as semelhanças e diferenças entre a bíblia e o alcorão

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AS SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS
ENTRE A BÍBLIA E O ALCORÃO
2
Março de 2016
Charles Guimarães Filho
1
2
INTRODUÇÃO
No mês anterior – fevereiro - elaboramos 34 textos para
postagens no Facebook do Centro Cultural do Paraíso Terrestre
perfazendo um total de 236 páginas, ou seja, em média mais de
um artigo por dia com a proximidade de 7 páginas por artigo.
Não sabendo se a qualidade e a quantidade estavam do
agrado dos amigos, pedimos que eles se manifestassem a esse
respeito, bem como sugerissem questões que lhes fossem de
intensa dúvida para que as abordássemos. Para isso, bastariam
usar a opção “comentários” na postagem que enviamos com o
título “Comunicação 3”. E dissemos que na medida do possível
procuraríamos atende-los. E relembramos que os temas
desenvolvidos por Meishu-Sama são sobre: Deus, Mundo,
Homem, Messias, Religião, Cultura, Johrei, Agricultura, Belo,
Governo, Economia, Ideologia, Saúde, Prosperidade, Paz,
Felicidade, Cidade e Paraíso.
Diante dos comentários elogiosos que recebemos e
ficamos gratos por estes, pois assim termos tidos comprovação
de estarmos servindo. Porém, não houve nenhuma sugestão de
questão para ser tratada, o que nos deixou com a seguinte
questão: o que postar?
Lembramos que quando estivemos com problema
semelhante foram nos sugeridos que abordássemos sobre o
Belo, o que foi feito no mês passado. Nesta trilha consultamos o
nosso controle sobre as manifestações dos amigos no nosso
Facebook e observamos que os cinco primeiros temas pela
ordem são: Cultura, Governo, Belo, Religião e Mundo.
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Ao notarmos que Cultura, Governo e Belo perfaziam um
total de cerca de 90% relativo às manifestações, enquanto
Religião tinha apenas pouco mais de 2% o que nos fez decidir a
tratar deste tema.
E começamos a pensar que muitos livros são tidos como
patrimônio religioso, cultural e politico, em vários países do
mundo. Sagrados ou não, eles são distribuídos gratuitamente
como uma forma de construir um conceito e raciocínio para
todos os interessados. Há muitos relatos colocando esses livros á
frente de todos os outros, mas não existem dados exatos das
quantidades de vendas feitas. A Bíblia, por exemplo, estimam
que já fossem impressos e distribuídos mais de 6 bilhões de
unidades. O Alcorão, livro sagrado do Islã foi fabricado entre 600
a 800 milhões de cópias, impulsionado por uma prática sagrada
de que o livro não deve ser vendido, e sim dado. Se esses dois
não forem os mais vendidos do mundo, com certeza são os mais
lidos.
E aí escolhemos que o nosso objetivo que seria o de
divulgar a analise do que une e separa o Alcorão e a Bíblia acerca
da imagem do ser humano e de Deus, segundo o pensamento de
Maomé, Jesus, Moisés e outros, levando em conta o pano de
fundo histórico da compreensão mútua.
Para isso iniciaríamos apresentando o que se deve saber
para aproveitar plenamente a leitura do Alcorão e da Bíblia.
A Bíblia se sabe que ela compreende dois testamentos:
Antigo e Novo. No total a Bíblia possuí nove livros, sendo quatro
do Antigo Testamento e cinco do Novo Testamento.
Sobre a Bíblia seria feito em dez itens.
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ANTIGO TESTAMENTO: (1º) Pentateuco; (2º) Livros
Históricos; (3º) Livros Poéticos e Sapienciais; (4º) Livros
Proféticos.
NOVO TESTAMENTO: (5º) Introdução aos Evangelhos
Sinóticos; (6º) Introdução aos Atos dos Apóstolos; (7º)
Introdução às Epístolas de são Paulo; (8º) Introdução à Epístola
aos Hebreus; (9º) Introdução às Epístolas Católicas; (10º)
Introdução ao Apocalipse.
Sobre o livro sagrado do Islã também seria feito em dez
itens.
ALCORÃO: (1º) O que é o Alcorão; (2º) Sua importância;
(3º) Conteúdo; (4º) Extensão e ordem dos capítulos; (5º) As duas
classificações: cronológica e literária; (6º) O dogma do Islã; (7º) A
lei; (8º) Narrativas históricas; (9º) Comportamento pessoal e
social; (10º) O estilo.
Finalmente o que une e separa os dois livros sagrados
mais lidos no mundo seriam elaborado em vinte e um itens.
BÍBLIA E ALCORÃO: (1º) Introdução; (2º) Judeus e cristãos
na Arábia antes de Maomé; (3º) Maomé e Jesus – Aspectos
biográficos; (4º) Reconhecimento histórico mútuo; (5º)
Surgimento da Bíblia e do Alcorão; (6º) Valorização e avaliação;
(7º) Visões gerais e subdivisões; (8º) A Bíblia no Alcorão; (9º) A
linguagem figurada; (10º) A imagem de Deus; (11º) O mundo
como criação de Deus; (12º) Mediadores da criação; (13º) A
missão dos enviados de Deus e seu destino; (14º) Jesus –
Cristologia; (15º) Ditos de Jesus no Alcorão?; (16º) A comum
referência e Abraão; (17º) A imagem da pessoa humana; (18º)
Escatologia; (19º) Judeus – Cristãos – Muçulmanos; (20º)
Instrução ética: Decálogo, guerra santa etc.; (21º) Conclusão.
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Para motivarmos a leitura deste trabalho deixamos um
exemplo da semelhança entre estes dois livros sagrados.
Quando Osama Bin Laden declarou guerra contra o
Ocidente, em 1996, ele citou o comando do Alcorão para cortar
as cabeças dos infiéis. “Massacre os idólatras, onde quer que os
encontre, prenda-os, cerque-os, faça emboscadas em todos os
lugares” são algumas instruções de Alá ao profeta Maomé
(Alcorão, 9: 5). E Ele continua: “Faça guerra contra os infiéis e os
hipócritas... O inferno será sua casa!”. Alguém duvida que os
sequestradores, ao embarcarem nos respectivos aviões, em 11
de setembro de 2001, tinham esses trechos do Livro Sagrado em
suas mentes? Que as instruções que eles seguiam vinham
prioritariamente do Alcorão?
E o que dizer da Bíblia? Há passagens no Antigo
Testamento tão ou mais sangrentas que as do próprio Alcorão.
No Livro de Samuel, por exemplo, Deus ordena, com todas as
letras e sem meias palavras, um autêntico genocídio contra o
povo amalequita. “Destrói totalmente tudo que eles têm, não os
poupe”, diz Ele a Saul, através do profeta Samuel. “Matarás
homens e mulheres, meninos, crianças e bebês, bois e ovelhas,
camelos e jumentos.” No fim, como Saul cometeu o pecado
terrível de não cumprir exatamente aquela ordem, Deus retirou
dele o seu reino.
Segundo o historiador Philip Jenkins, autor de alguns
livros sobre o tema, a história do cristianismo está cheia de
referência aos amalequitas. Durante as Cruzadas, na Idade
Média, os Papas católicos os compararam aos muçulmanos. Nas
grandes guerras religiosas nos séculos XVI, XVII e XIX,
protestantes e católicos acreditavam que do outro lado estavam
6
os amalequitas, os quais deveriam ser totalmente destruídos. O
mesmo raciocínio vale para os confrontos entre colonizadores
americanos e os índios locais.
Em resumo trataremos do tema Religião, mais
precisamente de “As semelhanças e diferenças entre a Bíblia e o
Alcorão” em quatro partes: Antigo Testamento; Novo
Testamento; Alcorão; Bíblia e Alcorão.
As três primeiras partes são apenas introduções a Bíblia e
ao Alcorão a fim de facilitar estas leituras.
Tendo em vista que este trabalho ficou em mais de 400
páginas, resolvemos editá-lo em dois livros.
Livro 1 abordando a “Antigo Testamento” e “Novo
Testamento”, enquanto o Livro 2 constituído pelo “Alcorão” e “A
Bíblia e o Alcorão”.
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8
ÍNDICE
Alcorão
011
O que é, importância e conteúdo
Capítulos e classificações
O dogma do Islã
A lei, narrativas e comportamento
O estilo
013
018
022
027
030
Bíblia e Alcorão
037
Introdução
039
I - Antecedentes Históricos
042
Judeus e cristãos na Arábia antes de Maomé
Maomé e Jesus – Aspectos biográficos
Reconhecimento histórico mútuo
042
045
052
II - Comparação Geral
060
Surgimento da Bíblia e do Alcorão
Valorização e avaliação
Visões gerais e subdivisões
A Bíblia no Alcorão
A linguagem figurada
061
062
068
072
078
9
III - Temas Teológicos
087
A imagem de Deus
O mundo como criação de Deus
Mediadores da criação
A missão dos enviados de Deus e seu destino
Jesus – Cristologia
Ditos de Jesus no Alcorão?
A comum referência e Abraão
A imagem da pessoa humana
Escatologia
Judeus – Cristãos – Muçulmanos
Instrução ética: Decálogo, guerra santa etc.
Conclusão
087
095
101
103
107
114
115
123
130
136
145
155
10
ALCORÃO
11
12
O QUE É, IMPORTÂNCIA E CONTEÚDO
No dia 24 de janeiro fizemos uma postagem intitulada
“Maomé e o Islamismo” que teve boa aceitação no Facebook do
CCPT. Esse tema envolvendo essa religião também foi bem
assistido no nosso site www.charlesguimaraesfilho.com.br em
três publicações descritas abaixo.
Publicações > Livros > Livros de Nova Cultura > Encontros
de Temas em Reflexão > Muçulmano é incivilizado
Publicações > Vídeos > Vídeos de Nova Cultura / Política,
Arete, etc. > Encontros de Temas em Reflexão > 7. Muçulmano é
incivilizado
Publicações > Vídeos > Vídeos de Nova Cultura / Política,
Arete, etc. > Encontros de Temas em Reflexão > 07. Muçulmano
é incivilizado
Então resolvemos apresentar o que se deve saber para
aproveitar plenamente a leitura do Alcorão. O que será,
repetindo o que foi dito na Introdução, feito nesses dez itens:
(1º) O que é o Alcorão; (2º) Sua importância; (3º) Conteúdo; (4º)
Extensão e ordem dos capítulos; (5º) As duas classificações:
cronológica e literária; (6º) O dogma do Islã; (7º) A lei; (8º)
Narrativas históricas; (9º) Comportamento pessoal e social; (10º)
O estilo.
Aqui foi empregada a tradução do Alcorão feita por
Mansour Chalita, considerada a edição mais recomendada pelos
estudiosos brasileiros.
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(1º) O que é o Alcorão
Ele é o livro sagrado que contém o código religioso, moral
e político dos muçulmanos. O texto original em árabe clássico é
considerado pelos muçulmanos a palavra textual de Deus,
revelada ao Profeta Maomé por intermédio do arcanjo Gabriel.
(2º) Sua importância
Há algumas décadas, bastava ao homem culto saber que
o Alcorão era o livro que havia fundado uma das três grandes
religiões monoteístas do mundo [que é o Islamismo, as outras
duas são o Judaísmo e o Cristianismo com seus livros sagrados
Torá e Bíblia, respectivamente].
Hoje raramente um dia se passa sem que o Alcorão seja
mencionado no cenário internacional. O aiatolá Khomeini
afirmava que obedecia ao Alcorão quando impunha o xador
(traje feminino usado em alguns países muçulmanos) às
mulheres ou quando mandava apedrejar adúlteros e adúlteras,
executar homossexuais e contrabandistas, proibir a música e a
dança ou fechar as escolas mistas.
Paralelamente, temos assistido nos últimos anos ao
renascimento do Islã militante que, invocando ainda o Alcorão,
está transformando as feições e reorientando a vida de muitos
países desde o norte da África até o sul da Ásia. Em nome dele,
as bebidas alcóolicas são proibidas em todo o reino da Arábia
Saudita. Em nome dele, um ladrão é açoitado em praça pública
no Paquistão. Em nome dele, milhões de mulheres muçulmanos
continuam a cobrir o rosto com véu. Que outro texto legislativo
14
do século VII continua a ser respeitado a aplicado como o
Alcorão?
Decorre desses fatos um contraste que ninguém procura
disfarçar entre a sociedade muçulmana e a atual sociedade
ocidental, liberal e permissiva – contraste que, às vezes, assume
a forma de um conflito de civilizações.
O mesmo conflito se manifesta, aliás, nos próprios países
muçulmanos entre o modernismo e o tradicionalismo. Ataturk
na Turquia e Riza Khan no Irã rejeitaram, no começo do século
XX, a lei do Alcorão e seus costumes e impuseram a lei e os
costumes europeus. Mal haviam morrido, porém, e uma reação
terrível arrasou suas reformas e restabeleceu a lei islâmica.
Embora em diferentes intensidades, o mesmo conflito
renasceu em vários países muçulmanos entre os que defendem
as tradições e os que defendem a evolução, com reflexos
imprevisíveis sobre o futuro. O interesse despertado pelo
Alcorão ultrapassa assim o quadro da cultura geral para integrarse na atualidade política.
O Alcorão é ao mesmo tempo um livro religioso e a obraprima da literatura árabe – nunca igualada antes dele ou depois.
Seu estilo distingue-se pela força e pela originalidade, pela
majestade da palavra inspirada, pela musicalidade e pelo
colorido da poesia oriental.
Como é o caso da maioria dos livros sagrados que
fundaram uma religião, o Alcorão não foi escrito por Maomé
[isso aconteceu no Torá, Bíblia e mesmo com a Messiânica]. Ele,
aliás, não sabia ler ou escrever. Pregava suas ideias ao sabor da
inspiração e das circunstâncias; e naquela época de literatura
oral, seus seguidores retinham-lhe as palavras na memória ou as
15
inscreviam em qualquer material disponível: pele de cabra,
omoplatas de camelo, folhas de tamareira, pedras, pergaminhos.
Após a morte do Profeta, seu sucessor, Abu Bakr,
receando que a mensagem se perdesse com o desparecimento
dos primeiros companheiros e as flutuações dos textos
memorizados, encarregou Zaid Ibn Thabet de reunir todos os
fragmentos. E Osman, terceiro sucessor de Maomé, mandou
organizar o livro definitivo que chegou até nós.
(3º) Conteúdo
Os textos foram repartidos em 114 capítulos (suras),
subdivididos em versículos, num total de 6.235.
Cada sura é como uma preleção na qual os ouvintes são
exortados a seguir determinadas normas morais ou a aplicar
determinadas leis ou a crer em determinadas verdades ou a tirar
conclusões dos fatos históricos que lhes são narrados.
Cada sura possui um título: As mulheres, As abelhas, A
aurora, Os poetas ... Mas não se trata de um título que resume o
assunto como nos livros comuns: é apenas uma palavra ou uma
expressão empregada na sura e que foi escolhida como título.
Por exemplo, note que ocorre com a sura 89 'A Aurora'
com 30 versículos.
Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso
89.1. Pela aurora,
89.2. E pelas dez noites,
89.3. E pelo par e pelo ímpar,
89.4. E pela noite, quando se retira (que sereis castigados)!
89.5. Porventura, não há nisso um juramento adequado, para o
sensato?
16
89.6. Não reparaste em como o teu Senhor procedeu, em
relação à (tribo de),
89.7. Aos (habitantes de) Iram, (cidade) de pilares elevados,
89.8. Cujo similar não foi criado em toda a terra?
89.9. E no povo de Samud, que perfurou rochas no vale?
89.10. E no Faraó, o senhor das estacas,
89.11. Os quais transgrediram, na terra,
89.12. E multiplicaram, nela, a corrupção,
89.13. Pelo que o teu Senhor lhes infligiu variados castigos?
89.14. Atenta para o fato de que o teu Senhor está sempre
alerta.
89.15. Quanto ao homem, quando seu Senhor o experimenta,
honrando-o e agraciando-o, diz (empertigado): Meu Senhor me
honra!
89.16. Porém, quando o prova, restringindo a Sua graça, diz:
Meu Senhor me afronta!
89.17. Qual! Vós não honrais o órfão,
89.18. "Nem nos estimulais a alimentar o necessitado;"
89.19. E consumis avidamente as heranças,
89.20. E cobiçais insaciavelmente os bens terrenos!
89.21. Qual! Quando a terra for triturada fortemente,
89.22. E aparecer o teu Senhor, com os Seus anjos em desfile,
89.23. "E o inferno, nesse dia, for destacado, então o homem
recordará; porém de que lhe servirá a recordação!"
89.24. Dirá: Oxalá tivesse diligenciado (na prática do bem),
durante a minha vida!
89.25. Porém, nesse dia, ninguém castigará como Ele (o fará),
89.26. "Nem ninguém acorrentará, como Ele (o fará);"
89.27. E tu, ó alma em paz,
89.28. Retorna ao teu Senhor, satisfeita (com Ele) e Ele satisfeito
(contigo)!
89.29. Entre no número dos Meus servos!
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89.30. E entra no Meu jardim!
Nessas preleções, os assuntos não são tratados sob
forma de dissertações filosóficas ou teológicas, esgotando-se
cada tema antes de outro ser abordado. Os assuntos são
diversos e um mesmo tema pode retornar mais adiante no
texto. Inevitavelmente há, portanto, muitas repetições, pois
vários assuntos foram desenvolvidos em diferentes ocasiões,
perante públicos distintos.
CAPÍTULOS E CLASSIFICAÇÕES
(4º) Extensão e ordem dos capítulos
Suras e versículos variam muito em extensão. A sura mais
longa (intitulada: A vaca) contém 286 versículos. As três mais
curtas contêm três versículos cada uma (por exemplo, a suma
108 – A abundância - com os três versículos: 01. Sim,
cumulamos-te com a abundância. 02. Reza, pois, a teu Senhor e
a Ele imola os sacrifícios. 03. Quem te odeia não terá
posteridade.). E há versículos formados de uma única palavra
(Suma 74 – O emantado – versículo 040: Perguntarão), e outros
compostos de várias frases (suma 2 – A vaca – versículo 25:
Anuncia aos que creem e praticam o bem que deles será o
Paraíso onde correm os rios; cada vez que lhe provarem os
frutos, exclamarão: “São iguais ao que comíamos na terra”. Lá
terão esposas puras, e lá permanecerão para todo o sempre.)
Oitenta e seis das 114 suras foram reveladas em Meca,
onde Maomé nasceu, em 570, e viveu até a idade de 52 anos; 28
18
suras foram reveladas em Medina, onde se refugiou e morreu
em 632.
Por algum motivo que desconhecemos, nem os versículos
dentro das suras, nem as suras dentro do livro, foram colocados
em ordem cronológica, ou reunidos por assunto. Os temas se
repetem nas diversas suras. Ademais, alguns versículos
revelados em Meca foram incluídos em suras reveladas
posteriormente em Medina.
A única ordem seguida foi colocar as suras mais longas
em primeiro lugar e as mais curtas em último lugar. É essa
ordem tradicional que se encontra em todas as edições árabes
do Alcorão e que foi adotada, naturalmente, na tradução de
Mansour Chalita.
(5º) As duas classificações: cronológica e literária
Há exegetas (aqueles que comentam ou interpretam),
contudo, que procuram substituir essa classificação por duas
outras.
A primeira, baseada em estudos minuciosos, dispõe as
suras por ordem cronológica: o que permite acompanhar a
evolução do pensamento de Maomé desde as primeiras
revelações até as últimas, embora haja algumas variações de um
exegeta a outro.
Classificação Cronológica
Para acompanhar a evolução do pensamento de Maomé
da primeira revelação à última, ler as suras na seguinte ordem:
19
96, 74, 73, 93, 94, 113, 114, 1, 109, 112, 111, 108, 104,
107, 102, 92, 68, 90, 105, 106, 97, 86, 91, 80, 87, 95, 103, 85,
101, 99, 82, 81, 84, 100, 79, 77, 78, 88, 89, 75, 83, 69, 51, 52, 56,
53, 70, 55, 54, 37, 71, 76, 44, 50, 20, 26, 15, 19, 38, 36, 43, 72,
67, 21, 23, 25, 17, 27, 18, 32, 41, 45, 16, 30, 11, 14, 12, 40, 28,
39, 29, 31, 42, 10, 34, 35, 7, 46, 6, 13, 2, 98, 64, 62, 8, 47, 3, 61,
57, 4, 65, 59, 33, 63, 24, 58, 22, 48, 66, 60, 110, 49, 9, 5.
