fato de o islamismo ser a única religião mundial que encontrou o cristianismo já preexistente. Para o cristianismo sempre foi um problema o fato de depois dele — depois de Cristo — ter surgido mais uma religião mundial. A população da Arábia, que até a época de Maomé vivia no politeísmo, não esteve e continua a não estar disposta a aceitar o cristianismo, o que no futuro, provavelmente, não mudará. O que significa isso? Esta pesquisa concentra-se na Bíblia e no Alcorão. Isso significa que, em relação ao islamismo, não são consideradas as tradições extracanônicas sobre Maomé, as assim chamadas hadith, que existem em grande número. O método utilizado é o histórico-crítico. Somente assim é possível um tratamento adequado. É impensável que se aplique o método históricocrítico à Bíblia, mas não ao Alcorão. Com isso não estaríamos favorecendo nem a um nem ao outro lado. Achei necessário que os temas teológicos (capítulo III) fossem precedidos por questões como elementos biográficos acerca de Maomé e de Jesus, o reconhecimento mútuo entre cristianismo e islamismo ao longo da história (visão geral), o surgimento da Bíblia e do Alcorão etc. (capítulos I e II). Com isso, ao leitor não informado é fornecida uma introdução que facilita o conjunto da leitura. Os temas teológicos surgiram quase espontaneamente da comparação entre Bíblia e Alcorão, o que é um indício da proximidade entre estes dois livros. 41 I -Antecedentes Históricos JUDEUS E CRISTÃOS NA ARÁBIA ANTES DE MAOMÉ As três religiões mundiais, judaísmo, cristianismo e islamismo, têm suas raízes no Oriente Próximo. Essa região demonstrou ser o solo alimentador no qual essas culturas, grandes e decisivas para o mundo, puderam surgir. Contudo, é preciso diferenciar. Séculos separam o cristianismo do surgimento da religião de Israel. Igualmente, séculos separam o cristianismo do surgimento do islamismo. Enquanto o judaísmo e o cristianismo têm sua pátria na Palestina, o islamismo se desenvolve na Arábia, mais especificamente na Arábia deserta. Na época do helenismo e do império romano ocorreu uma forte influência helenístico-romana sobre a Palestina, bem como sobre o cristianismo nascente; já não aconteceu o mesmo com a região de surgimento do islamismo. Os romanos não colonizaram a Arábia. O que teria sido muito útil para uma possível expansão do cristianismo naquela região. A Arábia deserta era um território extenso, em que não eram decisivos os aspectos territoriais mas sim as relações pessoais cambiantes e passageiras. Não havia ligação com a terra. A solidariedade mantinha-se pelo parentesco de sangue. A vingança do sangue era lei. Tribos beduínas nômades mantinham sua ordem nômade mesmo quando se assentavam em cidades-oásis. O território era cortado por rotas de caravanas, das quais a mais conhecida era a rota do incenso. Ela conduzia do mar Arábico no sul (Hadramaut) até o mar Mediterrâneo (Gaza). 42 No sul, desenvolveu-se uma notável cultura, como o atestam as numerosas inscrições lá encontradas. As tribos dos mineus e dos sabeus dominavam o território. As religiões principais eram estelares. Lua, sol e estrela vespertina eram entendidas como uma tríade. Havia ainda deuses de menor importância, principalmente deuses lares e de família. A eles eram oferecidos sacrifícios de animais, de incenso, de fogo e de libações. Em algumas regiões tinha papel preponderante o culto de Alá, mais tarde proclamado o Deus único por Maomé. Em Meca era designado como Hubal. Seu santuário era a Caaba com a pedra preta. Já na época pré-islâmica ocorria a peregrinação anual, em que se realizava a procissão em torno à Caaba. Também a veneração de pedras e árvores tinha a sua importância. A nós interessa a penetração de judeus e cristãos nesse território. Está comprovado que judeus já haviam se estabelecido lá bem antes do surgimento do cristianismo. Por suas atividades comerciais, devem ter chegado através das rotas comercias. Havia cristãos no sul da Arábia ao menos desde o século V, pois o já citado rei himiarita Dhu Nuwas, que se converteu ao judaísmo, desencadeou uma perseguição aos cristãos. Ela atingiu principalmente a comunidade de Nagran, na fronteira com o atual norte do lêmen. Deve ter-se tratado de uma notável comunidade. Na perseguição, ocorrida no ano 523, muitos cristãos foram vitimados, entre eles um certo Aretas, mais tarde venerado como mártir. Entre 753 e 775 a catedral foi destruída. Os espólios cristãos foram transferidos para as grandes mesquitas, onde 43 ainda hoje podem ser vistos. Bispos cristãos de Sanaa ainda serão citados era islâmica adentro. No ano de 911 ainda se tem notícia de cristãos em Sanaa como “protegidos”. Dos cristãos no sul da Arábia interessa-nos saber se entre eles havia também judeo-cristãos. Essa questão diz respeito à possibilidade de identificar o tipo de cristianismo com que Maomé teve contato. No Alcorão sempre se designa resumidamente os judeus e os cristãos como “as pessoas da Escritura. Essa ligação ao menos permite supor que Maomé de alguma forma via os judeus e os cristãos como um conjunto só, o que levanta a possibilidade de que ele tivesse conhecido judeocristãos. Uma antiga e revolucionária visão dos fatos é defendida por G. Lüling. Ele parte do pressuposto de que toda a península arábica já estava basicamente cristianizada na época da atividade do profeta Maomé, inclusive Meca e Medina. Esse cristianismo, que, segundo Lüling, possuía uma literatura árabe antiga própria, era composto de “cristãos trinitários” na sequência da tradição judeo-cristã . Se compreendo bem Lüling, ele imagina o seguinte desenvolvimento: esses judeo-cristãos ainda não conheciam nenhum dogma cristológico. Para eles Jesus era simplesmente o filho de Maria. Somente por influência da Igreja grega eles também adotaram sua cristologia e seus dogmas cristológicos. Jesus, que até então apenas haviam honrado como filho de Maria, agora o confessavam como Filho de Deus, reconhecendo a trindade divina. Isso fez entrar em cena Maomé, a cujos olhos eles deviam ser vistos como triteístas, isto é, eles haviam — na linguagem de Maomé — acrescentado algo ao único Deus. Nessa visão dos fatos, a 44 atividade de Maomé surge preponderantemente como rebelião contra os cristãos. É conhecido e faz sentido que os judeocristãos não vissem Jesus como filho de Deus. Mais tarde será demonstrado que Maomé havia compreendido grosseiramente a fé trinitária cristã. Por fim, é preciso chamar a atenção para a palavra alhanif, que designa uma pessoa piedosa em época pré-islâmica, que a partir de sua interioridade original reconheceu o único Deus. Nesse sentido Abraão pode ser chamado de hanif na Sura 3,67: “Abraão não era nem judeu, nem cristão. Ele era um hanif um devoto de Deus, e não um daqueles que acrescentam algo a Deus” (cf 2,135). Haveria hanifs sob influência cristã no ambiente de Maomé? MAOMÉ E JESUS — ASPECTOS BIOGRÁFICOS Maomé e Jesus fundaram o islamismo e o cristianismo. Eles foram não só fundadores de religião, mas também personalidades únicas da história universal, marcando a caminhada da humanidade até os dias atuais. Nesta seção tratar-se-á de reunir os dados mais importantes de suas vidas, o que será feito sob o aspecto histórico. O aspecto teológico está reservado para o terceiro capítulo (“Temas teológicos”). Aqui se deve chamar a atenção principalmente para a seção 5 daquele capítulo (“Jesus-Cristologia”), que trata do significado e da grandeza teológica de Jesus de Nazaré, observado também justamente do ponto de vista do Alcorão. Um espaço maior será dedicado a Maomé, pelo fato de às leitoras e aos leitores este ser menos familiar do que o próprio Jesus. 45 Iniciemos pela cronologia. Jesus (4 a.C. – 30 d.C.) e Maomé (570 – 632). O primeiro viveu 35 anos e o segundo 62 anos. O ano 622 é o ponto de partida para uma nova contagem do tempo no calendário islâmico. O ano 622 depois de Cristo corresponde ao ano 1 da cronologia islâmica. Jesus era tido como galileu (Mt 26,69), como nazareno, como homem de Nazaré (Mc 1,24 par.; 10,47; 14,67; 16,6; Lc 24,19). Naquele vilarejo, localizado nessa região aprazível e fértil, mas também completamente marginalizado, Jesus passou muitos anos de sua vida. Sabemos o nome de seus pais, Maria e José, bem como o nome de seus irmãos, mas não o nome de suas irmãs (Mc 6,3). Tal como seu pai, exerceu a profissão de artesão em esquadrias de construção; tradicionalmente, marceneio. A ocasião exterior para o início de sua atividade e sua pregação pública foi a pregação penitencial de João Batista. Jesus dirigiu-se a ele, junto ao Jordão, no sul da Judéia, e por ele deixou-se batizar (Mc 1,9). A narrativa da abertura do céu, da descida do Espírito e da voz celestial que o proclama filho de Deus possivelmente conserva reminiscências de uma experiência de vocação (1,10s par.). Maomé nasceu em Meca, crescendo lá como órfão, já que seus pais, Abdallah e Amina, morreram muito cedo. A Sura 93,6-11 poderia referir-se à sua infância pobre: “Não encontroute ele órfão e te adotou, não encontrou-te ele errante e te indicou a direção, não encontrou-te ele pobre e te fez rico? Portanto, não oprimas os órfãos *...+” (cf 4,2). Ele conseguiu emprego com uma rica comerciante e viúva, de nome Hadiga, com a qual mais tarde se casou e teve sete filhos, três meninos e 46 quatro meninas. Somente as filhas sobreviveram. A mais importante é Fátima, a filha mais jovem, cujo filho Ali, portanto neto de Maomé, tornou-se a causa da discussão sobre a descendência legal (surgimento dos xiitas). A virada na vida de Maomé aconteceu com sua experiência vocacional. Ele gostava de retirar-se para as adjacências montanhosas de Meca, possivelmente para dedicarse à oração e aos exercícios ascéticos. Em diversas passagens do Alcorão há referências à sua experiência vocacional. Maomé recebeu o Alcorão: “Nós o *o Alcotão] enviamos na noite da decisão” (97,1). O anjo Gabriel, “um nobre enviado”. “Ele *Maomé+ viu-o com certeza claramente no horizonte” (81,19-23; cf. 53,1-18; 74,1-5). Maomé anuncia sua mensagem em Meca. O conteúdo dela é a proximidade do juízo: “Aproximou-se a hora [do juízo] e a lua se partiu ao meio” (54,1); “O juízo final está próximo” (53,57). Ao lado disso e com a mesma importância, colocando sempre mais em destaque, anuncia que há um único Deus. Nessa fase ele se autodenomina sentinela (2,119; 11,2; 46,9 entre outros). Os primeiros a acolher sua mensagem foram sua mulher Hadiga, Abu Bakr, que após sua morte se tornaria o primeiro califa, e seu filho adotivo Zaid Ibn Harita. Maomé provavelmente desde cedo se dá conta da dimensão política do anúncio monoteísta. Ela lhe dá a oportunidade de unificar as tribos árabes divididas. Mas, justamente por causa de sua pregação monoteísta, encontra forte oposição em Meca. É interessante que também o movimento de Jesus teve início como renovação escatológica. Marcos 1,15 resume adequadamente a pregação de Jesus: “Cumpriu-se o tempo e 47 próximo está o Reino de Deus. Convertei-vos e crede no evangelho!”. Jesus com sua mensagem se concentra na Galiléia (Mt 4,23), na região junto ao lago de Genesaré, no triângulo formado pelas cidades de Cafarnaum, Betsaida e Corozaim (cf Mt 11,21-24). Naquele recanto do mundo surgiu o cristianismo! Embora a pregação de Maomé, em sua tensão da expectativa próxima do juízo, tenha pontos de contato com a pregação de Jesus — Maomé provavelmente deixou-se inspirar —, esta tem outra orientação. O reino ou a soberania de Deus, que se encontra no centro da pregação de Jesus, não se orienta somente para o juízo, pois o Reino de Deus não é apenas uma grandeza futura, mas, com Jesus, com sua prática (curas e milagres) e com sua vida, está já presente e eficaz entre as pessoas. Por fim, ele é idêntico com Deus, que com Jesus se tornou experienciável para as pessoas. Sua Palavra quer transformar as pessoas (Sermão da Montanha). Jesus reúne em torno de si discípulos que o seguem, e que ele inicia mais intensivamente em sua doutrina, devendo eles levar adiante a sua obra (apóstolos). Para dedicar-se exclusivamente à sua missão, Jesus permaneceu solteiro, renunciando ao matrimônio e à família. A crescente oposição em Meca, a morte de seu benfeitor Abu Talib, que era chefe de sua tribo (Hasim), bem como os possíveis acenos positivos provenientes de Medina, levaram Maomé a abandonar Meca, mudando-se para Medina. É a famosa Hidjra (Hégira) do ano 622, da qual teriam participado cerca de setenta pessoas. Talvez não se devesse falar de fuga. Nesta cidade ele encontrou ampla acolhida e aceitação de sua pregação. Conseguiu estabelecer uma bem organizada 48 comunidade. Lá teve a ocasião de dedicar-se à realização de seu plano, que consistia em reunir na fé todas as tribos árabes, com o auxílio do Alcorão e com a confissão em um único e comum Deus. A dimensão política do monoteísmo aparece claramente. Maomé desenvolve-se como um genial homem de Estado. Agora ele não mais se autodenomina preferencialmente sentinela, mas enviado de Deus (4,80; 2,129; 61,6). Em Medina havia uma antiga comunidade judaica. Com poucas exceções, os judeus não aceitaram Maomé. As discussões com os judeus, que se encontram no Alcorão, em grande parte devem ser localizadas em Medina. Houve até enfrentamentos, com resultados desastrosos para os judeus. Duas tribos judaicas — os judeus de Medina eram organizados em tribos — foram expatriadas. Os homens da tribo Banu Quaraiza, que se mostraram especialmente obstinados, foram mortos, enquanto as mulheres e crianças foram aprisionadas. Gostaríamos de supor que as discussões com os cristãos que se encontram no Alcorão também teriam uma localização concreta. As ocilações no juízo do Alcorão a respeito dos cristãos permitem imaginar uma vivaz controvérsia. Como lugar dos acontecimentos, a primeira hipótese é Medina (depois de Meca?). Os litigantes, ao menos em boa parte, eram judeocristãos. A essas questões voltaremos mais adiante. A experiência ensinou a Maomé que com meios pacíficos não seria possível reunir as tribos árabes na fé, e, antes de mais nada, que seria impossível chamar à razão os teimosos habitantes de Meca. Ele organizou diversas campanhas militares, precedidas por assaltos a caravanas. E obteve sucesso. As mais importantes batalhas foram o combate de Badr (624), de Uhud 49 (625) e a assim chamada Guerra do Túmulo (627), nos arredores de Medina. No combate de Uhud, Maomé foi ferido por um golpe de espada. No Alcorão há muitas e em parte bem concretas referências a essas campanhas militares. Para nós, porém, são mais importantes as manifestações que justificam tais empreendimentos bélicos: “É dada permissão *para a luta+ àqueles que são combatidos, pois a eles foi feita injustiça — e Deus certamente tem poder para protegê-los —, àqueles que injustamente foram expulsos de suas casas, apenas porque diziam: 'O nosso Senhor é Deus'“ (22,39s). “Lutai contra eles *os infiéis], até que não haja mais tentação, até que apenas Deus seja adorado” (8,39). Na guerra, Maomé conta com a proteção dos anjos (3,124; 8,9). A recuperação de Meca fecha com chave de ouro esses seus empreendimentos. Ela ocorreu após negociações em Hudaibiya (cf 48,18s.). Com isso a Caaba estava assegurada para o islamismo. Maomé ordenou que se mudasse a direção da oração. Se até agora — como os judeus — se orava em direção a Jerusalém, de agora em diante se deveria orar voltado para Meca. As operações bélicas, com o passar dos anos, haviam atingido dimensões pan-arábicas. Maomé batera-se brilhantemente. Há amplo consenso na pesquisa sobre a concepção de que o comportamento de Maomé se tornou exemplar para as gerações islâmicas futuras. Examinemos ainda o final que tiveram essas duas personalidades. Jesus, no final de sua atividade — relativamente curta —, dirige-se a Jerusalém, à metrópole judaica, supostamente para chamar neste lugar central o povo à decisão. 50 No círculo de seus discípulos celebra uma ceia de despedida, marcada pela certeza de sua morte. Ele é rejeitado. Prepara-selhe a cruz. A sentença pronunciada contra ele é política: rei dos judeus (Mc 15,26). A impressão exterior é de insucesso. Seu grito de morte parece confirmar seu fracasso. Mas isso depois será demonstrado não verdadeiro. A intervenção de Deus em sua ressurreição dos mortos deu início à Igreja. Maomé retorna a Meca, pouco antes de sua morte, em março de 632. É sua peregrinação de despedida. Ele toma posse definitivamente do santuário da Caaba e estabelece ordens para as peregrinações. Em junho de 632 ele morre em Medina, onde é sepultado. Algo deve ser dito da relação de Maomé com as mulheres, não para criticá-lo, mas porque estamos diante de um elemento árabe estranho ao cristão. No Alcorão repetidamente se fala de suas mulheres. Depois do matrimônio monogâmico com Hagira, após a Hidjra, ele assumiu o matrimônio com várias mulheres (poliginia). Enquanto ao homem muçulmano era permitido ter quatro mulheres, ao profeta, “à diferença dos fiéis”, eram permitidas bem mais, como confirma a Sura 33,50. R. Paret fala de treze mulheres, com as quais ele vivia em comunidade matrimonial. Ele podia repudiar mulheres e tomar outras. Ele é acusado de ter se apropriado da mulher de seu filho adotivo. Na Sura 66,3-5, noticia-se uma briga ocorrida no harém. Quanto a isso apenas podemos dizer que esse estilo de vida corresponde à vida nômade das antigas tribos árabes. Havia nisso certamente também um aspecto social e no caso de Maomé também um aspecto político (relações de parentesco com príncipes de tribos). 51 RECONHECIMENTO HISTÓRICO MÚTUO Trata-se aqui da questão de como o cristianismo e o islamismo se reconheceram mutuamente, como se avaliaram, como se relacionaram. Trata-se naturalmente de uma questão cuja resposta exige o espaço de vários volumes. Aqui podemos apenas observar os inícios desse relacionamento, chamando a atenção para alguns pontos dessa coexistência. Se nos ocupamos daquilo que une e daquilo que separa Bíblia e Alcorão, queremos ao menos aludir a essa muito longa história. As leitoras e os leitores devem ter presente que a Bíblia e o Alcorão representam religiões mundiais que ao longo de sua história pouco fizeram para uma compreensão mútua. O confronto era determinante. Mantemos nossa atenção voltada para o cristianismo e para o islamismo. Em Medina, Maomé encontrou o cristianismo, e supomos que também tenha encontrado judeo-cristãos. A eles, bem como aos judeus, anunciou sua mensagem, mas sem resultado animador. Ele aprendeu os elementos fundamentais da mensagem cristã, à qual sobrepôs a sua própria. Ele e seus sucessores sentiam-se impelidos a levar sua mensagem para dentro do mundo cristão. O islamismo começou a espalhar-se nas regiões do sul e do leste do Mediterrâneo. O primeiro teólogo cristão a nós acessível a se ocupar do islamismo foi João de Damasco. Descendente da ilustre família melquita Mansur, seu pai, sob o califa Muawija I (660-680), ocupou o cargo de ministro de Finanças. Devido à política anticristã de um califa sucessor, João retirou-se para o mosteiro de Mar Saba, nas cercanias de Jerusalém. Entre seus numerosos 52 escritos, encontra-se um livro Sobre as heresias, cujo último capítulo trata do islamismo (haer 100), por ele denominada “religião dos ismaelitas”. Interessante é que João cite a “religião dos ismaelitas” como a última das heresias cristãs. Ele a coloca ao lado do arianismo e informa que Maomé (por ele denominado Mamed) mantinha contato com um monge ariano. O arianismo, assim como Maomé, nega que Jesus seja filho de Deus. João conhece bem o Alcorão. Ele atesta que Maomé tem alguns conhecimentos do Antigo e do Novo Testamento, descrevendo acertadamente a concepção que Maomé tem de Jesus, que ele tenta corrigir. Ele critica duramente a permissão da poligamia entre os ismaelitas, bem como a vida conjugal de Maomé, citando o caso da mulher de seu filho adotivo Zaid, como também o culto da Caaba. Ele sabe que Maomé afirma ter recebido o Alcorão diretamente do céu. Surgem pela primeira vez polêmicas pejorativas que serão repetidas ao longo dos séculos: Maomé, um pseudoprofeta; o islamismo, precursor do anticristo; os conteúdos ridículos do Alcorão. Remonta também a uma época muito primitiva a Disputa de um cristão com os sarracenos. Hoje ela é atribuída indiretamente a João de Damasco e se considera que sejam anotações de suas conferências feitas por um discípulo, chamado Teodoro Abu Qurra. A disputa é de ordem especulativa, filosófica, citando temas que também mais tarde serão significativos: Cristo é Deus? Criado ou não-criado? João Batista é maior do que ele, já que o batizou? O Alcorão nega o livre-arbítrio da pessoa? etc. Um problema especial representava para o lado cristão o fato de o islamismo, como 53 religião pós-cristã, reivindicar ser a religião definitiva. Inquietante para o Ocidente foi a enorme expansão dos árabes num curto espaço de tempo. Eles não só conseguiram apoderar-se do Oriente Próximo, mas também do norte da África e da Espanha. Somente em Tours foram detidos por Carlos Martelo, em 732. Nos territórios dominados, os cristãos (e judeus) tinham permissão de continuar a prática de sua religião. Eles eram considerados “protegidos” da saria — o direito islâmico garantia tolerância aos “possuidores da Escritura”, como o Alcorão os denomina. Deve-se acentuar que a guerra feita “por causa da fé” não tinha por finalidade a conversão forçada ao islamismo: sua finalidade original era a ampliação do espaço de domínio islâmico. Como consequência, porém, os “possuidores da Escritura” constituíam cidadãos de segunda classe, aos quais era vetado — com honrosas exceções — o acesso a cargos mais elevados. Era proibida aos cristãos a representação pública, bem como a atividade missionária com aos muçulmanos. Em caso inverso, onde muçulmanos caíam sob o domínio cristão, o que ocorreu desde a retomada da Sicília no século XI e da reconquista na Espanha, vigoravam medidas severas semelhantes, às vezes mais duras ainda. As cruzadas tiveram como resultado a deterioração ainda maior do relacionamento. Em países islâmicos, os cristãos acabavam no isolamento. A questão sobre a possibilidade de considerar o islamismo uma heresia cristã continuava a ser significativa, mas apenas no âmbito cristão. Hereges ou pagãos, essa era a alternativa. As opiniões se dividiam. As Igrejas localizadas em território islâmico ou em sua proximidade, assim como os 54 jacobitas e os nestorianos, preferiam a qualificação de heresia, enquanto os demais viam os muçulmanos como pagãos (também Tomás de Aquino). O fato de serem monoteístas era levado em conta apenas ocasionalmente. Acrescenta-se a isso a circunstância de que o conhecimento do islamismo e do Alcorão era muito reduzido. Mesmo assim, a discussão teológica não decaiu completamente. Da parte cristã podem-se citar, entre outros, Yahya ibn 'Adi, um teólogo jacobita, Petrus Venerabilis, Raimundus Lullus e, principalmente, Nicolau de Cusa. Do lado muçulmano, al-Gahiz, Ibn Hazm, al-Gazzali. A discussão era feita com argumentos racionais, e não tanto com base na Escritura — da Bíblia e do Alcorão. Surgiu inclusive a ideia de um concílio inter-religioso, mas que sobreviveu por pouco tempo. Pode-se ler a respeito na carta de Nicolau de Cusa a João de Segobia. Nicolau é o teólogo que no século XV, mais do que qualquer outro, antes ou depois, se empenhou pela “paz da fé”. Em seu homônimo escrito (De pace fidei) ele parte da ideia da unidade do gênero humano, fundamentada na criação, conduzindo ao final todos para a unidade. A concórdia das religiões (concórdia religionum) será escatologicamente restabelecida por Deus, que fará os povos afluírem a Jerusalém, onde receberão a única fé e a paz duradoura. O escrito é todo permeado de diálogos fictícios entre Cristo (Verbum), Pedro e Paulo de um lado, e representantes dos diversos povos e religiões, do outro. Deus enviou aos povos diversos profetas e mestres. Contudo, surgiram diferenças de opinião não desprezáveis. Pelo fato de haver um só Deus, deve haver uma só religião (religio una in rituum varietate). Argumenta-se baseado na fé cristã, tentando mostrar que as verdades cristãs são 55 adequadas. Nas outras culturas há pontos de partida que ver a adequação dessas verdades. No centro do interesse estão os judeus, os árabes (muçulmanos) e os cristãos, que receberam suas instruções por meio de Moisés, Mahmet (Muhammad) e Jesus. A favor da concórdia, Nicolau argumenta com base na consciência, citando a regra de ouro (“o que não queres que te façam, também não o faças a nenhum outro”), designando — no diálogo fictício é Paulo que fala — a caridade como cumprimento da Lei. A nós interessa o diálogo com o árabe (muçulmano). Ele mostra que Nicolau parece não conhecer o Alcorão, pelo fato de não se ocupar dele. Ele argumenta contra o politeísmo, que justamente também é rejeitado com veemência no Alcorão. Seja como for, Nicolau de Cusa merece toda a nossa atenção ao seu diálogo inter-religioso — mesmo que seja fictício. Embora os muçulmanos tivessem granjeado admiração por suas atividades científicas e artísticas, a relação entre cristãos e muçulmanos descambara em crescente animosidade, por causa da agressão bélica dos turcos osmanlis. Acrescente-se a isso que então o islamismo se deparava com um cristianismo dividido também no Ocidente. As controvérsias, que sempre assumiam caráter polêmico pejorativo — vejam-se os escritos de Lutero acerca dos turcos —, permitem reconhecer frentes variadas. A acusação de anti-Cristo atingia igualmente os turcos e o papa. Com o surgimento da ciência denominada orientalística, alcançou-se maior objetividade no trato com o islamismo. Adquiriram-se conhecimentos mais sólidos do Alcorão. É mérito dos esforços científicos terem proporcionado o início da 56 aproximação das religiões. O interesse teológico, porém, bem como o interesse pelo diálogo cristão-islâmico, surgiu apenas no século XX. Esse desenvolvimento atingiu certo ponto de chegada provisório no Concílio Vaticano II, mais propriamente com o documento sobre a relação da Igreja com as religiões não-cristãs (Nostra aetate). Nele as afirmações sobre o islamismo estão incluídas nas afirmações sobre as demais religiões não-cristãs. Mesmo assim pode-se dizer que, apesar de sua relativa brevidade, este documento representa um progresso e provavelmente também uma nova visão da questão. O documento parte da unidade do gênero humano na criação e de sua esperada reunião escatológica na cidade santa de Jerusalém (n. 1). Algo semelhante havia dito Nicolau de Cusa em seu escrito De pace fidei. O concílio apenas caracteriza a atenção mútua como extremamente necessária em nosso tempo: “Em nossa época, quando o gênero humano dia a dia se une mais estreitamente e se ampliam as relações entre os diversos povos, a Igreja considera mais atentamente qual deve ser a atitude para com as religiões não-cristãs. Aos muçulmanos é dedicado o terceiro parágrafo do documento. A frase mais importante é justamente a introdutória, que fala do culto a Deus: “Quanto aos muçulmanos, a Igreja os vê igualmente com carinho, porque adoram a um único Deus, vivo e subsistente, misericordioso e onipotente. Criador do céu e da terra, que falou aos homens. A seus ocultos decretos esforçam-se por se submeter de toda a alma, como a Deus se submeteu Abraão, a quem a crença muçulmana se refere com agrado”. É reconhecida a crença dos 57 muçulmanos no Deus único que é criador Predicados divinos do Alcorão são introduzidos: subsistente, misericordioso, onipotente. Sua piedade é reconhecida. A referência a Abraão tem por função aludir ao que eles têm em comum com o cristianismo e com o judaísmo, do que o documento falará no n. 4. Como conteúdos da piedade muçulmana são citados Jesus — embora não reconheçam sua divindade, mas o venerem como profeta —, sua mãe, a virgem Maria — que por vezes invocam piedosamente —, e como conteúdo de sua fé citam-se ainda a esperança do juízo divino e a ressurreição dos mortos; por fim, como culto prático a Deus, citam-se a oração, a esmola e o jejum. Chama a atenção que no texto não se citem nem Maomé, nem o Alcorão. Com isso, a formulação a respeito de Deus que “falou aos homens” (homines allocutum) permanece singularmente no ar. A clareza do texto tornou-se vítima da concisão. A concisão deve ter sido proposital. A intenção era manter-se cortês. De qualquer modo, não se queria mexer na questão de que a Bíblia e Jesus Cristo representavam a definitiva revelação de Deus. Para o cristão é impossível aceitar que Maomé seja o profeta definitivo, o selo dos profetas. É ele um profeta? O Alcorão participa da revelação? G. C. Anawati, que teve acesso ao desenrolar do Concílio e dos debates, informa que em uma primeira versão do texto, em outro lugar, se falava mais positivamente dos muçulmanos, ou seja: “Além do mais, eles adoram a Deus, principalmente através da oração, da esmola e do jejum. Eles se esforçam também, na obediência a Deus, por conduzir uma vida moral 58 como indivíduos, nas famílias e na sociedade”. Este texto foi rejeitado por numerosos bispos africanos, que viviam em contexto muçulmano. A poliginia (casamento com várias mulheres) e o abandono da mulher — permitido no islamismo — de qualquer modo não poderiam aparecer como admitidos. O texto final do documento, que se refere aos muçulmanos, recorda as “dissensões e inimizades” surgidas no decorrer dos séculos, exortando que seja esquecido o que houve no passado, convocando a um esforço para uma compreensão mútua. Exorta principalmente a que se “defendam e ampliem a justiça social, os valores morais, bem como a paz e a liberdade”. Esses imperativos mereciam, de fato, ser colocados atentamente em prática. G. C. Anawati recorda as dificuldades e os problemas ainda persistentes, mas que deveriam ser superados: a memória ainda não apagada das cruzadas e dos tempos coloniais do lado muçulmano. Deve-se acrescentar, em vista da experiência após o Vaticano II, o medo de muitos cristãos diante do crescimento dos militantes fundamentalistas, contra o que a grande maioria muçulmana pacífica deveria manifestar-se publicamente com muito mais firmeza. Nós, como cristãos, nos esforçamos pela liberalidade e pela tolerância. Assim em Roma, centro da Igreja católica mundial, há uma mesquita. Para Meca ou Medina, o inverso seria ainda impensável. É terminantemente proibido a nãomuçulmanos visitar aquelas cidades. Este livro tem por finalidade contribuir para o fomento da compreensão mútua. 59 II - Comparação Geral Judaísmo, cristianismo e islamismo — esta é a sequência cronológica de seu surgimento — reportam-se a Escrituras sagradas. Tais Escrituras têm a aceitação de sua comunidade de fé e fundamentam sua identidade. Contudo, a posse de tais Escrituras e a relação com elas certamente não constitui o traço característico dessas religiões. Quase todas as religiões podem comprovar a posse de escrituras próprias. Judaísmo, cristianismo e islamismo, porém, se encontram nas Escrituras com às quais se reportam. Base e ponto de partida é a Bíblia do Antigo Testamento, que está radicada no judaísmo . O cristianismo apresentou o Novo Testamento, mas reclamou para si igualmente o Antigo Testamento. Sem isso o Novo Testamento seria incompreensível. Em cada página do Novo Testamento é citado o Antigo ou aparecem referências e reminiscências. Também o Alcorão sempre torna a referir-se ao Antigo Testamento. Ou, dizendo mais exatamente: ele se ocupa de histórias e das tradições do Antigo Testamento, reconhece-as e as utiliza, tomando-as como medida. Supõe-se geralmente que Maomé não tivesse lido o Antigo Testamento, mas que por outros caminhos teria tido possibilidade de aprender suas histórias e tradições. Tornaremos a tratar desta questão. Para o Alcorão, contudo, deve-se afirmar que também ele, sem o Antigo Testamento, seria incompreensível. Igualmente o Novo Testamento, ou mais exatamente as tradições sobre Jesus, aparece no Alcorão. Elas nos interessarão particularmente. Contudo, são bem menos numerosas do que as tradições do Antigo Testamento. A visão geral daí resultante é a 60 de um entrelaçamento não só do cristianismo, mas também do islamismo com o judaísmo. Ao lado disso, há também uma relação do cristianismo com o islamismo, que se move sobre dois trilhos: um consta da sobrevivência de tradições sobre Jesus no Alcorão, o outro, bem mais marcante, consta da comum relação com o Antigo Testamento. No modo de relacionar-se com o Antigo Testamento surgem, contudo, diferenças bem específicas. SURGIMENTO DA BÍBLIA E DO ALCORÃO A Bíblia e o Alcorão surgiram de modo bastante diverso. Comecemos pela Bíblia. Neste contexto, interessa apenas recordar os dados mais importantes. O processo de surgimento do Antigo Testamento estende-se — em números redondos — pelo espaço de mais de mil anos. Nesse processo ocorreu o enriquecimento com sucessivos novos textos e livros. Uma lista canônica para todas as comunidades judaicas foi estabelecida somente a partir do século II d.C. Quanto aos escritos do Novo Testamento também nos interessa, primordialmente, ver que surgiram da proclamação oral, da pregação de Jesus e de seus apóstolos. A pregação de Jesus foi integrada na pregação pós-pascal do cristianismo, passando daí para os evangelhos. É claro que durante esse caminho ela foi interpretada, antes de mais nada, no esforço de aplicá-la a situações concretas da comunidade, tornando-a frutuosa para esta. As cartas dos apóstolos, especialmente as de Paulo, têm seu lugar vivencial nas comunidades, com a intenção de, em situações específicas, proporcionar linhas de orientação e 61 apoio. Também elas são precedidas de pregação oral, finalmente o cânon do Novo Testamento foi concluído pelo final do século IV. Esse processo leva-nos a constatar que a Bíblia do Novo Testamento deve ser vista como expressão da fé da Igreja. Ela é a autodefinição daquilo que a Igreja assumiu em sua fé. Bem diverso foi o surgimento do Alcorão. Ele contém exclusivamente ditos de Maomé. Maomé pronunciou esses ditos aproximadamente do seu quadragésimo ano de vida até sua morte, isto é, entre os anos 610 e 632. Isso perfaz 23 anos. Ditos de discípulos do profeta, comparáveis aos documentos do apóstolo Paulo no Novo Testamento, não se encontram no Alcorão. Maomé estava imbuído da ideia de dar a seu povo um livro sagrado em sua própria língua, o árabe, livro que até então esse povo não possuía. “Assim te inspiramos um Alcorão árabe, para que advirtas a mãe das cidades [Meca] e o povo que habita em suas cercanias” (Sura 42,7; cf. 20,113; 12,2, entre outras). Ele pressupôs desde o início que seus ditos seriam apresentados por escrito. Eles são de diversos gêneros: abrangem textos de diversos tipos, desde a conclamação escatológica, passando por tratados, até o código legal e a coleção de sermões O próprio profeta deve ter reunido trechos menores em unidades maiores, mais tarde realizando eventualmente correções. Enquanto ele estava vivo, a revelação estava em curso. Uma mudança expressiva ocorreu por ocasião de sua fuga de Meca para Medina. A grande disposição da população árabe de Medina em acolher a mensagem de Maomé, em contraste com a rejeição por parte da população de Meca, trouxe como resultado a diminuição do teor escatológico e a elevação a primeiro plano das instruções legais. 62 Comparando-se as coleções da Bíblia e do Alcorão, o que mais chama a atenção é a diferença de tempo. A coleção da Bíblia — Antigo e Novo Testamento — ocorreu durante séculos. A coleção do Alcorão já estava concluída 35 anos após a morte de Maomé. Isso certamente tem a ver, ao mesmo tempo, com o fato de o Alcorão ser posterior e, segundo a vontade de Maomé, ao fato de ocupar o lugar da Bíblia, mais exatamente: ele a pressupõe e passa a ocupar seu lugar Também não se deve menosprezar a influência político-religiosa. O lugar vivencial em que surge a Bíblia, são as comunidades anônimas, tanto judaicas como cristãs. VALORIZAÇÃO E AVALIAÇÃO Certa valorização da Bíblia e do Alcorão já é indicada pelos títulos. Já nos escritos do Antigo Testamento se fala dos “livros” (LXX Dn 9,2), do “livro sagrado” (2Mc 8,23) ou dos “livros sagrados” (1Mc 12,9). O conceito “os livros” ( é usado, no singular, o mais tardar a partir do século XII, para referir-se ao livro da Bíblia, abarcando o Antigo e o Novo Testamento. O conceito goza de certa exclusividade. Trata-se do livro, simplesmente. Bem semelhante é a situação acerca da palavra Alcorão, em árabe Kur’an. Ela designa aquilo que está indicado para ser recitado, lido em público, no sentido de que deve ser apresentado solenemente como palavra de Deus. A palavra (Al)corão remonta, por fim, à tarefa dada por Deus a Maomé de tornar conhecida a revelação. De importância teológica é a questão de como a palavra escrita (Bíblia, Alcorão) se relaciona com a revelação. Judaísmo, 63 cristianismo e islamismo são religiões de revelação. Elas pretendem tornar Deus conhecido. Elas concordam na concepção de que o Deus oculto se apresentou, em linguagem teológica, que Deus se revelou. É característico de cada religião, enfim, considerar-se criação de natureza divina. O judaísmo, o cristianismo e o islamismo também concordam entre si ao se referirem ao único Deus pessoal. Aqui não é o lugar para se tratar dos numerosos problemas ligados ao tema da revelação. Concentramo-nos na questão de como na Bíblia e no Alcorão é possível encontrar um acesso à revelação divina. Ver-se-á que há consideráveis diferenças entre a Bíblia e o Alcorão. Segundo a compreensão bíblica. Deus se revelou na história. As autocomunicações de Deus acontecem na história, especialmente na história de seu povo, Israel. Ele é testemunhado pela eleição desse povo, sua organização e condução por meio de Abraão, Moisés e dos profetas, a libertação da escravidão do Egito, a longa marcha pelo deserto, a tomada da terra e os inúmeros acontecimentos nos quais Deus se mostrou como socorro e salvador. Em seu agir histórico dá a conhecer as particularidades de seu amor solícito e de sua santidade. Em sua Lei ele dá a conhecer sua vontade e seus planos. Mas ele sempre decide livremente sobre o que e a quem quer manifestar sua revelação. Nos diversos estágios da tradição, diversos modos de compreensão ganham expressão. Contudo, trata-se unicamente da luta para encontrar as formulações adequadas para a realidade da revelação. Os próprios profetas apenas conseguem insinuar isso com imagens insatisfatórias, dizendo, por exemplo, que o Espírito de Deus ou 64 a mão de Deus sobreveio a eles (Ez 1,3), ou que a palavra de Deus vem a eles. “Oráculo do Senhor Javé dos exércitos” (Is 3,15), “Oráculo de Javé” (Jr 1,8), ou com formulações semelhantes, que podem, por vezes incontáveis, confirmar essa proximidade de Deus. Segundo a compreensão da Bíblia do Novo Testamento, o ápice e a conclusão da revelação ocorreram em Jesus Cristo. Sendo “o Filho”, ele mesmo é a revelação, não só em suas palavras, mas também na totalidade de sua vida, ação, morte e ressurreição pascal. Ele assume a Bíblia do Antigo Testamento e a leva à plenitude. Tudo isso é dito de forma clássica no início da Carta aos Hebreus: “Muitas vezes e de muitos modos Deus falou antigamente aos pais por meio dos profetas. Nos últimos dias falou a nós por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de tudo e pelo qual também criou os séculos” (1,1s). O objetivo da Escritura é despertar e fortalecer a fé em Deus, que se revelou em Israel e em Jesus Cristo. O ponto central para o objetivo do Antigo Testamento poderia ser Deuteronômio 6,4ss., o credo de Israel: “Ouve, Israel, Javé é nosso Deus, Javé o único. Amarás Javé, teu Deus, com todo o teu coração e com toda a tua alma e com toda a tua força”. Correspondente estabelecimento de objetivo no Novo Testamento pode ser encontrado em João 20,31, onde o autor resume suas intenções com as seguintes palavras: “para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que na fé tenhais vida em seu nome”. A centralização cristológica determina todo o Novo Testamento. Embora houvesse se impressionado com o fato de os judeus e os cristãos terem a sua escritura sagrada, sendo 65 inclusive por ela estimulado em diversos aspectos, Maomé determina bem diversamente a relação do Alcorão com a revelação. O Alcorão não é reflexo de uma precedente revelação de Deus na história, mas é ele próprio a revelação de Deus. O próprio Deus falou essas palavras a Maomé. Em sua experiência vocacional. Deus ao mesmo tempo colocou sobre o peito do profeta um livro, cuja mensagem ele mesmo precisaria primeiro compreender e interiorizar, para só então estar em condições de compartilhá-la e proclamá-la aos outros. O livro contém a mensagem de Deus, ela é imutável, foge aos acontecimentos históricos e está desligada de toda e qualquer transformação ou mudança deste mundo. A revelação não é mediada pela ação salvífica histórica de Deus. Ela está radicada no êxtase subjetivo do profeta provocado por Deus, em que lhe foi transmitido literalmente o conteúdo do livro. O islamismo é uma religião do livro. Maomé não está no centro, sua vida e sua atividade não têm efeito libertador e redentor, Maomé também não é um santo. Somente o Alcorão é norma e autoridade primordial. A eternidade e imutabilidade desse livro é reforçada pela ideia de que ele é preservado no céu, como se fosse uma grandeza preexistente. Em três passagens do Alcorão fala-se da “mãe do livro”, o que deve ser entendido como escrito primordial, como norma primordial: “Ele *o Alcorão árabe+ está consignado junto a nós no escrito primordial [literalmente: mãe] do livro, sublime e sábio” (Sura 43,4; cf 13,39; 3,7) Indicações acerca de uma existência supramundana do Alcorão encontramse também nas Suras 56,77-80; 85,21s. Maomé teve acesso à vontade celeste de Deus que ele, arrebatado no espírito, leu e recitou. Esse evento supranatural levou muitos teólogos 66 muçulmanos a afirmar que ele não sabia ler nem escrever, não podendo, por isso mesmo, corroborar mais ainda a origem divina do Alcorão. Essa visão da vontade celeste de Deus lhe foi intermediada, segundo 53,1-18; 81,19-23; 17,1, por um personagem vindo do céu, um anjo, “que possui força enérgica, que tem poder” (53,6s), um “nobre enviado, que tem poder e que está em lugar de honra junto ao Senhor do Trono” (81,19), numa visão noturna, em que ele foi arrebatado da mesquita santa para a mais longínqua mesquita (17,1). Essa viagem de mesquita a mesquita, segundo a interpretação mais corrente, conduz de Meca a Jerusalém. Na tradição posterior, o anjo que proporciona a visão a Maomé será identificado com Gabriel (Gibril). A Sura 53,1-18 possivelmente fala do fato de o profeta ter visto Deus. Essa deveria ser então a versão mais antiga de Maomé, que ele mais tarde corrigiu, dizendo que foi Gabriel que lhe trouxe este conhecimento. Essas visões que em 53,1-18 são descritas mais concretamente — “Ele estava em pé, no horizonte superior [...] Aproximou-se então e desceu [...] a dois arcos de distância, ou mais próximo ainda [...] junto à arvore de Sísifo ao final do caminho, no jardim do lar” — não ocupam lugar central. Elas terão fortalecido o profeta na consciência de sua missão. Os especialistas do Alcorão perguntavam também se era possível descobrir o início das revelações no Alcorão. Alguns consideram a Súra 96 a mais antiga, pelo fato de iniciar com a ordem “Recita (íqra) em nome do teu Senhor”, começando, portanto, com a palavra da qual deriva a palavra (Al)corão (= recitação). Maomé entendeu que recitar a vontade de Deus era 67 a sua tarefa. Também se recorre à Sura 74: “Tu que te recobriste, levanta-te e adverte!”. Maomé entende-se como sentinela diante do juízo final. O objetivo do Alcorão é a introdução do monoteísmo, que no âmbito árabe representava uma novidade. Sempre se volta a afirmar: “Não há outro Deus além dele” (3,2; cf 3,18.62; 4,87 etc). Essa afirmação tornar-se-á o núcleo do credo islâmico, em que Maomé também é incluído, como na sura 4,136: “Crede em Deus e em seu enviado e no livro que Ele enviou ao seu enviado, e no livro que Ele enviou anteriormente”. Nesse contexto Maomé aparece como mediador da revelação divina. Ele se entende como sentinela, enviado, profeta, enfim, como “selo dos profetas” (33,40). Com isso, afirma-se que a revelação mediada por ele é de fato a revelação definitiva. Junto ao monoteísmo está o anúncio do juízo final. Os seguidores de Maomé são aqueles que “crêem em Deus e no último dia” (9,44; cf 9,45.99; 12,37 etc). No credo monoteísta, o Alcorão concorda com a Bíblia. Desenvolve-se, contudo, contra a fé cristã em Jesus, uma polêmica que vai aos poucos se intensificando. Sobre O papel de Jesus e dos cristãos no Alcorão tornaremos a ocupar-nos mais detalhadamente. VISÕES GERAIS E SUBDIVISÕES Numa comparação formal entre Bíblia e Alcorão, em primeiro lugar aparece a considerável diferença quanto ao volume. Recordemos mais uma vez os dados fundamentais da Bíblia: a já citada divisão do Antigo Testamento em três partes 68 no judaísmo levou à formação da palavra artificial Tanak para a designação do cânon. Trata-se da junção das letras iniciais de Torah (lei), Nebiim (profetas) e ketubim (escritos). O Tanak contém — conforme a contagem — 39, 22 (Flávio Josefo) ou 24 (4Esd) livros. Flávio Josefo e 4 Esdras reúnem várias vezes mais de um livro num só, porque para eles os números 22 (número das letras do alfabeto hebraico) e 24 (duas vezes as doze tribos de Israel) eram importantes. Já o Novo Testamento foi ordenado em 27 escritos até o final do século IV. O Alcorão, em comparação com a Bíblia, é bem menos volumoso. Está dividido em Suras. A palavra certamente deriva de su'r (= seção, parte). O total é de 114 Suras. Não há controvérsia quanto à contagem. A Sura 1, denominada al-fatiha (a abertura), cai fora da ordem. Ela nada mais contém senão uma bênção: “Em nome de Deus, o piedoso e misericordioso. Glória a Deus, o Senhor dos mundos, o piedoso, o misericordioso, o dominador no dia do juízo” etc. Por isso às vezes se tem pensado que ela não deveria ser contada como Sura 1. Mas isso também não seria apropriado, por causa da numeração profundamente enraizada. Cada Sura inicia com a invocação do nome de Deus, a assim chama Basmala (literalmente: em nome de Deus). Ele só não ocorre na Sura 9, provavelmente porque lá o tema é a ira de Deus contra os inimigos do islamismo e os hipócritas. Poder-seia compará-la à Epístola aos Gálatas, a única epístola em que o apóstolo Paulo omite a usual ação de graças no início — por causa do péssimo estado da comunidade (cf. Gl 1,6 com Rm 1,8; ICor 1,4 etc). As Suras são de proporções muito diferenciadas. Para 69 facilitar o manejo, elas foram subdivididas em versículos (ayat). Manuscritos muito antigos ainda não apresentam essa subdivisão. Com o passar do tempo, diversas subdivisões estavam em uso. Atualmente impôs-se a subdivisão da edição oficial egípcia. Durante longo tempo circulava a subdivisão da edição Flügel, principalmente na literatura ocidental. Nós, naturalmente, nos baseamos na subdivisão oficial. Para se ter uma ideia: a mais longa Sura é a segunda, com 286 versículos, enquanto as Suras menores têm apenas três versículos (103, 108, 110, 112). Pode-se ter uma ideia concreta considerando que a Epístola aos Romanos do apóstolo Paulo contém 433 versículos; assim, a Sura 2 equivale a mais da metade da Epístola aos Romanos. Grosso modo, o Alcorão e o Novo Testamento devem mais ou menos equivaler-se em volume. Pode parecer-nos estranho que as Suras, além de sua numeração, ainda tenham nomes: A Vaca, O Clã de Imrã, As Mulheres, A Mesa, O Gado etc. Os nomes serviam de apoio aos recitadores. Via de regra o nome tem alguma relação com a Sura. O Padre da Igreja João Damasceno ( 750) até cita alguns nomes de Suras. Logo, já deviam estar em uso naquela época. Para nós interessa especialmente o fato de existirem Suras que têm em seu título nomes de personagens bíblicos: Sura 10: Yunus (Jonas); 12: Yusuf (José); 14: Ibrahim (Abraão); 19: Maryam (Maria, mãe de Jesus); 71: Nuh (Noé). Até hoje não há explicação convincente para as — assim chamadas pelos cientistas islâmicos ocidentais — “letras misteriosas”. Os sábios islâmicos as denominam “as letras separadas” ou “as aberturas das Suras”, ou outros nomes semelhantes. Na verdade, trata-se somente de 29 Suras em cujo 70 início essas letras ocorrem. As letras devem ser lidas isoladamente. São no máximo 15 letras: Ha Mim Ayn Sin Qaf (Sura 42), o número mínimo é de 3: Sad (Sura 38), Qaf (50), Nun (68). Há para isso uma ampla literatura e numerosas tentativas de explicação. Elas são vistas como abreviação de um nome divino, como abreviaturas que eram importantes para a redação final, ou também se atribui a elas um valor simbólico ou um significado que ninguém conhece a não ser Deus. Também não se pode identificar com certeza um sistema de ordenação das Suras dentro do Alcorão. Foi muito divulgada a informação de que simplesmente se tomou por princípio a extensão de cada Sura. As mais longas estão no início, enquanto as mais curtas no final. Aceitando-se isso, não é preciso medir com a régua. Uma ordem cronológica das Suras seria muito importante. Normativos são antes de mais nada aspectos de conteúdo. Para o período primitivo é indicativa a expectativa imediata do juízo, como pode ser encontrada em algumas Suras mais breves no final do Alcorão, como por exemplo Sura 113,1s: “Procuro refúgio no Senhor no crepúsculo matinal antes da desgraça *...