A segunda classificação segue uma ordem subjetiva,
determinada pelo gosto pessoal de cada um, no afã de
apresentar ao leitor, primeiro, as suras mais curtas e mais
poéticas e depois as mais longas e mais dogmáticas. O objetivo é
tornar a leitura do Alcorão mais fácil e atraente.
Classificação Literária
Para conhecer, em primeiro lugar, as páginas mais
poéticas do Alcorão, ler as suras na seguinte ordem:
1, 99, 82, 81, 76, 55, 71, 100, 113, 114, 95, 93, 92, 89, 94,
96, 97, 102, 103, 104, 107, 108, 101, 98, 91, 88, 90, 87, 19, 86,
12, 85, 84, 83, 80, 79, 78, 77, 75, 74, 70, 73, 69, 68, 10, 67, 28,
27, 64, 63, 18, 14, 62, 61, 57, 56, 53, 52, 51, 50, 47, 46, 45, 11,
13, 44, 43, 42, 41, 40, 37, 36, 35, 34, 32, 31, 30, 29, 26, 25, 24,
23, 20, 17, 15, 7, 105, 106, 11, 112, 72, 60, 59, 58, 49, 48, 39, 38,
33, 21, 16, 8, 9, 2, 4, 65, 5, 109, 110, 22, 3, 6, 66.
Cada sura tem um número, e cada versículo dentro das
suras também. Geralmente, nas traduções do Alcorão, coloca-se
o número de cada versículo antes de iniciá-lo, o que dá ao livro
20
um aspecto de código e contribui para afastar a mente do leitor
da ideia de que o Alcorão, além de livro santo, seja uma obra
literária de grande beleza.
Nas edições árabes, por oposição, o número é colocado
depois do versículo num pequeno círculo artístico que não
atrapalha a leitura. Seguindo um método similar, Mansour
Chalita coloca o número de cada versículo em uma coluna à
direita, ao lado de um losango vazado que remete à arte árabe.
Desse modo, o leitor poderá consultar qualquer versículo pelo
número. Nestas anotações, o primeiro número se refere à sura,
o segundo, ao versículo. Assim, 24:40 indica o versículo número
40 da sura número 24, o que foi visto anteriormente: Suma 74 –
O emantado – versículo 040: Perguntarão.
Todas as suras, exceto uma, começam com a saudação:
“Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.”
De acordo com a tradição muçulmana, foi numa noite do
mês do Ramadã do ano 610 que, enquanto dormia ou estava em
transe, Maomé, então com 40 anos, viu o anjo Gabriel na sua
frente. Ordenou o anjo: “Recita!”. “Que recitarei?”, perguntou
Maomé. “Recita!”, repetiu o anjo. “Que recitarei?”, voltou
Maomé a perguntar. “Recita!”, disse o anjo pela terceira vez.
Recita em nome de teu Senhor que criou,
Criou o homem de sangue coagulado.
Recita. E teu Senhor é o mais generoso,
Que ensinou com a pena,
Ensinou ao homem o que não sabia.
Eram os primeiros versículos do Alcorão, que fariam
parte da sura intitulada O coágulo.
21
Até a sua morte, 22 anos depois, Maomé recitaria aos
seus seguidores versículos do Alcorão que dizia receber
diretamente de Deus por intermédio do anjo Gabriel.
È uma blasfêmia atribuir este Alcorão a outro que não a
Deus. Ele é a confirmação do que o precedeu e a elucidação do
Livro incontestável do Senhor dos Mundos. (10:37). Isto é o que
foi dito na sura 10 – Jonas – versículo número 37.
O DOGMA DO ISLÃ
(6º) O dogma do Islã
O dogma pregado por Maomé é o seguinte:
Deus havia revelado sua vontade aos judeus e aos
cristãos pela voz de seus Mensageiros. Mas eles desobedeceram
às ordens de Deus e dividiram-se em seitas cismáticas [o Cisma
judaico na era bíblica com a divisão do reino entre Judá ao sul
formado por duas tribos, enquanto Israel ao norte de 977-830
a.C. com dez tribos; o Cisma do Oriente separou a Igreja Católica
em duas: Igreja Católica Apostólica Romana e Igreja Católica
Apostólica Ortodoxa, a partir do ano 1054]. O Alcorão acusa os
judeus de terem corrompido as Escrituras, e os cristãos, de
adorarem Jesus como o Filho de Deus, quando Deus nunca teve
filhos e quer ser adorado com absoluta exclusividade. Tendo-se
assim desencaminhado, judeus e cristãos devem ser chamados
de novo para a senda da retidão, a religião verídica fundada por
Abraão e que Maomé, o último dos Profetas, veio pregar.
Completam o dogma as cinco seguintes proposições:
22
1ª). Deus é único e onipresente. É o criador e o Senhor
absoluto dos céus e da terra e de tudo quanto existe neles. Sabe
tudo (onisciente) e pode tudo (onipresente). Nada acontece
senão por Sua vontade. Faz o que Lhe apraz. Seu poder é
ilimitado e discricionário. Os homens são Seus servos.
Desgraça alguma acontece senão com a permissão de
Deus (64:11)
Se teu senhor quisesse, todos os habitantes da terra
seriam crentes (10:99)
Possui as chaves do desconhecido, e só Ele as possui. E
sabe o que há na terra e no mar. Nenhuma folha cai sem Seu
conhecimento. E não existe grão no seio da terra escura ou coisa
alguma seca ou verde, que não esteja registrado no Livro
evidente. (6:59)
Se quiséssemos, poríamos todas as almas no caminho da
retidão. Mas, digo-o em verdade, encherei o inferno de djins
[entidade sobrenatural do mundo intermediário entre o angélico
e o humano que pode ser associada ao bem ou ao mal, que rege
o destino de alguém ou de um lugar] e de homens. (32:13)
E Ele perdoa a quem Lhe apraz e castiga que Lhe apraz.
(2:284)
A Ele pertencem os nomes mais sublimes. Sua grandeza é
representada por metáforas inesquecíveis.
E quando Moisés chegou ao nosso Encontro e seu Senhor
lhe falou, disse: “Senhor meu, deixa-me ver Tua face.”
Respondeu o Senhor: “Não me verás. Observa, porém, o monte.
Se ele permanecer no seu lugar, poderás Me ver.” Mas quando
Deus desvelou Sua face ao monte, o monte caiu em pó. E Moisés
perdeu os sentidos. (7:143)
23
Sua imagem completa forma-se traço por traço, de um
versículo a outro. Ele sabe castigar com vigor, sabe mesmo ser
vingativo e astucioso; mas como sabe também ser generoso e
liberal! E como sabe ser justo e clemente!
Quem praticar uma boa ação receberá dez vezes seu
equivalente e quem cometer uma ação má, receberá apenas o
seu equivalente, e ninguém será lesado. (6:160)
Ó vós que credes, sede firmes na distribuição da justiça,
testemunhado por Deus, mesmo contra vós mesmos ou contra
vosso pai, vossa mãe e vossos parentes, trate-se de um rico ou
de um indigente. Deus vela sobre todos. (4:135)
Sendo o poder de Deus ilimitado e discricionário, e
considerando-se que nada acontece senão com a Sua permissão
e conforme Sua presciência, nasceu à ideia da predestinação, da
fatalidade, do matkub (já estava escrito). Está mesmo tudo
escrito no Livro? E em que sentido? Descobrir as respostas nos
pronunciamentos do Alcorão não é um dos menores atrativos da
leitura.
Impressionados com essa dominação absoluta de Deus,
alguns descrentes ironizavam: “E quando se lhes diz: ‘Gastai do
que Deus vos concedeu’, os que descreem dizem aos que creem:
Alimentaríamos os que Deus alimentaria se Ele quisesse?”
(36:47)
2ª) Outros elementos da religião muçulmana são a
ressurreição dos mortos, o juízo final, a Geena (inferno) e o
Paraíso. A ressurreição de todos os homens precederá o dia do
julgamento. E após o julgamento, os condenados irão para a
Geena “e lá permanecerão enquanto permanecerem os céus e a
24
terra”, (11:07) e os eleitos, para o Paraíso “onde permanecerão
enquanto permanecerem os céus e a terra.” (11:08)
As delícias do Paraíso são descritas sob a forma alegórica
das delícias deste mundo que mais sensibilizam o beduíno do
deserto: jardins e rios, frutas e água de nascente, e esposa
formosas.
Mas é tanto a ressurreição como a Geena que são
descritas com as imagens mais impressionantes.
Assim, quando a trombeta soar uma só vez, e a terra e as
montanhas forem erguidas e, depois, esmagadas de um só
golpe, naquele dia será a ressurreição. (69: 13 a 15)
Nesse dia, os homens serão como borboletas dispersas e
as montanhas, como lã cardada. (lã que já passou pela carda)
(101:4 e 5)
Naquele dia, enrolaremos o céu como se enrola um
pergaminho. E como iniciamos a primeira criação, iniciaremos a
segunda. (21:104)
Os que rejeitam Nossos sinais, breve os jogaremos ao
Fogo. Cada vez que suas peles forem queimadas, as
substituiremos por outras para que continuem a experimentar o
suplício. (4:56)
3ª) Maomé é o mensageiro de Deus, encarregado de
transmitir Sua palavra aos homens. O Alcorão liga inúmeras
vezes o nome de Maomé ao nome de Deus e exorta: obedecei a
Deus e a Seu Mensageiro.
Crentes são os que creem em Deus e em Seu Mensageiro
(24:62)
25
Para aqueles que não creem em Deus e em Seu
Mensageiro preparamos um fogo flamejante. (48:13)
4ª) O Alcorão não classifica os homens conforme sua
raça, cor, nacionalidade, cultura, posses econômicas, classes
sociais. Não obstante essas diferenças, todos os homens são
iguais perante Deus. O que os distingue é sua fé. O mundo é
dividido em dois campos: o dos muçulmanos (crentes) e dos não
muçulmanos (os descrentes ou infiéis).
Com certeza Deus separará, no dia da Ressurreição, os
que creem dos judeus e nazarenos e magos e idólatras. (22:17)
O crime mais citado como merecedor dos suplícios do
inferno é a descrença:
Se persistirdes na descrença, como vos defendereis de
um dia que tornará branco o cabelo das crianças? (73:17)
A atitude para com os judeus e os cristãos, chamados “os
adeptos do Livro”, é mais diferente do que a reservada aos
idólatras. Assim mesmo, varia segundo as relações que se
desenvolveram entre eles e os muçulmanos. Alguns versículos
lhe são favoráveis; outros desfavoráveis.
5ª) Além das verdades em que o muçulmano deve crer,
há cinco deveres que lhe são prescritos: a prece, o jejum, o
pagamento do tributo dos pobres, a peregrinação a Meca e a
guerra santa.
São realmente crentes os que creem em Deus e em Seu
Mensageiro, que não duvidem e que lutam, com sua vida e suas
posses pela causa de Deus. (49:15)
26
A LEI, NARRATIVAS E COMPORTAMENTO
(7º) A lei
A Lei do Alcorão é feita de dois elementos: uma
severidade rigorosa (notadamente contra os assassinos, os
adúlteros, os ladrões e os renegados) e um espírito de
indulgência, de justiça e de perdão. Determina que se cortem as
mãos ao ladrão, que se apliquem cem açoites ao adúltero e à
adúltera, mas recomenda a clemência para os que se
arrependem e repete centena de vezes que Deus é compassivo e
misericordioso.
Quando dois dentre de vós cometerem um adultério,
castigai-os. Mas se se arrependerem e se emendarem, deixa-os
em paz. Deus é perdoador e clemente. (4:16)
E prescreve a justiça em todas as circunstâncias, mesmo a
favor do inimigo.
(...) e que vosso ódio não vos impeça de serdes justos
para com os que odiais. (5:8)
Mesmo para um delito tão secreto quanto o adultério, a
lei exige quatro testemunhas.
Aquelas de vossas mulheres que forem suspeitas de
adultério, chamai quatro testemunhas dos vossos contra elas. Se
as testemunhas testemunharem, confinai-as então em vossas
casas até que a morte as leve ou até que Deus lhes indique um
caminho. (4:15)
Além do código penal, há no Alcorão um código civil que
regulamenta o casamento, o repúdio, a poligamia, os juros, o
vestuário feminino, as relações entre homens e mulheres, o
27
testamento, a filiação, os alimentos permitidos e proibidos, a
atitude para com os adeptos de outras religiões, o vinho, os
jogos de azar, a caça e dezenas de outros assuntos.
Maomé foi perseguido e exilado pelos habitantes de sua
cidade natal, Meca, quando começou a pregar a nova religião; e
só pela força pôde a ela voltar mais tarde. Ademais, teve que
sustentar guerras contra os idólatras, os judeus, os cristãos. O
Alcorão contém, portanto, muitas disposições relativas ao
comportamento dos muçulmanos na guerra, aos cativos, aos
despojos, aos inimigos, aos aliados, às dispensas de combater e
numerosos outros assuntos de caráter militar.
Constitucionalmente, o Estado que o Alcorão parece
favorecer é um Estado teocrático, baseado na orientação de um
chefe supremo justo que aplica a palavra de Deus, e na
igualdade de todos os muçulmanos, sem discriminação nascida
da raça, classe social, nacionalidade, do grau de instrução ou das
posses.
Todos os crentes são irmãos. Fazei a paz entre vossos
irmãos e temei a Deus. Quiçá recebereis misericórdia. (49:10)
(8º) Narrativas históricas
O Alcorão contém a narração de muitos acontecimentos
bíblicos, evangélicos, tais como a criação de Adão e Eva e sua
expulsão do Paraíso; a história de José e de seus onze irmãos; a
perseguição do Faraó aos judeus e a ida destes para a Terra da
Promissão; a história de Salomão e a rainha de Sabá; o
nascimento de Jesus; e muitos outros, com similitudes e
dissimilitudes em relação às versões da Bíblia e do Evangelho.
28
(9º) Comportamento pessoal e social
Dezenas de detalhes de comportamento social são
regulamentados no Alcorão desde o asseio pessoal, como as
relações íntimas entre marido e mulher, até a maneira de
saudar, andar, responder aos insensatos, visitar o Profeta e
dirigir-se a ele. Abrange, às vezes, minúcias quase
surpreendentes num código tão vasto:
Ó vós que credes, quando vos pedem nas assembleias:
“Apertai-vos para dar lugar aos demais”, dai lugar aos demais.
Deus vos dará lugar no Paraíso. E quando vos dizem: “Levantaivos”, levantai-vos ... (58:11)
É, todavia, na pregação das virtudes pessoais e sociais
que o Alcorão atinge o sublime. Prega e exalta a generosidade, a
caridade, a hospitalidade, a gratidão e condena em termos duros
a avareza, a mentira, a hipocrisia, a avidez, a cobiça, a
deslealdade, o orgulho, a arrogância. Reflexo dos povos
orientais, prega também o culto da família e a bondade para
com os pais. Inovação digna de apreço: diversos erros e delitos
são punidos, impondo-se ao pecador algum ato de caridade.
Por esse lado, o Alcorão ultrapassa os limites de qualquer
religião para aplicar-se a todos os homens em todos os tempos.
A boa ação e a má ação não são iguais. Repele o mal da
melhor maneira, e verás aquele que era teu inimigo agir como se
fosse teu amigo leal. (41:34)
Meu filho, observa a oração, prescreve a justiça, proíbe o
mal e suporta com força de alma o que te atingir. (31:17) E não
trate os outros com altivez (31:18) e não caminhes com
29
jactância, pois jamais fenderás a terra e jamais atingirás a altura
das montanhas. (17:37)
Nos vossos bens, que haja sempre um quinhão para o
pobre e o deserdado. (51:18)
O ESTILO
(10º) O estilo
O estilo do Alcorão é diferente de qualquer outro estilo,
árabe ou não árabe. Reproduzi-lo é impossível. Mas sacrificá-lo
inteiramente e deturpá-lo, como em traduções comuns, equivale
a oferecer um Alcorão que não satisfaz ao leitor culto.
Fora sua prodigiosa beleza de forma, o estilo do Alcorão
apresenta características próprias cujo conhecimento permite ao
leitor familiarizar-se mais rapidamente com o texto.
(1) A maior parte do Alcorão é escrita na primeira pessoa
do singular ou do plural: é Deus que fala pela boca de Maomé.
Quando se dirige a uma só pessoa (tu), está dirigindo-se a
Maomé; quando se dirige a muitas pessoas (vós), está se
dirigindo aos muçulmanos; e quando fala deles, está falando dos
não muçulmanos, podendo esses ser todos os não muçulmanos
ou determinado grupo deles (os cristãos, os judeus, os idólatras,
os habitantes de uma cidade), conforme as circunstâncias.
Mas Deus não fala somente na primeira pessoa do
singular ou do plural. Fala de si mesmo também na terceira
pessoa do singular. Muitas vezes, na mesma frase, fala na
primeira e na terceira pessoas:
30
Não vistes, que do céu, Deus faz descer água e com ela,
produzimos frutas de cores diversas. (35:27)
Estais seguro de que Ele não vos devolva ao mar e não
envie uma tempestade que vós afogue por vossa ingratidão sem
que possais encontrar quem promova vossa causa contra Nós?
(17:69)
Da mesma forma, em certas frases, Deus dirige-se ora a
Maomé, ora a todos os muçulmanos:
Não sabeis que a Deus pertence o reino dos céus e da
terra e que fora d’Ele, não tendes nem defensor nem protetor.
(2:107)
Segue, como os que se arrependem contigo, o caminho
reto, como te foi mandado. E não oprimais. Deus observa o que
fazeis. (11:112)
(2) Como o Alcorão não foi escrito, mas transmitido
oralmente por Maomé, um sinal de mão, um aceno da cabeça ou
outro gesto do corpo podiam indicar de quem se falava. Na
tradução, para tornar o sentido mais claro, é necessário às vezes
substituir o pronome pelo nome das pessoas a que ele se refere.
É o caso, entre outros, do próprio Maomé, que é
mencionado muitas vezes pelo simples prenome ele (por
exemplo, nos versículos 7:184; 10:38; 11:35; 25:4; 32:3; 33:40;
36:69; 37:158; 42:24; 46:8; 47:2; 48:29; 58:8). Quando julgamos
que o texto ficava mais explícito substituindo-se o pronome pelo
de Maomé, fizemos a substituição, conversando ao nome sua
grafia: Muhamad.
(3) A língua árabe tem recursos de que as línguas
europeias não dispõe. Por exemplo, além do singular e do plural,
o árabe tem um terceiro número: o duplo, isto é, tem flexões
31
especiais para o verbo, o substantivo, o adjetivo, o pronome
quando se trata de dois objetos ou duas pessoas. Tem também
flexões diferentes conforme se trata do plural feminino ou
masculino, de coisas ou de pessoas. E os verbos têm afixos que
lhe diversificam o sentido muito mais do que nas línguas
europeias.
Esses e outros recursos possibilitam ao grande escritor
uma concisão desconhecida em outros idiomas. No Alcorão, essa
concisão chegou a uma virtuosidade nunca atingida antes dele
ou depois. Cria por si mesma uma música e um ritmo tão belos e
tão intraduzíveis quanto um tema de Mozart. E uma das tarefas
mais difíceis do tradutor é respeitar essa concisão tanto quanto
possível e evitar prolixidade.
(4) O mundo do Alcorão é um mundo masculino. Deus
fala aos homens e fala-lhes das mulheres.
(5) Há um vocabulário caracteristicamente corânico,
mesmo em relação ao árabe clássico. Algumas de suas
expressões têm o sabor de frutas desconhecidas, embora seja
difícil às vezes apreender-lhes o sentido. Exemplos:
O Senhor dos mundos. (1:2) O Senhor dos levantes. (37:5)
O Senhor dos levantes e dos poentes. (70:40) O Senhor dos dois
levantes e dos dois poentes. (55:17) O Senhor dos sete céus.
(23:86)
O duplo da vida e o duplo da morte. (17:75) O castigo do
último mundo e do primeiro. (79:25)
Os levantes e os poentes da terra. (7:137) A distância de
dois Orientes. (43:48)
Os herdeiros do Paraíso. (59:20) Os herdeiros da Geena.
(5:86)
32
Corações incircuncisos. (2:88) Os que têm a doença no
coração. (5:52)
Estão fechados com cadeados seus corações? (47:24)
(6) Outras expressões e imagem refletem o meio e a
época nos quais o Alcorão foi revelado. Era um meio de desertos
e o oásis, de comércio primitivo e de atividade pastoris. Maomé
fala aos seus ouvintes a linguagem que eles entendem.