+”. Para o período tardio, aduzem-se textos que pretendem ordenar a vida comunitária. A determinação de uma ordem cronológica também é difícil pelo fato de muitas Suras serem compostas a partir de diversos fragmentos. Th. Nödelke, F. Schwally e R. Bell fornecem-nos importantes análises cronológicas, realizadas com muito investimento. Nödelke e Schwally estabeleceram a Hidjra (Hégira), a grande mudança para Medina em 622, como a cesura que distingue Suras do período de Meca de Suras do período de Medina. As Suras do 71 período de Meca foram inclusive subdivididas por eles em três degraus cronológicos. R. Bell tomou como critério atividades revisionais e redacionais que ele julgava poder identificar no Alcorão. O trabalho está longe de sua conclusão. É necessário analisar cada Sura isoladamente. Pode-se aqui indicar o comentário de A. Th. Khoury. É preciso lembrar ainda o estilo de linguagem bem determinado do árabe em que o Alcorão foi escrito. Fala-se hoje de uma koiné literária, com adaptações à linguagem corrente, especialmente como era falada em Meca. Há preferência por rimas e assonâncias alternadas. Para se ter uma visão mais concreta, H. Stieglecker apresenta um pequeno trecho da tradução dos Maqamen de Hariri, feita por F. Rückers: “Nós te agradecemos, ó Deus, tal como por cada dom, também pelo dom da palavra; tal como pela entrada e saída da casa, também pela harmonia e concórdia do Espírito, e tal como pelo pôr e despir um vestido, também pelo pôr e explicar o sentido *...+”. A BÍBLIA NO ALCORÃO A presença da Bíblia no Alcorão é indiscutível do ponto de vista de uma exegese histórico-crítica. É uma presença singular. Repetidas vezes já se procedeu à identificação e à reunião de textos e tradições bíblicas no Alcorão. Não repetiremos aqui esse trabalho, mas queremos chamar a atenção para as singularidades da presença da Bíblia no Alcorão. Tradições bíblicas significativas serão tratadas junto com temas teológicos importantes. Inicialmente chama a atenção a variedade. Se 72 considerados os numerosos escritos do Antigo e do Novo Testamento, ela é bastante reduzida. É possível que haja muitas concordâncias e alusões esporádicas e formulares, que o Alcorão sempre torne a falar uma linguagem que recorda a Bíblia — especialmente os salmos —, mas em seu conjunto o resultado quantitativo não é muito grande. Isso se torna claro quando se recorda quais são os livros bíblicos que não ocorrem. Quando surge alguma sentença que recorda o dito de algum profeta, isso significa praticamente tanto quanto nada. A linguagem religiosa tem suas características comuns. Maomé conhecia antes de tudo o Pentateuco, especialmente o Livro do Gênesis. Ele conhecia tradições provenientes dos livros históricos, tal como a história de Davi e Golias (Sura 2,250), conhecia Davi e Salomão (34,10-12), mas não conhecia os Profetas e os livros sapienciais. O Li vro de Jonas faz a exceção (10,98). Característico é, contudo, que o Alcorão contenha narrativas que despertem interesse especial. A concentração no Livro do Gênesis é compreensível, já que a históiria da criação do mundo e da pessoa humana, de Noé, Abraão e Moisés, com a saída do Egito, de José sempre tornam a ser narradas e recordadas. As constantes repetições das histórias da criação, de Abraão e de Moisés são as que mais causam impressão de que o Antigo Testamento esteja tão amplamente presente no Alcorão, embora as variantes narrativas possam desfazer um pouco os estereótipos da estrutura narrativa. Maomé conhecia também a narrativa da Torre de Babel, embora ele atribua a construção da torre ao faraó (40,36s). Era-lhe familiar a regra da “vaca vermelha” (2,67ss; c£ Nm 19,1-10) e conhecia principalmente o Decálogo. 73 As citações do Novo Testamento que se encontram no Alcorão concentram-se nos evangelhos sinóticos. Das perícopes narrativas, apenas duas aparecem no Alcorão. Ambas provêm da narrativa da infância de Lucas. Trata-se do anúncio do nascimento de João Batista e do anúncio do nascimento de Jesus (Lc 1,5-38). De resto, é possível identificar um bom número de ditos isolados que possuem equivalentes nos evangelhos sinóticos. Agora nos interessaremos apenas pelas tradições interpretativas judaicas, cristãs, judeo-cristãs e apócrifas, apresentando alguns exemplos. Seu conteúdo geralmente é muito fantasioso. Segundo diversas passagens do Alcorão, depois da criação de Adão, os anjos teriam sido convocados a prestar-lhe homenagem. Todos o fazem, com exceção de Iblis (= o diabo). Ele é castigado e torna-se o tentador das pessoas (15,28-38; 38,71-82). Essa história encontra-se também no escrito judaico (revisada em ambiente judeo-cristão?) intitulada “A vida de Adão e Eva” (14-16). A afirmação de que Deus criou sete céus (Sura 78,12) provém igualmente dessa tradição. A elaboração da história de Noé — Noé admoesta o povo, o povo zomba dele, Noé pede o castigo para a humanidade pecadora — também pode ser constatada na tradição judaica. A Sura 3,76-79 narra detalhadamente como Abraão, antes de sua conversão, adorava estrelas, lua e sol como deuses. O mesmo pode ser lido no Livro dos Jubileus 12,16-20 (cf Ap de Abraão 1). O livro hebraico dos Jubileus foi traduzido para diversas línguas (grego, etíope) e também utilizado em comunidades cristãs. No restante da elaboração das narrativas sobre Abraão, o Alcorão é influenciado do mesmo modo por essas citadas tradições. 74 Abraão discute com seu pai acerca do absurdo de se adorar ídolos, destruindo os ídolos de seu pai. Torna-se claro com isso que a maioria das tradições vão numa direção bem determinada, ou seja, a defesa da fé monoteísta. Antes de seguirmos essa linha, contudo, queremos chamar a atenção também para outras tradições. Há a fábula da poupa [um pássaro] (Sura 27,22-26), também relacionada com a fé monoteísta. A poupa traz a Salomão notícias da rainha de Sabá, que ainda adora o sol mas deverá ser convertida a Deus. Essa narrativa possivelmente sofreu influência do targum de Ester. Nas tradições sobre Jesus presentes no Alcorão imiscuíram-se tradições apócrifas. Citemos apenas o milagre dos pássaros, realizado pelo menino Jesus (3,49; 5,110), ou ainda a história da tamareira que proporciona refrigério à virgem Maria (19,24-26) que foge de seus difamadores. Houve uma inflação de lendas acerca da história da infância de Jesus. Sua coleção também foi publicada num evangelho da infância árabe, que reporta um grande número de milagres e no qual Maria tem papel muito destacado. As lendas, em parte misturadas com as narrativas canônicas, tornaram-se conhecidas entre os muçulmanos. Também Maomé estava familiarizado com elas, introduzindo um bom número delas no Alcorão. Embora não seja pertinente, pode-se lembrar aqui que também a lenda cristã dos sete adormecidos foi introduzida no Alcorão (18,9-26). A Sura 18,60-98 contém elementos do romance de Alexandre. A Sura 2,259 recorda a lenda judaica de Honi, o mago (Taanit 23a). Perguntemos agora pela intenção de Maomé ao integrar 75 no Alcorão material bíblico, e exatamente este. Acerca das tradições interpretativas que ele assume, já nos chamou a atenção que a pregação monoteísta era para ele um critério fundamental. Abraão e Moisés são representantes proeminentes dessa pregação. A mensagem sofre rejeição. O faraó é o principal representante da resistência. Aqui pode ser reconhecido mais um dos elementos de suas intenções. Ele tenta descobrir sua própria ação na ação dos bíblicos homens de Deus. A isso está relacionado o fato de ele estar antes de mais nada interessado em figuras bíblicas. As repetidas experiências na vida delas — pode-se enumerar: pregação, rejeição, castigo dos obstinados, salvação do pregador — são as suas próprias experiências. Fala-se muitas vezes no Alcorão do mundo como criação de Deus. Pressupostos são os dados de ambas as narrativas da criação (Gn 1 e 2). O recurso à criação tem por objetivo incentivar o louvor ao Criador Junto a isso surge mais um interesse: Maomé, com o recurso ao Deus criador, pretende convencer aqueles que suspeitam de sua mensagem sobre a ressurreição dos mortos — previsível para um prazo determinado — e a rejeitam: “Se dizes: após a morte sereis ressuscitados, os infiéis dizem: isso claramente é feitiçaria”. Maomé revida: “É Ele que fez o céu e a terra em sete dias, enquanto seu trono repousa sobre a água, para colocar-vos à prova” (11,7). Da mesma forma argumentou contra aqueles que dizem: “Seremos nós realmente recriados após termo-nos tornado pó? Esses são os que não crêem em seu Senhor, tendo cadeias em seus pescoços, são os que estão no fogo” (cf 13,2-5). Deus repetirá a criação inicial, para recompensar justamente 76 aqueles que crêem e fazem boas obras (10,4; cf 25,59; 50,38; 57,4). Faz parte também desse contexto o interesse de Maomé em narrar os milagres de Deus. Ele próprio não realizou milagres. Seus adversários o acusavam disso. Isso não o inibe de relatar fatos extraordinários como sinal do poder de Deus. Essa deve ter sido também a razão pela qual assumiu a lenda dos sete adormecidos ou a lenda de Honi, o mago. Ambas falam da vivificante e criadora força de Deus. Teologicamente significativa para nós é, porém, sua interpretação do nascimento virginal de Jesus, que ele não coloca em dúvida. Ela não tem relevância cristológica para ele, mas é simplesmente expressão do poder criador de Deus: “Esse é o jeito *de agir+ de Deus. Deus cria quando quer” (3,47). A criação de Adão é para Maomé mais milagrosa ainda, uma vez que Adão não tinha pai nem mãe (3,59:15,26-30). Ainda uma última intenção de Maomé, ao selecionar material bíblico, é fornecer exemplos de conduta de vida. Podese aqui recorrer à história de José, que, além da história de Caim e Abel, é a única da qual faz uma narrativa contínua no Alcorão (Sura 12: Yusuf). Ela é introduzida com as palavras: “Narrar-teemos a mais bela história” (12,3). Ela é narrada como “advertência aos habitantes dos mundos”, como “ensinamento para os que desejam compreender”, como “diretriz e misericórdia para todos os que crêem” (12,104 e 111). S. Raeder demonstrou que na história de José do AT o próprio José permanece na ignorância, percebendo somente mais tarde que a história familiar carregada de culpa era o caminho rumo ao futuro prometido por Deus. Esse aspecto falta no Alcorão. José é 77 antes de mais nada pregador do monoteísmo (12,38-40), que perpassa toda a realidade da ação de Deus. Indaguemos ainda sobre o lugar onde teria sido possível Maomé encontrar-se com o judaísmo e o cristianismo e deles se ocupar. Para o judaísmo com certeza foi Medina, e para o cristianismo com muita possibilidade Meca, que possivelmente também entra em questão quanto ao judaísmo. É possível detectar vestígios desse encontro? Há tradições islâmicas legendárias segundo as quais o jovem Maomé, ainda antes de sua vocação, teria participado com seu tio Abu Talib de uma caravana para a Síria. Lá, teriam se encontrado com um monge cristão chamado Bahira, que teria reconhecido os dons proféticos do menino. Podemos ignorar essa informação, bem como a de que um primo de Hadiga, primeira mulher de Maomé, teria sido cristão. Ele teria se chamado Waraqa ibn Naufal. A LINGUAGEM FIGURADA A Bíblia e o Alcorão surgiram exatamente no mundo oriental. Isso também influenciou a linguagem. Isaías, Jeremias, Jesus, Paulo, Maomé foram homens fortes da palavra. Queremos aqui nos dedicar apenas a um aspecto da linguagem, ou seja, sua capacidade de exprimir-se em imagens. Todos eles desenvolveram sua linguagem figurada, com seu repertório de imagens dentro de uma determinada tradição, mas também plenamente capazes de desenvolver sua própria força de linguagem. Interessam-nos especialmente Maomé e a tradição 78 sinótica. Maomé, principalmente na primeira fase de sua atividade, falou com linguagem incendiária. Assim o avalia em todo caso Th. Nöldeke: “A força do entusiasmo que movia o profeta nos primeiros anos, que o fazia ver anjos enviados por Deus, precisava também encontrar sua expressão no Alcorão. O próprio Deus que o plenifica é que fala, a pessoa passa totalmente para segundo plano, tal como ocorria com os antigos profetas de Israel. O discurso é grandioso, festivo e cheio de imagens ousadas, o embalo retórico tem ainda também o colorido poético. O movimento apaixonado, não raro interrompido por simples mas enérgicas e calmas instruções e coloridas descrições, reflete-se nos breves versículos, tendo todo o discurso um movimento rítmico, e muitas vezes uma boa sonoridade, embora não seja proposital. Os sentimentos e as intuições do profeta expressam-se por vezes com certa obscuridade de sentido, que, de fato, é mais aludido do que exposto. Um elemento dessa linguagem é constituído pelos juramentos, dos quais encontramos cerca de trinta no Alcorão. No início, tal como os antigos videntes árabes, Maomé invoca as coisas da natureza, jurando pelo sol, pela lua, pelas estrelas, pela luz e pelas trevas, dia e noite, céu e terra etc. Mais tarde surgem com mais destaque juramentos tais como “pelo sábio Alcorão” (36,2; cf. 38,1), “pelo compreensível livro” (43,2; 44,2), “por um livro que foi escrito linha por linha sobre um pergaminho estendido” (52,2s), e outros semelhantes . Por fim os juramentos desaparecem totalmente. Pode-se aqui identificar um desenvolvimento que deve estar relacionado com o desenvolvimento da consciência do próprio profeta. Mas a situação também muda. Atingido pelas derrotas 79 em Meca, ele obteve grande sucesso em Medina. Maomé tornou-se o organizador de uma comunidade nascente, o Umma, tornou-se legislador e estadista. O estilo de linguagem mudou necessariamente. Em lugar de convocações incendiárias, surgiram prescrições e determinações legais. Elas por vezes até são introduzidas com “É proibido a vós” (4,23; 5,3) ou “Para vós é prescrito” (2,178.180.183, entre outros). Maomé também recorre à parábola (matal), provavelmente uma forma de discurso que ele sempre volta a utilizar. Com isso se nos apresenta uma possibilidade de comparação, pois a parábola (hebraico: maschal) tem sua pátria no mundo judaico. Tem seu lugar bem determinado no ensinamento rabínico. Jesus a utilizou de forma praticamente insuperável em sua pregação. A observação a seguir pode esclarecer o significado da parábola para os evangelhos sinóticos (Jesus) e para o Alcorão (Maomé). Em Marcos 4,33s lê-se: “E com muitas parábolas ele proclamava [Jesus] a eles a palavra, assim como a podiam ouvir. Sem parábolas, porém, ele não lhes falava. Em particular, porém, esclarecia tudo aos próprios discípulos”. De modo semelhante, em Mateus 13,34s: “Tudo isso Jesus falou em parábolas às multidões, e sem parábola nada falava a eles, para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta que diz: ‘Quero abrir para eles a boca em parábolas, quero proclamar o que estava oculto desde a criação’” Talvez cause admiração que no Alcorão se encontre algo semelhante: “Neste Alcorão inculcamos nas pessoas toda sorte de parábolas (min kulli matalin), para que o considerem, como um Alcorão árabe, no qual não há nada de incorreto, tornando-se tementes a Deus” (39,27). Ou: “Neste 80 Alcorão apresentamos diversas parábolas às pessoas. Contudo, a maioria das pessoas nada mais querem do que ser infiéis” (17,89). Ou: “Neste Alcorão apresentamos diversas parábolas às pessoas. A pessoa, porém, contesta a maior parte das coisas” (18,54). Ou: “Neste Alcorão inculcamos nas pessoas diversas parábolas. E quando te diriges a elas com um versículo os incrédulos dizem: vós trazeis insensatez”. A comparação certamente torna claro que o discurso em parábolas tinha papel central tanto na mais antiga pregação cristã como na muçulmana. Admirável é também sua ligação com a reação obstinada e sem fé dos ouvintes. Em Marcos 4,12 é citada a palavra do endurecimento da cerviz de Isaías 6,9s, relacionada com o discurso em parábolas de Jesus (cf Mt 13,14s). Essa reação paradoxal esconde a experiência de que a mais clara revelação pode provocar a pior cegueira. Detenhamo-nos um pouco no mundo das imagens presente nos matalin e nos meschalim. Ele aparece com maior nitidez nas parábolas rabínicas e principalmente nas de Jesus. Jesus revestiu suas parábolas com o “manto da pátria”. Elas descrevem realidades conhecidas, cotidianas, fazendo desfilar diante de nós a vida da pessoa comum do seu tempo, do homem do campo que espalha a semente em sua lavoura, do pescador que arrasta sua rede, também do cidadão de Jerusalém que oferece uma refeição aos convidados ou se dirige ao templo para rezar. Ambos os ambientes, rural e urbano, permitem determinar onde essas parábolas foram apresentadas pela primeira vez, se na área rural, ao longo do lago de Genesaré, ou na metrópole. Narram-se acontecimentos cotidianos que sempre tornam a se repetir, tais como semeadura e colheita, o 81 crescimento do grão de mostarda ou a mistura do fermento na farinha. Ou então passam diante de nossos olhos histórias cativantes como a do bom samaritano, do rico epulão e do pobre Lázaro, ou do homem rico que oferece um banquete, mas que, por fim, acolhe em sua casa os esmoleiros e os aleijados. As parábolas do Alcorão denotam origem na cidade e no deserto circundante. Trata-se claramente do mundo da Arábia que está sendo refletido. Aparecem a miragem, a fata morgana (24,39), a cidade, que uma vez foi rica e depois castigada pela fome — alusão clara a Meca (16,112s); escravos aparecem em duas parábolas (16,75; 39,29). A parábola dos habitantes da cidade a quem repetidas vezes foram enviados mensageiros de Deus e que por fim são castigados por se mostrarem obstinados (36,13-32) recorda um pouco a parábola sinótica dos vinhateiros homicidas (Mc 12,1ss par.). Dois homens que possuem jardins com parreiras, palmeiras e campos de trigo (18,32ss) devem ser localizados com mais probabilidade num oásis. Animais também são utilizados como material nas imagens, mas somente animais pequenos, mosca e aranha (22,73; 29,41), o que novamente indica com mais probabilidade o ambiente de uma cidade. A imagem do oleiro (55,14) é antiga e ocorre também na Bíblia (Rm 9,21; Jr 18,6; Sb 15,7). Quando na Sura 6,59 se diz que “nenhuma folha cai sem que Ele tome conhecimento disso”, tem-se a tentação de identificar uma referência à imagem dos pardais (Mt 10,29) Uma diferença apresenta-se contudo quando observamos a forma narrativa da parábola no Alcorão. Em quase todos os casos trata-se não de histórias completas, mas de sóbrias comparações. F. Buhl pretendeu definir as parábolas do 82 Alcorão apenas como “afirmação característica e pregnante”. Tomemos como exemplo a “parábola” da aranha: “Tal como os que em lugar de Deus escolhem amigos, acontece o mesmo que com a aranha, que escolheu uma casa. A casa mais frágil é a da aranha. Quem dera que eles o soubessem!” (29,41). Aqui é apresentada uma comparação que se caracteriza pelo “tal como — o mesmo”. O que se quer dizer está claro: tão fraca como a casa da aranha é também a casa dos descrentes. Algumas comparações não são tão claramente compreensíveis, devido à sua sobriedade, dando ocasião a diversas interpretações, caso da parábola da mosca (22,73) cujo texto é o seguinte: “Aqueles que invocais em lugar de Deus não são capazes de criar nem mesmo uma mosca, mesmo que se unam todos para esse fim. Se alguma mosca lhes furtar algo, não são capazes de reavê-lo”. Quem é, na segunda frase, o sujeito que furta algo? O ídolo ou o adorador do ídolo? Cf PARET, Koran-Kommentar. p. 352. Com seu pregnante caráter comparativo, as parábolas do Alcorão são bem mais semelhantes às parábolas rabínicas do que às parábolas sinóticas. Também na escola rabínica sempre se torna a recorrer às comparações, para esclarecer ou tornar compreensível aos alunos alguma situação um tanto complicada. Após a situação ter sido exposta teoricamente, passa-se à comparação imagética esclarecedora, em geral introduzida com as palavras: “Façamos um maschal. A quem se compara o objeto em questão?”. Segue então uma comparação ou uma parábola. É claro que as comparações/parábolas do Alcorão também têm a função de esclarecer. Mas elas não pretendem didaticamente algo teórico. Elas pretendem sacudir, convocar à 83 reflexão, à mudança da vida que deve ser orientada para Deus. Com isso está relacionado o fato de quase todas as parábolas, na imagem que apresentam, indicarem uma catástrofe: a casa da aranha desmorona, a cidade obstinada sucumbe à fome, o jardim dos homens descrentes fica deserto até as copas das árvores. Nesse aspecto, as parábolas do Alcorão se aproximam bastante de algumas das presentes na tradição sinótica. Também lá algumas acabam em catástrofe: as virgens imprudentes não são admitidas à sala das núpcias (Mt 25,11b), o servo preguiçoso, que não fez bom uso do talento que lhe foi confiado, sofre sorte semelhante (25,2,6-28), a casa construída sobre areia desmorona com a tormenta e o granizo (7,26s). Chegou-se a falar de parábolas trágicas. A intenção é a mesma, ou seja, despertar diante do iminente juízo de Deus. É claro que não se deve esquecer a quantidade de parábolas de Jesus que pretendem incentivar positivamente uma vida cristã, tal como a parábola do bom samaritano (Lc 10,37: “Vai e faze o mesmo!”), a do rico epulão e do pobre Lázaro (16,19-31), a dos lugares certos dos convidados à mesa (14,7-14) e outras. Mesmo assim, com isso ainda não estamos no núcleo das possibilidades de afirmação das parábolas. Os rabinos eram capazes de fazer isso de modo original e por vezes até exótico. Um exemplo: “Um maschal. Com que isso pode ser comparado? Com alguém que ia pelo caminho, deixando seu filho ir à sua frente. Surgiram ladrões com a intenção de levar o filho prisioneiro. Então ele o retirou de sua frente, colocando-o atrás de si. Chegou então por trás um lobo. Assim o retirou de trás, colocando-o à sua frente. Surgiram ladrões à frente e lobos 84 atrás. Então ele tomou o filho em seus braços. O filho começou a sentir dores por causa do sol. Então o pai estendeu seu manto sobre ele. O filho teve fome e ele lhe deu de comer. Ele teve sede e lhe deu de beber. Assim agiu o Santo, bendito Ele seja! Contudo, as parábolas de Jesus apresentam a ligação mais estreita com Deus. No centro de sua pregação está a Basiléia, o Reino de Deus, ou a soberania de Deus. Em parábolas ele torna o Reino de Deus próximo às pessoas. Essas parábolas do Reino de Deus constituem, na tradição das parábolas, uma categoria própria a ser examinada individualmente. Com essas parábolas não só se esclarece como o Reino de Deus deve ser entendido, como ele funciona, o que ele representa, mas nela o Reino inclusive é tornado presente. “Com o Reino dos céus [Mateus, em vez de Reino de Deus, fala do Reino dos Céus. “Céus” é sinônimo de Deus. De acordo com a sensibilidade judaica da época, evitava-se pronunciar o nome de Deus.] ocorre como com o grão de mostarda, que um homem tomou e semeou em seu campo. Ele é de fato a menor de todas as sementes. Mas quando cresce torna-se a maior das hortaliças, vindo a ser uma árvore, de modo que os pássaros do céu, vindo, farão ninhos em seus galhos... Com o Reino dos céus acontece como com um pouco de fermento, que a mulher tomou e misturou a três medidas de farinha, até que tudo fermentou” (Mt 13,31-33). “Com o Reino dos céus acontece como com um tesouro escondido no campo. Alguém o encontrou e o escondeu. Em sua alegria foi e vendeu tudo quanto possuía, para comprar aquele campo. Com o Reino dos céus acontece ainda como com um negociante que procura belas pérolas. Ao encontrar uma de extraordinário valor, foi, vendeu tudo quanto 85 possuía e a comprou” (13,44-46). A presença do Reino de Deus que acontece com essas parábolas tem suas raízes em Jesus. Nele, em sua prática, em sua palavra, nas curas, na ajuda, em sua relação libertadora com as pessoas, especialmente com os excluídos, enfermos e marginalizados da sociedade, são liberadas as forças salvadoras da Basiléia, atingindo as pessoas que a aceitam. Agora o tesouro escondido no campo pode ser encontrado. Agora está começado o início do fim, o grão de mostarda pode ser semeado. O início contém em si o fim. O fim é a definitiva soberania de Deus. Em comparação com a parábola rabínica do pai e do filho, há nas parábolas de Jesus exemplos que descrevem de forma mais incisiva ainda a relação da pessoa com Deus, relação que foi conseguida por meio de Jesus. Recordo aqui a parábola do filho perdido (Lc 15,11-32). Aqui, em comparação com a parábola rabínica, acrescenta-se ainda que o extraordinário amor do pai, descrito na parábola, em Jesus se tornou realidade palpável e pretende continuar a ser eficaz, mesmo contra a resistência das pessoas. A resistência é oposta pelo irmão que permaneceu em casa, que não quer aceitar o irmão que se havia perdido. 86 III - Temas Teológicos A IMAGEM DE DEUS É preciso partir da imagem de Deus. Deus é o conteúdo do pensamento teológico. A pergunta acerca de Deus deve ser determinante também quando indagamos sobre semelhanças e diferenças na comparação entre as religiões. Judaísmo, cristianismo e islamismo são designadas como as três religiões monoteístas. Vê-se na confissão do único Deus aquilo que há de comum entre essas três religiões mundiais, que se referem a Abraão. Trata-se do mesmo Deus? Na Sura 29,46, lê-se, numa passagem que trata da controvérsia dos seguidores de Maomé com judeus e cristãos (= as pessoas da Escritura): “Discuti com as pessoas da Escritura nunca de outra forma do que a boa, com exceção para aqueles que cometem injustiça. Dizei: Nós cremos naquilo que tanto para nós quanto para vós (como revelação) do alto foi enviado. Nosso e vosso Deus é um (no sentido de ser o mesmo)”. Ouvem-se vozes semelhantes também da parte cristã. Citemos dois exemplos. O papa Gregório VII ( 1085) escreve uma carta ao emir de Mauritânia, dizendo que os muçulmanos e os cristãos crêem num único Deus, acrescentando, porém, que eles o confessam, louvam e honram de modo diverso. O Concílio Vaticano II declarou, como já citado, em seu documento sobre a relação da Igreja com as religiões nãocristãs, no capítulo 3: “Quanto aos muçulmanos, a Igreja igualmente os vê com carinho, porque adoram a um único Deus, vivo e subsistente, misericordioso e onipotente, Criador do céu e 87 da terra, que falou aos homens. A seus ocultos decretos esforçam-se por se submeter de toda a alma, como a Deus se submeteu Abraão, a quem a crença muçulmana se refere com agrado”. A confissão da unicidade de Deus é a essência da pregação de Maomé. Como um refrão que sempre se repete, ela perpassa todo o Alcorão. “Vosso Deus é um único Deus. Não há outro deus além dele, o misericordioso, o piedoso” (2,163). “Deus comprova que não há outro Deus além dele, igualmente o fazem os anjos e aqueles que possuem a sabedoria” (3,18). “Vosso Deus é um único Deus. Aqueles que não crêem no além, rejeitam isso em seu coração, mostrando-se orgulhosos” (16,22). “Ele é Deus, além dele não há deus. Ele tem o conhecimento do que está oculto e do que é de conhecimento geral” (59,22). Antes de mais nada é o assim chamado versículo do trono (2,255) que inculca a unicidade de Deus: “Alá *Deus+. Não há outro deus além dele, o vivo e imutável'“. É preciso lembrar que Maomé, com sua pregação de que há um só Deus, estava dizendo algo novo a seus compatriotas. Junto aos habitantes de Meca encontrou forte resistência. Ao lado de Alá — nome divino que já lhes era familiar — eles adoravam outras divindades, principalmente deusas, cujas imagens estavam expostas na Caaba. Na Sura 53,19 são designadas pelo nome: “O que quereis dizer com al-Lat e al-Uzza e ainda com Manat, o terceiro?”. Maomé parece querer enquadrá-los como anjos — se Alá o permitir —, que poderiam eventualmente agir como intercessores (cf 53,26s). Os mecanos imaginam que se trate de filhas de Deus. Alguns pesquisadores são da opinião de que o próprio 88 Maomé passou por um processo de desenvolvimento até chegar ao monoteísmo. A consequente pregação monoteísta teria acontecido somente num segundo estágio, em Meca, de qualquer modo. Fala-se de um segundo período mecano. No primeiro haveria um monoteísmo apenas embrionário. Antes de passarmos à Bíblia, merece nossa atenção a observação de que o nome divino Alá, já conhecido na Arábia pré-islâmica, é aparentado com os nomes divinos bíblicos el, eloah e elohim. El significa Deus. A derivação etimológica é discutível. A palavra el aparece nas fases primitivas de todas as principais línguas semíticas. A evolução deve ter ocorrido de forma que de al-ilah (= o Deus, com artigo), por assimilação do “i”, tenha surgido allah. A assimilação pode ser esclarecida pelo uso muito frequente da palavra. Importante é que o nome divino bíblico el e o allah do Alcorão remontam à mesma raiz. O nome divino bíblico Yahweh não foi assumido pelo Alcorão. “O Antigo Testamento, em sua forma final [...], sem dúvida alguma quer ser lido como testemunho do único Deus, que criou e sustenta o mundo, conduzindo-o para o seu destino escatológico.” Os numerosos textos referentes a isso mostram que essa fé no Deus único devia ser professada num ambiente circundante marcado pelo politeísmo. É possível ver também que durante uma longa história de Israel essa fé foi amadurecendo. “O Senhor vosso Deus é Deus sobre os deuses e Senhor sobre os senhores. Ele é o grande Deus, o valente, o terrível” (Dt 10,17). Aqui os demais deuses ainda são considerados, embora sejam sem significado, como nada sendo. A unicidade de Deus precisa sempre voltar a ser afirmada, tanto contra o paganismo 89 estrangeiro como contra as potências que realmente dominavam o povo de Deus: “Javé, nosso Deus, embora outros senhores dominem sobre nós, mesmo assim nos lembramos apenas de ti e do teu nome” (Is 26,13). Mesmo assim o monoteísmo bíblico seria erroneamente compreendido se considerado o produto final de um desenvolvimento históricoreligioso. Desde o princípio ele aparece com sua força profética, com um radical não contra qualquer politeísmo. Numerosos textos dão testemunho disso, tais como: “Javé é Deus, não há outro além dele” (Dt 4,35). Ou: “Javé é o Deus no alto do céu e embaixo na terra, não há outro” (4,39). Ou ainda o primeiro mandamento do Decálogo, que não admite outros deuses ao lado de Javé (5,7; Ex 20,3). A pregação monoteísta de Maomé não pode ser compreendida sem o pano de fundo bíblico. Ele a dirige com força profética a seus compatriotas de Meca. Tal como Moisés, elimina as imagens de divindades pagãs da Caaba, como outrora o profeta do Antigo Testamento destruíra o bezerro de ouro. É verdade que também no Alcorão se fala da vocação de Moisés junto à sarça ardente. Mas a história torna-se totalmente transparente com vistas à vocação de Maomé. Moisés passa a segundo plano. Somente é possível compreender a história plenamente no sentido de Maomé quando nela se vê retratada sua própria vocação. Isso é possível porque ambos receberam a mesma incumbência, ou seja, anunciar que há um só Deus. A ligação, até mesmo a fusão de Moisés e Maomé tornam-se especialmente visíveis no fato de a Moisés ser anunciado o iminente julgamento do mundo. Anunciar a proximidade desse juízo caracterizava a pregação de Maomé, principalmente em 90 sua fase inicial. Acrescentando-se ainda o caminho certo que Moisés espera encontrar junto ao fogo, temos já reunidos os três elementos fundamentais da pregação de Maomé: a fé no único Deus, a expectativa do juízo escatológico e a conduta correta, que consiste na condução correta da vida, aqui ainda indicada com serviço e oração. Mesmo assim, já descobrimos uma decisiva diferença na imagem de Deus contida no Alcorão e na imagem do Deus da Bíblia. O Deus da Bíblia age na história. Ele se revela às pessoas para vir em seu socorro em situação sem saída. Em suas revelações ele preserva sua liberdade. Ele não admite ser obrigado a algo. É capaz de causar surpresas. Ele quer fazer história com os seres humanos. O Deus do Alcorão parece não estar disposto a correr esse risco. Ele mantém-se fora da história. Ele dever ser adorado como o único, em sua grandeza e sua majestade, como criador, legislador e juiz. Sem dúvida alguma, essas características também ocorrem na imagem bíblica de Deus, mas sua desvinculação da história no Alcorão, que continuará a ser analisada, traz suas consequências. O Alcorão não será capaz de aceitar a revelação de Deus em Jesus Cristo. Apesar desses elementos em comum de linguagem, para Maomé Deus permanece o absoluto Transcendente, enquanto na Bíblia Ele é aquele que na história se alia com seu povo e com os seres humanos. Ao Deus do Alcorão as pessoas não têm acesso. É verdade que, através de Maomé, ele nos transmitiu seus mandamentos, contudo não há nada que possa estabelecer uma ponte sobre a oposição entre criador e criatura. Nada neste mundo é capaz de torná-lo acessível a nós. Ele não se comunica 91 conosco. Há, certamente, segundo 5,54, pessoas que Deus ama e que amam a Deus, mas a distância entre Deus e a pessoa humana jamais poderá ser superada por uma comunidade que englobe a ambos. Por vezes tem-se feito referência à Sura 50,16: “Nós estamos mais próximos a Ele do que a veia jugular”. O contexto, porém, deixa claro que aqui não se trata de uma relação interior e pessoal entre Deus e a pessoa humana, mas, ao contrário, de Deus como aquele que tem ciência de todos os maus pensamentos do ser humano, que por isso mesmo deve ter atitude de precaução. Em contraste com o Alcorão está a mística que posteriormente se desenvolveu. Segundo A. Schimmel, que se ocupou sobremodo da mística, o desenvolvimento da mística primitiva no islamismo é “propriamente uma luta pela legitimação do conceito de amor, diante de uma ortodoxia que é do parecer que amor a Deus nada mais significa do que obediência a Deus, e a disposição de tudo fazer, para cumprir sua vontade”. Segundo A. Th. Khoury, Ibn ‘Arabi teria escrito um comentário místico ao Alcorão que conteria reflexões que não podem ser deduzidas do Alcorão. A diástase entre Deus e a criatura humana se expressa no Alcorão também pelo fato de ele não assumir a concepção bíblica da pessoa humana como imagem de Deus. Embora a história da criação continue viva no Alcorão, falta a palavra que o Criador, segundo Gênesis 1,26, pronuncia por ocasião da criação do ser humano: “Façamos a criatura humana segundo a nossa imagem, como nossa semelhança” (cf 1,27). Para Maomé essa omissão é consequente. Deus não pode sair de seu isolamento. 92 O fato de a criatura humana ser imagem de Deus, de grande significado não somente para a imagem do ser humano, mas também para a imagem de Deus, deve ser visto como algo que diz respeito a ambos. Isso atinge a pessoa humana como um todo, e não apenas parte dela, por exemplo apenas sua racionalidade ou a beleza plena de seu ser. Isso atinge todos os seres humanos, a humanidade inteira. Adão é um conceito coletivo. Das inumeráveis propostas de interpretação pode-se extrair a quintessência, que afirma que Deus, no ser humano, quis criar um outro, alguém que pudesse relacionar-se com Ele, numa representação primordial, talvez inclusive alguém que serve a Deus. A tarefa do ser humano, como sua imagem, consiste em representar Deus, em ser seu mandatário, “dominar sobre os peixes do mar e sobre os pássaros do céu e sobre todo ser vivo que se move sobre a terra” (Gn 1,28). O domínio entendido como exploração seria um mal-entendido. A concentração sobre os seres vivos pode significar uma referência ao elemento pessoal, um trato “humano” com os animais. O fato de o ser humano ser imagem de Deus encontra ulterior significação no Novo Testamento. Este parte do princípio de que a dignidade do ser humano, que consiste em ser imagem de Deus, foi diminuída e inclusive perdida mediante o pecado de Adão. Cristo é o novo ser humano, no qual Deus se revela (Cl 1,15) e por meio do qual o ser humano perdido recobra sua dignidade de forma gloriosa (Cl 3,10; cf Rm 13,14; Gl 3,27), tornando-se nova criatura. Cristo é o mediador da nova criação, que, tal como a primeira criação, é creatio ex nihilo. Tanto na criação como na nova criação Deus, conforme o pensamento cristão, sai de si mesmo, torna a pessoa humana 93 seu outro, chamando-o à participação em sua vida. A participação na vida divina é o escopo da existência humana. Segundo o Alcorão, também no aquém da vida não há comunidade com Deus. Na vida eterna, está à espera dos justos uma nova terra, plena de satisfações sensíveis. A participação na vida divina, segundo o pensamento cristão, é participação na vida do Deus trino. Deus explicitou-se na história com o envio do Filho e com o derramamento escatológico do Espírito. O mistério de Deus é indicado no Novo Testamento mediante fórmulas triádicas (especialmente 2Cor 13,13; 1Cor 12,4-6; Mt 28,19) . Para o Novo Testamento, Deus é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. No contexto cristão, a revelação de Deus somente pode ser pensada assim. Parece que Maomé percebe esse contexto, ou alude a ele. Na Sura 17,42 ele fala de um acesso ao senhor do trono, caso houvesse outros deuses ao lado de Deus. Com isso, a fé cristã no Deus trino é grosseiramente mal-entendida como triteísmo (1 = 3). Uma comparação posterior pode ser útil na caracterização de semelhanças e diferenças. No islamismo falase, com referência ao Alcorão, de uma enlibração (“tornar-se livro”) de Deus, colocando esse conceito em paralelo com a encarnação do Filho de Deus em Jesus Cristo. É claro que o Alcorão é no islamismo a forma mais explícita da revelação de Deus. Assim, o islamismo é confirmado como religião do Livro. Deus permanece, contudo, o absoluto Transcendente, distante de todas as criaturas. Ele não pode ser experimentado historicamente. Encarnação, no pensamento cristão, significa a exteriorização de Deus na encarnação (Fl 2,7) e sua habitação real entre as criaturas humanas (Jo 1,14). 94 Resta a considerar ainda que o Alcorão tem no céu seu escrito primigênio, a “mãe da Escritura”. Maomé teve acesso ao original. O escrito primigênio celeste supera qualquer limitação de um texto. No próprio Alcorão isso é dado a entender: “Se o mar fosse a tinta para as palavras do meu Senhor, ele acabaria antes da conclusão das palavras do meu Senhor...” (18,109); “Mesmo que todas as árvores das terras fossem penas de escrever e ao mar [tinta] acabado se acrescentassem sete outros mares, as palavras de Deus não se concluiriam” (31,27). H. Zirker colocou ao lado disso uma expressão análoga, no final do Evangelho de João: “Há muitas outras coisas que Jesus fez. Se fossem escritas uma a uma, creio que o mundo não poderia conter os livros que se escreveriam” (21,25), observando acertadamente que o Evangelho se refere às ações de Jesus, enquanto o Alcorão se refere ao discurso de Deus, que é ahistórico. No Evangelho trata-se daquilo que é experimentado entre as pessoas humanas “como acessível, não o livro do além, distante e celeste”. O MUNDO COMO CRIAÇÃO DE DEUS Na consideração do mundo como criação de Deus, talvez a Bíblia e o Alcorão alcancem a maior proximidade. Assim, poderia haver aqui um ponto em que cristianismo e islamismo poderiam se encontrar em sua comum preocupação pela criação. Os elementos comuns aqui mais uma vez se esclarecem pelo fato de o Alcorão ter sido influenciado pela Bíblia, ou então pelo fato de ele conhecer conteúdos e interesses fundamentais 95 da tradição bíblica. O mundo é entendido como criação de Deus. Essa convicção é comum a ambos os livros sagrados. Ele não é perpassado por uma alma impessoal, como é pressuposto em sistemas panteístas. Ele não é resultado de um combate cósmico que levou do caos à ordem, como é narrado em mitos orientais da criação. Também não é produto de um desastre cósmico, nem obra de um mau demiurgo, como ensina a gnose hostil ao mundo. Deus mesmo chamou o universo à existência, vendo, no final, que tudo era bom (Gn 1,31). Certamente foi um caminho mais longo que conduziu ao reconhecimento teológico de que o mundo tenha sido criado do nada (creatio ex nihilo): “Vê o céu e observa a terra e tudo o que há sobre ela. Considera que Deus criou isso do nada e que também o gênero humano tem a mesma origem” (2Mc 7,28; cf. Rm 4,17). As narrativas da criação do mundo em Gênesis 1,32,25, contudo, são elaboradas de tal forma que fiquem bem destacadas a soberania e a bondade de Deus, bem como sua dedicação à sua criação. Contudo o Alcorão distancia-se de especulações abstratas. O Alcorão não assume a criação do ser humano como imagem de Deus. Isso contradiria sua concepção da absoluta transcendência de Deus. Com a ideia dos sete céus o Alcorão entra em contato com uma tardia tradição judaica, que talvez remonte às sete divindades planetárias dos babilônios (23,17; 67,3; 71,15; 78,12). O sétimo céu é o mais alto e o lugar mais próximo a Deus. Para nós é mais importante, contudo, a questão das intenções teológicas que podem estar relacionadas com a 96 compreensão do mundo como criação de Deus. O tratamento dessas intenções está relacionado com a questão do contexto em que se recita o gênero literário da criação. Para a Bíblia, entram em questão três literaturas: as duas narrativas da criação, no início do livro do Gênesis, a literatura sapiencial e o louvor dos salmos. No Gênesis, a narrativa da criação está relacionada com a história salvífica, que tem início com a eleição dos patriarcas. A criação não é interessante por si mesma, mas sob o aspecto de o criador dos céus e da terra ser o Deus de Israel. Falou-se inclusive da criação como “etiologia de lsrael”. Se a criação é condensada em um esquema de seis dias, ao qual se acrescenta um dia de repouso, significa que a criação está dentro do tempo e que com ela se inicia a história. Diversa é a situação na literatura sapiencial. Não o povo e sim o indivíduo é aqui confrontado com a criação e, por meio dela, com o criador. Surgem questões racionais. Exemplo clássico dessa confrontação é o paciente Jó, que, em sua miséria, não compreende mais o mundo, querendo entrar em discussão judicial com seu criador. Ele não obtém a resposta esperada, que lhe dê a solução para o mistério da criação e para as interrogações de sua própria vida. Na teofania (cap. 38s) com que se conclui o livro, é muito mais Deus que dirige perguntas a ele. Nelas Deus justifica sua criação recorrendo à sua onipotência: “Onde estavas, quando fundei o mundo? Quem encerrou o mar em suas comportas? Alguma vez destes ordens à manhã? Entraste pelas fontes do mar? Entraste nos depósitos da neve? Podes atar os laços das plêiades, ou desatar as cordas de Orion?”. As perguntas são levadas adiante com pesada insistência. Poder-se-ia ter a impressão de que Jó, o crítico 97 incômodo, estivesse sendo eliminado. Ouvem-se, contudo, tons diversos, indicando outra intenção do criador, ou seja, a preocupação com sua obra criada: “Quem providencia ao corvo o seu alimento, quando seus filhotes clamam a Deus, quando vagam perdidos por falta de alimento? Sabes quando as cabras montesas parem, dás atenção ao parto das corças?” (38,41s). Deve-se notar que a preocupação de Deus se dirige justamente a animais que parecem ser sem serventia, e, em 39,5.9, ainda se dirige ao asno e ao touro selvagens. Deve-se certamente concluir disso que com maior amor ainda Deus se dedica ao ser humano. Para bem outra direção da crítica aponta Jó 28. Aqui o foco se dirige ao homo faber, o ser humano em constante atividade, que já descobriu os instrumentos de mineração, que abre trilhas e fendas nas rochas, para trazer tesouros de ouro e pedras preciosas à luz do dia. Mesmo assim, não descobre com isso o esconderijo da sabedoria. Ela poderia desvendar-lhe os mistérios do mundo. Mas a pessoa humana não está em condições de encontrá-la: “Ela está oculta aos olhos dos viventes” (28,21). O texto conclui com resignação. Somente na morte o ser humano terá notícias dela”. A criação, com todo o progresso humano, é, em última análise, um mistério, ao qual somente Deus tem acesso (28,23). Também o louvor a Deus nos salmos sempre volta a referir-se a Deus como criador. Como exemplo, vejamos o salmo 104, no qual se celebra a alegria pela criação de Deus. Não são tons críticos que aqui se elevam. Deus é louvado pelas obras de sua criação. Como arquiteto ele fundou a terra. Depois de apresentar as grandes e pequenas obras da criação, céus e terras, montanhas e vales, bem como a multidão de animais e a 98 totalidade das plantas, o tema passa a ser a dedicação de Deus às suas criaturas, especialmente à criatura humana. Deus alegra o ser humano com pão, vinho e azeite, proporciona alimento a todos os animais em seu tempo devido. Ele permite que navios singrem os mares. Se Deus retrocedesse, tudo o que vive retornaria ao pó. H.-J. Kraus chamou a atenção para o fato de a listagem das obras da criação, que conclui com o ser humano e com toda a obra criada, ter um paralelo já no Hino do Sol de Aquenatom (Amenófis IV). Finalidade do salmo da criação é o cântico de louvor de Javé, com que o salmo inicia e conclui: “Bendize a Javé, ó minha alma! Javé, ó meu Deus, como és grande [...] Que para sempre seja a glória de Javé, que Javé se alegre em suas obras!” (104,1.31). Acrescentando-se mais um pedido, para que os pecadores desapareçam da terra, lança-se um olhar para o futuro escatológico. O tema do Deus criador no Alcorão é o que mais se relaciona com os salmos. Embora sempre retomem referências à criação, há também longas passagens que louvam o criador. Temos uma passagem especialmente penetrante na Sura 55, onde são enumeradas as diversas obras da criação e sua bênção para a criatura humana. A Sura chama-se “O Misericordioso”, designando com propriedade a intenção do texto. Após uma descrição introdutória da misericórdia divina, a Sura é continuamente interrompida pelo estribilho em forma de refrão: “Qual dos benefícios de vosso Senhor quereis negar?”. Os benefícios enumerados, que constituem as obras da criação divina, são de modo geral os mesmos que encontramos no Antigo Testamento: sol e lua, frutos, palmeiras, trigo, água e mar. Aqui também se encontra a criação do ser humano da 99 argila, bem como a criação dos djinn (espíritos) das chamas do fogo. Uma particularidade constitui a diferenciação entre as duas grandes águas, entre águas doces e salgadas, que Deus separa cuidadosamente (55,1-30). O estribilho “Qual dos benefícios de vosso Senhor quereis negar?” indica claramente uma determinada direção. Maomé dirige-se àqueles que rejeitam sua mensagem e/ou que a ela se opõem criticamente. A alusão à criação tem por finalidade recrudescer a certeza da hora do juízo, esperada para breve, com a ressurreição dos mortos. Por essa razão acrescenta-se uma descrição do paraíso e do inferno (55,31-78). A respeito da expectativa de um novo céu e uma nova terra, também presente na Bíblia, tornaremos a falar em outra ocasião. Ainda mais intensamente voltada para a criação como benefício divino em favor da humanidade é a Sura 16,3-21. São detalhadamente expostos os benefícios que o ser humano tem com o gado, os animais de carga e montaria, com a chuva, o trigo, as oliveiras, palmeiras e videiras, com os peixes do mar. A censura volta a dirigir-se contra os descrentes, contra os “que não crêem no além e a rejeitam [a mensagem] orgulhosamente em seu coração” (16,22). Repetidas vezes a criação do céu e da terra com sua diversidade é citada como sinal para as pessoas ajuizadas (2,164; 3,190), como sinal para os crentes (45,3). Isso confirma que na criação é possível encontrar vestígios de Deus. Deve-se então estar disposto a compreender o mundo como criação de Deus. Interessante é o paralelo entre “ser ajuizado” e “ser crente”. O juízo só pode proporcionar conhecimento do criador se sustentado pela fé. Essas conexões de ideias recordam Romanos 1,19-21, 100 onde o apóstolo Paulo expressa em sua profundidade teológica aquilo a que o Alcorão apenas alude. Paulo, que no início de sua Carta aos Romanos descreve em uma ampla visão a perdição de toda a humanidade, o que para ele significa dos pagãos e dos judeus, fala da possibilidade do conhecimento de Deus na e pela criação. Desse conhecimento também eram capazes os “pagãos”, aqueles, portanto, que, à diferença dos judeus, (ainda) não haviam recebido a palavra de Deus revelada na Bíblia, conhecimento que inclusive se impunha a eles. “Pois a sua invisibilidade [de Deus] — seu poder eterno e sua divindade — tornou-se compreensível desde a criação do mundo através das criaturas.” A “realidade invisível de Deus” é o próprio Deus. A possibilidade de conhecer Deus fundamenta-se em sua própria ação criadora. A criação conduz ao criador. O vestígio de Deus está presente na criação. O caminho pode ser trilhado com a razão. A questão que interessa ao apóstolo, porém, não é primariamente a possibilidade do conhecimento de Deus — que de algum modo é já pressuposto — mas a experiência de que os “pagãos” não reconhecem Deus. Apesar de terem de conhecêlo, eles rejeitaram o reconhecimento. Desviaram-se de Deus para adorar obras criadas, que Paulo denomina ídolos. Resumindo mais uma Vez: entender o mundo como criação de Deus e adorar a Deus como Deus por causa de sua criação são um elo que une a Bíblia e o Alcorão. MEDIADORES DA CRIAÇÃO Na fase final do Antigo Testamento desenvolveu-se a representação de que Deus teria criado auxiliares que o 101 haveriam assistido na criação. Esse desenvolvimento, que possivelmente tem um pano de fundo mitológico egípcio, concretiza-se na figura da Sabedoria. A Sabedoria é criatura de Deus, mas foi criada como “a primeira de suas obras”, nos tempos primordiais (Pr 8,22). A seu respeito se diz: “Desde todo o sempre, desde o início ele me criou, e perdurarei para todo o sempre (Ecl 24,9; cf. 1,4). Nesse contexto, para nós é especialmente importante sua participação na criação, que se torna possível por causa de sua preexistência, por causa de seu ser antes de todas as coisas. Ela é a preferida de Deus, sua criança de colo, ela estava presente quando Deus criou o mundo (Sb 9,9). “Javé fundou a terra com sabedoria, e firmou o céu com entendimento” (Pr 3,19). Citar a tendência da reflexão do helenismo, válida também para o judaísmo, no sentido de distanciar Deus um pouco do mundo. Deus não se retira para uma total transcendência, como mais tarde no islamismo, contudo inserem-se entre ele e o mundo instâncias intermediárias. Entre elas encontra-se a sabedoria. A angelologia torna-se também mais importante, os anjos tornando-se mensageiros de Deus para os seres humanos. No judaísmo talmúdico a especulação sapiencial tem sua continuidade. Aparece agora, contudo, sob outro nome. O seu lugar é ocupado pela Torá. O modelo da mediação na criação torna-se mais concreto. A Torá torna-se mestre-de-obras nas mãos de Deus. A Torá afirma: “Eu fui o instrumento de Deus”. Ela foi o plano arquitetônico pelo qual Deus se orientou em sua obra criadora. Aconselhou-se com ela ao iniciar a obra da criação. Por meio dela criou o céu e a terra. 