Para marcar o começo do jejum no fim da noite, diz: “E
comei e bebei até que comeceis a distinguir, na aurora, a linha
branca da linha preta.” (2:187) Diz: “Ninguém será lesado do
valor de uma mecha de lampião.” (17:71) Diz: “Deus não
prejudica ninguém, nem do peso de uma formiga.” (4:40) Diz: “E
o que invocais em vez d’Ele não mandam nem na casca de um
caroço de tâmara.” (35:13)
Deixamos intatas essas imagens saborosas quando outros
tradutores falam do “peso de um átomo” ou escrevem: “Não
sereis defraudados no mínimo que seja.”
Uma deformação, pitoresca em si mesma, foi perpetrada
numa tradução inglesa do Alcorão. Nela, as delícias do Paraíso
são descritas sob forma de imagens alegóricas aptas a tocar a
sensibilidade dos beduínos, aquém o Alcorão foi primeiro
revelado: frutas, sombras densas, jardins (o que ele mais
almejava). E promete aos eleitos “água de nascente” (56:18),
uma raridade no deserto, particularmente apreciada. Nesse
caso, o tradutor achou que água de nascente não era bastante
atraente e substituiu-a por vinho (por que não uísque?).
(7) Além dessas expressões e imagens, o Alcorão
emprega certas palavras e fórmulas comuns, dando-lhes um
sentido específico. Exemplos: Gastar significa no Alcorão fazer
33
liberalidades, gastar em benefício dos outros, não de si mesmo.
A submissão é a submissão a Deus, isto é, a adoção do Islã como
religião. O Livro refere-se, geralmente, ao Alcorão; mas pode
referir-se também ao Antigo Testamento ou ao Evangelho.
Muitas vezes, o leitor deve adivinhar, pelo sentido, de que livro
se trata. Adeptos do Livro são os cristãos e os judeus, os quais
receberam um livro revelado (a Torá, a Bíblia, o Evangelho) e
nele acreditam. Os associados de Deus são os ídolos a quem os
idólatras atribuíam poderes divinos, fazendo deles como
associados de Deus no reino dos céus e da terra. Sinal é
manifestação, fenômeno, prova, prodígio. Lembremos que
Geena, isto é, o inferno, é uma palavra portuguesa de origem
árabe, assim como sura, que indica cada um dos capítulos do
Alcorão.
(8) Um exemplo típico dos problemas de tradução: o
Alcorão proíbe o juro ou a usura? O vocábulo árabe aplica-se aos
dois termos. E muitos tradutores, achando que seria demais
proibir o juro, proibiram a usura (agiotagem, mesquinharia).
Basta, porém, comparar os diversos versículos nos quais o
assunto é tratado para se convencer de que o Alcorão proibiu
mesmo o juro. Esses versículos são, particularmente, os de
números 275 a 279 da segunda sura. O versículo 275 diz:
Os que vivem de juros não se levantarão de seus túmulos
senão como aqueles que o demônio esmaga. É porque dizem: “O
juro é como o comércio.” Mas, na verdade. Deus permitiu o
comércio e proibiu o juro. Se o juro fosse legal e a usura,
proibida, não teria o Alcorão dito: “Deus permitiu o juro e
proibiu a usura”?
34
(9) E quando ... Esta expressão, no começo dos versículos,
não introduz uma oração subordinada que pede uma oração
principal, mas é a continuação de uma oração principal
subentendida. “E lembra-te, ou lembrai-vos de quando houver
isso ou aquilo, ou de quando fizermos isso ou aquilo ... “É
essencial anotar esta observação para familiarizar-se
imediatamente com essa construção, muito frequente.
E quando os anjos disseram: “Ó Maria, Deus te anuncia a
chegada de seu Verbo, chamado o Messias, Jesus, filho de Maria.
Será ilustre neste mundo e no outro, e será um favorito de
Deus.” (3:45)
E quando vos livramos dos Faraós que vos infligiam os
piores suplícios, imolando vossos filhos e poupando vossas
mulheres. Vossa humilhação era uma dura provação imposta por
vosso Senhor. (2:49)
(10) Certas palavras, que aparecem em tradução com
letra maiúscula (o árabe não tem letras maiúsculas), são
empregadas no Alcorão num sentido incomum.
A Hora: o fim do homem ou o fim do mundo, a
ressurreição.
O Grito: calamidade enviada por Deus e que destrói os
homens e suas habitações e propriedades.
O Tremor: calamidade enviada por Deus e que atinge
mais particularmente os homens.
O Indubitável: a morte ou o fim do mundo, o juízo final
sobre a chegada dos quais não pode haver dúvida.
A Calamidade, a Rebelde, a Algazarra, O Estrondo são
também usados no sentido de castigo divino particularmente
severo.
35
O Julgamento: o juízo final, o julgamento dos mortos
depois de ressuscitados.
O Fogo: a Geena, o Inferno. (Quando a palavra começa
com letra minúscula, significa apenas as chamas.)
O Enganador: o demônio.
(11) Assinala-se para terminar diversas construções de
frases que mesmo em árabe, são pouco usuais e constituem
mais uma característica do estilo corânico. Procuramos salvar o
que foi possível da originalidade dessas construções, ao risco de
forçar a estrutura da frase em português:
E quem vira as costas e se afasta, Deus é autossuficiente,
digno de louvores. (57:24)
E aqueles que vencem a própria avareza, são eles os
vitoriosos. (59,9)
Quanto aos que renegaram e desmentiram Nossas
revelações, serão eles os herdeiros da Geena. (5:86)
Quem dentre vós cometer um mal por desconhecimento
e se arrepender e se emendar, Deus é clemente e
misericordioso. (6:54)
(12) Há um estilo corânico como há um estilo bíblico.
Despido desse estilo, o Alcorão não é mais o Alcorão.
36
BÍBLIA E ALCORÃO
37
38
INTRODUÇÃO
Sem a graça e a misericórdia de Deus,
certamente estaríeis entre os perdedores.
Sura 2,64
Rejubilai-vos com alegria inefável e
gloriosa ao alcançardes o fim da vossa fé.
1 Pedro 1,8s.
Diz-se que o maior problema do século XXI consistirá no
choque político, cultural e religioso entre as religiões mundiais.
As religiões asiáticas — budismo, hinduísmo, taoísmo—
encontram-se a grande distância de nós, embora não deixem de
exercer certa fascinação sobre um certo número de pessoas,
com suas cores e seus ritos, num mundo cada vez mais
aproximado. Bem mais próximo de nós está o islamismo.
Milhões de seguidores da fé islâmica vivem há décadas em nosso
país [Alemanha]. Mesquitas e centros de oração surgem em
grande número em nossas cidades. A atual discussão acerca do
uso do véu por parte de professoras em escolas alemãs, bem
como a questão que se arrasta por décadas sobre a autorização
do ensino religioso islâmico por parte do Estado, demonstram
que está mais do que na hora de nos conhecermos mutuamente.
Culturas e cosmovisões atropelam-se.
Este livro recorre às fontes, a Bíblia e o Alcorão — as
Sagradas Escrituras. Ele representa o esforço de uma
apresentação comparada. Isso é possível e também foi
39
alcançado, pois cada leitor cristão do Alcorão pode constatar
que nele estão presentes elementos bíblicos. Depara-se sempre
de novo com nomes bíblicos. Algumas suras até são
denominadas de acordo com personagens bíblicos. Nele o leitor
sempre volta a deparar-se com narrativas ou recordações
bíblicas. Em uma leitura mais atenta, contudo, constata-se que a
semelhança dessas tradições de modo algum significa
identidade. Pelo contrário: o antigo é reelaborado, interpretado
de maneira nova, introduzido em outro grande contexto,
marcado por outras experiências. A comparação entre Bíblia e
Alcorão, na presente pesquisa, foi subordinada ao interesse em
identificar o que une e o que separa as duas Escrituras.
É possível que a um muçulmano pareça presunção o fato
de um exegeta profissional ocupar-se do Alcorão. Para mim está
claro que uma compreensão adequada do Alcorão só é possível
a quem vive na comunidade de fé dos muçulmanos. O “círculo
hermenêutico” ao qual nós, teólogos cristãos, nos referimos
para a compreensão da Bíblia vale na mesma medida para o
Alcorão. Com esse círculo hermenêutico quer-se dizer que é
preciso estar “dentro”, no círculo da experiência dos que têm a
mesma convicção, para acolher a palavra tal qual ela pretende
ser acolhida. Mesmo assim, penso que seja possível extrair do
próprio Alcorão uma justificativa para que um cristão possa dele
ocupar-se, já que ele se dirige repetidas vezes aos cristãos, bem
como aos judeus. Ele nos interpela como “as pessoas da
Escritura”, “as pessoas do Livro”. A essa interpelação é lícito
reagir. Deve-se fazê-lo claramente, com a consciência de que o
Alcorão não é um livro qualquer, e sim o livro da fé de uma
grande comunidade religiosa.
40
Para o teólogo cristão, o Alcorão não só é interessante
pela já citada proximidade com a Bíblia, mas também pelo fato
de o islamismo ser a única religião mundial que encontrou o
cristianismo já preexistente. Para o cristianismo sempre foi um
problema o fato de depois dele — depois de Cristo — ter surgido
mais uma religião mundial. A população da Arábia, que até a
época de Maomé vivia no politeísmo, não esteve e continua a
não estar disposta a aceitar o cristianismo, o que no futuro,
provavelmente, não mudará. O que significa isso?
Esta pesquisa concentra-se na Bíblia e no Alcorão. Isso
significa que, em relação ao islamismo, não são consideradas as
tradições extracanônicas sobre Maomé, as assim chamadas
hadith, que existem em grande número. O método utilizado é o
histórico-crítico. Somente assim é possível um tratamento
adequado. É impensável que se aplique o método históricocrítico à Bíblia, mas não ao Alcorão. Com isso não estaríamos
favorecendo nem a um nem ao outro lado.
Achei necessário que os temas teológicos (capítulo III)
fossem precedidos por questões como elementos biográficos
acerca de Maomé e de Jesus, o reconhecimento mútuo entre
cristianismo e islamismo ao longo da história (visão geral), o
surgimento da Bíblia e do Alcorão etc. (capítulos I e II). Com isso,
ao leitor não informado é fornecida uma introdução que facilita
o conjunto da leitura. Os temas teológicos surgiram quase
espontaneamente da comparação entre Bíblia e Alcorão, o que é
um indício da proximidade entre estes dois livros.
41
I -Antecedentes Históricos
JUDEUS E CRISTÃOS NA ARÁBIA ANTES DE MAOMÉ
As três religiões mundiais, judaísmo, cristianismo e
islamismo, têm suas raízes no Oriente Próximo. Essa região
demonstrou ser o solo alimentador no qual essas culturas,
grandes e decisivas para o mundo, puderam surgir. Contudo, é
preciso diferenciar. Séculos separam o cristianismo do
surgimento da religião de Israel. Igualmente, séculos separam o
cristianismo do surgimento do islamismo. Enquanto o judaísmo
e o cristianismo têm sua pátria na Palestina, o islamismo se
desenvolve na Arábia, mais especificamente na Arábia deserta.
Na época do helenismo e do império romano ocorreu uma forte
influência helenístico-romana sobre a Palestina, bem como
sobre o cristianismo nascente; já não aconteceu o mesmo com a
região de surgimento do islamismo. Os romanos não
colonizaram a Arábia. O que teria sido muito útil para uma
possível expansão do cristianismo naquela região.
A Arábia deserta era um território extenso, em que não
eram decisivos os aspectos territoriais mas sim as relações
pessoais cambiantes e passageiras. Não havia ligação com a
terra. A solidariedade mantinha-se pelo parentesco de sangue. A
vingança do sangue era lei. Tribos beduínas nômades
mantinham sua ordem nômade mesmo quando se assentavam
em cidades-oásis. O território era cortado por rotas de
caravanas, das quais a mais conhecida era a rota do incenso. Ela
conduzia do mar Arábico no sul (Hadramaut) até o mar
Mediterrâneo (Gaza).
42
No sul, desenvolveu-se uma notável cultura, como o
atestam as numerosas inscrições lá encontradas. As tribos dos
mineus e dos sabeus dominavam o território. As religiões
principais eram estelares. Lua, sol e estrela vespertina eram
entendidas como uma tríade. Havia ainda deuses de menor
importância, principalmente deuses lares e de família. A eles
eram oferecidos sacrifícios de animais, de incenso, de fogo e de
libações. Em algumas regiões tinha papel preponderante o culto
de Alá, mais tarde proclamado o Deus único por Maomé. Em
Meca era designado como Hubal. Seu santuário era a Caaba com
a pedra preta. Já na época pré-islâmica ocorria a peregrinação
anual, em que se realizava a procissão em torno à Caaba.
Também a veneração de pedras e árvores tinha a sua
importância.
A nós interessa a penetração de judeus e cristãos nesse
território. Está comprovado que judeus já haviam se
estabelecido lá bem antes do surgimento do cristianismo. Por
suas atividades comerciais, devem ter chegado através das rotas
comercias.
Havia cristãos no sul da Arábia ao menos desde o século
V, pois o já citado rei himiarita Dhu Nuwas, que se converteu ao
judaísmo, desencadeou uma perseguição aos cristãos. Ela atingiu
principalmente a comunidade de Nagran, na fronteira com o
atual norte do lêmen. Deve ter-se tratado de uma notável
comunidade. Na perseguição, ocorrida no ano 523, muitos
cristãos foram vitimados, entre eles um certo Aretas, mais tarde
venerado como mártir.
Entre 753 e 775 a catedral foi destruída. Os espólios
cristãos foram transferidos para as grandes mesquitas, onde
43
ainda hoje podem ser vistos. Bispos cristãos de Sanaa ainda
serão citados era islâmica adentro. No ano de 911 ainda se tem
notícia de cristãos em Sanaa como “protegidos”.
Dos cristãos no sul da Arábia interessa-nos saber se entre
eles havia também judeo-cristãos. Essa questão diz respeito à
possibilidade de identificar o tipo de cristianismo com que
Maomé teve contato. No Alcorão sempre se designa
resumidamente os judeus e os cristãos como “as pessoas da
Escritura. Essa ligação ao menos permite supor que Maomé de
alguma forma via os judeus e os cristãos como um conjunto só, o
que levanta a possibilidade de que ele tivesse conhecido judeocristãos.
Uma antiga e revolucionária visão dos fatos é defendida
por G. Lüling. Ele parte do pressuposto de que toda a península
arábica já estava basicamente cristianizada na época da
atividade do profeta Maomé, inclusive Meca e Medina. Esse
cristianismo, que, segundo Lüling, possuía uma literatura árabe
antiga própria, era composto de “cristãos trinitários” na
sequência da tradição judeo-cristã . Se compreendo bem Lüling,
ele imagina o seguinte desenvolvimento: esses judeo-cristãos
ainda não conheciam nenhum dogma cristológico. Para eles
Jesus era simplesmente o filho de Maria. Somente por influência
da Igreja grega eles também adotaram sua cristologia e seus
dogmas cristológicos. Jesus, que até então apenas haviam
honrado como filho de Maria, agora o confessavam como Filho
de Deus, reconhecendo a trindade divina. Isso fez entrar em
cena Maomé, a cujos olhos eles deviam ser vistos como
triteístas, isto é, eles haviam — na linguagem de Maomé —
acrescentado algo ao único Deus. Nessa visão dos fatos, a
44
atividade de Maomé surge preponderantemente como rebelião
contra os cristãos. É conhecido e faz sentido que os judeocristãos não vissem Jesus como filho de Deus. Mais tarde será
demonstrado que Maomé havia compreendido grosseiramente
a fé trinitária cristã.
Por fim, é preciso chamar a atenção para a palavra alhanif, que designa uma pessoa piedosa em época pré-islâmica,
que a partir de sua interioridade original reconheceu o único
Deus. Nesse sentido Abraão pode ser chamado de hanif na Sura
3,67: “Abraão não era nem judeu, nem cristão. Ele era um hanif
um devoto de Deus, e não um daqueles que acrescentam algo a
Deus” (cf 2,135). Haveria hanifs sob influência cristã no
ambiente de Maomé?
MAOMÉ E JESUS — ASPECTOS BIOGRÁFICOS
Maomé e Jesus fundaram o islamismo e o cristianismo.
Eles foram não só fundadores de religião, mas também
personalidades únicas da história universal, marcando a
caminhada da humanidade até os dias atuais. Nesta seção
tratar-se-á de reunir os dados mais importantes de suas vidas, o
que será feito sob o aspecto histórico. O aspecto teológico está
reservado para o terceiro capítulo (“Temas teológicos”). Aqui se
deve chamar a atenção principalmente para a seção 5 daquele
capítulo (“Jesus-Cristologia”), que trata do significado e da
grandeza teológica de Jesus de Nazaré, observado também
justamente do ponto de vista do Alcorão. Um espaço maior será
dedicado a Maomé, pelo fato de às leitoras e aos leitores este
ser menos familiar do que o próprio Jesus.
45
Iniciemos pela cronologia. Jesus (4 a.C. – 30 d.C.) e
Maomé (570 – 632). O primeiro viveu 35 anos e o segundo 62
anos.
O ano 622 é o ponto de partida para uma nova contagem
do tempo no calendário islâmico. O ano 622 depois de Cristo
corresponde ao ano 1 da cronologia islâmica.
Jesus era tido como galileu (Mt 26,69), como nazareno,
como homem de Nazaré (Mc 1,24 par.; 10,47; 14,67; 16,6; Lc
24,19). Naquele vilarejo, localizado nessa região aprazível e
fértil, mas também completamente marginalizado, Jesus passou
muitos anos de sua vida. Sabemos o nome de seus pais, Maria e
José, bem como o nome de seus irmãos, mas não o nome de
suas irmãs (Mc 6,3). Tal como seu pai, exerceu a profissão de
artesão em esquadrias de construção; tradicionalmente,
marceneio. A ocasião exterior para o início de sua atividade e
sua pregação pública foi a pregação penitencial de João Batista.
Jesus dirigiu-se a ele, junto ao Jordão, no sul da Judéia, e por ele
deixou-se batizar (Mc 1,9). A narrativa da abertura do céu, da
descida do Espírito e da voz celestial que o proclama filho de
Deus possivelmente conserva reminiscências de uma experiência
de vocação (1,10s par.).
Maomé nasceu em Meca, crescendo lá como órfão, já
que seus pais, Abdallah e Amina, morreram muito cedo. A Sura
93,6-11 poderia referir-se à sua infância pobre: “Não encontroute ele órfão e te adotou, não encontrou-te ele errante e te
indicou a direção, não encontrou-te ele pobre e te fez rico?
Portanto, não oprimas os órfãos *...+” (cf 4,2). Ele conseguiu
emprego com uma rica comerciante e viúva, de nome Hadiga,
com a qual mais tarde se casou e teve sete filhos, três meninos e
46
quatro meninas. Somente as filhas sobreviveram. A mais
importante é Fátima, a filha mais jovem, cujo filho Ali, portanto
neto de Maomé, tornou-se a causa da discussão sobre a
descendência legal (surgimento dos xiitas).
A virada na vida de Maomé aconteceu com sua
experiência vocacional. Ele gostava de retirar-se para as
adjacências montanhosas de Meca, possivelmente para dedicarse à oração e aos exercícios ascéticos. Em diversas passagens do
Alcorão há referências à sua experiência vocacional. Maomé
recebeu o Alcorão: “Nós o *o Alcotão] enviamos na noite da
decisão” (97,1). O anjo Gabriel, “um nobre enviado”.
“Ele *Maomé+ viu-o com certeza claramente no
horizonte” (81,19-23; cf. 53,1-18; 74,1-5).
Maomé anuncia sua mensagem em Meca. O conteúdo
dela é a proximidade do juízo: “Aproximou-se a hora [do juízo] e
a lua se partiu ao meio” (54,1); “O juízo final está próximo”
(53,57). Ao lado disso e com a mesma importância, colocando
sempre mais em destaque, anuncia que há um único Deus.
Nessa fase ele se autodenomina sentinela (2,119; 11,2; 46,9
entre outros). Os primeiros a acolher sua mensagem foram sua
mulher Hadiga, Abu Bakr, que após sua morte se tornaria o
primeiro califa, e seu filho adotivo Zaid Ibn Harita. Maomé
provavelmente desde cedo se dá conta da dimensão política do
anúncio monoteísta. Ela lhe dá a oportunidade de unificar as
tribos árabes divididas. Mas, justamente por causa de sua
pregação monoteísta, encontra forte oposição em Meca.
É interessante que também o movimento de Jesus teve
início como renovação escatológica. Marcos 1,15 resume
adequadamente a pregação de Jesus: “Cumpriu-se o tempo e
47
próximo está o Reino de Deus. Convertei-vos e crede no
evangelho!”. Jesus com sua mensagem se concentra na Galiléia
(Mt 4,23), na região junto ao lago de Genesaré, no triângulo
formado pelas cidades de Cafarnaum, Betsaida e Corozaim (cf
Mt 11,21-24). Naquele recanto do mundo surgiu o cristianismo!
Embora a pregação de Maomé, em sua tensão da expectativa
próxima do juízo, tenha pontos de contato com a pregação de
Jesus — Maomé provavelmente deixou-se inspirar —, esta tem
outra orientação. O reino ou a soberania de Deus, que se
encontra no centro da pregação de Jesus, não se orienta
somente para o juízo, pois o Reino de Deus não é apenas uma
grandeza futura, mas, com Jesus, com sua prática (curas e
milagres) e com sua vida, está já presente e eficaz entre as
pessoas. Por fim, ele é idêntico com Deus, que com Jesus se
tornou experienciável para as pessoas. Sua Palavra quer
transformar as pessoas (Sermão da Montanha). Jesus reúne em
torno de si discípulos que o seguem, e que ele inicia mais
intensivamente em sua doutrina, devendo eles levar adiante a
sua obra (apóstolos). Para dedicar-se exclusivamente à sua
missão, Jesus permaneceu solteiro, renunciando ao matrimônio
e à família.
A crescente oposição em Meca, a morte de seu benfeitor
Abu Talib, que era chefe de sua tribo (Hasim), bem como os
possíveis acenos positivos provenientes de Medina, levaram
Maomé a abandonar Meca, mudando-se para Medina. É a
famosa Hidjra (Hégira) do ano 622, da qual teriam participado
cerca de setenta pessoas. Talvez não se devesse falar de fuga.
Nesta cidade ele encontrou ampla acolhida e aceitação de sua
pregação. Conseguiu estabelecer uma bem organizada
48
comunidade. Lá teve a ocasião de dedicar-se à realização de seu
plano, que consistia em reunir na fé todas as tribos árabes, com
o auxílio do Alcorão e com a confissão em um único e comum
Deus. A dimensão política do monoteísmo aparece claramente.
Maomé desenvolve-se como um genial homem de Estado. Agora
ele não mais se autodenomina preferencialmente sentinela, mas
enviado de Deus (4,80; 2,129; 61,6).
Em Medina havia uma antiga comunidade judaica. Com
poucas exceções, os judeus não aceitaram Maomé. As
discussões com os judeus, que se encontram no Alcorão, em
grande parte devem ser localizadas em Medina. Houve até
enfrentamentos, com resultados desastrosos para os judeus.
Duas tribos judaicas — os judeus de Medina eram organizados
em tribos — foram expatriadas. Os homens da tribo Banu
Quaraiza, que se mostraram especialmente obstinados, foram
mortos, enquanto as mulheres e crianças foram aprisionadas.
Gostaríamos de supor que as discussões com os cristãos
que se encontram no Alcorão também teriam uma localização
concreta. As ocilações no juízo do Alcorão a respeito dos cristãos
permitem imaginar uma vivaz controvérsia. Como lugar dos
acontecimentos, a primeira hipótese é Medina (depois de
Meca?). Os litigantes, ao menos em boa parte, eram judeocristãos. A essas questões voltaremos mais adiante.
A experiência ensinou a Maomé que com meios pacíficos
não seria possível reunir as tribos árabes na fé, e, antes de mais
nada, que seria impossível chamar à razão os teimosos
habitantes de Meca. Ele organizou diversas campanhas militares,
precedidas por assaltos a caravanas. E obteve sucesso. As mais
importantes batalhas foram o combate de Badr (624), de Uhud
49
(625) e a assim chamada Guerra do Túmulo (627), nos arredores
de Medina. No combate de Uhud, Maomé foi ferido por um
golpe de espada.
No Alcorão há muitas e em parte bem concretas
referências a essas campanhas militares. Para nós, porém, são
mais importantes as manifestações que justificam tais
empreendimentos bélicos: “É dada permissão *para a luta+
àqueles que são combatidos, pois a eles foi feita injustiça — e
Deus certamente tem poder para protegê-los —, àqueles que
injustamente foram expulsos de suas casas, apenas porque
diziam: 'O nosso Senhor é Deus'“ (22,39s). “Lutai contra eles *os
infiéis], até que não haja mais tentação, até que apenas Deus
seja adorado” (8,39). Na guerra, Maomé conta com a proteção
dos anjos (3,124; 8,9).
A recuperação de Meca fecha com chave de ouro esses
seus empreendimentos. Ela ocorreu após negociações em
Hudaibiya (cf 48,18s.). Com isso a Caaba estava assegurada para
o islamismo. Maomé ordenou que se mudasse a direção da
oração. Se até agora — como os judeus — se orava em direção a
Jerusalém, de agora em diante se deveria orar voltado para
Meca. As operações bélicas, com o passar dos anos, haviam
atingido
dimensões
pan-arábicas.
Maomé
batera-se
brilhantemente. Há amplo consenso na pesquisa sobre a
concepção de que o comportamento de Maomé se tornou
exemplar para as gerações islâmicas futuras.
Examinemos ainda o final que tiveram essas duas
personalidades. Jesus, no final de sua atividade — relativamente
curta —, dirige-se a Jerusalém, à metrópole judaica,
supostamente para chamar neste lugar central o povo à decisão.
50
No círculo de seus discípulos celebra uma ceia de despedida,
marcada pela certeza de sua morte. Ele é rejeitado. Prepara-selhe a cruz. A sentença pronunciada contra ele é política: rei dos
judeus (Mc 15,26). A impressão exterior é de insucesso. Seu grito
de morte parece confirmar seu fracasso. Mas isso depois será
demonstrado não verdadeiro. A intervenção de Deus em sua
ressurreição dos mortos deu início à Igreja.
Maomé retorna a Meca, pouco antes de sua morte, em
março de 632. É sua peregrinação de despedida. Ele toma posse
definitivamente do santuário da Caaba e estabelece ordens para
as peregrinações. Em junho de 632 ele morre em Medina, onde
é sepultado.
Algo deve ser dito da relação de Maomé com as
mulheres, não para criticá-lo, mas porque estamos diante de um
elemento árabe estranho ao cristão. No Alcorão repetidamente
se fala de suas mulheres. Depois do matrimônio monogâmico
com Hagira, após a Hidjra, ele assumiu o matrimônio com várias
mulheres (poliginia). Enquanto ao homem muçulmano era
permitido ter quatro mulheres, ao profeta, “à diferença dos
fiéis”, eram permitidas bem mais, como confirma a Sura 33,50.
R. Paret fala de treze mulheres, com as quais ele vivia em
comunidade matrimonial. Ele podia repudiar mulheres e tomar
outras. Ele é acusado de ter se apropriado da mulher de seu filho
adotivo. Na Sura 66,3-5, noticia-se uma briga ocorrida no harém.
Quanto a isso apenas podemos dizer que esse estilo de vida
corresponde à vida nômade das antigas tribos árabes. Havia
nisso certamente também um aspecto social e no caso de
Maomé também um aspecto político (relações de parentesco
com príncipes de tribos).
51
RECONHECIMENTO HISTÓRICO MÚTUO
Trata-se aqui da questão de como o cristianismo e o
islamismo se reconheceram mutuamente, como se avaliaram,
como se relacionaram. Trata-se naturalmente de uma questão
cuja resposta exige o espaço de vários volumes. Aqui podemos
apenas observar os inícios desse relacionamento, chamando a
atenção para alguns pontos dessa coexistência. Se nos
ocupamos daquilo que une e daquilo que separa Bíblia e
Alcorão, queremos ao menos aludir a essa muito longa história.
As leitoras e os leitores devem ter presente que a Bíblia e o
Alcorão representam religiões mundiais que ao longo de sua
história pouco fizeram para uma compreensão mútua. O
confronto era determinante. Mantemos nossa atenção voltada
para o cristianismo e para o islamismo.
Em Medina, Maomé encontrou o cristianismo, e supomos
que também tenha encontrado judeo-cristãos. A eles, bem como
aos judeus, anunciou sua mensagem, mas sem resultado
animador. Ele aprendeu os elementos fundamentais da
mensagem cristã, à qual sobrepôs a sua própria. Ele e seus
sucessores sentiam-se impelidos a levar sua mensagem para
dentro do mundo cristão. O islamismo começou a espalhar-se
nas regiões do sul e do leste do Mediterrâneo.
O primeiro teólogo cristão a nós acessível a se ocupar do
islamismo foi João de Damasco. Descendente da ilustre família
melquita Mansur, seu pai, sob o califa Muawija I (660-680),
ocupou o cargo de ministro de Finanças. Devido à política
anticristã de um califa sucessor, João retirou-se para o mosteiro
de Mar Saba, nas cercanias de Jerusalém. Entre seus numerosos
52
escritos, encontra-se um livro Sobre as heresias, cujo último
capítulo trata do islamismo (haer 100), por ele denominada
“religião dos ismaelitas”.
Interessante é que João cite a “religião dos ismaelitas”
como a última das heresias cristãs. Ele a coloca ao lado do
arianismo e informa que Maomé (por ele denominado Mamed)
mantinha contato com um monge ariano. O arianismo, assim
como Maomé, nega que Jesus seja filho de Deus. João conhece
bem o Alcorão. Ele atesta que Maomé tem alguns
conhecimentos do Antigo e do Novo Testamento, descrevendo
acertadamente a concepção que Maomé tem de Jesus, que ele
tenta corrigir. Ele critica duramente a permissão da poligamia
entre os ismaelitas, bem como a vida conjugal de Maomé,
citando o caso da mulher de seu filho adotivo Zaid, como
também o culto da Caaba. Ele sabe que Maomé afirma ter
recebido o Alcorão diretamente do céu. Surgem pela primeira
vez polêmicas pejorativas que serão repetidas ao longo dos
séculos: Maomé, um pseudoprofeta; o islamismo, precursor do
anticristo; os conteúdos ridículos do Alcorão.
Remonta também a uma época muito primitiva a Disputa
de um cristão com os sarracenos. Hoje ela é atribuída
indiretamente a João de Damasco e se considera que sejam
anotações de suas conferências feitas por um discípulo,
chamado Teodoro Abu Qurra. A disputa é de ordem
especulativa, filosófica, citando temas que também mais tarde
serão significativos: Cristo é Deus? Criado ou não-criado? João
Batista é maior do que ele, já que o batizou? O Alcorão nega o
livre-arbítrio da pessoa? etc. Um problema especial
representava para o lado cristão o fato de o islamismo, como
53
religião pós-cristã, reivindicar ser a religião definitiva.
Inquietante para o Ocidente foi a enorme expansão dos
árabes num curto espaço de tempo. Eles não só conseguiram
apoderar-se do Oriente Próximo, mas também do norte da
África e da Espanha. Somente em Tours foram detidos por Carlos
Martelo, em 732. Nos territórios dominados, os cristãos (e
judeus) tinham permissão de continuar a prática de sua religião.
Eles eram considerados “protegidos” da saria — o direito
islâmico garantia tolerância aos “possuidores da Escritura”,
como o Alcorão os denomina. Deve-se acentuar que a guerra
feita “por causa da fé” não tinha por finalidade a conversão
forçada ao islamismo: sua finalidade original era a ampliação do
espaço de domínio islâmico. Como consequência, porém, os
“possuidores da Escritura” constituíam cidadãos de segunda
classe, aos quais era vetado — com honrosas exceções — o
acesso a cargos mais elevados. Era proibida aos cristãos a
representação pública, bem como a atividade missionária com
aos muçulmanos. Em caso inverso, onde muçulmanos caíam sob
o domínio cristão, o que ocorreu desde a retomada da Sicília no
século XI e da reconquista na Espanha, vigoravam medidas
severas semelhantes, às vezes mais duras ainda. As cruzadas
tiveram como resultado a deterioração ainda maior do
relacionamento. Em países islâmicos, os cristãos acabavam no
isolamento.
A questão sobre a possibilidade de considerar o
islamismo uma heresia cristã continuava a ser significativa, mas
apenas no âmbito cristão. Hereges ou pagãos, essa era a
alternativa. As opiniões se dividiam. As Igrejas localizadas em
território islâmico ou em sua proximidade, assim como os
54
jacobitas e os nestorianos, preferiam a qualificação de heresia,
enquanto os demais viam os muçulmanos como pagãos
(também Tomás de Aquino). O fato de serem monoteístas era
levado em conta apenas ocasionalmente. Acrescenta-se a isso a
circunstância de que o conhecimento do islamismo e do Alcorão
era muito reduzido. Mesmo assim, a discussão teológica não
decaiu completamente. Da parte cristã podem-se citar, entre
outros, Yahya ibn 'Adi, um teólogo jacobita, Petrus Venerabilis,
Raimundus Lullus e, principalmente, Nicolau de Cusa. Do lado
muçulmano, al-Gahiz, Ibn Hazm, al-Gazzali. A discussão era feita
com argumentos racionais, e não tanto com base na Escritura —
da Bíblia e do Alcorão. Surgiu inclusive a ideia de um concílio
inter-religioso, mas que sobreviveu por pouco tempo.
Pode-se ler a respeito na carta de Nicolau de Cusa a João
de Segobia. Nicolau é o teólogo que no século XV, mais do que
qualquer outro, antes ou depois, se empenhou pela “paz da fé”.
Em seu homônimo escrito (De pace fidei) ele parte da ideia da
unidade do gênero humano, fundamentada na criação,
conduzindo ao final todos para a unidade. A concórdia das
religiões (concórdia religionum) será escatologicamente
restabelecida por Deus, que fará os povos afluírem a Jerusalém,
onde receberão a única fé e a paz duradoura. O escrito é todo
permeado de diálogos fictícios entre Cristo (Verbum), Pedro e
Paulo de um lado, e representantes dos diversos povos e
religiões, do outro. Deus enviou aos povos diversos profetas e
mestres. Contudo, surgiram diferenças de opinião não
desprezáveis. Pelo fato de haver um só Deus, deve haver uma só
religião (religio una in rituum varietate). Argumenta-se baseado
na fé cristã, tentando mostrar que as verdades cristãs são
55
adequadas. Nas outras culturas há pontos de partida que ver a
adequação dessas verdades. No centro do interesse estão os
judeus, os árabes (muçulmanos) e os cristãos, que receberam
suas instruções por meio de Moisés, Mahmet (Muhammad) e
Jesus. A favor da concórdia, Nicolau argumenta com base na
consciência, citando a regra de ouro (“o que não queres que te
façam, também não o faças a nenhum outro”), designando — no
diálogo fictício é Paulo que fala — a caridade como
cumprimento da Lei.
A nós interessa o diálogo com o árabe (muçulmano). Ele
mostra que Nicolau parece não conhecer o Alcorão, pelo fato de
não se ocupar dele. Ele argumenta contra o politeísmo, que
justamente também é rejeitado com veemência no Alcorão. Seja
como for, Nicolau de Cusa merece toda a nossa atenção ao seu
diálogo inter-religioso — mesmo que seja fictício.
Embora os muçulmanos tivessem granjeado admiração
por suas atividades científicas e artísticas, a relação entre
cristãos e muçulmanos descambara em crescente animosidade,
por causa da agressão bélica dos turcos osmanlis. Acrescente-se
a isso que então o islamismo se deparava com um cristianismo
dividido também no Ocidente. As controvérsias, que sempre
assumiam caráter polêmico pejorativo — vejam-se os escritos de
Lutero acerca dos turcos —, permitem reconhecer frentes
variadas. A acusação de anti-Cristo atingia igualmente os turcos
e o papa.
Com o surgimento da ciência denominada orientalística,
alcançou-se maior objetividade no trato com o islamismo.
Adquiriram-se conhecimentos mais sólidos do Alcorão. É mérito
dos esforços científicos terem proporcionado o início da
56
aproximação das religiões. O interesse teológico, porém, bem
como o interesse pelo diálogo cristão-islâmico, surgiu apenas no
século XX.
Esse desenvolvimento atingiu certo ponto de chegada
provisório no Concílio Vaticano II, mais propriamente com o
documento sobre a relação da Igreja com as religiões não-cristãs
(Nostra aetate). Nele as afirmações sobre o islamismo estão
incluídas nas afirmações sobre as demais religiões não-cristãs.
Mesmo assim pode-se dizer que, apesar de sua relativa
brevidade, este documento representa um progresso e
provavelmente também uma nova visão da questão. O
documento parte da unidade do gênero humano na criação e de
sua esperada reunião escatológica na cidade santa de Jerusalém
(n. 1). Algo semelhante havia dito Nicolau de Cusa em seu
escrito De pace fidei. O concílio apenas caracteriza a atenção
mútua como extremamente necessária em nosso tempo: “Em
nossa época, quando o gênero humano dia a dia se une mais
estreitamente e se ampliam as relações entre os diversos povos,
a Igreja considera mais atentamente qual deve ser a atitude para
com as religiões não-cristãs.
Aos muçulmanos é dedicado o terceiro parágrafo do
documento. A frase mais importante é justamente a
introdutória, que fala do culto a Deus: “Quanto aos
muçulmanos, a Igreja os vê igualmente com carinho, porque
adoram a um único Deus, vivo e subsistente, misericordioso e
onipotente. Criador do céu e da terra, que falou aos homens. A
seus ocultos decretos esforçam-se por se submeter de toda a
alma, como a Deus se submeteu Abraão, a quem a crença
muçulmana se refere com agrado”. É reconhecida a crença dos
57
muçulmanos no Deus único que é criador Predicados divinos do
Alcorão são introduzidos: subsistente, misericordioso,
onipotente. Sua piedade é reconhecida. A referência a Abraão
tem por função aludir ao que eles têm em comum com o
cristianismo e com o judaísmo, do que o documento falará no n.
4.
Como conteúdos da piedade muçulmana são citados
Jesus — embora não reconheçam sua divindade, mas o venerem
como profeta —, sua mãe, a virgem Maria — que por vezes
invocam piedosamente —, e como conteúdo de sua fé citam-se
ainda a esperança do juízo divino e a ressurreição dos mortos;
por fim, como culto prático a Deus, citam-se a oração, a esmola
e o jejum.
Chama a atenção que no texto não se citem nem Maomé,
nem o Alcorão. Com isso, a formulação a respeito de Deus que
“falou aos homens” (homines allocutum) permanece
singularmente no ar. A clareza do texto tornou-se vítima da
concisão. A concisão deve ter sido proposital. A intenção era
manter-se cortês. De qualquer modo, não se queria mexer na
questão de que a Bíblia e Jesus Cristo representavam a definitiva
revelação de Deus. Para o cristão é impossível aceitar que
Maomé seja o profeta definitivo, o selo dos profetas. É ele um
profeta? O Alcorão participa da revelação?
G. C. Anawati, que teve acesso ao desenrolar do Concílio
e dos debates, informa que em uma primeira versão do texto,
em outro lugar, se falava mais positivamente dos muçulmanos,
ou seja: “Além do mais, eles adoram a Deus, principalmente
através da oração, da esmola e do jejum. Eles se esforçam
também, na obediência a Deus, por conduzir uma vida moral
58
como indivíduos, nas famílias e na sociedade”. Este texto foi
rejeitado por numerosos bispos africanos, que viviam em
contexto muçulmano. A poliginia (casamento com várias
mulheres) e o abandono da mulher — permitido no islamismo —
de qualquer modo não poderiam aparecer como admitidos.
O texto final do documento, que se refere aos
muçulmanos, recorda as “dissensões e inimizades” surgidas no
decorrer dos séculos, exortando que seja esquecido o que houve
no passado, convocando a um esforço para uma compreensão
mútua. Exorta principalmente a que se “defendam e ampliem a
justiça social, os valores morais, bem como a paz e a liberdade”.