102 Outra função adquire no judaísmo rabínico a Palavra de Deus (memra, de amar, falar). Deus atua no tempo e na história por meio de sua memra, fala aos profetas, liberta Israel da servidão egípcia, protege o ser humano etc. Eventualmente a memra pode ser identificada com Deus. Ela também pode, tal como a Sabedoria, ser entendida como mediadora da criação: “Por meio da minha memra fiz a terra, e pela minha força criei o ser humano sobre ela. Estendi o céu e completei todas as suas milícias”. Conhece o Alcorão a ideia de mediadores da criação? Poder-se-ia pensar que a possibilidade a ela relacionada de transcender a Deus, relegando-o a uma grande distância, viria ao encontro dessa ideia. Nós nos ateremos à palavra árabe amr, que tem parentesco com a palavra hebraica memra, amar. Há diversas passagens em que se diz que Deus dirige o amr, por exemplo: “Vosso Senhor é o Deus que em seis dias criou o céu e a terra, então sentou-se sobre o trono, para dirigir o amr” (Sura 10,3; cf. 10,31; 13,2; 32,5). Conteúdos especificamente cristãos são a mediação por meio de Cristo, o enraizamento da mediação da criação na redenção. Isso está bem distante do Alcorão. Enquanto o Alcorão está interessado em apresentar Deus transcendente e distante, para a compreensão cristã da fé é basicamente central que Deus se explicitou a nós em Jesus Cristo. A MISSÃO DOS ENVIADOS DE DEUS E SEU DESTINO Maomé sabe que Deus sempre voltou a enviar mensageiros ao seu povo, para instruí-lo e para conduzi-lo em 103 seu caminho. Ele também sabe que esses mensageiros via de regra encontraram oposição e rejeição. Nesse caso está especialmente claro que extrai seu conhecimento da tradição bíblica. Isso é atestado pelo fato de ele citar os mensageiros pelo nome. Trata-se de nomes bíblicos, em sua maioria do AT, mas também do NT. É característico para o Alcorão a listagem nominal de mensageiros de Deus. Nessas listagens, largamente espalhadas ao longo do Alcorão, a história do mensageiro de Deus pode ser narrada com maior ou menor riqueza de detalhes. Os nomes podem ser trocados, também não são apresentados em rigorosa ordem cronológica, aparecendo com maior frequência os nomes de Noé, Abraão, Moisés e Jesus. Acrescentam-se ainda, entre outros, Lot, Aarão, Davi, Salomão, Jó. A listagem mais extensa ocorre na Sura 6,84-86: Isaac, Jacó, Noé, Davi, Salomão, Jó, José, Moisés, Aarão, Zacarias (pai de João Batista), João (Batista), Jesus, Elias, Ismael, Eliseu, Jonas, Lot. Esta listagem conclui com as palavras: “Preferimos os judeus entre as pessoas de todo o mundo, bem como alguns de seus patriarcas, de seus descendentes e de seus irmãos. Nós os escolhemos e os conduzimos por um caminho reto. Esta é a conduta correta de Deus” (6,86-88). Portanto, já Noé havia sido enviado como mensageiro ao seu povo, para reavivá-lo. O cenário do dilúvio, ligado a seu nome, que seguiu como castigo pelo fato de ter sido rejeitado, foi muito apropriado para tornar mais palpável o anúncio de um juízo divino. Acerca de uma pregação penitencial de Noé, não há nada de correspondente na narrativa do AT em Gênesis 6s. Maomé estiliza a narrativa de acordo com suas próprias 104 intenções. Também aqui — como já ocorreu na acima analisada narrativa da vocação de Moisés e da sarça ardente — a interpretação está orientada para a sua própria vocação. Assim, Noé prega como Maomé, dizendo que há um só Deus, ameaçando com o juízo divino: “Povo meu, servi a Deus! Vós não tendes outro deus além dele. Temo pela vossa pena num dia de violência” (Sura 7,59; cf 23,23). O que constatamos sobre Noé vale também para os demais mensageiros de Deus. Todos anunciavam o único Deus. Toda a pregação pré-islâmica, tanto bíblica como cristã, transcorre em função da afirmação da crença monoteísta. Ela é aceita. Maomé a resumiu, purificou-a dos desvios, colocando-a novamente em seu devido lugar. Nessa visão altamente simplificada, ele mesmo pode considerar-se posicionado no final de uma lista que atravessa o tempo em continuidade, desde o início da história até seu tempo, desde Noé até Maomé, como selo da profecia. É expressamente constatado que Deus providencia para que essa pregação seja dirigida a todas as gerações. Deus permite a sucessão das gerações e o surgimento de outros enviados (23,31.42). A missão dos enviados é ampliada, não se restringe a Israel como destinatário, mas, em última análise, é dirigida a todos. Noé é enviado a “seu povo” (7,59; quem é esse povo?), Moisés não é enviado aos israelitas, mas ao faraó, com a pregação de um Deus único. Também serve a essa “universalização” o fato de Maomé citar mensageiros de Deus que não são de origem bíblica. Eles são enviados a povos que também não conhecem a Bíblia. Assim, Hud é enviado aos Ad (7,65), Salih aos Tamud (7,73), Suaib aos Madyan (7,85). 105 Também eles conclamam seus povos: “Gente! Servidores de Deus! Não tendes outro deus além delel”. Dos mensageiros pode-se dizer também que foram guiados por Deus (6,84-86; 21,51). Atinge-se assim um conceito característico do islamismo. A ideia de aliança retrocede amplamente no Alcorão. À rejeição dos enviados de Deus segue geralmente o castigo divino. Noé e Moisés constituem exemplos muito expressivos disso, pelo fato de a seus nomes estarem relacionados o dilúvio e o afogamento do exército do faraó, no mar Vermelho. Mas também para os demais mensageiros de Deus o Alcorão apresenta juízos condenatórios. Para Maomé, cada um desses juízos condenatórios é um comprovante de que também aqueles que rejeitam sua mensagem serão atingidos pelo juízo divino, e isso em breve. O juízo é o tom fundamental de sua pregação, ao menos na primeira fase de sua atividade em Meca, onde a rejeição foi grande. Aqui mais uma vez foi possível constatar uma dependência do Alcorão em relação à tradição bíblico-judaica. A partir disso deve ser vista a sua utilização. A atividade e o destino dos profetas antecedem aos de Maomé. A pregação do juízo deles esclarece a sua. Ele encontra-se no final da lista. Também Jesus, nos evangelhos, é integrado na sucessão do envio de profetas, como filho é claro. Ele, como tantos profetas, experimenta não só a rejeição mas também a morte violenta (cf Mt 23,37-39 par.). Antes de nos apresentar a questão do juízo sobre Jesus no Alcorão, é preciso notar que há diferença de categoria entre os profetas. Diz-se expressamente: “Assinalamos uns deles antes dos outros” (Sura 2,253). Assim, Davi e Salomão foram 106 assinalados com especial sabedoria (27,15; 17,55). Também Jesus foi especialmente assinalado. Para os crentes, contudo, vale a regra de que não devem observar essas diferenças (2,136.285; 3,84; 4,152). A mensagem de todos os profetas deve ser aceita: “Aqueles que não crêem em Deus e em seus enviados e que querem estabelecer alguma diferença entre Deus e seus enviados, dizendo: Nós cremos numa parte e noutra não —, querendo manter-se no meio, entre a crença e a incredulidade, esses são os verdadeiros descrentes” (4,150s). Isso está relacionado ao fato de toda a mensagem estar reduzida à afirmação: Existe um só Deus. JESUS – CRISTOLOGIA Chegamos com isso a um ponto central da discussão. O Alcorão também fala de Jesus. Falar de uma cristologia do Alcorão — como em parte se tornou costume —, contudo, não parece justificado. Acerca disso há algumas coisas a dizer. Se nos colocamos na situação dos leitores do Alcorão, que não conhecem a Bíblia e o Novo Testamento, constatamos que eles têm pouca informação sobre Jesus. Maomé certamente introduziu Jesus no Alcorão e sobre ele falou, por se julgar o último profeta, portanto também profeta posterior a Jesus. Ele se considerava dentro da linha dos bíblicos enviados de Deus. Assim, ele obrigatoriamente tinha de colocar também Jesus nessa ordem. É inquestionável que ele tenha conhecido e assumido tradições bíblicas, inclusive neotestamentárias. Contudo, é aconselhável distinguir as Suras que têm por objeto Jesus das que possuem paralelos nos evangelhos. Estas, no 107 Alcorão, não são designadas como ditos de Jesus. Por isso devem ser tratadas como elementos autônomos, por não acrescentarem nada à figura de Jesus no Alcorão. O tom muitas vezes é polêmico. A polêmica, contudo, não se dirige contra Jesus, mas contra “as pessoas da Escritura”, entre as quais estão também os cristãos, pois Maomé acredita que os cristãos teriam falsificado a figura de Jesus — eles teriam deixado de ser uma unidade — e que ele teria recuperado a verdadeira figura de Jesus. A acusação que ele dirige aos cristãos é terem feito dele um Deus — essa acusação é dominante — e de Maria, sua mãe, uma deusa. Na concepção de Maomé, essa é a trindade da fé cristã: Alá (Deus), Jesus, Maria. É óbvio que aqui; se trata de grosseiros mal-entendidos. Com essa base uma discussão é muito difícil. Rejeitando o título de Filho de Deus para Jesus — como de resto para todos os outros —, Maomé abandona a tradição bíblica, aliando-se a uma outra imagem não-bíblica de Deus. De tudo isso que apresentamos sobre Jesus, nada consta no Alcorão. Mesmo assim ele fala de Jesus com grande respeito. Ele é citado em muitas Suras. Assim, ao lado de Abraão e Moisés, é a pessoa bíblica mais citada. Jesus é encaixado na visão muçulmana do caminho de salvação. Isso é importantíssimo de ser observado, mesmo que neste ponto Maomé mais uma vez dependa claramente das tradições bíblicas. O mais das vezes Jesus é chamado filho de Maria. Seu nascimento virginal é pressuposto. José, esposo de Maria, não é citado. Singularmente, a perícope da anunciação do nascimento de Jesus pelo anjo Gabriel, em cujo centro está a virgindade de 108 Maria, é a única história detalhada sobre Jesus narrada pelo Alcorão (cf Lc 1,26-38). A ela voltaremos. Na Sura 19,30-33, Jesus fala sobre si mesmo nestes termos: “Eu sou o servo de Deus. Ele me deu a escritura e fez-me seu profeta. Ele me tornou uma bênção em qualquer lugar onde eu esteja, recomendou-me a oração e a esmola para todo o tempo de minha vida e que seja piedoso com minha mãe Maria. Ele não me constituiu um soberano violento portador de desgraça. Bendito o dia em que nasci, bendito o dia em que morrer, e o dia em que novamente serei despertado para a vida”. É esclarecedor o fato de ser o menino Jesus quem assim fala (cf 19,29). Com estas palavras afirmam-se aspectos nobres e respeitáveis acerca de Jesus. Com o termo escritura quer-se indicar o evangelho. O dia do seu despertar para a vida após sua morte não é a ressurreição dos mortos no terceiro dia, conforme a fé cristã, mas o despertar para a vida no fim dos tempos, do qual todos participarão. A tarefa de ser profeta ele partilha com outros mensageiros de Deus, como João Batista (3,39), e com outros, enviados que foram assassinados (4,155), e também com Maomé, que claramente vale como selo dos apóstolos. O acréscimo à auto-apresentação do menino Jesus em 19,34: “Este é Jesus, o filho de Maria. É a palavra da verdade, da qual eles desconfiam”, é dirigido contra a fé cristã de que Jesus é o Filho de Deus. Portanto: é só filho de Maria, não Filho de Deus, pois o texto continua: “Não é adequado a Deus tomar um filho para si” (19,35). Onze vezes Jesus é citado com o nome Cristo, três vezes ele é denominado Jesus Cristo. Mesmo assim não se pode reconhecer que Cristo seja um título messiânico. Cristo é 109 tomado como nome próprio, costume que também havia se tornado comum bem cedo no ambiente cristão. Isso tem a ver com o fato de a confissão Jesus Cristo, isto é, Jesus é o Cristo, o Messias, ser de grande significado especialmente para os judeocristãos. No ambiente étnico-cristão essa confissão em parte quase caiu no esquecimento. Discutida é a designação de Jesus como Palavra de Deus, um uso que ocorre especialmente em conexão com a concepção e o nascimento de Jesus. “Cristo Jesus, o filho de Maria, é apenas o enviado de Deus e sua Palavra [kalima], que Ele infundiu [inspirou?] em Maria [alqaha+” (4,171). De modo semelhante soa a Sura 3,45 em relação à anunciação; os anjos dizem a Maria: “Deus te anuncia uma palavra sua, cujo nome é Jesus Cristo”. Estas passagens não têm nada a ver com a cristologia neotestamentária do Logos, segundo a qual Cristo é o Logos eternamente preexistente (cf Jo 1,1). Elas indicam o poder criador de Deus. O nascimento de Jesus sem pai, que o Alcorão assume de Lucas 1, é para ele exclusivamente expressão do poder criador de Deus. “Este é o modo *de agir+ de Deus. Deus cria o que quiser. Quando ele decidiu algo, ele apenas diz: Seja! Então isso existe” (3,47). Por isso, para o Alcorão, a criação de Adão é uma obra mais grandiosa ainda do que o nascimento de Jesus sem o concurso de um pai, pois Adão não teve pai nem mãe (cf 3,59; 15,26-30). De Jesus pode-se dizer que Deus lhe deu “as provas claras” (2,87.253), que ele o fortaleceu com o espírito santo (2,87) ou que ele o constituiu como sinal (21,91; 23,50: juntamente com Maria), ou que ele veio como um sinal (23,49). Mas mesmo isto, apesar de distingui-lo, coloca-o na linha dos 110 demais enviados de Deus e profetas. As “provas claras” e os sinais não se diferenciam muito entre si. As provas claras referem-se mais à clareza e à solidez da doutrina, os sinais atestam o poder de Deus e podem incluir também milagres. As essenciais divergências em relação à tradição neotestamentária estão na caracterização de Jesus. Em Lucas 1,32s o anjo Gabriel diz a Maria sobre Jesus: “Ele será grande, e será chamado filho do Altíssimo. E Deus, o Senhor, lhe dará o trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e seu reinado não terá fim”. O reino de Jesus, sua descendência de Davi e, principalmente, sua filiação divina estão ofuscados no Alcorão. Jesus é visto como mensageiro de Deus que ensina a Escritura. Em última análise, não trouxe nada de novo. O cristianismo, como o islamismo, é visto como religião do Livro. O ponto decisivo de divergência entre o Alcorão e o Novo Testamento está no significado de Jesus, tanto em sentido pessoal como no relevante sentido salvífico, soteriológico. O centro da fé cristã é a confissão de Jesus como Filho de Deus, no qual Deus a nós se revelou, e como redentor da humanidade, e que em sua morte na cruz e ressurreição dos mortos Deus nos concedeu a salvação e a redenção. Ambos os aspectos, filiação divina e redenção por ele operada, são amplamente testemunhados pelas escrituras do Novo Testamento. Eles são a quintessência da fé cristã. Ambos esses aspectos não só são negados no Alcorão, mas em parte também são combatidos com dura polêmica. “Descrentes são aqueles que dizem: Deus é Cristo, o filho de Maria, uma vez que Cristo disse: Filhos de Israel, servi a Deus, o 111 meu e o vosso Senhor. A quem acrescentar [outros] a Deus, Deus negará a entrada no paraíso. O fogo do inferno o devorará” (5,72). “Este é Jesus, o filho de Maria. É a palavra da verdade da qual duvidam. Não é decente que Deus adote um filho” (19,34s). “Crede em Deus e em seus enviados. Não digais: três” (4,171). A última frase dirige-se contra a fé trinitária cristã. A palavra acrescentar (sirk) neste contexto significa: colocar outros deuses ao lado de Deus. Tal como Maomé compreende a fé trinitária cristã, ela de fato mereceria ser rejeitada. Ele a compreende como uma espécie de politeísmo pré-islâmico, como era praticado em sua pátria árabe, contra o qual ele saiu em luta. “Eles deram participantes a Deus, os Djinn embora ele os houvesse criado. Sem razão, atribuíram-lhe filhos e filhas. Louvado ele seja! Ele é superior ao que eles dizem. O criador do céu e da terra, de onde deveria ele ter um filho, uma vez que não tinha companheira, tendo Ele criado tudo?” (Sura 6,100s). Maomé não tomou conhecimento de que a fé trinitária cristã reforça a fé no Deus único, tornando-a de fato plausível. A ideia da encarnação da Palavra eterna em Jesus Cristo também lhe é estranha e, por fim, não-coadunável com sua imagem de Deus. Se, conforme sua noção da fé trinitária cristã, ao lado de Deus e de Jesus também Maria, a mãe de Jesus, é uma deusa, o seu ponto de partida deve ter sido a perícope da anunciação do nascimento de Jesus pelo Espírito de Deus”. A consequência deverá ter sido: se Maria gerou Deus, também ela deve ser deusa, o que ele precisava repudiar. Ele não podia conceder que para a fé cristã Cristo fosse uma pessoa humana real. Enfim, surge aqui a fundamental divergência sobre a compreensão de Deus. Enquanto para o 112 Alcorão Deus persiste em sua absoluta transcendência, segundo a fé cristã ele se torna um de nós, torna-se pessoa humana, torna-se alguém absolutamente próximo a nós. Também é lógico que Maomé rejeite a filiação divina dos seres humanos. Já tivemos oportunidade de ver que ele não assume a noção de que o ser humano seja imagem de Deus. Igualmente diz: “Os judeus e os cristãos dizem: Somos filhos de Deus e seus prediletos. Dize: Por que então ele vos castiga por causa de vossa culpa? Não! Vós sois criaturas humanas que Ele criou” (5,18). Conforme a noção cristã, a filiação divina de Jesus tem por finalidade que também nós sejamos levados a essa proximidade de Deus, tornando-nos seus filhos e filhas. “Os que ele [Deus] conheceu [escolheu] de antemão, ele também predestinou a serem igualados à imagem do Filho, para que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,29). Assim como Jesus se dirigia a Deus dizendo “Abbá, querido Pai” (Mc 14,36), igualmente o podem fazer os cristãos no Espírito Santo (Rm 8,15; Gl 4,6). As afirmações do Alcorão sobre o fim de Jesus — conforme a compreensão cristã, morte na cruz e ressurreição dos mortos — são muito raras. Elas deram também ensejo a muitas interpretações: Jesus teria morrido de morte natural, Jesus teria sido crucificado, Jesus não teria morrido, mas teria sido elevado ao céu. Ou então se pensava que Maomé teria mudado sua opinião, de modo que seria possível interligar diversas compreensões, embora ocorressem numa sucessão cronológica. Não é fácil chegar a uma conclusão. Em todo caso, está claro que a morte de Jesus, mesmo a morte de cruz, não tem nenhum significado salvífico. 113 DITOS DE JESUS NO ALCORÃO? Numa indagação sobre ditos de Jesus no Alcorão, deve-se constatar desde o início que eles não são caracterizados como tais. Em nenhum lugar, em relação a determinado dito, se afirma que Jesus tenha dito isso ou aquilo. O dito do camelo e do buraco da agulha tem por objetivo apresentar a dificuldade e até a impossibilidade de um empreendimento. Em Mateus 19,24 para ele apresenta a impossibilidade de um rico entrar no Reino dos Céus. A Sura 7,40 observa de modo semelhante: “Para aqueles que declaram como mentira nossos sinais e diante deles se comportam com orgulho, as portas do céu não se abrirão e eles não entrarão no paraíso. Mais fácil é um camelo passar pelo buraco de uma agulha”. As comparações que podemos detectar são de tal forma que se torna praticamente inverossímil uma dependência direta de determinadas passagens sinóticas. Há uma concordância na terminologia, quando no Alcorão se fala de resgate (2,123; 6,70; cf Mc 8,37 par.), endurecimento da cerviz (7,179; cf Mc 4,12; Is 6,9s.), da hora do juízo que somente é do conhecimento de Deus (7,187; cf Mc 13,32 par.), do transporte de montanhas (13,31; Mc 11,23), da boa nova (33,45) ou do reinado de Deus (2,107; 3,26; 4,53s; 5,18). Exemplos de tais analogias ainda poderiam ser multiplicados. De relevância teológica é a ameaça de um pecado imperdoável. Segundo os sinóticos, trata-se do pecado contra o Espírito Santo (Mc 3,28s). Sua interpretação implica uma série de dificuldades. Pode-se comparar no Alcorão: “Aqueles que crêem 114 e então passam a ser descrentes, tornam a crer para voltar a ser descrentes, tornam a crer para mais uma vez se tornar descrentes, e nisso perseverarem, a esses será impossível que Deus perdoe” (4,137) Esta sentença, elaborada a partir de experiências práticas, aproxima-se mais de Hebreus 6,4-6. Também ali se aceita a impossibilidade de penitência para os que, uma vez iluminados, voltaram a desgarrar-se. A COMUM REFERÊNCIA E ABRAÃO Judaísmo, cristianismo e islamismo não só são denominadas as três religiões monoteístas, mas resumidas neste conceito comum. Comum a elas é também a referência a Abraão. Por isso se fala também nas três religiões abraâmicas. Essa referência a Abraão tem maior no judaísmo e no islamismo do que no cristianismo. Mesmo assim ela adquire significado importante, porque é uma volta às raízes. É evidente que nessa orientação há diversas acentuações. Mas Abraão permanece uma chave obrigatória. A seguir tentaremos reconhecer Abraão como raiz comum e simultaneamente observar como essa raiz se subdivide. Claro que Abraão tem sua origem na Bilília hebraica do judaísmo e que o cristianismo e o islamismo — no Alcorão ele se chama Ibrahim — se servem dessa fonte, quando dele falam. Comecemos, pois, com o Antigo Testamento e o judaísmo. A história de Abraão dá início no Livro do Gênesis à história de Deus com seu povo. À história da criação, em cujo topo se encontra Adão, segue a história dos patriarcas, dos quais o primeiro é Abraão. 