Esses imperativos mereciam, de fato, ser colocados
atentamente em prática. G. C. Anawati recorda as dificuldades e
os problemas ainda persistentes, mas que deveriam ser
superados: a memória ainda não apagada das cruzadas e dos
tempos coloniais do lado muçulmano. Deve-se acrescentar, em
vista da experiência após o Vaticano II, o medo de muitos
cristãos diante do crescimento dos militantes fundamentalistas,
contra o que a grande maioria muçulmana pacífica deveria
manifestar-se publicamente com muito mais firmeza.
Nós, como cristãos, nos esforçamos pela liberalidade e
pela tolerância. Assim em Roma, centro da Igreja católica
mundial, há uma mesquita. Para Meca ou Medina, o inverso
seria ainda impensável. É terminantemente proibido a nãomuçulmanos visitar aquelas cidades.
Este livro tem por finalidade contribuir para o fomento da
compreensão mútua.
59
II - Comparação Geral
Judaísmo, cristianismo e islamismo — esta é a sequência
cronológica de seu surgimento — reportam-se a Escrituras
sagradas. Tais Escrituras têm a aceitação de sua comunidade de
fé e fundamentam sua identidade. Contudo, a posse de tais
Escrituras e a relação com elas certamente não constitui o traço
característico dessas religiões. Quase todas as religiões podem
comprovar a posse de escrituras próprias. Judaísmo, cristianismo
e islamismo, porém, se encontram nas Escrituras com às quais se
reportam. Base e ponto de partida é a Bíblia do Antigo
Testamento, que está radicada no judaísmo . O cristianismo
apresentou o Novo Testamento, mas reclamou para si
igualmente o Antigo Testamento. Sem isso o Novo Testamento
seria incompreensível. Em cada página do Novo Testamento é
citado o Antigo ou aparecem referências e reminiscências.
Também o Alcorão sempre torna a referir-se ao Antigo
Testamento. Ou, dizendo mais exatamente: ele se ocupa de
histórias e das tradições do Antigo Testamento, reconhece-as e
as utiliza, tomando-as como medida. Supõe-se geralmente que
Maomé não tivesse lido o Antigo Testamento, mas que por
outros caminhos teria tido possibilidade de aprender suas
histórias e tradições. Tornaremos a tratar desta questão. Para o
Alcorão, contudo, deve-se afirmar que também ele, sem o
Antigo Testamento, seria incompreensível.
Igualmente o Novo Testamento, ou mais exatamente as
tradições sobre Jesus, aparece no Alcorão. Elas nos interessarão
particularmente. Contudo, são bem menos numerosas do que as
tradições do Antigo Testamento. A visão geral daí resultante é a
60
de um entrelaçamento não só do cristianismo, mas também do
islamismo com o judaísmo. Ao lado disso, há também uma
relação do cristianismo com o islamismo, que se move sobre
dois trilhos: um consta da sobrevivência de tradições sobre Jesus
no Alcorão, o outro, bem mais marcante, consta da comum
relação com o Antigo Testamento. No modo de relacionar-se
com o Antigo Testamento surgem, contudo, diferenças bem
específicas.
SURGIMENTO DA BÍBLIA E DO ALCORÃO
A Bíblia e o Alcorão surgiram de modo bastante diverso.
Comecemos pela Bíblia. Neste contexto, interessa apenas
recordar os dados mais importantes. O processo de surgimento
do Antigo Testamento estende-se — em números redondos —
pelo espaço de mais de mil anos. Nesse processo ocorreu o
enriquecimento com sucessivos novos textos e livros. Uma lista
canônica para todas as comunidades judaicas foi estabelecida
somente a partir do século II d.C.
Quanto aos escritos do Novo Testamento também nos
interessa, primordialmente, ver que surgiram da proclamação
oral, da pregação de Jesus e de seus apóstolos. A pregação de
Jesus foi integrada na pregação pós-pascal do cristianismo,
passando daí para os evangelhos. É claro que durante esse
caminho ela foi interpretada, antes de mais nada, no esforço de
aplicá-la a situações concretas da comunidade, tornando-a
frutuosa para esta. As cartas dos apóstolos, especialmente as de
Paulo, têm seu lugar vivencial nas comunidades, com a intenção
de, em situações específicas, proporcionar linhas de orientação e
61
apoio. Também elas são precedidas de pregação oral, finalmente
o cânon do Novo Testamento foi concluído pelo final do século
IV. Esse processo leva-nos a constatar que a Bíblia do Novo
Testamento deve ser vista como expressão da fé da Igreja. Ela é
a autodefinição daquilo que a Igreja assumiu em sua fé.
Bem diverso foi o surgimento do Alcorão. Ele contém
exclusivamente ditos de Maomé. Maomé pronunciou esses ditos
aproximadamente do seu quadragésimo ano de vida até sua
morte, isto é, entre os anos 610 e 632. Isso perfaz 23 anos. Ditos
de discípulos do profeta, comparáveis aos documentos do
apóstolo Paulo no Novo Testamento, não se encontram no
Alcorão. Maomé estava imbuído da ideia de dar a seu povo um
livro sagrado em sua própria língua, o árabe, livro que até então
esse povo não possuía. “Assim te inspiramos um Alcorão árabe,
para que advirtas a mãe das cidades [Meca] e o povo que habita
em suas cercanias” (Sura 42,7; cf. 20,113; 12,2, entre outras). Ele
pressupôs desde o início que seus ditos seriam apresentados por
escrito. Eles são de diversos gêneros: abrangem textos de
diversos tipos, desde a conclamação escatológica, passando por
tratados, até o código legal e a coleção de sermões O próprio
profeta deve ter reunido trechos menores em unidades maiores,
mais tarde realizando eventualmente correções. Enquanto ele
estava vivo, a revelação estava em curso. Uma mudança
expressiva ocorreu por ocasião de sua fuga de Meca para
Medina. A grande disposição da população árabe de Medina em
acolher a mensagem de Maomé, em contraste com a rejeição
por parte da população de Meca, trouxe como resultado a
diminuição do teor escatológico e a elevação a primeiro plano
das instruções legais.
62
Comparando-se as coleções da Bíblia e do Alcorão, o que
mais chama a atenção é a diferença de tempo. A coleção da
Bíblia — Antigo e Novo Testamento — ocorreu durante séculos.
A coleção do Alcorão já estava concluída 35 anos após a morte
de Maomé. Isso certamente tem a ver, ao mesmo tempo, com o
fato de o Alcorão ser posterior e, segundo a vontade de Maomé,
ao fato de ocupar o lugar da Bíblia, mais exatamente: ele a
pressupõe e passa a ocupar seu lugar Também não se deve
menosprezar a influência político-religiosa. O lugar vivencial em
que surge a Bíblia, são as comunidades anônimas, tanto judaicas
como cristãs.
VALORIZAÇÃO E AVALIAÇÃO
Certa valorização da Bíblia e do Alcorão já é indicada
pelos títulos. Já nos escritos do Antigo Testamento se fala dos
“livros” (LXX Dn 9,2), do “livro sagrado” (2Mc 8,23) ou dos “livros
sagrados” (1Mc 12,9). O conceito “os livros” ( é usado,
no singular, o mais tardar a partir do século XII, para referir-se ao
livro da Bíblia, abarcando o Antigo e o Novo Testamento. O
conceito goza de certa exclusividade. Trata-se do livro,
simplesmente. Bem semelhante é a situação acerca da palavra
Alcorão, em árabe Kur’an. Ela designa aquilo que está indicado
para ser recitado, lido em público, no sentido de que deve ser
apresentado solenemente como palavra de Deus. A palavra
(Al)corão remonta, por fim, à tarefa dada por Deus a Maomé de
tornar conhecida a revelação.
De importância teológica é a questão de como a palavra
escrita (Bíblia, Alcorão) se relaciona com a revelação. Judaísmo,
63
cristianismo e islamismo são religiões de revelação. Elas
pretendem tornar Deus conhecido. Elas concordam na
concepção de que o Deus oculto se apresentou, em linguagem
teológica, que Deus se revelou. É característico de cada religião,
enfim, considerar-se criação de natureza divina. O judaísmo, o
cristianismo e o islamismo também concordam entre si ao se
referirem ao único Deus pessoal.
Aqui não é o lugar para se tratar dos numerosos
problemas ligados ao tema da revelação. Concentramo-nos na
questão de como na Bíblia e no Alcorão é possível encontrar um
acesso à revelação divina. Ver-se-á que há consideráveis
diferenças entre a Bíblia e o Alcorão.
Segundo a compreensão bíblica. Deus se revelou na
história. As autocomunicações de Deus acontecem na história,
especialmente na história de seu povo, Israel. Ele é
testemunhado pela eleição desse povo, sua organização e
condução por meio de Abraão, Moisés e dos profetas, a
libertação da escravidão do Egito, a longa marcha pelo deserto, a
tomada da terra e os inúmeros acontecimentos nos quais Deus
se mostrou como socorro e salvador. Em seu agir histórico dá a
conhecer as particularidades de seu amor solícito e de sua
santidade. Em sua Lei ele dá a conhecer sua vontade e seus
planos. Mas ele sempre decide livremente sobre o que e a quem
quer manifestar sua revelação. Nos diversos estágios da
tradição, diversos modos de compreensão ganham expressão.
Contudo, trata-se unicamente da luta para encontrar as
formulações adequadas para a realidade da revelação. Os
próprios profetas apenas conseguem insinuar isso com imagens
insatisfatórias, dizendo, por exemplo, que o Espírito de Deus ou
64
a mão de Deus sobreveio a eles (Ez 1,3), ou que a palavra de
Deus vem a eles. “Oráculo do Senhor Javé dos exércitos” (Is
3,15), “Oráculo de Javé” (Jr 1,8), ou com formulações
semelhantes, que podem, por vezes incontáveis, confirmar essa
proximidade de Deus.
Segundo a compreensão da Bíblia do Novo Testamento, o
ápice e a conclusão da revelação ocorreram em Jesus Cristo.
Sendo “o Filho”, ele mesmo é a revelação, não só em suas
palavras, mas também na totalidade de sua vida, ação, morte e
ressurreição pascal. Ele assume a Bíblia do Antigo Testamento e
a leva à plenitude. Tudo isso é dito de forma clássica no início da
Carta aos Hebreus: “Muitas vezes e de muitos modos Deus falou
antigamente aos pais por meio dos profetas. Nos últimos dias
falou a nós por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de
tudo e pelo qual também criou os séculos” (1,1s).
O objetivo da Escritura é despertar e fortalecer a fé em
Deus, que se revelou em Israel e em Jesus Cristo. O ponto
central para o objetivo do Antigo Testamento poderia ser
Deuteronômio 6,4ss., o credo de Israel: “Ouve, Israel, Javé é
nosso Deus, Javé o único. Amarás Javé, teu Deus, com todo o teu
coração e com toda a tua alma e com toda a tua força”.
Correspondente estabelecimento de objetivo no Novo
Testamento pode ser encontrado em João 20,31, onde o autor
resume suas intenções com as seguintes palavras: “para que
creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que na fé
tenhais vida em seu nome”. A centralização cristológica
determina todo o Novo Testamento.
Embora houvesse se impressionado com o fato de os
judeus e os cristãos terem a sua escritura sagrada, sendo
65
inclusive por ela estimulado em diversos aspectos, Maomé
determina bem diversamente a relação do Alcorão com a
revelação. O Alcorão não é reflexo de uma precedente revelação
de Deus na história, mas é ele próprio a revelação de Deus. O
próprio Deus falou essas palavras a Maomé. Em sua experiência
vocacional. Deus ao mesmo tempo colocou sobre o peito do
profeta um livro, cuja mensagem ele mesmo precisaria primeiro
compreender e interiorizar, para só então estar em condições de
compartilhá-la e proclamá-la aos outros. O livro contém a
mensagem de Deus, ela é imutável, foge aos acontecimentos
históricos e está desligada de toda e qualquer transformação ou
mudança deste mundo. A revelação não é mediada pela ação
salvífica histórica de Deus. Ela está radicada no êxtase subjetivo
do profeta provocado por Deus, em que lhe foi transmitido
literalmente o conteúdo do livro. O islamismo é uma religião do
livro. Maomé não está no centro, sua vida e sua atividade não
têm efeito libertador e redentor, Maomé também não é um
santo. Somente o Alcorão é norma e autoridade primordial.
A eternidade e imutabilidade desse livro é reforçada pela
ideia de que ele é preservado no céu, como se fosse uma
grandeza preexistente. Em três passagens do Alcorão fala-se da
“mãe do livro”, o que deve ser entendido como escrito
primordial, como norma primordial: “Ele *o Alcorão árabe+ está
consignado junto a nós no escrito primordial [literalmente: mãe]
do livro, sublime e sábio” (Sura 43,4; cf 13,39; 3,7) Indicações
acerca de uma existência supramundana do Alcorão encontramse também nas Suras 56,77-80; 85,21s. Maomé teve acesso à
vontade celeste de Deus que ele, arrebatado no espírito, leu e
recitou. Esse evento supranatural levou muitos teólogos
66
muçulmanos a afirmar que ele não sabia ler nem escrever, não
podendo, por isso mesmo, corroborar mais ainda a origem
divina do Alcorão.
Essa visão da vontade celeste de Deus lhe foi
intermediada, segundo 53,1-18; 81,19-23; 17,1, por um
personagem vindo do céu, um anjo, “que possui força enérgica,
que tem poder” (53,6s), um “nobre enviado, que tem poder e
que está em lugar de honra junto ao Senhor do Trono” (81,19),
numa visão noturna, em que ele foi arrebatado da mesquita
santa para a mais longínqua mesquita (17,1). Essa viagem de
mesquita a mesquita, segundo a interpretação mais corrente,
conduz de Meca a Jerusalém. Na tradição posterior, o anjo que
proporciona a visão a Maomé será identificado com Gabriel
(Gibril). A Sura 53,1-18 possivelmente fala do fato de o profeta
ter visto Deus. Essa deveria ser então a versão mais antiga de
Maomé, que ele mais tarde corrigiu, dizendo que foi Gabriel que
lhe trouxe este conhecimento. Essas visões que em 53,1-18 são
descritas mais concretamente — “Ele estava em pé, no
horizonte superior [...] Aproximou-se então e desceu [...] a dois
arcos de distância, ou mais próximo ainda [...] junto à arvore de
Sísifo ao final do caminho, no jardim do lar” — não ocupam lugar
central. Elas terão fortalecido o profeta na consciência de sua
missão.
Os especialistas do Alcorão perguntavam também se era
possível descobrir o início das revelações no Alcorão. Alguns
consideram a Súra 96 a mais antiga, pelo fato de iniciar com a
ordem “Recita (íqra) em nome do teu Senhor”, começando,
portanto, com a palavra da qual deriva a palavra (Al)corão (=
recitação). Maomé entendeu que recitar a vontade de Deus era
67
a sua tarefa. Também se recorre à Sura 74: “Tu que te
recobriste, levanta-te e adverte!”. Maomé entende-se como
sentinela diante do juízo final.
O objetivo do Alcorão é a introdução do monoteísmo,
que no âmbito árabe representava uma novidade. Sempre se
volta a afirmar: “Não há outro Deus além dele” (3,2; cf 3,18.62;
4,87 etc). Essa afirmação tornar-se-á o núcleo do credo islâmico,
em que Maomé também é incluído, como na sura 4,136: “Crede
em Deus e em seu enviado e no livro que Ele enviou ao seu
enviado, e no livro que Ele enviou anteriormente”. Nesse
contexto Maomé aparece como mediador da revelação divina.
Ele se entende como sentinela, enviado, profeta, enfim, como
“selo dos profetas” (33,40). Com isso, afirma-se que a revelação
mediada por ele é de fato a revelação definitiva. Junto ao
monoteísmo está o anúncio do juízo final. Os seguidores de
Maomé são aqueles que “crêem em Deus e no último dia” (9,44;
cf 9,45.99; 12,37 etc).
No credo monoteísta, o Alcorão concorda com a Bíblia.
Desenvolve-se, contudo, contra a fé cristã em Jesus, uma
polêmica que vai aos poucos se intensificando. Sobre O papel de
Jesus e dos cristãos no Alcorão tornaremos a ocupar-nos mais
detalhadamente.
VISÕES GERAIS E SUBDIVISÕES
Numa comparação formal entre Bíblia e Alcorão, em
primeiro lugar aparece a considerável diferença quanto ao
volume. Recordemos mais uma vez os dados fundamentais da
Bíblia: a já citada divisão do Antigo Testamento em três partes
68
no judaísmo levou à formação da palavra artificial Tanak para a
designação do cânon. Trata-se da junção das letras iniciais de
Torah (lei), Nebiim (profetas) e ketubim (escritos). O Tanak
contém — conforme a contagem — 39, 22 (Flávio Josefo) ou 24
(4Esd) livros. Flávio Josefo e 4 Esdras reúnem várias vezes mais
de um livro num só, porque para eles os números 22 (número
das letras do alfabeto hebraico) e 24 (duas vezes as doze tribos
de Israel) eram importantes. Já o Novo Testamento foi ordenado
em 27 escritos até o final do século IV.
O Alcorão, em comparação com a Bíblia, é bem menos
volumoso. Está dividido em Suras. A palavra certamente deriva
de su'r (= seção, parte). O total é de 114 Suras. Não há
controvérsia quanto à contagem. A Sura 1, denominada al-fatiha
(a abertura), cai fora da ordem. Ela nada mais contém senão
uma bênção: “Em nome de Deus, o piedoso e misericordioso.
Glória a Deus, o Senhor dos mundos, o piedoso, o
misericordioso, o dominador no dia do juízo” etc. Por isso às
vezes se tem pensado que ela não deveria ser contada como
Sura 1. Mas isso também não seria apropriado, por causa da
numeração profundamente enraizada.
Cada Sura inicia com a invocação do nome de Deus, a
assim chama Basmala (literalmente: em nome de Deus). Ele só
não ocorre na Sura 9, provavelmente porque lá o tema é a ira de
Deus contra os inimigos do islamismo e os hipócritas. Poder-seia compará-la à Epístola aos Gálatas, a única epístola em que o
apóstolo Paulo omite a usual ação de graças no início — por
causa do péssimo estado da comunidade (cf. Gl 1,6 com Rm 1,8;
ICor 1,4 etc).
As Suras são de proporções muito diferenciadas. Para
69
facilitar o manejo, elas foram subdivididas em versículos (ayat).
Manuscritos muito antigos ainda não apresentam essa
subdivisão. Com o passar do tempo, diversas subdivisões
estavam em uso. Atualmente impôs-se a subdivisão da edição
oficial egípcia. Durante longo tempo circulava a subdivisão da
edição Flügel, principalmente na literatura ocidental. Nós,
naturalmente, nos baseamos na subdivisão oficial. Para se ter
uma ideia: a mais longa Sura é a segunda, com 286 versículos,
enquanto as Suras menores têm apenas três versículos (103,
108, 110, 112). Pode-se ter uma ideia concreta considerando
que a Epístola aos Romanos do apóstolo Paulo contém 433
versículos; assim, a Sura 2 equivale a mais da metade da Epístola
aos Romanos. Grosso modo, o Alcorão e o Novo Testamento
devem mais ou menos equivaler-se em volume.
Pode parecer-nos estranho que as Suras, além de sua
numeração, ainda tenham nomes: A Vaca, O Clã de Imrã, As
Mulheres, A Mesa, O Gado etc. Os nomes serviam de apoio aos
recitadores. Via de regra o nome tem alguma relação com a
Sura. O Padre da Igreja João Damasceno ( 750) até cita alguns
nomes de Suras. Logo, já deviam estar em uso naquela época.
Para nós interessa especialmente o fato de existirem Suras que
têm em seu título nomes de personagens bíblicos: Sura 10:
Yunus (Jonas); 12: Yusuf (José); 14: Ibrahim (Abraão); 19:
Maryam (Maria, mãe de Jesus); 71: Nuh (Noé).
Até hoje não há explicação convincente para as — assim
chamadas pelos cientistas islâmicos ocidentais — “letras
misteriosas”. Os sábios islâmicos as denominam “as letras
separadas” ou “as aberturas das Suras”, ou outros nomes
semelhantes. Na verdade, trata-se somente de 29 Suras em cujo
70
início essas letras ocorrem. As letras devem ser lidas
isoladamente. São no máximo 15 letras: Ha Mim Ayn Sin Qaf
(Sura 42), o número mínimo é de 3: Sad (Sura 38), Qaf (50), Nun
(68). Há para isso uma ampla literatura e numerosas tentativas
de explicação. Elas são vistas como abreviação de um nome
divino, como abreviaturas que eram importantes para a redação
final, ou também se atribui a elas um valor simbólico ou um
significado que ninguém conhece a não ser Deus.