115 A história de Abraão introduz o patriarca com as seguintes palavras: “E Javé falou a Abraão: Sai da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, abençoar-te-ei e tornarei teu nome grande, e tu serás uma bênção. Abençoarei os que te abençoarem, e quem te amaldiçoar, eu amaldiçoarei, em ti serão abençoadas todas as gerações da terra. Abraão então partiu, como lhe havia ordenado Javé, e Ló partiu com ele. Abraão tinha a idade de setenta e cinco anos, quando deixou Harã” (12,1-4). É importante, não somente por causa da comparação com o Alcorão, chamar desde o início a atenção para a especial relação com Deus que Abraão consegue ter a partir do chamado de Deus. Ele é escolhido por Deus. Em conexão com a escolha de que foi alvo, dele é exigido um profundo desprendimento, triplamente expresso: de sua terra, de sua parentela (entendida como clã mais amplo), de sua família (em sentido mais estrito). Não está dito expressamente que ele deva abandonar os ídolos que ele adorava na terra de onde partiu, ideia que para o Alcorão constitui o ponto central. Em outra passagem alude-se a essa ideia. A especial relação com Deus que Abraão alcança e o restante de sua vida em sentido abrangente constituem, fundamentalmente, o tema da história de Abraão em Gênesis 12-25 e também das seguintes histórias dos patriarcas, referentes a Isaac e Jacó, descendentes de Abraão. Repetidas vezes Deus se revela ao patriarca. Sela com ele uma aliança e renova a promessa de multiplicar sua descendência e de torná-lo pai de muitos povos. A aliança está ligada à mudança de seu 116 nome (de Abrão para Abraão), interpretado como “pai da multidão” (Gn 17,1-8). Em seu especial relacionamento com Deus, Abraão é posto à prova. Ele supera a prova. A cena que teve o maior alcance no efeito histórico encontra-se em Gênesis 15,1-6. Aí mais uma vez é apresentada, cenicamente, a promessa feita de uma numerosa descendência. Abraão queixa-se diante de Deus pelo fato de não ter filhos: “Não me destes descendência e um dos servos de minha casa será meu herdeiro”. Diante disso ele é conduzido para fora. Tão numerosa quanto as estrelas do céu será a sua descendência. Segue então a sentença decisiva para a tradição neotestamentária (paulina): “Ele creu em Javé, e lhe foi tido em conta de justiça”. Numa situação crítica, ele se comportou de forma adequada à sua relação de aliança com Deus, e isso é reconhecido por Deus. Abraão confia em seu Deus. Ambos, obediência da fé e confiança em Deus, entram em ação na mais conhecida história do ciclo de Abraão, com a ordem de Deus para que ofereça seu filho Isaac, que entrementes havia nascido de Sara (Gn 22,1-19). A história parece absurda, e não só de nosso ponto de vista, já que Isaac era o filho da promessa. Com isso exige-se praticamente um final feliz. A obediência, mesmo assim praticada por Abraão, é reconhecida pelo anjo de Deus, não deixando de deslocar substancialmente a essência da promessa. A promessa livre e graciosa de Deus torna-se condicionada, quando o anjo diz: “Porque fizeste isto, porque não me recusaste o teu único filho, eu te abençoarei abundantemente e te darei uma posteridade numerosa como as estrelas do céu e a areia que está na praia do mar” (22,16s). De resto, segundo a tradição bíblico-judaica, o 117 monte Moriá, o lugar onde Abraão deveria sacrificar seu filho — sacrifício que Deus evitou no último instante (22,2) —, é o monte do Templo em Jerusalém, enquanto segundo a tradição islâmica seria a Caaba em Meca. Para a comparação Bíblia/Alcorão é de grande significado Ismael, o filho que Abraão gerou com sua escrava Agar no Egito. Enquanto a tradição israelita remonta à linha Abraão-Isaac, a muçulmana remonta à linha Abraão-Ismael. O conflito entre as duas mulheres, Sara e sua serva Agar, consiste no fato de Ismael ser mais velho do que Isaac, podendo reivindicar o direito de herança, embora antes a estéril Sara houvesse conduzido a serva a Abraão (Gn 16,116). Também Ismael recebe de Deus a promessa de uma numerosa posteridade (16,10): “Eu farei dele uma grande nação” (21,18). Por meio dele realiza-se a promessa de que Abraão será pai de numerosos povos, e não somente o ancestral de Israel. Mas já em Gênesis 21,12 se faz uma severa distinção: “É por Isaac que tua geração perpetuará o teu nome”. Agar e seu filho Ismael — por exigência de Sara — são expulsos por Abraão. Eles fogem para o deserto de Parã, na direção do Egito. Graças ao socorro de um anjo eles sobrevivem, encontrando uma fonte de água Ismael casa-se com uma egípcia (21,8-21). Interessante é a sua caracterização: como um asno selvagem, estará em conflito com todos (16,12). No deserto surge uma tribo forte, estranha e, mesmo assim, aparentada com Israel. Seu ancestral Ismael é filho de Abraão. No judaísmo começa-se a narrar histórias detalhadas sobre a conversão de Abraão da idolatria ao culto do único e verdadeiro Deus, do politeísmo ao monoteísmo. O que no Antigo Testamento era apenas aludido torna-se agora objeto da arte 118 narrativa oriental. Essas histórias encontram-se com sua maior riqueza de detalhes no Apocalipse de Abraão 1-8 e no midrash Bereshit Rabba a Gênesis 11,28. Para o Alcorão elas são de grande significado, como ainda veremos. Segundo essas narrativas, Taré, pai de Abraão, é um zeloso idólatra. Ele inclusive fabricava ídolos e os comercializava. Abraão chega ao conhecimento do único Deus pelo caminho da reflexão racional. Surge daí uma desavença. Abraão esforça-se em vão — novamente pelo caminho da racionalidade: Deus é incomparavelmente maior do que o fogo, a água, o sol, a lua e as estrelas — para convencer seu pai acerca do monoteísmo. Em consequência, Taré entrega Abraão ao fogo, do qual, porém, é salvo milagrosamente. No Novo Testamento, o significado histórico-salvífico de Abraão é plenamente reconhecido. Jesus fala do Deus; de Abraão, de Isaac e de Jacó (Mc 12,26). Estar à mesa com Abraão, Isaac e Jacó significa vida eterna (Mt 8,11 par.). No Alcorão, Abraão é denominado hanif. Essa caracterização também tem a ver com o desenvolvimento de Abraão tal como nos é apresentado no Alcorão. O conceito de hanif é delimitado negativamente. Como hanif Abraão não era pagão, isto é, era alguém que não cultuava os ídolos: “Segue a religião de Abraão, que foi um hanif— ele não era um pagão” (16,123). Como hanif ele também é excluído dos judeus e dos cristãos, que também o reclamam para si. “Abraão não era nem judeu nem cristão. Ele era bem mais um hanif submisso a Deus, ele não pertencia aos pagãos” (3,67). Com a formulação “hanif submisso a Deus” (hanifan musliman) dá-se a entender a sua tendência ao islamismo desde o início. A palavra hanif já era 119 usual antes de Maomé, empregada no sentido de “piedoso”. Para Maomé eram hanif aqueles que não eram nem judeus nem cristãos, mas estavam em busca de Deus. Nessas pessoas operou-se uma transformação que as levou a abandonar a idolatria, aproximando-se da fé no Deus único. Não somente Abraão experimentou essa transformação, o próprio Maomé também a realizou em sua própria pessoa. Ele mesmo se compreende como um hanif (10,104s.). Ele reivindica, de qualquer modo, ter sido aquele que compreendeu Abraão corretamente: “As pessoas que mais bem compreendem Abraão são aquelas que o seguiram, e este profeta [ou seja: Maomé] e os que crêem [ou seja: seus discípulos+” (3,68). A etimologia de hanif é discutida. Entre outras possibilidades, pensa-se na palavra hebraica hanef (hipócrita) ou na palavra árabe hanif (secessionista). Com isso tocamos em dois campos dignos de nota. Por um lado, a retrospectiva para o que é anterior ao Alcorão. Por outro lado, a observação de que Maomé narra e formula a história de Abraão à luz de suas próprias experiências. Na vocação do patriarca ele vê prefigurada sua própria vocação. Já pudemos fazer observação semelhante quanto à vocação de Moisés junto à sarça ardente. Percebe-se aí uma extraordinária consciência de missão. Ele próprio se entende integrado na fileira das figuras do Antigo Testamento. Segundo a Sura 2,129, Abraão ora (com Ismael) pela vinda do futuro enviado, que lerá os versículos aos seus seguidores e ensinará a Escritura e a sabedoria. Está claro que esta oração se cumpriu com Maomé. Conforme a Sura 2,124, Deus diz a Abraão: “Eu farei de ti um Imam para as pessoas”. Futuramente esta palavra se tornará o 120 termo técnico para o puxador de oração (imã). De modo geral ela significa exemplo, designando aquele que toma a frente. A história da visita dos três mensageiros a Abraão junto aos terebintos de Mamrê, quando lhe é anunciado o nascimento de seu filho Isaac, com subsequente juízo condenatório da cidade de Sodoma (Gn 18s), é narrada repetidas vezes (11,69-83; 15,51-77; 29,31-35; 51,24-37), ressaltando sempre o juízo condenatório. Em contrapartida, a história do sacrifício do filho de Abraão ocorre uma vez só (37,102-111). Diversamente de Gênesis 22, o filho é expressamente envolvido na disposição ao sacrifício. Ele reforça sua disposição ao auto-sacrifício: “Pai, faze o que te foi ordenado. Verás, se Deus quiser, que pertenço aos constantes” (v. 102). Pela experiência atual dos tantos que se auto-imolam entre os muçulmanos, lê-se estas palavras com outros olhos. O filho, que Abraão quer sacrificar e que também está disposto a sacrifícar-se a si mesmo, segundo o Alcorão, não é Isaac, como em Gênesis 22, mas Ismael, o filho de Agar. Embora não se cite o nome do filho na narrativa, no final se anuncia a Abraão o nascimento de Isaac, que será um profeta (37,112s). Resulta disso para o texto que o filho a ser sacrificado não seja Isaac, mas Ismael, cerca de catorze anos mais velho. Abraão adquire um enraizamento firme no islamismo por meio da tradição na qual se fundamenta a peregrinação a Meca, o que pode ser constatado em diversas passagens do Alcorão. Abraão construiu a Caaba, que se denomina sua casa, objetivo da peregrinação: “A primeira casa construída para um ser humano é certamente a de Bakka [isto é, Meca], para bênção e orientação de todas as pessoas do mundo. Nela, encontram-se sinais bem claros. É o lugar sagrado de Abraão. Quem nela entra 121 está em segurança. E as pessoas têm diante de Deus o compromisso de fazer a peregrinação à casa, todos os que tiverem uma possibilidade” (3,96s). A região em que a santa casa foi construída denomina-se “vale sem semente”. Ela encontra-se numa região infrutífera. Deve estar livre de ídolos (14,35-37). Segundo a Sura 2,125-128, Abraão teria erguido essa casa juntamente com seu filho Ismael e a teria purificado (dos ídolos) para “aqueles que cumprem a caminhada em seu redor, se inclinam e se prostram” (cf também 22,26-29). Segundo essa visão, Abraão fundamentou essencialmente a religião muçulmana. Embora aqui Ismael fique à margem, está claro que para o Alcorão ele é o filho mais importante de Abraão, que garante a ligação com as origens, e não Isaac e seu filho Jacó, embora eles sempre voltem a ser citados no Alcorão e mesmo chamados de profetas (por exemplo, 37,112). Olhando mais uma vez para o significado de Abraão no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, pode-se mais uma vez constatar expressamente que essas três religiões consideram ter suas raízes em Abraão. Isso pode e deve ser visto como um elemento que as aproxime. Pelas suas origens Abraão pertence ao judaísmo. Cristianismo e islamismo somente tiveram acesso a ele mediante a Bíblia do judaísmo. Quem professa Abraão dirigese — querendo ou não — às raízes judaicas. O islamismo o faz num sentido mais elementar do que o cristianismo, afirmando ter restabelecido a religião de Abraão. Para o cristianismo, Abraão tem grande significado por causa da promessa, que ele recebeu e que afirma que nele todas as gerações da terra serão abençoadas. A palavra de Deus mantém a sua força. Por qual caminho a promessa se realiza? Para o cristianismo, Jesus é o 122 filho de Abraão simplesmente porque nele a promessa se realizou. O que isso significa para a relação do cristianismo com o judaísmo e o islamismo? Ao menos isso: reconhecer no judaísmo suas raízes e ver no islamismo aqueles que, como filhos de Ismael, também devem participar da bênção de Abraão. A IMAGEM DA PESSOA HUMANA À primeira vista, a imagem da pessoa humana do Alcorão concorda amplamente com a da Bíblia — ou, para dizê-lo mais exatamente: as afirmações do Alcorão têm amplas correspondências na história da criação de Gênesis 2,44,16. Isso inclui a história de Caim e Abel em 4,1-16. Refiro-me aos textos sobre a criação do ser humano, sua permanência no paraíso, sua desobediência, sua expulsão do Paraíso e a situação daí resultante e de algum modo definitiva. No Alcorão, evidentemente, não lemos uma história contínua. Antes, os elementos essenciais aparecem isolados, introduzidos em diversas Suras, menos narrativos e mais instrutivos, sempre como palavras de Deus, parcialmente em cansativas repetições. Acena-se especialmente, em diversas ocasiões, ao papel do tentador, do diabo. Para a compreensão da imagem do ser humano na Bíblia e no Alcorão, mais exatamente, para a compreensão da imagem do ser humano no Novo Testamento e no Alcorão, em suas interpretações da história veterotestamentária das origens, deve-se necessariamente levar em conta as tradições interpretativas que surgiram no judaísmo, antes do Novo 123 Testamento e antes do islamismo. Para o Alcorão entram também em questão tradições interpretativas cristãs préislâmicas. Essas indicações já mostram o quanto exatamente neste ponto as três religiões se entrelaçam e quanto o cristianismo e o islamismo dependem do judaísmo. Observemos em detalhes. Segundo Gênesis 2,7 a criação do ser humano consta de dois atos: “Modelou então Javé o homem do pó da terra, soprou em suas narinas um hálito de vida. Assim o homem tornou-se um ser vivo”. A apresentação antropomórfica faz Deus moldar o ser humano como um oleiro. Este é o primeiro ato. Num segundo ato. Deus insufla nesta imagem morta um sopro de vida. Este princípio vital, a respiração, contudo, em termos de antropologia bíblica, não pode ser entendido como alma imortal. A antropologia bíblica é unitária, não dividida ou dicotômica. Se o sopro de vida abandona o ser humano, este recai morto no pó da terra. Se o material do qual o ser humano é feito é pó, sublinha-se com isso sua finitude, sua mortalidade. Tirado do pó, o ser humano retorna ao pó (3,19b). No Alcorão lê-se algo semelhante: “Primeiro ele criou o ser humano do barro. Depois fez sua descendência do derramamento da água desprezível. Modelou-o então e soprou nele do seu espírito. E ele vos fez ouvido, vista e coração. Mas vós sois pouco gratos” (Sura 32,7-9). “Ele fez o ser humano da argila, como um objeto de cerâmica” (55,14; cf 7,11; 15,26; 38,72). O Alcorão é mais instrutivo. A posição proeminente do ser humano sobre todas as demais criaturas ganha expressão na história da criação da Bíblia, pelo fato de ele dar nome a todos os animais (Gn 2,19s). 124 O Alcorão retoma isso e o estende a tudo: “Então *Deus+ ensina a Adão o nome de todas as coisas” (Sura 2,31). A pessoa humana é o único ser dotado da capacidade de linguagem, e assim em condição de apropriar-se intelectualmente das coisas. O ser humano torna-se mandatário de Deus neste mundo. Na narração da criação mais recente, em Gênesis 1, que pouca influência teve no Alcorão, exceto pela notícia de que Deus criou o mundo em seis dias, diz-se que o ser humano deve dominar sobre a terra, relacionando isso com o fato de ele ser imagem de Deus (Gn 1,26-28). O fato de a pessoa humana ser imagem de Deus não é assumido pelo Alcorão, um dado sobre o qual ainda tornaremos a falar. A posição de dominador na criação, que lhe foi outorgada por Deus, poderia ter uma referência na Sura 2,30, onde Deus fala: “Eu estabelecerei um halifa *califa+ sobre a terra”, referindo-se a Adão. Isso, contudo, é controverso, por causa do duplo sentido da palavra halifa. A palavra pode significar tanto “representante” como “sucessor”. No primeiro caso, representante de Deus. No segundo, sucessor, mas de quem? De seres racionais ancestrais que habitavam a terra, que então nada têm a ver com Adão? Dos anjos? Enquadrar-se-ia bem na última possibilidade, de que o ser humano deveria suceder aos anjos na terra, o fato de os anjos terem colocado objeções à criação do ser humano, na Sura 2,30: “Queres estabelecer *sobre a terra+ alguém que lá promoverá a desgraça e derramará sangue, enquanto nós cantamos teu louvor e louvamos tua santidade?”, e que isso leva à divisão no mundo dos anjos. É necessário perguntar por que Maomé narra e claramente dá tanto valor a esta história, que desemboca na sedução do ser humano por Satanás. 125 O conteúdo da história, várias vezes repetida no Alcorão, é breve: após o ser humano ter sido criado e ter demonstrado sua inteligência (dando nomes às coisas). Deus exige que os anjos se prostrem diante dele. Todos o fazem, menos o anjo Iblis. Iblis é o demônio. O nome deriva de diábolos. Com isso. Deus amaldiçoa Iblis. Este roga a Deus por um prazo, para que possa seduzir o ser humano, até o dia do juízo final. Iblis está certo da vitória: “Eu estarei de tocaia contra eles no teu reto caminho. Eu os atacarei pela frente e por trás, pelo lado direito e pelo esquerdo. Tu constatarás que a maioria deles não são gratos” (7,14-17; cf 2,3034; 15,26-40; 17,61-64; 18,50; 38,71-85). A história da queda de Satanás, relacionada com a criação do ser humano, não, se encontra na Bíblia. Ela provém, contudo, da tradição judeo-cristã. Já Sabedoria 2,24 poderia ser uma alusão: “Pela inveja do diabo a morte entrou no mundo”. O interesse de Maomé por essa história, pelo qual estamos indagando, poderia fundar-se no fato de ela colocar drasticamente à vista o perigo da situação ameaçadora do ser humano no mundo, já anunciada em Gênesis 3,15. Isso se ajusta ao caráter eminentemente parenético do Alcorão. A sedução de Adão por Satanás é narrada com diversos matizes. Falta a promessa: “Sereis como Deus” (Gn 3,5). Isso não deve ser por acaso. Em vez disso, lê-se: Tornar-vos-eis anjos ou seres que vivem eternamente (Sura 7,20); conquistareis um reinado que não passa (20,120). A árvore proibida não se chama “árvore da ciência do bem e do mal” (Gn 2,17), mas “árvore da eternidade” (Sura 20,120), isto é, seus frutos proporcionam vida eterna. As consequências da “queda no pecado” são na Bíblia e no Alcorão, em primeiro lugar, a perda do Paraíso. O que 126 significa a perda da proximidade de Deus. Tomemos mais uma questão em que Bíblia e Alcorão, quanto à visão acerca do ser humano, também se correspondem apenas em parte: o ser humano, em virtude de seu destino final, está determinado por Deus ou pode ele decidir-se livremente a favor ou contra o seu chamado? Bíblia e Alcorão pressupõem a liberdade de Deus, e isso significa, em relação ao ser humano, graça divina. Se o ser humano encontra um acesso a Deus, se pode viver sob sua palavra, se atinge seu destino eterno, conforme ambos os livros isso é possível, primariamente, graças à livre bondade de Deus. Mas como se deve julgar a situação daqueles que rejeitam o chamado de Deus? O caminho deles também está estabelecido por Deus? Ou será sua exclusão resultado unicamente de sua livre decisão? Existe uma reprovação divina, isto é, uma predeterminação divina de excluir determinadas pessoas? No Alcorão há algumas manifestações a favor dessa concepção. Citemos algumas: “Se Deus quer que alguém seja abatido pela tentação, tu nada podes fazer a seu favor diante de Deus” (5,41). “Muitos dos djinn e muitos dos seres humanos nós criamos para o inferno. Eles têm coração, com que nada compreendem, eles têm olhos com que nada vêem; eles têm ouvidos com que nada ouvem. Eles são como animais, inclusive decaindo mais ainda” (7,179). “Deus induz em erro quando quer e conduz corretamente quando quer” (14,4; cf 35,8). “Nós cobrimos seus corações com invólucros, de modo que não compreendam, e tornamos seus ouvidos pesados” (6,25). “Tu podes esforçar-te para conduzi-los corretamente. Deus não guia corretamente os que ele induziu ao erro” (16,37). Em 127 contrapartida a essas palavras, há fortes palavras sobre a eleição, como por exemplo: “Ninguém pode crer, a não ser com a permissão de Deus” (10,100). “Quem Deus quer guiar corretamente, a este ele faz inclinar-se para o Islamismo” (6,125). “Deus oferece sua misericórdia de modo especial a quem ele quer” (2,105). Mesmo Iblis, o demônio nada pode fazer contra os predestinados, ao dizer: “Eu confundirei a todos [os seres humanos], exceto os teus servidores eleitos que há entre eles” (15,39s; cf 17,65). Por trás dessas frases pode estar o horizonte da experiência de Maomé, que — principalmente no início de sua atividade — experimentou muitos insucessos. Os crentes foram fortalecidos com esta doutrina. Mas ela também é responsável pela divulgação de uma visão fatalista da vida. No Alcorão não se reflete sobre a relação entre a liberdade de Deus e a liberdade humana. Esta reflexão começa bastante cedo na exegese do Alcorão. Ambas as concepções estão representadas. O livrearbítrio do ser humano é rejeitado ou defendido. Contudo, no islamismo sunita prevaleceu a primeira concepção. No século XX tem início uma tendência ligada ao anseio de desvencilhar-se do colonialismo, visto como fatalismo. A liberdade humana sempre é pressuposta na Bíblia. Impressionantes são as passagens em que o ser humano é chamado à decisão: “Hoje eu invoco o céu e a terra contra vós como testemunha: Vida e morte, bênção e maldição, são colocados diante de ti. Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e tua descendência!” (Dt 30,19). “Estende a tua mão para onde quiseres. Diante do homem estão a vida e a morte. O que ele 128 quiser, lhe será concedido” (Ecl 15,11-20, aqui 17). No Novo Testamento se poderia indicar o ensinamento dos dois caminhos no final do Sermão da Montanha (Mt 7,13s), ou a parábola da casa construída sobre a rocha (7,24-27), em que o ser humano que ouve e pratica as palavras de Jesus é confrontado com aquele que, de fato, ouve mas não pratica. O problema da relação entre a liberdade de Deus e a liberdade do ser humano é aludido em Paulo, mas sem uma reflexão profunda. O ser humano, expulso do Paraíso, recebe também uma palavra de esperança na caminhada. Assim ao menos é a compreensão cristã de Gênesis 3,15, palavra dita por Deus à serpente: “Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua semente e a semente dela. Ela [semente] te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar”. Originariamente a palavra trata da constante inimizade entre o ser humano (em sentido coletivo) e a serpente, da luta entre o bem e o mal. Preparada no judaísmo, no ambiente cristão ela logo foi interpretada individualmente em função do Messias, que submete a serpente (Satanás), tornando-se o Proto-evangelho, o primeiro anúncio da salvação messiânica. Acrescentou-se uma interpretação relacionada a Maria, incentivada pela tradução da Vulgata: ipsa [feminino] conteret caput tuum. No Alcorão lê-se: “Um seja inimigo do outro” (Sura 2,36; ser humano e Satanás). Segundo a Sura 7,24, por ocasião da expulsão do Paraíso, Adão recebeu a promessa de que, embora devesse morrer, também um dia ressuscitaria da terra. Lê-se a mesma promessa na Vida de Adão e Eva 42, onde, contudo, a futura ressurreição de Adão é fundamentada na ressurreição de Cristo. Essa relação possivelmente se explica pela influência 129 cristã, mesmo que o Alcorão não se refira a Cristo. Na história da construção da torre de Babel (Gn 11,1-9) ocorre mais um passo decisivo na história da humanidade. Em sua ânsia de ser como Deus, os seres humanos provocam a ira de Deus. Eles são espalhados sobre a terra e perdem a unidade de linguagem. O Alcorão não narra essa história, mas certamente a pressupõe na Sura 10,19: “Os seres humanos eram uma só comunidade (umma). A partir disso tornaram-se desunidos”. ESCATOLOGIA Antes de nos dedicarmos à especificidade de cada escatologia, verifiquemos as desconcertantes semelhanças no horizonte do pensamento apocalíptico, que podem ser constatadas entre as escatologias judaica, neotestamentária e do Alcorão. Em primeiro lugar, todas as três falam da ocasião do juízo como o “dia”, com diferentes acréscimos, apoiando-se certamente no veterotestamentário “dia de Javé”. Este dia é desejado e esperado como próximo: Jesus, conforme Marcos 1,15, apresentou-se com as palavras: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!”