Também não se pode identificar com certeza um sistema
de ordenação das Suras dentro do Alcorão. Foi muito divulgada a
informação de que simplesmente se tomou por princípio a
extensão de cada Sura. As mais longas estão no início, enquanto
as mais curtas no final. Aceitando-se isso, não é preciso medir
com a régua.
Uma ordem cronológica das Suras seria muito
importante. Normativos são antes de mais nada aspectos de
conteúdo. Para o período primitivo é indicativa a expectativa
imediata do juízo, como pode ser encontrada em algumas Suras
mais breves no final do Alcorão, como por exemplo Sura 113,1s:
“Procuro refúgio no Senhor no crepúsculo matinal antes da
desgraça *...+”. Para o período tardio, aduzem-se textos que
pretendem ordenar a vida comunitária. A determinação de uma
ordem cronológica também é difícil pelo fato de muitas Suras
serem compostas a partir de diversos fragmentos. Th. Nödelke,
F. Schwally e R. Bell fornecem-nos importantes análises
cronológicas, realizadas com muito investimento. Nödelke e
Schwally estabeleceram a Hidjra (Hégira), a grande mudança
para Medina em 622, como a cesura que distingue Suras do
período de Meca de Suras do período de Medina. As Suras do
71
período de Meca foram inclusive subdivididas por eles em três
degraus cronológicos. R. Bell tomou como critério atividades
revisionais e redacionais que ele julgava poder identificar no
Alcorão. O trabalho está longe de sua conclusão. É necessário
analisar cada Sura isoladamente. Pode-se aqui indicar o
comentário de A. Th. Khoury.
É preciso lembrar ainda o estilo de linguagem bem
determinado do árabe em que o Alcorão foi escrito. Fala-se hoje
de uma koiné literária, com adaptações à linguagem corrente,
especialmente como era falada em Meca. Há preferência por
rimas e assonâncias alternadas. Para se ter uma visão mais
concreta, H. Stieglecker apresenta um pequeno trecho da
tradução dos Maqamen de Hariri, feita por F. Rückers: “Nós te
agradecemos, ó Deus, tal como por cada dom, também pelo
dom da palavra; tal como pela entrada e saída da casa, também
pela harmonia e concórdia do Espírito, e tal como pelo pôr e
despir um vestido, também pelo pôr e explicar o sentido *...+”.
A BÍBLIA NO ALCORÃO
A presença da Bíblia no Alcorão é indiscutível do ponto
de vista de uma exegese histórico-crítica. É uma presença
singular. Repetidas vezes já se procedeu à identificação e à
reunião de textos e tradições bíblicas no Alcorão. Não
repetiremos aqui esse trabalho, mas queremos chamar a
atenção para as singularidades da presença da Bíblia no Alcorão.
Tradições bíblicas significativas serão tratadas junto com temas
teológicos importantes.
Inicialmente chama a atenção a variedade. Se
72
considerados os numerosos escritos do Antigo e do Novo
Testamento, ela é bastante reduzida. É possível que haja muitas
concordâncias e alusões esporádicas e formulares, que o Alcorão
sempre torne a falar uma linguagem que recorda a Bíblia —
especialmente os salmos —, mas em seu conjunto o resultado
quantitativo não é muito grande. Isso se torna claro quando se
recorda quais são os livros bíblicos que não ocorrem. Quando
surge alguma sentença que recorda o dito de algum profeta, isso
significa praticamente tanto quanto nada. A linguagem religiosa
tem suas características comuns.
Maomé conhecia antes de tudo o Pentateuco,
especialmente o Livro do Gênesis. Ele conhecia tradições
provenientes dos livros históricos, tal como a história de Davi e
Golias (Sura 2,250), conhecia Davi e Salomão (34,10-12), mas
não conhecia os Profetas e os livros sapienciais. O Li vro de Jonas
faz a exceção (10,98). Característico é, contudo, que o Alcorão
contenha narrativas que despertem interesse especial. A
concentração no Livro do Gênesis é compreensível, já que a
históiria da criação do mundo e da pessoa humana, de Noé,
Abraão e Moisés, com a saída do Egito, de José sempre tornam a
ser narradas e recordadas. As constantes repetições das histórias
da criação, de Abraão e de Moisés são as que mais causam
impressão de que o Antigo Testamento esteja tão amplamente
presente no Alcorão, embora as variantes narrativas possam
desfazer um pouco os estereótipos da estrutura narrativa.
Maomé conhecia também a narrativa da Torre de Babel, embora
ele atribua a construção da torre ao faraó (40,36s). Era-lhe
familiar a regra da “vaca vermelha” (2,67ss; c£ Nm 19,1-10) e
conhecia principalmente o Decálogo.
73
As citações do Novo Testamento que se encontram no
Alcorão concentram-se nos evangelhos sinóticos. Das perícopes
narrativas, apenas duas aparecem no Alcorão. Ambas provêm da
narrativa da infância de Lucas. Trata-se do anúncio do
nascimento de João Batista e do anúncio do nascimento de Jesus
(Lc 1,5-38). De resto, é possível identificar um bom número de
ditos isolados que possuem equivalentes nos evangelhos
sinóticos.
Agora nos interessaremos apenas pelas tradições
interpretativas judaicas, cristãs, judeo-cristãs e apócrifas,
apresentando alguns exemplos. Seu conteúdo geralmente é
muito fantasioso. Segundo diversas passagens do Alcorão,
depois da criação de Adão, os anjos teriam sido convocados a
prestar-lhe homenagem. Todos o fazem, com exceção de Iblis (=
o diabo). Ele é castigado e torna-se o tentador das pessoas
(15,28-38; 38,71-82). Essa história encontra-se também no
escrito judaico (revisada em ambiente judeo-cristão?) intitulada
“A vida de Adão e Eva” (14-16). A afirmação de que Deus criou
sete céus (Sura 78,12) provém igualmente dessa tradição. A
elaboração da história de Noé — Noé admoesta o povo, o povo
zomba dele, Noé pede o castigo para a humanidade pecadora —
também pode ser constatada na tradição judaica. A Sura 3,76-79
narra detalhadamente como Abraão, antes de sua conversão,
adorava estrelas, lua e sol como deuses. O mesmo pode ser lido
no Livro dos Jubileus 12,16-20 (cf Ap de Abraão 1). O livro
hebraico dos Jubileus foi traduzido para diversas línguas (grego,
etíope) e também utilizado em comunidades cristãs. No restante
da elaboração das narrativas sobre Abraão, o Alcorão é
influenciado do mesmo modo por essas citadas tradições.
74
Abraão discute com seu pai acerca do absurdo de se adorar
ídolos, destruindo os ídolos de seu pai.
Torna-se claro com isso que a maioria das tradições vão
numa direção bem determinada, ou seja, a defesa da fé
monoteísta. Antes de seguirmos essa linha, contudo, queremos
chamar a atenção também para outras tradições. Há a fábula da
poupa [um pássaro] (Sura 27,22-26), também relacionada com a
fé monoteísta. A poupa traz a Salomão notícias da rainha de
Sabá, que ainda adora o sol mas deverá ser convertida a Deus.
Essa narrativa possivelmente sofreu influência do targum de
Ester.
Nas tradições sobre Jesus presentes no Alcorão
imiscuíram-se tradições apócrifas. Citemos apenas o milagre dos
pássaros, realizado pelo menino Jesus (3,49; 5,110), ou ainda a
história da tamareira que proporciona refrigério à virgem Maria
(19,24-26) que foge de seus difamadores. Houve uma inflação de
lendas acerca da história da infância de Jesus. Sua coleção
também foi publicada num evangelho da infância árabe, que
reporta um grande número de milagres e no qual Maria tem
papel muito destacado. As lendas, em parte misturadas com as
narrativas canônicas, tornaram-se conhecidas entre os
muçulmanos. Também Maomé estava familiarizado com elas,
introduzindo um bom número delas no Alcorão.
Embora não seja pertinente, pode-se lembrar aqui que
também a lenda cristã dos sete adormecidos foi introduzida no
Alcorão (18,9-26). A Sura 18,60-98 contém elementos do
romance de Alexandre. A Sura 2,259 recorda a lenda judaica de
Honi, o mago (Taanit 23a).
Perguntemos agora pela intenção de Maomé ao integrar
75
no Alcorão material bíblico, e exatamente este. Acerca das
tradições interpretativas que ele assume, já nos chamou a
atenção que a pregação monoteísta era para ele um critério
fundamental. Abraão e Moisés são representantes proeminentes
dessa pregação. A mensagem sofre rejeição. O faraó é o
principal representante da resistência. Aqui pode ser
reconhecido mais um dos elementos de suas intenções. Ele tenta
descobrir sua própria ação na ação dos bíblicos homens de Deus.
A isso está relacionado o fato de ele estar antes de mais nada
interessado em figuras bíblicas. As repetidas experiências na vida
delas — pode-se enumerar: pregação, rejeição, castigo dos
obstinados, salvação do pregador — são as suas próprias
experiências.
Fala-se muitas vezes no Alcorão do mundo como criação
de Deus. Pressupostos são os dados de ambas as narrativas da
criação (Gn 1 e 2). O recurso à criação tem por objetivo
incentivar o louvor ao Criador Junto a isso surge mais um
interesse: Maomé, com o recurso ao Deus criador, pretende
convencer aqueles que suspeitam de sua mensagem sobre a
ressurreição dos mortos — previsível para um prazo
determinado — e a rejeitam: “Se dizes: após a morte sereis
ressuscitados, os infiéis dizem: isso claramente é feitiçaria”.
Maomé revida: “É Ele que fez o céu e a terra em sete dias,
enquanto seu trono repousa sobre a água, para colocar-vos à
prova” (11,7). Da mesma forma argumentou contra aqueles que
dizem: “Seremos nós realmente recriados após termo-nos
tornado pó? Esses são os que não crêem em seu Senhor, tendo
cadeias em seus pescoços, são os que estão no fogo” (cf 13,2-5).
Deus repetirá a criação inicial, para recompensar justamente
76
aqueles que crêem e fazem boas obras (10,4; cf 25,59; 50,38;
57,4).
Faz parte também desse contexto o interesse de Maomé
em narrar os milagres de Deus. Ele próprio não realizou
milagres. Seus adversários o acusavam disso. Isso não o inibe de
relatar fatos extraordinários como sinal do poder de Deus. Essa
deve ter sido também a razão pela qual assumiu a lenda dos sete
adormecidos ou a lenda de Honi, o mago. Ambas falam da
vivificante e criadora força de Deus. Teologicamente significativa
para nós é, porém, sua interpretação do nascimento virginal de
Jesus, que ele não coloca em dúvida. Ela não tem relevância
cristológica para ele, mas é simplesmente expressão do poder
criador de Deus: “Esse é o jeito *de agir+ de Deus. Deus cria
quando quer” (3,47). A criação de Adão é para Maomé mais
milagrosa ainda, uma vez que Adão não tinha pai nem mãe
(3,59:15,26-30).
Ainda uma última intenção de Maomé, ao selecionar
material bíblico, é fornecer exemplos de conduta de vida. Podese aqui recorrer à história de José, que, além da história de Caim
e Abel, é a única da qual faz uma narrativa contínua no Alcorão
(Sura 12: Yusuf). Ela é introduzida com as palavras: “Narrar-teemos a mais bela história” (12,3). Ela é narrada como
“advertência aos habitantes dos mundos”, como “ensinamento
para os que desejam compreender”, como “diretriz e
misericórdia para todos os que crêem” (12,104 e 111). S. Raeder
demonstrou que na história de José do AT o próprio José
permanece na ignorância, percebendo somente mais tarde que
a história familiar carregada de culpa era o caminho rumo ao
futuro prometido por Deus. Esse aspecto falta no Alcorão. José é
77
antes de mais nada pregador do monoteísmo (12,38-40), que
perpassa toda a realidade da ação de Deus.
Indaguemos ainda sobre o lugar onde teria sido possível
Maomé encontrar-se com o judaísmo e o cristianismo e deles se
ocupar. Para o judaísmo com certeza foi Medina, e para o
cristianismo com muita possibilidade Meca, que possivelmente
também entra em questão quanto ao judaísmo. É possível
detectar vestígios desse encontro?
Há tradições islâmicas legendárias segundo as quais o
jovem Maomé, ainda antes de sua vocação, teria participado
com seu tio Abu Talib de uma caravana para a Síria. Lá, teriam se
encontrado com um monge cristão chamado Bahira, que teria
reconhecido os dons proféticos do menino. Podemos ignorar
essa informação, bem como a de que um primo de Hadiga,
primeira mulher de Maomé, teria sido cristão. Ele teria se
chamado Waraqa ibn Naufal.
A LINGUAGEM FIGURADA
A Bíblia e o Alcorão surgiram exatamente no mundo
oriental. Isso também influenciou a linguagem. Isaías, Jeremias,
Jesus, Paulo, Maomé foram homens fortes da palavra.
Queremos aqui nos dedicar apenas a um aspecto da linguagem,
ou seja, sua capacidade de exprimir-se em imagens. Todos eles
desenvolveram sua linguagem figurada, com seu repertório de
imagens dentro de uma determinada tradição, mas também
plenamente capazes de desenvolver sua própria força de
linguagem.
Interessam-nos especialmente Maomé e a tradição
78
sinótica. Maomé, principalmente na primeira fase de sua
atividade, falou com linguagem incendiária. Assim o avalia em
todo caso Th. Nöldeke: “A força do entusiasmo que movia o
profeta nos primeiros anos, que o fazia ver anjos enviados por
Deus, precisava também encontrar sua expressão no Alcorão. O
próprio Deus que o plenifica é que fala, a pessoa passa
totalmente para segundo plano, tal como ocorria com os antigos
profetas de Israel. O discurso é grandioso, festivo e cheio de
imagens ousadas, o embalo retórico tem ainda também o
colorido poético. O movimento apaixonado, não raro
interrompido por simples mas enérgicas e calmas instruções e
coloridas descrições, reflete-se nos breves versículos, tendo todo
o discurso um movimento rítmico, e muitas vezes uma boa
sonoridade, embora não seja proposital. Os sentimentos e as
intuições do profeta expressam-se por vezes com certa
obscuridade de sentido, que, de fato, é mais aludido do que
exposto. Um elemento dessa linguagem é constituído pelos
juramentos, dos quais encontramos cerca de trinta no Alcorão.
No início, tal como os antigos videntes árabes, Maomé invoca as
coisas da natureza, jurando pelo sol, pela lua, pelas estrelas, pela
luz e pelas trevas, dia e noite, céu e terra etc. Mais tarde surgem
com mais destaque juramentos tais como “pelo sábio Alcorão”
(36,2; cf. 38,1), “pelo compreensível livro” (43,2; 44,2), “por um
livro que foi escrito linha por linha sobre um pergaminho
estendido” (52,2s), e outros semelhantes . Por fim os juramentos
desaparecem totalmente. Pode-se aqui identificar um
desenvolvimento que deve estar relacionado com o
desenvolvimento da consciência do próprio profeta.
Mas a situação também muda. Atingido pelas derrotas
79
em Meca, ele obteve grande sucesso em Medina. Maomé
tornou-se o organizador de uma comunidade nascente, o
Umma, tornou-se legislador e estadista. O estilo de linguagem
mudou necessariamente. Em lugar de convocações incendiárias,
surgiram prescrições e determinações legais. Elas por vezes até
são introduzidas com “É proibido a vós” (4,23; 5,3) ou “Para vós
é prescrito” (2,178.180.183, entre outros).
Maomé também recorre à parábola (matal),
provavelmente uma forma de discurso que ele sempre volta a
utilizar. Com isso se nos apresenta uma possibilidade de
comparação, pois a parábola (hebraico: maschal) tem sua pátria
no mundo judaico. Tem seu lugar bem determinado no
ensinamento rabínico. Jesus a utilizou de forma praticamente
insuperável em sua pregação.
A observação a seguir pode esclarecer o significado da
parábola para os evangelhos sinóticos (Jesus) e para o Alcorão
(Maomé). Em Marcos 4,33s lê-se: “E com muitas parábolas ele
proclamava [Jesus] a eles a palavra, assim como a podiam ouvir.
Sem parábolas, porém, ele não lhes falava. Em particular, porém,
esclarecia tudo aos próprios discípulos”. De modo semelhante,
em Mateus 13,34s: “Tudo isso Jesus falou em parábolas às
multidões, e sem parábola nada falava a eles, para que se
cumprisse o que foi dito pelo profeta que diz: ‘Quero abrir para
eles a boca em parábolas, quero proclamar o que estava oculto
desde a criação’” Talvez cause admiração que no Alcorão se
encontre algo semelhante: “Neste Alcorão inculcamos nas
pessoas toda sorte de parábolas (min kulli matalin), para que o
considerem, como um Alcorão árabe, no qual não há nada de
incorreto, tornando-se tementes a Deus” (39,27). Ou: “Neste
80
Alcorão apresentamos diversas parábolas às pessoas. Contudo, a
maioria das pessoas nada mais querem do que ser infiéis”
(17,89). Ou: “Neste Alcorão apresentamos diversas parábolas às
pessoas. A pessoa, porém, contesta a maior parte das coisas”
(18,54). Ou: “Neste Alcorão inculcamos nas pessoas diversas
parábolas. E quando te diriges a elas com um versículo os
incrédulos dizem: vós trazeis insensatez”.
A comparação certamente torna claro que o discurso em
parábolas tinha papel central tanto na mais antiga pregação
cristã como na muçulmana. Admirável é também sua ligação
com a reação obstinada e sem fé dos ouvintes. Em Marcos 4,12
é citada a palavra do endurecimento da cerviz de Isaías 6,9s,
relacionada com o discurso em parábolas de Jesus (cf Mt
13,14s). Essa reação paradoxal esconde a experiência de que a
mais clara revelação pode provocar a pior cegueira.
Detenhamo-nos um pouco no mundo das imagens
presente nos matalin e nos meschalim. Ele aparece com maior
nitidez nas parábolas rabínicas e principalmente nas de Jesus.
Jesus revestiu suas parábolas com o “manto da pátria”. Elas
descrevem realidades conhecidas, cotidianas, fazendo desfilar
diante de nós a vida da pessoa comum do seu tempo, do homem
do campo que espalha a semente em sua lavoura, do pescador
que arrasta sua rede, também do cidadão de Jerusalém que
oferece uma refeição aos convidados ou se dirige ao templo
para rezar. Ambos os ambientes, rural e urbano, permitem
determinar onde essas parábolas foram apresentadas pela
primeira vez, se na área rural, ao longo do lago de Genesaré, ou
na metrópole. Narram-se acontecimentos cotidianos que
sempre tornam a se repetir, tais como semeadura e colheita, o
81
crescimento do grão de mostarda ou a mistura do fermento na
farinha. Ou então passam diante de nossos olhos histórias
cativantes como a do bom samaritano, do rico epulão e do
pobre Lázaro, ou do homem rico que oferece um banquete, mas
que, por fim, acolhe em sua casa os esmoleiros e os aleijados.
As parábolas do Alcorão denotam origem na cidade e no
deserto circundante. Trata-se claramente do mundo da Arábia
que está sendo refletido. Aparecem a miragem, a fata morgana
(24,39), a cidade, que uma vez foi rica e depois castigada pela
fome — alusão clara a Meca (16,112s); escravos aparecem em
duas parábolas (16,75; 39,29). A parábola dos habitantes da
cidade a quem repetidas vezes foram enviados mensageiros de
Deus e que por fim são castigados por se mostrarem obstinados
(36,13-32) recorda um pouco a parábola sinótica dos vinhateiros
homicidas (Mc 12,1ss par.). Dois homens que possuem jardins
com parreiras, palmeiras e campos de trigo (18,32ss) devem ser
localizados com mais probabilidade num oásis. Animais também
são utilizados como material nas imagens, mas somente animais
pequenos, mosca e aranha (22,73; 29,41), o que novamente
indica com mais probabilidade o ambiente de uma cidade. A
imagem do oleiro (55,14) é antiga e ocorre também na Bíblia
(Rm 9,21; Jr 18,6; Sb 15,7). Quando na Sura 6,59 se diz que
“nenhuma folha cai sem que Ele tome conhecimento disso”,
tem-se a tentação de identificar uma referência à imagem dos
pardais (Mt 10,29)
Uma diferença apresenta-se
contudo quando
observamos a forma narrativa da parábola no Alcorão. Em quase
todos os casos trata-se não de histórias completas, mas de
sóbrias comparações. F. Buhl pretendeu definir as parábolas do
82
Alcorão apenas como “afirmação característica e pregnante”.