. Paulo diz: “A noite está avançada, e o dia se aproxima” (Rm 13,12). Maomé anuncia: “Aproximou-se a hora e a lua dividiu-se ao meio (Sura 54,1; cf 53,57). É possível calcular a hora. Em última instância, porém, somente Deus sabe quando será a hora (Mc 13,32). Semelhante é o que se diz no Alcorão: “As pessoas querem saber a hora. Dize: Somente Deus o sabe. 130 De onde queres tu sabê-lo” (Sura 33,63) . Se a Sura 22,47 faz os críticos pensarem: “Vê, um dia com o teu Senhor é como mil anos segundo o vosso cálculo”, isso recorda 2 Pedro 3,8, onde o mesmo argumento ocorre quase literalmente. Para as três o último dia é o dia em que os mortos ressuscitam (Dn 12,2s; Jo 5,28s; 1Ts 4,16 etc). Em referência ao dia da ressurreição (Sura 50,42; 75,1) lê-se no Alcorão: “Soará a trombeta [cf 4Esd 6,23; 1Cor 15,52]. É o dia da ameaça. E cada alma vem, acompanhada por um condutor e por uma testemunha” (50,20s). Passam os céus e a terra (Mc 13,24s). O sol será encoberto, as estrelas se precipitarão, as montanhas serão deslocadas (Sura 81,1-14; 56,1-7). O céu será enrolado como um rolo de escritura (21,104; cf 2Pd 3,10-12). Será aberto um livro, no qual estão anotadas todas as ações das pessoas, não lhes será feita injustiça, “nem mesmo de um só fio de tâmara” (Sura 17,71; 18,49). Também esta ideia provém da apocalíptica judaica. O Apocalipse neotestamentário recorre à ideia do “livro da vida”, no qual estão consignados os nomes daqueles que foram salvos (Ap 20,15; 3,5; Enoc etíope 47,3). O Alcorão acentua o aspecto ilusório da vida terrena. Em retrospectiva o ser humano tem a impressão de ter vivido no mundo apenas por um breve tempo, um dia, uma hora. Referese isso também ao tempo transcorrido no túmulo? (cf Sura 23,112: “na terra”?). De acordo com as expectativas apocalípticas, o tempo final anterior ao fim do mundo é um tempo de escalada do mal. Fala-se das dores de parto do messias. No “apocalipse dinótico” (Mc 13 par.) os elementos descritivos apocalípticos do mau tempo final: guerra, terremoto, 131 fome, discórdia nas famílias, descrença (13,5-13), e então, em 13,14-24, a mais aguda tribulação, imediatamente antes do fim. O ponto de cristalização do mal é o anticristo, que pode aparecer sob diversos nomes, como o “homem ímpio” em 2 Tessalonicenses 2,3; como o regente, “que os habitantes da terra não esperam” (4Esd 5,6). É de supor que ele também se oculte por trás da “abominação da desolação” (Mc 13,14). No Alcorão também se encontram tais elementos de expectativa. Possivelmente com o “animal” que Deus faz surgir da terra (Sura 27,82) se esteja indicando aquela força maligna que no cristianismo se denomina “anticristo” A ameaçadora derrota dos povos de Gog e Magog é conhecida no Alcorão (21,95; 18,94; cf Ap 20,8). A mulher que amamenta e a grávida sofrerão mais intensamente (Sura 22,ls; cf Mc 13,17). Característico para aquele dia “ensurdecedor” é a dissolução das famílias: “O homem foge de seu irmão, de sua mãe e de seu pai, de sua esposa, de seus filhos (Sura 80,33-36; cf Mc 13,12). Apesar desses contatos e dessas concordâncias flagrantes nos detalhes apocalípticos, existe uma diferença essencial entre o Alcorão e o Novo Testamento, fundamentada no fato de no Novo Testamento a cristologia, o evento Cristo, constituir o fator determinante, justamente também na escatologia, e não a apocalíptica. O Alcorão desconhece a escatologia presente. Nisso deve ser vista a decisiva diferença em relação à escatologia neotestamentária. Se acima entendemos escatologia como o discurso sobre a ação definitiva de Deus, assim o Alcorão espera essa ação de Deus para o final, no último dia, no dia do juízo final. Naquele dia retornarão a Deus todas as pessoas, tanto as 132 boas como as pecadoras (Sura 2,46; 8,24 etc). Por essa razão a pregação de Maomé está concentradamente orientada para este juízo final: as pessoas devem crer em Deus (e em seu enviado) e no último dia (9,44.45.99; 12,37 etc). Mas o profeta confronta-se com muitos que não querem crer na vida para além da morte e na ressurreição dos mortos. Com essa orientação consequente para o além e para a ressurreição, o Alcorão permanece totalmente dentro do quadro da apocalíptica judaica. A vida no além é descrita com cores vivas, tanto o paraíso como o inferno. Descrições da beatitude celeste não são encontradas na Bíblia. Recordando os sacrifícios humanos que eram oferecidos a Moloc no vale do Hinnom, em Jerusalém, falase na Bíblia desse lugar como o local do castigo para os pecadores (Geena, inferno) (Is 66,24). No Novo Testamento o discurso sobre o inferno ocupa pouco espaço. João Batista fala do “fogo inextinguível” (Mt 3,12 par.). Na pregação de Jesus ele ocorre sobretudo no anúncio do julgamento do mundo (Mt 25,31-46; aqui, 46), que ocorrerá segundo as obras de misericórdia realizadas ou omitidas, isto é, num texto secundário, que não remonta diretamente a Jesus . Com maior riqueza de detalhes encontramos o inferno, no Novo Testamento, no Apocalipse de João (“fogo” e “mar de enxofre”, Ap 20,9-15; 19,20; 21,8). Isso indica mais uma vez que a configuração do lugar de castigo tem seu lugar vivencial na apocalíptica. De lá o Alcorão também recebe a influência quanto a esse ponto. Chama a atenção, contudo, o grande número das amplas descrições do céu e do inferno no Alcorão. Enquanto as apresentações do inferno são marcadas pela apocalíptica, as 133 alegrias celestes, como aparecem no Alcorão, praticamente não possuem paralelos na apocalíptica. Como exemplo para ambos os casos, citemos a Sura 55,856: “Aqueles do lado direito, de que tipo são? E os do lado infeliz, de que tipo são? E os que estão à frente, estes serão os primeiríssimos. Estes são os que estão na proximidade [de Deus], nos jardins das delícias. Uma grande multidão das antigas e poucas das posteriores [gerações]. Reclinam-se, uns diante dos outros, sobre almofadas bordadas a ouro. Entre eles circulam sempre meninos com cálices e jarras e com um copo proveniente de uma fonte e de que jamais terão dor de cabeça e nem se embebedarão, e frutas, conforme desejarem, carne de aves, como quiserem. Há companheiras de grandes olhos [huri], comparáveis a pérolas preciosas, como recompensa pelo que eles [em sua vida terrena] realizaram. Lá não se ouve conversa vazia nem pecaminosa, mas somente a palavra: paz, paz! Os do lado direito, o que são os do lado direito? Eles encontram-se sob árvores de Sísifo sem espinhos e sob cachos de bananas e em sombra espraiada e junto a águas borbulhantes, com muitas frutas, infindáveis e sempre à disposição, e com camas altas. Nós mesmos as [companheiras] criamos, fazendo-as virgens, amorosas e todas da mesma idade, para aqueles do lado direito, uma grande multidão das antigas e uma grande multidão das posteriores. E aqueles do lado esquerdo — o que são os do lado esquerdo? Eles encontram-se no mormaço e na água quente e na sombra da fumaça preta, que não é nem fresca nem agradável. Anteriormente eles viviam na opulência e se obstinavam no crime violento. Eles diziam: quando nós tivermos morrido tornando-nos pó e ossos, por acaso seremos 134 ressuscitados? E também nossos antepassados? Dize: Sim, os antigos e os posteriores serão reunidos todos num lugar determinado. Então, ó enganados e negadores [da mensagem], comereis do sagueiro, enchendo com isso vossos estômagos. Sobre isso tomareis água fervente como camelos com alucinação de beber. Essa será a sua alimentação no dia do juízo. As representações realistas do paraíso pressupõem que este se localize na terra. A vida bem-aventurada após a morte contém felicidade terrena em grau elevadíssimo. O Alcorão fala de um novo céu e de uma nova terra (14,48), de uma segunda e nova criação (30,11; 32,10; 50,15). Deus repete a criação (10,4). Também a Bíblia anuncia um novo céu e uma nova terra (Is 66,22; 65,17; 2Pd 3,13; Ap 21,1). Segundo Apocalipse 21,5 Deus fala: “Vede, eu faço novas todas as coisas”. O primeiro céu e a primeira terra retiram-se e desaparecem (21,1). A esperança de um novo céu e de uma nova terra surge mais uma vez da apocalíptica judaica, na qual tanto o cristianismo como o islamismo a buscaram (cf p. ex., Jub 1,29: No “dia da nova criação”, céu e terra e todas as suas criaturas serão renovadas). De acordo com o Novo Testamento, porém, os cristãos balizados já são vistos como “nova criação” (Gl 6,15; 2Cor 5,17). Eles se entendem como antecipação do novo mundo. Volta aqui a questão decisiva da escatologia presente. Em relação às representações da vida além da morte, numa passagem o Alcorão e a Bíblia se aproximam de modo admirável. Uma importante concordância entre a Bíblia e o Alcorão consiste no fato de em ambos ser exaltado o Reino de Deus. No Antigo Testamento, Deus demonstra ser rei por meio de suas 135 obras libertadoras do povo. O Alcorão em diversas passagens exalta o reinado de Deus, conseguindo com isso, talvez, a maior proximidade com os salmos. “A Deus pertence o reinado sobre o céu e sobre a terra e sobre tudo o que entre eles existe” (Sura 5,18; cf 9,116). No louvor do Reino de Deus os muçulmanos e judeus podem unir-se, podendo também os cristãos a eles juntar suas vozes, mas com o acréscimo de que para eles o Reino de Deus se revelou em Jesus Cristo, embora de modo paradoxal (ver-se a inscrição na cruz em Mc 15,26). JUDEUS – CRISTÃOS – MUÇULMANOS Judeus, cristãos e muçulmanos que surgiram sucessivamente e existiram e lado a lado naturalmente tomaram conhecimento uns dos outros. Isso cristalizou-se na Bíblia e no Alcorão. Deve-se aqui mais uma vez recordar que o Antigo Testamento, ou melhor, as tradições por ele marcadas tornaram-se um importante ponto de referência para o Novo Testamento e para o Alcorão. Uma vez que o Novo Testamento e o Alcorão se apropriam do Antigo Testamento ou de suas tradições (o Alcorão de modo semelhante, mas apenas parcialmente), assim o Novo Testamento fala dos judeus e o Alcorão dos judeus e dos cristãos. Esse é o tema de que agora se tratará. O Antigo Testamento deve aqui, evidentemente, ser distinguido como livro surgido antes do cristianismo e do islamismo. Além disso, deve-se recordar também que os escritos do Antigo Testamento se dirigem a Israel, enquanto o Novo 136 Testamento e o Alcorão têm pretensão universal. Isso constitui a dificuldade fundamental para a avaliação — e concretamente para a relação entre ambas as religiões mundiais, cristianismo e islamismo —, pelo fato de ambas terem essa mesma pretensão universal. O cristianismo certamente tem relações mais profundas e fundamentais com o judaísmo do que o islamismo. O fundador do cristianismo, Jesus de Nazaré, seus apóstolos e os membros da mais antiga comunidade em Jerusalém eram judeus. Esses judeo-cristãos estavam convictos de que em Jesus haviam se cumprido as promessas e esperanças do Antigo Testamento. Sobre essas relações torna-se sempre a refletir, de diversos modos, nos escritos do Novo Testamento. Elas são parte indispensável da autocompreensão da comunidade mais antiga, como pode ser verificado no Novo Testamento. Os cristãos estariam arruinando a si mesmos caso rompessem as relações com os judeus. O Novo Testamento não seria mais compreensível se fosse eliminado seu pano de fundo, isto é, o Antigo Testamento. Assim, para os mais antigos cristãos, provenientes do judaísmo e que começam a levar o Evangelho aos povos, realizando atividade missionária, constitui uma dolorosa experiência o fato de a grande maioria de Israel não acolher o Evangelho. Pelo fato de neste ponto judeus e cristãos se separarem, desligando-se a Igreja da sinagoga, cristãos começam a falar de judeus. Esse é já o caso no Novo Testamento, embora o processo de separação ainda não houvesse terminado. Nos vários escritos do Novo Testamento ele teve desenvolvimento diverso. No Alcorão o discurso sobre os judeus apresenta-se de 137 forma bem diversa. Isso já se mostra ao se falar de judeus e cristãos como um grupo só. Fala-se a seu respeito como “as pessoas da escritura” ou “as pessoas do livro”. Do tratamento “Vós, pessoas da escritura” pode-se tirar uma série de conclusões. Por um lado, ele demonstra que os povos da Arábia ainda não possuem uma “escritura”, Maomé sentindo-se na obrigação de proporcionar-Ihes uma escritura própria, o Alcorão. Por outro lado, Maomé confirma a unidade da Bíblia. Ele notadamente tem conhecimento do “Evangelho” e da “Torá”, tendo-os conhecido dentro do contexto de um livro, a Bíblia. Claro que se deve separar disso a questão sobre o alcance de seus conhecimentos detalhados da Bíblia. Não devem ter sido muito extensos. Mesmo assim, a ideia da pertença mútua de Evangelho e Torá é um indício da presença de judeo-cristãos em suas proximidades. Está claro, além disso, que ele conheceu judeus e comunidades judaicas em Medina. Diferentemente do Novo Testamento, no Alcorão não se fazem maiores reflexões teológicas sobre a relação com o Antigo Testamento e com o judaísmo, no sentido de continuidade, apesar de o Alcorão utilizar largamente o Antigo Testamento. De qualquer modo, trata-se de um número bastante reduzido de textos, repetidos muitas vezes. Isso também tem a ver com o fato de Maomé — à diferença de Jesus — não ter sido judeu. A determinação da relação é outra. Basicamente ela pode ser assim descrita: Torá e evangelho são claramente revelações de Deus vinculantes para judeus e cristãos. Mas com o Alcorão Deus proporcionou ao profeta o conhecimento de sua vontade definitiva. Ela tem sua norma primordial num livro que se conserva no céu e que existe desde toda a eternidade, ao qual 138 foi permitido que Maomé tivesse acesso. As outras escrituras sagradas, ao lado do Alcorão — Torá e evangelho — não correspondem a conhecimentos tão plenos quanto o Alcorão. Por essa razão, elas são supérfluas para o crente do Alcorão. Ele não precisa preocupar-se com os conhecimentos daqueles livros. Algumas citações do Alcorão podem tornar este ponto de vista mais concreto. “Ele *Deus+ enviou a ti *Maomé+ a escritura que contém a verdade, como confirmação daquilo que já existia antes dela. E ele enviou anteriormente a Torá e o Evangelho como norma de conduta para as pessoas” (3,3s). “E nós demos a Moisés a escritura [...] fazendo dela uma norma de conduta para os filhos de Israel. E nós suscitamos dentre eles pré-figuras que se comportaram conforme nossa ordem” (32,23s; cf 6,154). Às pessoas da escritura dirige-se a acusação; “Se eles observassem a Torá e o Evangelho, e o que foi enviado pelo seu Senhor, eles encontrariam alimento, onde quer que fosse” (5,66). Judeus e cristãos obscureceram a verdade (3,71), tornaram-se desunidos quanto à escritura (11,110; 27,76). Mas agora, com o Alcorão, a verdade chegou à humanidade (10,108). A seu respeito se diz: “Esta é a escritura que não comporta nenhuma dúvida. Ela é uma norma de conduta para os tementes a Deus” (2,1). Mas ela é rejeitada pelos judeus e cristãos. Eles tornaram-se incrédulos. “E se a eles é dito: crede naquilo que Deus enviou do alto, eles dizem: nós cremos naquilo que do alto nos foi enviado. Nós negamos, contudo, o que veio depois” (2,89-91; aqui, 91). O que veio depois é agora o único normativo e decisivo. Contra este pano de fundo tornam-se compreensíveis duras palavras: “Entre aqueles que são judeus, alguns deturpam as palavras [da escritura]. Mas Deus os amaldiçoou por causa de 139 sua descrença. Por isso eles pouco crêem” (4,46). “Nós amaldiçoamos os companheiros do sábado” (4,47s). “Aqueles dentre os filhos de Israel que eram descrentes foram amaldiçoados pela boca de Davi e de Jesus, o filho de Maria” (5,78). Os cristãos são atingidos de modo semelhante: “E os cristãos dizem: Cristo é o filho de Deus. É o que eles dizem com a boca. Com isso igualam-se aos que antigamente eram descrentes. Deus os combata!” (9,30). Há ditos que diferenciam com mais intensidade, por exemplo: “Entre o povo de Moisés havia uma comunidade que se deixava orientar pela verdade, agindo em conformidade com ela na justiça” (7,159). “Eles não são todos iguais. Entre as pessoas da escritura há uma comunidade que está correta. Em determinadas horas da noite eles recitam os sinais de Deus, prostrando-se por terra. Eles crêem em Deus e no úiltimo dia, permitem o que é justo, proíbem o que é pernicioso e competem nas coisas boas. Eles são contados entre os justos, e não colherão ingratidão pelo bem que realizam. Deus tem ciência acerca dos tementes a Deus” (3,113s.). Comparativamente, os cristãos ficam em situação melhor do que os judeus: “Tu certamente acharás que aqueles que mais são hostis aos crentes são os judeus e os politeístas [pagãos]. E certamente acharás que aqueles que mais próximos estão dos crentes no amor são aqueles que dizem: 'Nós somos cristãos' [literalmente: nassara]. Isso é assim porque entre eles há sacerdotes e monges e porque não são orgulhosos” (5,82). Certamente é difícil conciliar essas expressões num sistema coerente, pois foram formuladas em diversas ocasiões a partir da experiência do momento. Mas talvez haja uma chance 140 exatamente nessa formulação livre e ainda não cristalizada. Antes de tentarmos uma visão de conjunto, porém, percorramos a Sura 5 em suas declarações sobre judeus e cristãos. Ela parece justamente ser esclarecedora quanto a nosso tema. Palavras de louvor e de maldição estão justapostas. Deus aceitou o compromisso dos judeus e dos cristãos, mas eles o esqueceram (5,12-14). Porém agora chegou a eles o enviado (Maomé). Os cristãos, contudo persistiram em sua fé em Cristo, demonstrando-se incrédulos, os judeus igualmente (5,15-19). Estes últimos fazem guerra contra Deus e contra seu enviado (5,32s). Eles sofrerão terríveis castigos. Judeus e cristãos receberam a Torá e o Evangelho mas deles se desviam (5,43-47). Também os crentes são criticados (5,3). Deus poderia ter constituído toda a humanidade numa só comunidade, mas ele queria prová-la. “Assim, continuai a aspirar pelas boas coisas” (5,48). Essa frase em tom liberal quase recorda a parábola do anel em Natã, o Sábio, de Lessing. Mesmo assim, vêm então maldições selvagens. A maioria das pessoas da escritura são criminosas. Deus transformou alguns em macacos e porcos (5,59s.). Adverte-se contra a amizade com eles (5,51). Retornam então palavras positivas (5,69), principalmente com referência aos cristãos (5,82). Por fim, contudo, eles são vistos como incrédulos, por causa de sua fé em Cristo (5,72). Toma-se a defesa de Jesus e de Maria (5,110-118). Se as pessoas da escritura são vistas como tutoradas, isso atinge sua posição na sociedade islâmica (5,5). Por questão de ordem, é preciso distinguir afirmações teológicas de afirmações jurídicas. Em sua posição jurídica na sociedade islâmica eles estão acima dos pagãos, mas 141 subordinados aos crentes. Teologicamente, são vistos como descrentes. Sua religião está superada. Existe uma saída para a citada concorrência? Voltemos agora ao Novo Testamento! Como já observamos, o judaísmo e o Antigo Testamento estão significativamente presentes no Novo Testamento. A nova comunidade nascente só poderá ser entendida como plena, como tendo atingido sua finalidade, quando nela estiverem reunidos pagãos e judeus. As prerrogativas de Israel são valorizadas sob diversos aspectos, e de modo mais apaixonado no apóstolo Paulo: “Eles são israelitas, a eles pertencem a filiação, a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas, a eles pertencem os patriarcas e deles provém Cristo segundo a carne. Deus, que está acima de tudo, seja louvado para sempre. Amém” (Rm 9,4s). Paulo está convencido disso, mantém-se coerente, na convicção de que o evangelho primeiro deve ser anunciado aos judeus, depois aos gregos (1,16). Os Atos dos Apóstolos mantêm este princípio. Conforme sua apresentação, o apóstolo inicia sua atividade missionária, nas cidades, regularmente nas sinagogas, em Antioquia da Pisídia (13,14), em Tessalônica (17,1s), em Corinto (18,4). Depois de chegar a Roma como prisioneiro, procura em primeiro lugar um encontro com os judeus (28,17). Jesus em sua atividade restringe-se ao território judaico. Ao realizar uma excursão para além das fronteiras judaicas, para o norte, rumo à região de Tiro, ao ser interpelado por uma grega, uma siro-fenícia, que pede a cura de sua filha, ele precisa ser forçado a realizá-la. Ele justifica-se com as palavras: “Deixa que primeiro os filhos *= os judeus+ se saciem. Não é justo tomar o pão dos filhos para lançá-lo aos 142 cachorrinhos [pagãos] (Mc 7,27 par.). Trata-se do mesmo “primeiro” da ordem histórico-salvífica, como em Paulo. Tomando mais um exemplo, do Evangelho de João, remetemos ao discurso do bom pastor. O bom pastor reúne suas ovelhas em redor de si. Mas ele tem ainda outras ovelhas, “que não são deste aprisco”, que ele também deve reunir. Só então haverá um rebanho e um só pastor (10,16). Também nesta imagem se propõe a reunião de judeus e pagãos. O fato de a maioria de Israel rejeitar o Evangelho proporciona consideráveis problemas teológicos para a Igreja. O plano de salvação — por ora — não vinga. Tenta-se trabalhar a questão em retrospectiva escriturística. Percebe-se que já os profetas viveram experiências semelhantes, reflete-se sobre as antigas razões, entre as quais se torna importante a ideia do endurecimento de Israel (Is 6,9s; Mc 4,12 par.; Jo 12,40). Paulo argumenta a partir da liberdade de Deus (Rm 9,6-33). Na luta por Israel ocorrem também ditos duros sobre os judeus. Em Mateus 23 par. alguns estão reunidos num discurso composto, com sete “ais” sobre os escribas e fariseus. Em João 8,44 eles são reprovados como “filhos do diabo”. Uma palavra terrível encontra-se em 1 Tessalonicenses 2,15s: “Eles *os judeus] mataram o Senhor Jesus e os profetas, e nos perseguiram e não agradam a Deus, sendo inimigos de todas as pessoas. E, para completar a medida de seus pecados, eles nos impedem de pregar a salvação aos pagãos. Mas a ira de Deus já os atingiu em toda a sua medida” . Uma posição acerca da descrença de Israel que merece nossa atenção ocorre em Romanos 11. Aqui Paulo apresenta Israel como uma nobre oliveira, na qual Deus, condutor da 143 história, trabalha como um jardineiro. Ele cortou alguns ramos nobres (os judeus), para enxertar ramos silvestres (os pagãos). Os étnico-cristãos devem ter consciência disso, para não se sobreporem aos judeus: “Se te vanglorias, deves saber que não és tu que sustentas a raiz, mas é a raiz que te sustenta” (11,18). Está com isso introduzida uma história na qual Israel — em relação ao Evangelho — está endurecido, mas apenas por certo espaço de tempo. Nesse espaço de tempo os povos serão reconduzidos, mais exatamente: o pleroma, a plenitude, o número completo — não é possível identificar o que se queira com isso dizer exatamente. É o tempo dos pagãos. (Também Lucas 21,24 fala dos tempos dos pagãos, em que os judeus serão arrastados como prisioneiros para todas as nações e em que Jerusalém será arrasada pelos pagãos). Então, porém, todo o Israel será salvo, como está escrito: “De Sião surgirá um salvador, que eliminará toda impiedade de Jacó. Esta é minha aliança com eles, quando eu eliminar seus pecados” (Rm 11,2527). A questão neste contexto é se para Israel há um caminho especial de salvação. Que exista um caminho especial que não passe por Jesus não está previsto no pensamento paulino. O caminho especial consiste em que Israel chegue à salvação pelo desvio que passa pela conversão dos pagãos, e que é o Cristo da parusia que pronuncia a sentença de perdão. Como isso acontece em detalhes não é explicado por Paulo. Paulo fala de um mistério. Deus não esqueceu seu povo, sua oliveira. Sua palavra dirigida a seu povo não pode ser superada. A visão que o apóstolo abre para Israel em Romanos 11 pode e deve ser vista como a última palavra do Novo Testamento em relação ao 144 problema de Israel. Evidentemente, não se trata diretamente dos muçulmanos na Bíblia. Mas por meio do Alcorão eles têm conhecimento de Jesus. Mesmo que saibam pouco sobre Jesus, há pontos de contato. Eles têm presente a mensagem moral de Jesus, sobretudo o Sermão da Montanha do Evangelho de Mateus. Teologicamente, pode-se com legitimidade, sem querer açambarcá-los, aludir a Mateus 25,31-46, a conclusão do discurso escatológico de Jesus em vista do julgamento do mundo. O impressionante nesse discurso está em que se pressupõe um serviço a Jesus e com isso, de algum modo, um culto, que pode ser realizado tanto por não-cristãos como por cristãos. É o serviço aos irmãos mais humildes (e irmãs), com os quais Jesus se identifica. O bem que a eles se fez foi feito a Jesus. É o que o Filho do Homem anunciará no juízo fmal. Essa é uma ponte de compreensão a partir do fim, mas que pode e deve incidir no tempo e na história. Isso não só em nível ideal, mas também no agir prático. INSTRUÇÃO ÉTICA: DECÁLOGO, GUERRA SANTA ETC. Do grande complexo temático “instrução ética” tomamos principalmente aqueles elementos para os quais há paralelos visíveis na Bíblia e no Alcorão. Diferentes acentuações novamente se tornarão claras. No centro da atenção estarão o Decálogo, as “dez palavras”, os “dez mandamentos”, e a ideia da guerra religiosamente motivada, para a qual se consagrou a expressão “guerra santa”. Evidentemente a expressão “guerra santa” não ocorre nem na Bíblia, nem no Alcorão. A ideia da 145 guerra religiosamente motivada, contudo, está presente e merece nossa atenção. O Alcorão está familiarizado com o Decálogo, sempre voltando a reforçar os mandamentos isoladamente, apesar de não ser apresentada em parte alguma uma tábua completa do Decálogo. Mesmo que por vezes haja outra formulação ou a ordem do modelo veterotestamentário não seja observada, a concordância existe. Como exemplo apresentamos a Sura 17,2239. Aqui se encontra lado a lado: “Não coloques outro deus ao lado de Deus [cf 1o mandamento] [...] E ser bondoso para com os pais [4o mandamento] [...] E não cedais à luxúria [6o mandamento] [...] E não mateis [5o mandamento+”. Ou então a Sura 25,68-72: “Não invocar nenhum outro deus, não matar ninguém [...] Não cometer adultério [...] Não dar falso testemunho”. Aqui acrescenta-se o oitavo mandamento. “Temer somente a mim” (2,40), que pode ser comparado com o segundo mandamento, e a advertência a não tocar nos bens dos outros (17,34; cf 23,8; 70,32), com o sétimo. Encontram-se entremeados, em grande número, esclarecimentos detalhados e fundamentações, por exemplo quanto ao mandamento referente aos pais: quando estão avançados em idade, não dizer “que feio” a eles (17,23); enquanto na proibição de matar se reconhece o direito de vingar o sangue (25,68; 17,33); quanto ao adultério masculino, as escravas são excetuadas (23,5). Também são permitidas duas, três ou quatro mulheres (4,3). Intercaladas estão também prescrições próprias, sendo antes de mais nada reforçado o compromisso com a oração e com a esmola. Papel importante tem igualmente a caridade para com os pobres. Terá Maomé 146 conhecido também a introdução ao Decálogo em Êxodo 20/Deuteronômio 5: “Eu sou Javé... teu Deus”? A Sura 2,40 poderia tornar isso plausível: “Ó filhos de Israel, recordai a minha graça com que vos agraciei e cumpri a vossa aliança comigo, assim cumprirei minha aliança convosco”. Seguem mandamentos a ser observados em relação a Deus. Deve-se levar em conta também que se está falando aos filhos de Israel. Fazer guerra em nome de Deus é uma ideia que não é exclusiva do Alcorão. Poder, violência e guerra desde sempre foram as possibilidades negativas das relações culturais entre os povos. Num ambiente marcadamente religioso, era possível contar com Deus como aliado e como ajudante. No Antigo Testamento a guerra está muito presente em textos instrutivos, mas bem mais nos livros históricos. Não raras vezes os intérpretes tiveram atitudes controvertidas diante desses textos. Houve a tendência a reprimir a guerra, por motivos apologéticos, como se ela não existisse. Mas houve também, especialmente em tempos de guerra, por motivos “patrióticos”, a pretensão de apropriar-se dos textos em função dos próprios interesses. Era corrente a ideia de que as guerras do povo de Deus eram as guerras de Deus. Segundo 1 Samuel 8,20, o rei conduz as guerras do Senhor (cf Eclo 46,3). Os inimigos do povo são os inimigos do Senhor (Jz 5,31). O Senhor combate por Israel (Js 10,14) e demonstra sua força na luta (Ex 15,3). Nas dificuldades da guerra Asá clama em sua aflição: “Ó Senhor, somente tu podes ajudar na luta entre um forte e um fraco. Ajuda-nos, Senhor, nosso Deus! Pois em ti nós confiamos e em teu nome nós saímos para o campo de batalha contra esta multidão” (2Cr 147 14,10). Deus orientou a mão de Davi na luta (2Sm 22,35). Sim, conforme 2 Crônicas 32,8 o Senhor conduz as guerras de Israel. Ele vai à frente de Davi para derrotar o exército dos filisteus (1Cr 14,15). Em 1 Crônicas 5,22 fala-se de uma guerra favorecida por Deus. Há leis bélicas, discursos e preces antes da batalha (Dt 20,1-7; 2Cr 13,12; Nm 10,9). O povo deve santificar-se antes da luta, a arca da aliança vai à sua frente (Js 3,511). Essa formulação talvez seja a mais aproximada da ideia de guerra santa. É preciso ver que a guerra, aqui e em outras passagens, está relacionada com a tomada da terra, isto é, por meio dela cumpre-se a promessa de Deus de que ele dará esta terra a seu povo. Deus adquiriu para si o seu povo “por meio da guerra e com mão forte e braço estendido, por meio de grandes obras que provocam terror” (Dt 4,34). Impressão especialmente macabra provocam as notícias sobre a execução do extermínio de diversas cidades, por ocasião da tomada da terra, por exemplo: “Quando os israelitas haviam derrubado todos os habitantes de Hai no campo aberto, na estepe, para onde os haviam perseguido, tendo eles todos, até o último homem, caído a fio de espada, os israelitas se dirigiram contra Hai, passando toda a população a fio de espada (Js 8,2429; cf 10,35-43). Mesmo que também este não seja um relato histórico, devendo ser entendido apenas como uma “notícia de vitória” elaborada com muita distância cronológica, torna-se extremamente necessária uma dura e objetiva crítica teológica. Bem outras tonalidades podem ser percebidas nos escritos proféticos. Cansado do rumor de guerra, Isaías (2,25) apresenta a perspectiva da peregrinação dos povos a Sião no fim dos dias: “Transformarão suas espadas em arados, suas lanças 148 em podadeiras. Uma nação não erguerá mais a espada contra a outra. Não se aprenderá mais a guerrear” (Mq 4,3). No tempo do esperado soberano messiânico da tribo de Davi, haverá paz duradoura (Is 9,6). Esta paz é descrita em cores utópicas: “Então o lobo habitará com o cordeiro, a pantera se deitará com o cabrito. Vaca, leão e ovelha pastarão juntos, um menino os conduzirá...” (11,6-9). No período intertestamentário a esperança messiânica voltará a ser misturada com ideias bélicas. Na comunidade de Qumran promovem-se os preparativos para a guerra escatológica dos filhos da luz contra os filhos das trevas, da qual nos informa o assim chamado Rolo da Guerra. Sob o comando do “sumo sacerdote” que pronuncia a prece no momento da guerra (1Q M 15,4s), o exército se ordena para a luta. A guerra apresenta agora traços cultuais, o que no Antigo Testamento ainda não ocorria. Ela é definida como guerra de destruição (1,10). Seu desenvolvimento é descrito em cores fantásticas e utópicas. Bélica é também a aparição do messias real no “Salmo de Salomão 17”, surgido no século I a.C. (em círculos farisaicos?): “Providencia, Senhor, faze surgir para eles o seu rei, o filho de Davi, no tempo que desejaste, ó Deus, para que ele domine sobre Israel teu servo. Cinge-o com tua força, para que esmague os dominadores injustos, para que purifique Jerusalém dos pagãos que lamentavelmente a pisoteiam, para que, na sabedoria e na justiça, afaste o pecado da herança de Israel, para que quebre o orgulho do pecador como vasos de barro, para que destrua com barra de ferro todo seu ser *...