Tomemos como exemplo a “parábola” da aranha: “Tal como os
que em lugar de Deus escolhem amigos, acontece o mesmo que
com a aranha, que escolheu uma casa. A casa mais frágil é a da
aranha. Quem dera que eles o soubessem!” (29,41). Aqui é
apresentada uma comparação que se caracteriza pelo “tal como
— o mesmo”. O que se quer dizer está claro: tão fraca como a
casa da aranha é também a casa dos descrentes. Algumas
comparações não são tão claramente compreensíveis, devido à
sua sobriedade, dando ocasião a diversas interpretações, caso
da parábola da mosca (22,73) cujo texto é o seguinte:
“Aqueles que invocais em lugar de Deus não são capazes
de criar nem mesmo uma mosca, mesmo que se unam todos
para esse fim. Se alguma mosca lhes furtar algo, não são capazes
de reavê-lo”. Quem é, na segunda frase, o sujeito que furta algo?
O ídolo ou o adorador do ídolo? Cf PARET, Koran-Kommentar. p.
352.
Com seu pregnante caráter comparativo, as parábolas do
Alcorão são bem mais semelhantes às parábolas rabínicas do
que às parábolas sinóticas. Também na escola rabínica sempre
se torna a recorrer às comparações, para esclarecer ou tornar
compreensível aos alunos alguma situação um tanto complicada.
Após a situação ter sido exposta teoricamente, passa-se à
comparação imagética esclarecedora, em geral introduzida com
as palavras: “Façamos um maschal. A quem se compara o objeto
em questão?”. Segue então uma comparação ou uma parábola.
É claro que as comparações/parábolas do Alcorão
também têm a função de esclarecer. Mas elas não pretendem
didaticamente algo teórico. Elas pretendem sacudir, convocar à
83
reflexão, à mudança da vida que deve ser orientada para Deus.
Com isso está relacionado o fato de quase todas as parábolas, na
imagem que apresentam, indicarem uma catástrofe: a casa da
aranha desmorona, a cidade obstinada sucumbe à fome, o
jardim dos homens descrentes fica deserto até as copas das
árvores. Nesse aspecto, as parábolas do Alcorão se aproximam
bastante de algumas das presentes na tradição sinótica.
Também lá algumas acabam em catástrofe: as virgens
imprudentes não são admitidas à sala das núpcias (Mt 25,11b), o
servo preguiçoso, que não fez bom uso do talento que lhe foi
confiado, sofre sorte semelhante (25,2,6-28), a casa construída
sobre areia desmorona com a tormenta e o granizo (7,26s).
Chegou-se a falar de parábolas trágicas. A intenção é a mesma,
ou seja, despertar diante do iminente juízo de Deus.
É claro que não se deve esquecer a quantidade de
parábolas de Jesus que pretendem incentivar positivamente
uma vida cristã, tal como a parábola do bom samaritano (Lc
10,37: “Vai e faze o mesmo!”), a do rico epulão e do pobre
Lázaro (16,19-31), a dos lugares certos dos convidados à mesa
(14,7-14) e outras.
Mesmo assim, com isso ainda não estamos no núcleo das
possibilidades de afirmação das parábolas. Os rabinos eram
capazes de fazer isso de modo original e por vezes até exótico.
Um exemplo: “Um maschal. Com que isso pode ser comparado?
Com alguém que ia pelo caminho, deixando seu filho ir à sua
frente. Surgiram ladrões com a intenção de levar o filho
prisioneiro. Então ele o retirou de sua frente, colocando-o atrás
de si. Chegou então por trás um lobo. Assim o retirou de trás,
colocando-o à sua frente. Surgiram ladrões à frente e lobos
84
atrás. Então ele tomou o filho em seus braços. O filho começou a
sentir dores por causa do sol. Então o pai estendeu seu manto
sobre ele. O filho teve fome e ele lhe deu de comer. Ele teve
sede e lhe deu de beber. Assim agiu o Santo, bendito Ele seja!
Contudo, as parábolas de Jesus apresentam a ligação
mais estreita com Deus. No centro de sua pregação está a
Basiléia, o Reino de Deus, ou a soberania de Deus. Em parábolas
ele torna o Reino de Deus próximo às pessoas. Essas parábolas
do Reino de Deus constituem, na tradição das parábolas, uma
categoria própria a ser examinada individualmente. Com essas
parábolas não só se esclarece como o Reino de Deus deve ser
entendido, como ele funciona, o que ele representa, mas nela o
Reino inclusive é tornado presente. “Com o Reino dos céus
[Mateus, em vez de Reino de Deus, fala do Reino dos Céus.
“Céus” é sinônimo de Deus. De acordo com a sensibilidade
judaica da época, evitava-se pronunciar o nome de Deus.] ocorre
como com o grão de mostarda, que um homem tomou e
semeou em seu campo. Ele é de fato a menor de todas as
sementes. Mas quando cresce torna-se a maior das hortaliças,
vindo a ser uma árvore, de modo que os pássaros do céu, vindo,
farão ninhos em seus galhos... Com o Reino dos céus acontece
como com um pouco de fermento, que a mulher tomou e
misturou a três medidas de farinha, até que tudo fermentou”
(Mt 13,31-33). “Com o Reino dos céus acontece como com um
tesouro escondido no campo. Alguém o encontrou e o
escondeu. Em sua alegria foi e vendeu tudo quanto possuía, para
comprar aquele campo. Com o Reino dos céus acontece ainda
como com um negociante que procura belas pérolas. Ao
encontrar uma de extraordinário valor, foi, vendeu tudo quanto
85
possuía e a comprou” (13,44-46).
A presença do Reino de Deus que acontece com essas
parábolas tem suas raízes em Jesus. Nele, em sua prática, em
sua palavra, nas curas, na ajuda, em sua relação libertadora com
as pessoas, especialmente com os excluídos, enfermos e
marginalizados da sociedade, são liberadas as forças salvadoras
da Basiléia, atingindo as pessoas que a aceitam. Agora o tesouro
escondido no campo pode ser encontrado. Agora está começado
o início do fim, o grão de mostarda pode ser semeado. O início
contém em si o fim. O fim é a definitiva soberania de Deus.
Em comparação com a parábola rabínica do pai e do
filho, há nas parábolas de Jesus exemplos que descrevem de
forma mais incisiva ainda a relação da pessoa com Deus, relação
que foi conseguida por meio de Jesus. Recordo aqui a parábola
do filho perdido (Lc 15,11-32). Aqui, em comparação com a
parábola rabínica, acrescenta-se ainda que o extraordinário
amor do pai, descrito na parábola, em Jesus se tornou realidade
palpável e pretende continuar a ser eficaz, mesmo contra a
resistência das pessoas. A resistência é oposta pelo irmão que
permaneceu em casa, que não quer aceitar o irmão que se havia
perdido.
86
III - Temas Teológicos
A IMAGEM DE DEUS
É preciso partir da imagem de Deus. Deus é o conteúdo
do pensamento teológico. A pergunta acerca de Deus deve ser
determinante também quando indagamos sobre semelhanças e
diferenças na comparação entre as religiões. Judaísmo,
cristianismo e islamismo são designadas como as três religiões
monoteístas. Vê-se na confissão do único Deus aquilo que há de
comum entre essas três religiões mundiais, que se referem a
Abraão. Trata-se do mesmo Deus?
Na Sura 29,46, lê-se, numa passagem que trata da
controvérsia dos seguidores de Maomé com judeus e cristãos (=
as pessoas da Escritura): “Discuti com as pessoas da Escritura
nunca de outra forma do que a boa, com exceção para aqueles
que cometem injustiça. Dizei: Nós cremos naquilo que tanto
para nós quanto para vós (como revelação) do alto foi enviado.
Nosso e vosso Deus é um (no sentido de ser o mesmo)”.
Ouvem-se vozes semelhantes também da parte cristã.
Citemos dois exemplos. O papa Gregório VII ( 1085) escreve
uma carta ao emir de Mauritânia, dizendo que os muçulmanos e
os cristãos crêem num único Deus, acrescentando, porém, que
eles o confessam, louvam e honram de modo diverso.
O Concílio Vaticano II declarou, como já citado, em seu
documento sobre a relação da Igreja com as religiões nãocristãs, no capítulo 3: “Quanto aos muçulmanos, a Igreja
igualmente os vê com carinho, porque adoram a um único Deus,
vivo e subsistente, misericordioso e onipotente, Criador do céu e
87
da terra, que falou aos homens. A seus ocultos decretos
esforçam-se por se submeter de toda a alma, como a Deus se
submeteu Abraão, a quem a crença muçulmana se refere com
agrado”.
A confissão da unicidade de Deus é a essência da
pregação de Maomé. Como um refrão que sempre se repete, ela
perpassa todo o Alcorão. “Vosso Deus é um único Deus. Não há
outro deus além dele, o misericordioso, o piedoso” (2,163).
“Deus comprova que não há outro Deus além dele, igualmente o
fazem os anjos e aqueles que possuem a sabedoria” (3,18).
“Vosso Deus é um único Deus. Aqueles que não crêem no além,
rejeitam isso em seu coração, mostrando-se orgulhosos” (16,22).
“Ele é Deus, além dele não há deus. Ele tem o conhecimento do
que está oculto e do que é de conhecimento geral” (59,22).
Antes de mais nada é o assim chamado versículo do
trono (2,255) que inculca a unicidade de Deus: “Alá *Deus+. Não
há outro deus além dele, o vivo e imutável'“.
É preciso lembrar que Maomé, com sua pregação de que
há um só Deus, estava dizendo algo novo a seus compatriotas.
Junto aos habitantes de Meca encontrou forte resistência. Ao
lado de Alá — nome divino que já lhes era familiar — eles
adoravam outras divindades, principalmente deusas, cujas
imagens estavam expostas na Caaba. Na Sura 53,19 são
designadas pelo nome: “O que quereis dizer com al-Lat e al-Uzza
e ainda com Manat, o terceiro?”. Maomé parece querer
enquadrá-los como anjos — se Alá o permitir —, que poderiam
eventualmente agir como intercessores (cf 53,26s). Os mecanos
imaginam que se trate de filhas de Deus.
Alguns pesquisadores são da opinião de que o próprio
88
Maomé passou por um processo de desenvolvimento até chegar
ao monoteísmo. A consequente pregação monoteísta teria
acontecido somente num segundo estágio, em Meca, de
qualquer modo. Fala-se de um segundo período mecano. No
primeiro haveria um monoteísmo apenas embrionário.
Antes de passarmos à Bíblia, merece nossa atenção a
observação de que o nome divino Alá, já conhecido na Arábia
pré-islâmica, é aparentado com os nomes divinos bíblicos el,
eloah e elohim. El significa Deus. A derivação etimológica é
discutível. A palavra el aparece nas fases primitivas de todas as
principais línguas semíticas. A evolução deve ter ocorrido de
forma que de al-ilah (= o Deus, com artigo), por assimilação do
“i”, tenha surgido allah. A assimilação pode ser esclarecida pelo
uso muito frequente da palavra. Importante é que o nome
divino bíblico el e o allah do Alcorão remontam à mesma raiz. O
nome divino bíblico Yahweh não foi assumido pelo Alcorão.
“O Antigo Testamento, em sua forma final [...], sem
dúvida alguma quer ser lido como testemunho do único Deus,
que criou e sustenta o mundo, conduzindo-o para o seu destino
escatológico.” Os numerosos textos referentes a isso mostram
que essa fé no Deus único devia ser professada num ambiente
circundante marcado pelo politeísmo. É possível ver também
que durante uma longa história de Israel essa fé foi
amadurecendo.
“O Senhor vosso Deus é Deus sobre os deuses e Senhor
sobre os senhores. Ele é o grande Deus, o valente, o terrível” (Dt
10,17). Aqui os demais deuses ainda são considerados, embora
sejam sem significado, como nada sendo. A unicidade de Deus
precisa sempre voltar a ser afirmada, tanto contra o paganismo
89
estrangeiro como contra as potências que realmente
dominavam o povo de Deus: “Javé, nosso Deus, embora outros
senhores dominem sobre nós, mesmo assim nos lembramos
apenas de ti e do teu nome” (Is 26,13). Mesmo assim o
monoteísmo bíblico seria erroneamente compreendido se
considerado o produto final de um desenvolvimento históricoreligioso. Desde o princípio ele aparece com sua força profética,
com um radical não contra qualquer politeísmo.
Numerosos textos dão testemunho disso, tais como:
“Javé é Deus, não há outro além dele” (Dt 4,35). Ou: “Javé é o
Deus no alto do céu e embaixo na terra, não há outro” (4,39). Ou
ainda o primeiro mandamento do Decálogo, que não admite
outros deuses ao lado de Javé (5,7; Ex 20,3).
A pregação monoteísta de Maomé não pode ser
compreendida sem o pano de fundo bíblico. Ele a dirige com
força profética a seus compatriotas de Meca. Tal como Moisés,
elimina as imagens de divindades pagãs da Caaba, como outrora
o profeta do Antigo Testamento destruíra o bezerro de ouro.
É verdade que também no Alcorão se fala da vocação de
Moisés junto à sarça ardente. Mas a história torna-se totalmente
transparente com vistas à vocação de Maomé. Moisés passa a
segundo plano. Somente é possível compreender a história
plenamente no sentido de Maomé quando nela se vê retratada
sua própria vocação. Isso é possível porque ambos receberam a
mesma incumbência, ou seja, anunciar que há um só Deus. A
ligação, até mesmo a fusão de Moisés e Maomé tornam-se
especialmente visíveis no fato de a Moisés ser anunciado o
iminente julgamento do mundo. Anunciar a proximidade desse
juízo caracterizava a pregação de Maomé, principalmente em
90
sua fase inicial. Acrescentando-se ainda o caminho certo que
Moisés espera encontrar junto ao fogo, temos já reunidos os
três elementos fundamentais da pregação de Maomé: a fé no
único Deus, a expectativa do juízo escatológico e a conduta
correta, que consiste na condução correta da vida, aqui ainda
indicada com serviço e oração.
Mesmo assim, já descobrimos uma decisiva diferença na
imagem de Deus contida no Alcorão e na imagem do Deus da
Bíblia. O Deus da Bíblia age na história. Ele se revela às pessoas
para vir em seu socorro em situação sem saída. Em suas
revelações ele preserva sua liberdade. Ele não admite ser
obrigado a algo. É capaz de causar surpresas. Ele quer fazer
história com os seres humanos. O Deus do Alcorão parece não
estar disposto a correr esse risco. Ele mantém-se fora da
história. Ele dever ser adorado como o único, em sua grandeza e
sua majestade, como criador, legislador e juiz. Sem dúvida
alguma, essas características também ocorrem na imagem
bíblica de Deus, mas sua desvinculação da história no Alcorão,
que continuará a ser analisada, traz suas consequências. O
Alcorão não será capaz de aceitar a revelação de Deus em Jesus
Cristo.
Apesar desses elementos em comum de linguagem, para
Maomé Deus permanece o absoluto Transcendente, enquanto
na Bíblia Ele é aquele que na história se alia com seu povo e com
os seres humanos. Ao Deus do Alcorão as pessoas não têm
acesso. É verdade que, através de Maomé, ele nos transmitiu
seus mandamentos, contudo não há nada que possa estabelecer
uma ponte sobre a oposição entre criador e criatura. Nada neste
mundo é capaz de torná-lo acessível a nós. Ele não se comunica
91
conosco. Há, certamente, segundo 5,54, pessoas que Deus ama
e que amam a Deus, mas a distância entre Deus e a pessoa
humana jamais poderá ser superada por uma comunidade que
englobe a ambos.
Por vezes tem-se feito referência à Sura 50,16: “Nós
estamos mais próximos a Ele do que a veia jugular”. O contexto,
porém, deixa claro que aqui não se trata de uma relação interior
e pessoal entre Deus e a pessoa humana, mas, ao contrário, de
Deus como aquele que tem ciência de todos os maus
pensamentos do ser humano, que por isso mesmo deve ter
atitude de precaução. Em contraste com o Alcorão está a mística
que posteriormente se desenvolveu. Segundo A. Schimmel, que
se ocupou sobremodo da mística, o desenvolvimento da mística
primitiva no islamismo é “propriamente uma luta pela
legitimação do conceito de amor, diante de uma ortodoxia que é
do parecer que amor a Deus nada mais significa do que
obediência a Deus, e a disposição de tudo fazer, para cumprir
sua vontade”. Segundo A. Th. Khoury, Ibn ‘Arabi teria escrito um
comentário místico ao Alcorão que conteria reflexões que não
podem ser deduzidas do Alcorão.
A diástase entre Deus e a criatura humana se expressa no
Alcorão também pelo fato de ele não assumir a concepção
bíblica da pessoa humana como imagem de Deus. Embora a
história da criação continue viva no Alcorão, falta a palavra que
o Criador, segundo Gênesis 1,26, pronuncia por ocasião da
criação do ser humano: “Façamos a criatura humana segundo a
nossa imagem, como nossa semelhança” (cf 1,27). Para Maomé
essa omissão é consequente. Deus não pode sair de seu
isolamento.
92
O fato de a criatura humana ser imagem de Deus, de
grande significado não somente para a imagem do ser humano,
mas também para a imagem de Deus, deve ser visto como algo
que diz respeito a ambos. Isso atinge a pessoa humana como um
todo, e não apenas parte dela, por exemplo apenas sua
racionalidade ou a beleza plena de seu ser. Isso atinge todos os
seres humanos, a humanidade inteira. Adão é um conceito
coletivo. Das inumeráveis propostas de interpretação pode-se
extrair a quintessência, que afirma que Deus, no ser humano,
quis criar um outro, alguém que pudesse relacionar-se com Ele,
numa representação primordial, talvez inclusive alguém que
serve a Deus. A tarefa do ser humano, como sua imagem,
consiste em representar Deus, em ser seu mandatário, “dominar
sobre os peixes do mar e sobre os pássaros do céu e sobre todo
ser vivo que se move sobre a terra” (Gn 1,28). O domínio
entendido como exploração seria um mal-entendido. A
concentração sobre os seres vivos pode significar uma referência
ao elemento pessoal, um trato “humano” com os animais.
O fato de o ser humano ser imagem de Deus encontra
ulterior significação no Novo Testamento. Este parte do princípio
de que a dignidade do ser humano, que consiste em ser imagem
de Deus, foi diminuída e inclusive perdida mediante o pecado de
Adão. Cristo é o novo ser humano, no qual Deus se revela (Cl
1,15) e por meio do qual o ser humano perdido recobra sua
dignidade de forma gloriosa (Cl 3,10; cf Rm 13,14; Gl 3,27),
tornando-se nova criatura. Cristo é o mediador da nova criação,
que, tal como a primeira criação, é creatio ex nihilo.
Tanto na criação como na nova criação Deus, conforme o
pensamento cristão, sai de si mesmo, torna a pessoa humana
93
seu outro, chamando-o à participação em sua vida. A
participação na vida divina é o escopo da existência humana.
Segundo o Alcorão, também no aquém da vida não há
comunidade com Deus. Na vida eterna, está à espera dos justos
uma nova terra, plena de satisfações sensíveis.
A participação na vida divina, segundo o pensamento
cristão, é participação na vida do Deus trino. Deus explicitou-se
na história com o envio do Filho e com o derramamento
escatológico do Espírito. O mistério de Deus é indicado no Novo
Testamento mediante fórmulas triádicas (especialmente 2Cor
13,13; 1Cor 12,4-6; Mt 28,19) . Para o Novo Testamento, Deus é
o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. No contexto cristão, a
revelação de Deus somente pode ser pensada assim. Parece que
Maomé percebe esse contexto, ou alude a ele. Na Sura 17,42 ele
fala de um acesso ao senhor do trono, caso houvesse outros
deuses ao lado de Deus. Com isso, a fé cristã no Deus trino é
grosseiramente mal-entendida como triteísmo (1 = 3).
Uma comparação posterior pode ser útil na
caracterização de semelhanças e diferenças. No islamismo falase, com referência ao Alcorão, de uma enlibração (“tornar-se
livro”) de Deus, colocando esse conceito em paralelo com a
encarnação do Filho de Deus em Jesus Cristo. É claro que o
Alcorão é no islamismo a forma mais explícita da revelação de
Deus. Assim, o islamismo é confirmado como religião do Livro.