+” (17.21-24). No Novo Testamento, a rigor, a guerra é um tema que não está presente. Em textos apocalípticos ela é esperada com 149 pavor (Ap 6,4; 13,7; 16,14; 19,19; 20,8; Mc 13,7s. par.). Mas a paz é tema tratado. Em Efésios 2,14-18 Cristo é proclamado “nossa paz”. Essa paz implica a paz com Deus, a quem temos livre acesso “em Cristo”, e, com base nisso, a paz entre as pessoas. Se queremos saber algo concreto sobre as possibilidades da paz, é preciso ater-nos ao Sermão da Montanha. Jesus engajou-se de forma quase inimitável a favor da paz e da concórdia entre os seres humanos. Ele proclamou bemaventurados os construtores da paz, prometendo a eles o Reino de Deus (Mt 5,9). Na quinta e na sexta antítese ele exige a renúncia à violência e o amor aos inimigos (5,38-48). Eles devem superar a mentalidade de vingança: “Ouvistes o que foi dito: olho por olho, dente por dente. Eu porém vos digo: não resistais ao malfeitor, mas, a quem te bate na face direita, oferece-lhe também a outra [...] Amai vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem, para que vos torneis filhos de vosso Pai que está nos céus, e que faz nascer o seu sol sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos”. Oferecer a outra face não significa que após a segunda bofetada se estaria autorizado a revidar. Antes, Jesus quer evitar a espiral da violência que, pela ação da contraviolência, acaba em catástrofe. Por mais utópicas que possam parecer suas exigências — com razão foram designadas como as mais radicais —, ele próprio orientou-se em conformidade com elas. Conforme Mateus 26,52, por ocasião de sua prisão no monte das Oliveiras, ele diz ao discípulo que reage com a espada: “Mete a tua espada na bainha, pois todos os que usam a espada, pela espada perecerão”. É preciso admitir, contudo, ao recordar essas palavras em retrospectiva histórica, 150 que os cristãos raramente se ativeram a elas. Mesmo assim, permanece válido este engajamento radical a favor da paz. As orientações do Alcorão acerca da guerra são ambivalentes. Isso tem a ver com o fato de Maomé ter estado envolvido em situações muito cambiantes. Está claro que ele dirigiu guerras. Um sistema que estivesse fechado em si não permitiria desenvolvimento. Citemos inicialmente alguns textos bélicos: “E lutai no caminho de Deus contra aqueles que lutam contra vós, mas não cometais transgressões. Deus não ama aqueles que cometem transgressões. E matai-os, onde quer que os encontreis, e expulsai-os, de onde eles vos expulsaram. Pois sedução é pior do que matar. Contudo, não luteis contra eles junto à santa mesquita, a não ser que eles lutem lá contra vós. Se eles lá lutarem contra vós, então matai-os. Assim é a recompensa dos incrédulos. Mas, se eles pararem. Deus é misericordioso e disposto a perdoar. Lutai contra eles até que não haja mais sedução e a religião pertença somente a Deus” (Sura 2,190-193). Para melhor compreensão do texto, é necessário chamar a atenção para um condicionamento cronológico. Ele se dirige contra os mecanos (“junto à santa mesquita”), que, incrédulos, rejeitaram a mensagem de Maomé e expulsaram seus seguidores. Eles deveriam parar de seduzir, isto é, de provocar o abandono da fé. A sedução é vista como algo pior do que matar. O objetivo é a submissão a Deus, ou seja, à mensagem do profeta. Contra os mecanos ou contra árabes pagãos provavelmente também se dirige a Sura 4,89: “Eles querem que vós vos torneis incrédulos, para vos tornardes iguais a eles. Por 151 isso não tomeis a ninguém deles como vosso amigo, antes que eles tenham entrado no caminho de Deus. E se eles se desviarem, então tomai-os e matai-os, onde quer que os encontreis”. Isoladas do seu quadro histórico, essas instruções ultrapassam seus próprios limites. O mesmo vale para 4,101: “Os incrédulos são para vós um inimigo declarado”, ou “Tendo acabado os meses santos, matai os pagãos, onde quer que os encontreis, tomai-os, cercai-os e espreitai-os em toda parte. Mas, se eles se converterem, se fizerem a oração e praticarem a esmola, então deixai-os seguir seu caminho” (9,5; cf. 9,13; 8,65). Repetidas vezes é recordado que cada um que na luta estiver lutando “no caminho de Deus” pode esperar uma enorme recompensa na outra vida (4,74; 3,157s; 3,195; 9,111; 22,58s). Especialmente concreto é 47,4-6. Deus é declarado comandante de guerra, ao se dizer: “Não fostes vós que os matastes, mas foi Deus que os matou” (8,17). Isso faz recordar a ideia veterotestamentária do Deus guerreiro. A partir de sua experiência Maomé tomou conhecimento de que é impossível converter toda a humanidade ao islamismo. Soa a resignação quando em 11,17 se diz: “Mas a maioria das pessoas não crêem”. Pode-se dizer com Zirker que uma expansão forçada e bélica do islamismo é vista como sem sentido e impossível. “Não há obrigação na religião” (2,256). Somente Deus é capaz de superar o endurecimento das pessoas (cf 10,99; 88,21-24). Mesmo assim a luta é necessária. Mas ela deve acontecer da “melhor forma possível” (16,125) Disso não surge um quadro unívoco. Há tentativas de intérpretes modernos do Alcorão de reinterpretar eticamente a 152 guerra “no caminho de Deus”. Ela neste caso é entendida como luta contra Satanás, que consiste na ascese e na auto-superação. Não se trataria, portanto, de “empreender a guerra em nome de Deus”, mas de “esforçar-se no caminho de Deus”. Aqui também se pode incluir a luta contra o subdesenvolvimento ou genericamente o trabalho humano. Este poderia ser um caminho que leva ao futuro. Este é, tem todos os casos, um caminho melhor do que o da Sura 9,29: “Lutai contra aqueles que não crêem em Deus nem no úiltimo dia, e que não proíbem o que Deus e seu enviado proibiram, e que não pertencem à verdadeira religião — daqueles que receberam a escritura — até que paguem tributo como subjugados”. O Alcorão, para nós na Europa ocidental, continua em grande parte a ser um livro de sete selos. Para aqui aproximá-lo um pouco mais da nossa mentalidade, quer-se na conclusão deste capítulo indicar mais algumas singularidades que determinam o livro sagrado do islamismo. Trata-se da dedicação aos pobres, pedintes e àqueles que estão à margem da sociedade. Poder-se-ia imaginar que as sentenças escolhidas que a seguir serão apresentadas também estivessem na Bíblia. Será necessário restringir-se a alguns exemplos: “Piedade não consiste em que vós dirijais vosso rosto para o oriente e para o ocidente. Piedade consiste em crer em Deus, no último dia, nos anjos, na escritura e no profeta, que se empregue o próprio dinheiro — por mais caro que ele nos seja — em favor da liberdade do parente, do órfão, do pobre, do viajante, do esmoleiro, para alforria de escravos, praticando a oração e pagando o tributo da esmola, cumprindo os compromissos assumidos, sendo paciente na necessidade, no 153 incômodo e em tempos de guerra” (2,177). “Vós não alcançareis a piedade, enquanto não doardes algo que prezais” (3,92). “Não consumais a propriedade dos órfãos, como se fosse vossa propriedade. Isso seria um grande pecado” (4,2). “A ação má e a boa não são deveras a mesma coisa. Evita-a [a ação má] com algo melhor e já aquele com o qual havia inimizade te parecerá um verdadeiro amigo” (41,34). “Quem se dedica totalmente a Deus sendo correto, este tem seu prêmio junto ao Senhor” (2,112). “Deus somente me basta” (9,129). Difíceis de entender são presecrições tais como o açoitamento (24,2.4), cortar as mãos (5,38), vingança de sangue (2,178; cf 2,194). Maomé, contudo, aconselhava paciência (16,126) ou compensação em dinheiro (2,178; 5,45). Poliginia (poligamia) é permitida ao homem, “duas, três ou quatro [mulheres]. Mas se temeis não poder tratar todas com igualdade, então uma só” (4,3). Para Maomé vale uma regulamentação especial muito ampla na Sura 33,50. Pode-se bater em mulheres rebeldes (4,34). A circuncisão ainda não é prevista no Alcorão. No Antigo Testamento é sinal da aliança (Gn 17,9-14). Também o uso do véu pelas mulheres ainda não é conhecido no Alcorão. Fundamento para esta prescrição tornou-se o assim chamado “versículo do véu” na Sura 33,53. Este fala de uma separação entre espaços privados e oficiais por meio de uma cortina. Literalmente: quando uma mulher visitante pede algo às mulheres do profeta, ela “pede atrás de uma cortina”. 154 CONCLUSÃO O presente estudo foi dedicado à comparação entre a Bíblia e o Alcorão. O que pode ser resumido em termos de resultado? Desde o início estávamos conscientes de que o islamismo surgiu num ambiente cultural diverso do ambiente mediterrâneo, dotado de leis e costumes que continuaram a influir naqueles que aderiram a ele. Algo semelhante vale para o cristianismo nascente e o ambiente cultural greco-romano circundante. Havia comunidades judaicas na Arábia, principalmente na região noroeste (Yatrib, Medina). Também deve ter havido comunidades cristãs, mas não é mais possível assegurar em que extensão e número. Comparando a caminhada de Jesus de Nazaré com a de Maomé, percebe-se que ela é de importância decisiva para os fundadores de ambas as religiões. Jesus é rejeitado e crucificado. Maomé, após a rejeição inicial, tornou-se um bem-sucedido legislador, estadista e chefe militar. Comparando a Bíblia e o Alcorão em sentido bastante geral, chama a atenção a grande proximidade. O Alcorão contém muito material veterotestamentário, embora se restrinja consideravelmente aos cinco livros de Moisés. O Novo Testamento está presente em primeira linha por meio de tradições sinóticas. A Bíblia é interpretada de modo próprio. Critério é a adaptação à pessoa, à missão e à mensagem de Maomé. Ao lado disso, também a questão parenética tem seu papel. O Alcorão de fato assumiu material bíblico, mas Maomé 155 defende o ponto de vista de que a Bíblia foi superada pelo Alcorão, ficando com isso reduzida a um documento histórico. O muçulmano não precisa preocupar-se com a Bíblia. Na comparação entre a Bíblia e o Alcorão, perguntamos o que os une e o que os separa. Apresentando agora, em sequência, os aspectos que unem e que separam, estamos conscientes de que esta divisão entre o que une e o que separa se assemelha a uma tarefa de matemática, que somente se entende perfeitamente após feito o cálculo até o final. Mesmo assim apresentamos os resultados, de modo que as leitoras e os leitores tomem consciência da complexidade do processo. Simultaneamente deverão ser apresentadas as passagens de proximidade. Primeiramente, portanto, o que une: 1. Bíblia e Alcorão representam uma religião de revelação. Isso significa que o conhecimento definitivo de Deus somente se tornou possível pelo fato de Deus se revelar e se manifestar, pelo fato de ter falado aos seres humanos; 2. Bíblia e Alcorão representam religiões monoteístas. Isso significa que Deus é único. Rejeita-se o politeísmo, a proliferação de deuses. Os ídolos dos pagãos são vistos como nada. O Alcorão está visivelmente empenhado em aliar-se ao Deus da Bíblia. O Deus do Alcorão é o Deus da Bíblia. Isso se torna claro especialmente nas respectivas compreensões da narrativa da aparição de Deus a Moisés na sarça ardente. Pode também haver uma ligação etimológica entre o nome bíblico El e o nome Alá do Alcorão; 3. Em continuidade com a Bíblia, o Alcorão vê o mundo como criação de Deus. Deus criou o céu e a terra. Deus deve ser 156 louvado pela multiplicidade das boas obras de sua criação. É possível identificar seus vestígios na criação. Deus é adorado por causa de sua criação; 4. No Alcorão sempre se fala de Jesus com palavras respeitosas, jamais de modo pejorativo. Dele se diz que era fortalecido pelo Espírito Santo e que Deus o instruiu na escritura, na sabedoria, na lei e no evangelho. Também a respeito de Maria, a mãe de Jesus, repetidas vezes se fala com veneração. Ela gerou Jesus virginalmente. Afirma-se a virgindade de Maria; 5. Bíblia e Alcorão representam religiões abraâmicas. Isso significa que ambas se referem a Abraão. No Alcorão esse aspecto aparece mais intensamente, uma vez que o Islamismo é denominado religião de Abraão (Sura 22,78). Com essa estrita orientação abraâmica o Alcorão aproxima-se mais ainda do judaísmo, pois para a compreensão do judeu é de central importância ser filho de Abraão. Abraão é modelo para o Alcorão pelo fato de se ter convertido ao monoteísmo. Para o povo judeu Abraão é o patriarca; 6. Em concordância com a Bíblia, o Alcorão ensina que toda a humanidade tem sua origem comum na criação de Adão, ou seja, do ser humano. Em Adão é possível reconhecer a situação do ser humano. Ele é mortal. Foi feito da terra e à terra retornou. Está dotado da capacidade de falar, podendo dar nomes aos animais. Com isso, está no topo da criação. Pela sedução tornou-se desobediente a Deus. Com isso é um ser humano não livre da tentação. Ao assumir também a história de Caim e Abel, o Alcorão também alude à solidariedade de toda a humanidade no bem e no mal: “Se alguém mata uma pessoa *...+ é como se tivesse matado toda a humanidade *...+” (5,32); 157 7. Em concordância com a Bíblia do Novo Testamento, o Alcorão espera pelo “dia” do juízo universal, com a ressurreição dos mortos. O dia está próximo. Essa expectativa determina os inícios tanto do cristianismo como do islamismo. No dia do juízo os livros serão abertos. Somente Deus tem conhecimento da hora. O último tempo, antes do fim, é uma época de escalada do mal. Encontramos essas ideias também na apocalíptica judaica, de modo que se deve contar com uma dependência dessas fontes — mais do que com uma dependência do Novo Testamento; 8. O Alcorão conhece o decálogo, interpretando-o, contudo, em diversos pontos, a seu modo. Isso se aplica especialmente à concepção de matrimônio e família. Observa-se aqui o efeito de estruturas pré-islâmicas. Continua viva a ideia veterotestamentária da guerra em nome de Deus. Deve-se ressaltar a dedicação da ética do Alcorão aos pobres, pedintes e necessitados. A prática da esmola é o mais importante mandamento; Observando a lista dos elementos que unem Bíblia e Alcorão, torna-se claro que o aspecto comum tem sua raiz no Antigo Testamento. Jesus é um capítulo à parte. Mas as concepções em seu conjunto também têm seu efeito sobre o Novo Testamento, onde são reinterpretadas de modo particular. Deve-se dar atenção a essa relação com o Antigo Testamento, que vale tanto para o Novo Testamento como para o Alcorão, e que então é interpretado em direções diversas. Ponto central para a nova interpretação cristã do mundo e da história é a revelação de Deus ocorrida em Cristo. Com isso chegamos ao que separa Bíblia e Alcorão: 158 1. Ponto culminante da revelação de Deus, segundo a compreensão cristã, é Jesus Cristo. Compreender e aceitar isso, contudo, depende de uma compreensão de revelação que se diferencia fundamentalmente da do Alcorão. Segundo o Alcorão, Deus se revela no Livro. O islamismo é uma religião do Livro. Maomé, em visões, viu o Livro celeste, o Alcorão primordial, no qual as verdades divinas estão escritas de modo imutável. Essa imutabilidade vale também para o Alcorão. Deus mesmo não sai de sua transcendência. Para o cristianismo (e para a Bíblia) a revelação de Deus acontece na história. Deus interessa-se pelos seres humanos e por sua história. Em Jesus Cristo ele se torna um de nós, assumindo o sofrimento e a morte do ser humano, para vencer seu destino de morte por meio de sua ressurreição. Denominou-se a compreensão de revelação do Alcorão como enlibração (tornar-se livro), colocando-a em paralelo com a encarnação (tornar-se pessoa humana de Deus em Cristo). Na verdade, com isso estão indicados dois caminhos totalmente diversos de Deus em direção à humanidade. O cristianismo não é uma religião do Livro. Acrescenta-se ainda que o Alcorão tem uma ideia errônea da fé trinitária cristã. Deus, Jesus e Maria seriam as três divindades coexistentes. Isso, de fato, seria politeísmo. O Espírito Santo provavelmente foi entendido como um anjo. Para a fé cristã, a fé no Deus trino é expressão de sua unicidade e de seu amor criador e redentor, com que Ele desce do alto para junto da humanidade; 2. Conforme a fé cristã Jesus é mais do que um profeta, na linha dos antigos profetas. Ele é o Filho, o “Primogênito” entre muitos irmãos e irmãs, que nos quer conduzir e elevar a Deus como filhos de Deus. O Alcorão ataca essa crença com palavras fortes, 159 julgando-a inclusive um pecado imperdoável. É preciso acrescentar, contudo, que o Alcorão neste ponto não ataca Jesus — Jesus não teria tido essa pretensão, mas inclusive a teria rejeitado —, mas as “pessoas da escritura”, que crêem em Jesus como Filho de Deus. Está claro que aqui está o ponto fundamental da separação. Voltaremos a tratar desse ponto. 3. O Alcorão também não tem nenhuma compreensão para com a ideia cristã de redenção. A pessoa redime-se de algum modo por si mesma, observando os mandamentos de Deus. Neste caso é preciso caracterizar o islamismo como religião da lei — em contraposição à religião de redenção. Contudo, somente os predestinados alcançarão o destino eterno. A eles Iblis, o tentador, o diabo, nenhum mal pode fazer, mas somente aos não-escolhidos, os condenados desde o início. Segundo a compreensão cristã Deus também redime as pessoas por meio de sua graça livre. Redentor é Jesus Cristo em sua morte de cruz e em sua ressurreição dos mortos. Ambos estes aspectos são rejeitados no Alcorão. Ele apenas os trata com brevidade. A cruz seria um mal-entendido. A ressurreição de Jesus ocorreria como a ressurreição dos mortos no último dia. Não ficou claro se Maomé pensava num arrebatamento de Jesus mediante o qual Deus o teria livrado das mãos de seus inimigos. 4. A referência comum a Abraão sofre diversas interpretações. Para os judeus, Abraão é o patriarca; para os muçulmanos, o fundador da religião da fé num Deus único; para os cristãos — aqui especialmente para o apóstolo Paulo —, modelo de fé. Segundo Paulo, Abraão creu, como o cristão, no Deus que vivifica, que ressuscita os mortos (Rm 4). Em Abraão, contudo, os caminhos também se separam. Para judeus e cristãos, a linha da 160 promessa segue a linha do filho de Sara, Isaac, para os muçulmanos, a de Ismael, o filho da escrava Agar. 5. Na escatologia o Novo Testamento e o Alcorão se distinguem quanto às suas expectativas. Ambos são influenciados pela apocalíptica, mas os cristãos esperam a volta de Cristo, a comunhão com Ele e a participação na vida divina. Os muçulmanos almejam o paraíso. Mais importante é, porém, que o Novo Testamento tem consciência da presença do definitivo, da irrupção do reinado de Deus. Este quer já agora transformar a humanidade. 6. O enraizamento no Decálogo liga a Bíblia e o Alcorão entre si. No Novo Testamento o decálogo é interpretado no Sermão da Montanha. Ponto alto dessa interpretação é o mandamento do amor aos inimigos. Ele não tem paralelo no Alcorão. Outra questão é em que medida os cristãos o levaram e o levam a sério. Qual é, portanto, a relação entre Bíblia e Alcorão? O que podemos iniciar com os resultados? Pode-se ter em vista um entendimento no andamento das negociações? Seria possível, por exemplo, entender-se sobre o que une, ignorando o que separa? Teologias pluralistas da religião por vezes pensam nesse sentido. Assim procedendo, estaríamos cometendo injustiça a ambas as religiões, ocasionando graves danos a elas. Sua força está na sua propriedade. Só é possível compreender tanto a Bíblia como o Alcorão — judaísmo e cristianismo aqui mais uma vez separados — levando-os a sério como um todo, mantendo as partes que os unem nos seus devidos contextos. Uma análise isolada de textos levaria a resultados enganadores, com os quais nos iludiríamos a nós mesmos. 161 A fé que se manifesta na Bíblia e no Alcorão é expressão da vontade de crer de uma comunidade que vive essa fé, que a preenche com vida, que com ela está a caminho, aqui a Igreja, lá a Ummá, como se denomina a comunidade islâmica de fé. Por essa razão, a aceitação de uma religião é sempre mais a adesão a determinado sistema. Por isso é necessário que os esforços científico-teológicos se restrinjam, reconhecendo seus limites. A confissão de Jesus Cristo, que marca a Igreja cristã, é o ponto de divergência, onde os caminhos se dividem. É a confissão de Jesus, o Messias, o Filho de Deus. Reconhecê-lo como Filho de Deus e nele crer corresponde plenamente à revelação de Deus, da qual o Novo Testamento dá testemunho, correspondendo também totalmente à autoridade da missão de Jesus, que nos anunciou Deus como seu Pai e que a ele orava dizendo “Abbá”. Maomé não estava disposto a assumir essa fé, que ele chegou a conhecer. Em diálogo com muçulmanos não deveríamos colocar este ponto em primeiro plano, mas observar que o Alcorão tem Jesus em grande apreço como profeta, venerando também sua mãe. Acredito que haja dois aspectos na Bíblia e no Alcorão apropriados para nos aproximar. Em primeiro lugar está a referência a Abraão. Com a eleição de Abraão tem início a “história da salvação”, a história de Deus com seu povo. Os povos enveredaram por caminhos diversos. Mas Abraão é para todos nós o pai da fé. Isaac e Ismael de fato tiveram mães diversas, mas tiveram um pai comum. A referência a Abraão em si também poderia ajudar a diminuir a oposição entre judaísmo e islamismo. O segundo aspecto consiste na fé no Deus criador, que 162 traz consigo a consequência de que nós nos compreendemos como criaturas desse Deus. Em muitos hinos de louvor, tanto na Bíblia (salmos) como no Alcorão, celebra-se o criador. É um só acorde que se eleva ao céu. A consciência de sermos criaturas une-nos na responsabilidade pela criação. 163 164