Deus permanece, contudo, o absoluto Transcendente, distante
de todas as criaturas. Ele não pode ser experimentado
historicamente. Encarnação, no pensamento cristão, significa a
exteriorização de Deus na encarnação (Fl 2,7) e sua habitação
real entre as criaturas humanas (Jo 1,14).
94
Resta a considerar ainda que o Alcorão tem no céu seu
escrito primigênio, a “mãe da Escritura”. Maomé teve acesso ao
original. O escrito primigênio celeste supera qualquer limitação
de um texto. No próprio Alcorão isso é dado a entender: “Se o
mar fosse a tinta para as palavras do meu Senhor, ele acabaria
antes da conclusão das palavras do meu Senhor...” (18,109);
“Mesmo que todas as árvores das terras fossem penas de
escrever e ao mar [tinta] acabado se acrescentassem sete outros
mares, as palavras de Deus não se concluiriam” (31,27). H. Zirker
colocou ao lado disso uma expressão análoga, no final do
Evangelho de João: “Há muitas outras coisas que Jesus fez. Se
fossem escritas uma a uma, creio que o mundo não poderia
conter os livros que se escreveriam” (21,25), observando
acertadamente que o Evangelho se refere às ações de Jesus,
enquanto o Alcorão se refere ao discurso de Deus, que é ahistórico. No Evangelho trata-se daquilo que é experimentado
entre as pessoas humanas “como acessível, não o livro do além,
distante e celeste”.
O MUNDO COMO CRIAÇÃO DE DEUS
Na consideração do mundo como criação de Deus, talvez
a Bíblia e o Alcorão alcancem a maior proximidade. Assim,
poderia haver aqui um ponto em que cristianismo e islamismo
poderiam se encontrar em sua comum preocupação pela
criação.
Os elementos comuns aqui mais uma vez se esclarecem
pelo fato de o Alcorão ter sido influenciado pela Bíblia, ou então
pelo fato de ele conhecer conteúdos e interesses fundamentais
95
da tradição bíblica.
O mundo é entendido como criação de Deus. Essa
convicção é comum a ambos os livros sagrados. Ele não é
perpassado por uma alma impessoal, como é pressuposto em
sistemas panteístas. Ele não é resultado de um combate cósmico
que levou do caos à ordem, como é narrado em mitos orientais
da criação. Também não é produto de um desastre cósmico,
nem obra de um mau demiurgo, como ensina a gnose hostil ao
mundo. Deus mesmo chamou o universo à existência, vendo, no
final, que tudo era bom (Gn 1,31).
Certamente foi um caminho mais longo que conduziu ao
reconhecimento teológico de que o mundo tenha sido criado do
nada (creatio ex nihilo): “Vê o céu e observa a terra e tudo o que
há sobre ela. Considera que Deus criou isso do nada e que
também o gênero humano tem a mesma origem” (2Mc 7,28; cf.
Rm 4,17). As narrativas da criação do mundo em Gênesis 1,32,25, contudo, são elaboradas de tal forma que fiquem bem
destacadas a soberania e a bondade de Deus, bem como sua
dedicação à sua criação.
Contudo o Alcorão distancia-se de especulações
abstratas. O Alcorão não assume a criação do ser humano como
imagem de Deus. Isso contradiria sua concepção da absoluta
transcendência de Deus.
Com a ideia dos sete céus o Alcorão entra em contato
com uma tardia tradição judaica, que talvez remonte às sete
divindades planetárias dos babilônios (23,17; 67,3; 71,15; 78,12).
O sétimo céu é o mais alto e o lugar mais próximo a Deus.
Para nós é mais importante, contudo, a questão das
intenções teológicas que podem estar relacionadas com a
96
compreensão do mundo como criação de Deus. O tratamento
dessas intenções está relacionado com a questão do contexto
em que se recita o gênero literário da criação.
Para a Bíblia, entram em questão três literaturas: as duas
narrativas da criação, no início do livro do Gênesis, a literatura
sapiencial e o louvor dos salmos. No Gênesis, a narrativa da
criação está relacionada com a história salvífica, que tem início
com a eleição dos patriarcas. A criação não é interessante por si
mesma, mas sob o aspecto de o criador dos céus e da terra ser o
Deus de Israel. Falou-se inclusive da criação como “etiologia de
lsrael”. Se a criação é condensada em um esquema de seis dias,
ao qual se acrescenta um dia de repouso, significa que a criação
está dentro do tempo e que com ela se inicia a história.
Diversa é a situação na literatura sapiencial. Não o povo e
sim o indivíduo é aqui confrontado com a criação e, por meio
dela, com o criador. Surgem questões racionais. Exemplo
clássico dessa confrontação é o paciente Jó, que, em sua miséria,
não compreende mais o mundo, querendo entrar em discussão
judicial com seu criador. Ele não obtém a resposta esperada, que
lhe dê a solução para o mistério da criação e para as
interrogações de sua própria vida. Na teofania (cap. 38s) com
que se conclui o livro, é muito mais Deus que dirige perguntas a
ele. Nelas Deus justifica sua criação recorrendo à sua
onipotência: “Onde estavas, quando fundei o mundo? Quem
encerrou o mar em suas comportas? Alguma vez destes ordens à
manhã? Entraste pelas fontes do mar? Entraste nos depósitos da
neve? Podes atar os laços das plêiades, ou desatar as cordas de
Orion?”. As perguntas são levadas adiante com pesada
insistência. Poder-se-ia ter a impressão de que Jó, o crítico
97
incômodo, estivesse sendo eliminado. Ouvem-se, contudo, tons
diversos, indicando outra intenção do criador, ou seja, a
preocupação com sua obra criada: “Quem providencia ao corvo
o seu alimento, quando seus filhotes clamam a Deus, quando
vagam perdidos por falta de alimento? Sabes quando as cabras
montesas parem, dás atenção ao parto das corças?” (38,41s).
Deve-se notar que a preocupação de Deus se dirige justamente a
animais que parecem ser sem serventia, e, em 39,5.9, ainda se
dirige ao asno e ao touro selvagens. Deve-se certamente concluir
disso que com maior amor ainda Deus se dedica ao ser humano.
Para bem outra direção da crítica aponta Jó 28. Aqui o
foco se dirige ao homo faber, o ser humano em constante
atividade, que já descobriu os instrumentos de mineração, que
abre trilhas e fendas nas rochas, para trazer tesouros de ouro e
pedras preciosas à luz do dia. Mesmo assim, não descobre com
isso o esconderijo da sabedoria. Ela poderia desvendar-lhe os
mistérios do mundo. Mas a pessoa humana não está em
condições de encontrá-la: “Ela está oculta aos olhos dos
viventes” (28,21). O texto conclui com resignação. Somente na
morte o ser humano terá notícias dela”. A criação, com todo o
progresso humano, é, em última análise, um mistério, ao qual
somente Deus tem acesso (28,23).
Também o louvor a Deus nos salmos sempre volta a
referir-se a Deus como criador. Como exemplo, vejamos o salmo
104, no qual se celebra a alegria pela criação de Deus. Não são
tons críticos que aqui se elevam. Deus é louvado pelas obras de
sua criação. Como arquiteto ele fundou a terra. Depois de
apresentar as grandes e pequenas obras da criação, céus e
terras, montanhas e vales, bem como a multidão de animais e a
98
totalidade das plantas, o tema passa a ser a dedicação de Deus
às suas criaturas, especialmente à criatura humana. Deus alegra
o ser humano com pão, vinho e azeite, proporciona alimento a
todos os animais em seu tempo devido. Ele permite que navios
singrem os mares. Se Deus retrocedesse, tudo o que vive
retornaria ao pó. H.-J. Kraus chamou a atenção para o fato de a
listagem das obras da criação, que conclui com o ser humano e
com toda a obra criada, ter um paralelo já no Hino do Sol de
Aquenatom (Amenófis IV). Finalidade do salmo da criação é o
cântico de louvor de Javé, com que o salmo inicia e conclui:
“Bendize a Javé, ó minha alma! Javé, ó meu Deus, como és
grande [...] Que para sempre seja a glória de Javé, que Javé se
alegre em suas obras!” (104,1.31). Acrescentando-se mais um
pedido, para que os pecadores desapareçam da terra, lança-se
um olhar para o futuro escatológico.
O tema do Deus criador no Alcorão é o que mais se
relaciona com os salmos. Embora sempre retomem referências à
criação, há também longas passagens que louvam o criador.
Temos uma passagem especialmente penetrante na Sura 55,
onde são enumeradas as diversas obras da criação e sua bênção
para a criatura humana. A Sura chama-se “O Misericordioso”,
designando com propriedade a intenção do texto. Após uma
descrição introdutória da misericórdia divina, a Sura é
continuamente interrompida pelo estribilho em forma de refrão:
“Qual dos benefícios de vosso Senhor quereis negar?”. Os
benefícios enumerados, que constituem as obras da criação
divina, são de modo geral os mesmos que encontramos no
Antigo Testamento: sol e lua, frutos, palmeiras, trigo, água e
mar. Aqui também se encontra a criação do ser humano da
99
argila, bem como a criação dos djinn (espíritos) das chamas do
fogo. Uma particularidade constitui a diferenciação entre as
duas grandes águas, entre águas doces e salgadas, que Deus
separa cuidadosamente (55,1-30).
O estribilho “Qual dos benefícios de vosso Senhor quereis
negar?” indica claramente uma determinada direção. Maomé
dirige-se àqueles que rejeitam sua mensagem e/ou que a ela se
opõem criticamente. A alusão à criação tem por finalidade
recrudescer a certeza da hora do juízo, esperada para breve,
com a ressurreição dos mortos. Por essa razão acrescenta-se
uma descrição do paraíso e do inferno (55,31-78). A respeito da
expectativa de um novo céu e uma nova terra, também presente
na Bíblia, tornaremos a falar em outra ocasião.
Ainda mais intensamente voltada para a criação como
benefício divino em favor da humanidade é a Sura 16,3-21. São
detalhadamente expostos os benefícios que o ser humano tem
com o gado, os animais de carga e montaria, com a chuva, o
trigo, as oliveiras, palmeiras e videiras, com os peixes do mar. A
censura volta a dirigir-se contra os descrentes, contra os “que
não crêem no além e a rejeitam [a mensagem] orgulhosamente
em seu coração” (16,22). Repetidas vezes a criação do céu e da
terra com sua diversidade é citada como sinal para as pessoas
ajuizadas (2,164; 3,190), como sinal para os crentes (45,3). Isso
confirma que na criação é possível encontrar vestígios de Deus.
Deve-se então estar disposto a compreender o mundo como
criação de Deus. Interessante é o paralelo entre “ser ajuizado” e
“ser crente”. O juízo só pode proporcionar conhecimento do
criador se sustentado pela fé.
Essas conexões de ideias recordam Romanos 1,19-21,
100
onde o apóstolo Paulo expressa em sua profundidade teológica
aquilo a que o Alcorão apenas alude. Paulo, que no início de sua
Carta aos Romanos descreve em uma ampla visão a perdição de
toda a humanidade, o que para ele significa dos pagãos e dos
judeus, fala da possibilidade do conhecimento de Deus na e pela
criação. Desse conhecimento também eram capazes os
“pagãos”, aqueles, portanto, que, à diferença dos judeus, (ainda)
não haviam recebido a palavra de Deus revelada na Bíblia,
conhecimento que inclusive se impunha a eles. “Pois a sua
invisibilidade [de Deus] — seu poder eterno e sua divindade —
tornou-se compreensível desde a criação do mundo através das
criaturas.” A “realidade invisível de Deus” é o próprio Deus. A
possibilidade de conhecer Deus fundamenta-se em sua própria
ação criadora. A criação conduz ao criador. O vestígio de Deus
está presente na criação. O caminho pode ser trilhado com a
razão. A questão que interessa ao apóstolo, porém, não é
primariamente a possibilidade do conhecimento de Deus — que
de algum modo é já pressuposto — mas a experiência de que os
“pagãos” não reconhecem Deus. Apesar de terem de conhecêlo, eles rejeitaram o reconhecimento. Desviaram-se de Deus
para adorar obras criadas, que Paulo denomina ídolos.
Resumindo mais uma Vez: entender o mundo como
criação de Deus e adorar a Deus como Deus por causa de sua
criação são um elo que une a Bíblia e o Alcorão.
MEDIADORES DA CRIAÇÃO
Na fase final do Antigo Testamento desenvolveu-se a
representação de que Deus teria criado auxiliares que o
101
haveriam assistido na criação. Esse desenvolvimento, que
possivelmente tem um pano de fundo mitológico egípcio,
concretiza-se na figura da Sabedoria. A Sabedoria é criatura de
Deus, mas foi criada como “a primeira de suas obras”, nos
tempos primordiais (Pr 8,22). A seu respeito se diz: “Desde todo
o sempre, desde o início ele me criou, e perdurarei para todo o
sempre (Ecl 24,9; cf. 1,4). Nesse contexto, para nós é
especialmente importante sua participação na criação, que se
torna possível por causa de sua preexistência, por causa de seu
ser antes de todas as coisas. Ela é a preferida de Deus, sua
criança de colo, ela estava presente quando Deus criou o mundo
(Sb 9,9). “Javé fundou a terra com sabedoria, e firmou o céu com
entendimento” (Pr 3,19).
Citar a tendência da reflexão do helenismo, válida
também para o judaísmo, no sentido de distanciar Deus um
pouco do mundo. Deus não se retira para uma total
transcendência, como mais tarde no islamismo, contudo
inserem-se entre ele e o mundo instâncias intermediárias. Entre
elas encontra-se a sabedoria. A angelologia torna-se também
mais importante, os anjos tornando-se mensageiros de Deus
para os seres humanos.
No judaísmo talmúdico a especulação sapiencial tem sua
continuidade. Aparece agora, contudo, sob outro nome. O seu
lugar é ocupado pela Torá. O modelo da mediação na criação
torna-se mais concreto. A Torá torna-se mestre-de-obras nas
mãos de Deus. A Torá afirma: “Eu fui o instrumento de Deus”.
Ela foi o plano arquitetônico pelo qual Deus se orientou em sua
obra criadora. Aconselhou-se com ela ao iniciar a obra da
criação. Por meio dela criou o céu e a terra.
102
Outra função adquire no judaísmo rabínico a Palavra de
Deus (memra, de amar, falar). Deus atua no tempo e na história
por meio de sua memra, fala aos profetas, liberta Israel da
servidão egípcia, protege o ser humano etc. Eventualmente a
memra pode ser identificada com Deus. Ela também pode, tal
como a Sabedoria, ser entendida como mediadora da criação:
“Por meio da minha memra fiz a terra, e pela minha força criei o
ser humano sobre ela. Estendi o céu e completei todas as suas
milícias”.
Conhece o Alcorão a ideia de mediadores da criação?
Poder-se-ia pensar que a possibilidade a ela relacionada de
transcender a Deus, relegando-o a uma grande distância, viria ao
encontro dessa ideia. Nós nos ateremos à palavra árabe amr,
que tem parentesco com a palavra hebraica memra, amar. Há
diversas passagens em que se diz que Deus dirige o amr, por
exemplo: “Vosso Senhor é o Deus que em seis dias criou o céu e
a terra, então sentou-se sobre o trono, para dirigir o amr” (Sura
10,3; cf. 10,31; 13,2; 32,5).
Conteúdos especificamente cristãos são a mediação por
meio de Cristo, o enraizamento da mediação da criação na
redenção. Isso está bem distante do Alcorão. Enquanto o
Alcorão está interessado em apresentar Deus transcendente e
distante, para a compreensão cristã da fé é basicamente central
que Deus se explicitou a nós em Jesus Cristo.
A MISSÃO DOS ENVIADOS DE DEUS E SEU DESTINO
Maomé sabe que Deus sempre voltou a enviar
mensageiros ao seu povo, para instruí-lo e para conduzi-lo em
103
seu caminho. Ele também sabe que esses mensageiros via de
regra encontraram oposição e rejeição. Nesse caso está
especialmente claro que extrai seu conhecimento da tradição
bíblica. Isso é atestado pelo fato de ele citar os mensageiros pelo
nome. Trata-se de nomes bíblicos, em sua maioria do AT, mas
também do NT.
É característico para o Alcorão a listagem nominal de
mensageiros de Deus. Nessas listagens, largamente espalhadas
ao longo do Alcorão, a história do mensageiro de Deus pode ser
narrada com maior ou menor riqueza de detalhes. Os nomes
podem ser trocados, também não são apresentados em rigorosa
ordem cronológica, aparecendo com maior frequência os nomes
de Noé, Abraão, Moisés e Jesus. Acrescentam-se ainda, entre
outros, Lot, Aarão, Davi, Salomão, Jó. A listagem mais extensa
ocorre na Sura 6,84-86: Isaac, Jacó, Noé, Davi, Salomão, Jó, José,
Moisés, Aarão, Zacarias (pai de João Batista), João (Batista),
Jesus, Elias, Ismael, Eliseu, Jonas, Lot. Esta listagem conclui com
as palavras: “Preferimos os judeus entre as pessoas de todo o
mundo, bem como alguns de seus patriarcas, de seus
descendentes e de seus irmãos. Nós os escolhemos e os
conduzimos por um caminho reto. Esta é a conduta correta de
Deus” (6,86-88).
Portanto, já Noé havia sido enviado como mensageiro ao
seu povo, para reavivá-lo. O cenário do dilúvio, ligado a seu
nome, que seguiu como castigo pelo fato de ter sido rejeitado,
foi muito apropriado para tornar mais palpável o anúncio de um
juízo divino. Acerca de uma pregação penitencial de Noé, não há
nada de correspondente na narrativa do AT em Gênesis 6s.
Maomé estiliza a narrativa de acordo com suas próprias
104
intenções. Também aqui — como já ocorreu na acima analisada
narrativa da vocação de Moisés e da sarça ardente — a
interpretação está orientada para a sua própria vocação. Assim,
Noé prega como Maomé, dizendo que há um só Deus,
ameaçando com o juízo divino: “Povo meu, servi a Deus! Vós não
tendes outro deus além dele. Temo pela vossa pena num dia de
violência” (Sura 7,59; cf 23,23).
O que constatamos sobre Noé vale também para os
demais mensageiros de Deus. Todos anunciavam o único Deus.
Toda a pregação pré-islâmica, tanto bíblica como cristã,
transcorre em função da afirmação da crença monoteísta. Ela é
aceita. Maomé a resumiu, purificou-a dos desvios, colocando-a
novamente em seu devido lugar. Nessa visão altamente
simplificada, ele mesmo pode considerar-se posicionado no final
de uma lista que atravessa o tempo em continuidade, desde o
início da história até seu tempo, desde Noé até Maomé, como
selo da profecia.
É expressamente constatado que Deus providencia para
que essa pregação seja dirigida a todas as gerações. Deus
permite a sucessão das gerações e o surgimento de outros
enviados (23,31.42). A missão dos enviados é ampliada, não se
restringe a Israel como destinatário, mas, em última análise, é
dirigida a todos. Noé é enviado a “seu povo” (7,59; quem é esse
povo?), Moisés não é enviado aos israelitas, mas ao faraó, com a
pregação de um Deus único. Também serve a essa
“universalização” o fato de Maomé citar mensageiros de Deus
que não são de origem bíblica. Eles são enviados a povos que
também não conhecem a Bíblia. Assim, Hud é enviado aos Ad
(7,65), Salih aos Tamud (7,73), Suaib aos Madyan (7,85).
105
Também eles conclamam seus povos: “Gente! Servidores de
Deus! Não tendes outro deus além delel”. Dos mensageiros
pode-se dizer também que foram guiados por Deus (6,84-86;
21,51). Atinge-se assim um conceito característico do islamismo.
A ideia de aliança retrocede amplamente no Alcorão.
À rejeição dos enviados de Deus segue geralmente o
castigo divino. Noé e Moisés constituem exemplos muito
expressivos disso, pelo fato de a seus nomes estarem
relacionados o dilúvio e o afogamento do exército do faraó, no
mar Vermelho. Mas também para os demais mensageiros de
Deus o Alcorão apresenta juízos condenatórios. Para Maomé,
cada um desses juízos condenatórios é um comprovante de que
também aqueles que rejeitam sua mensagem serão atingidos
pelo juízo divino, e isso em breve. O juízo é o tom fundamental
de sua pregação, ao menos na primeira fase de sua atividade em
Meca, onde a rejeição foi grande.
Aqui mais uma vez foi possível constatar uma
dependência do Alcorão em relação à tradição bíblico-judaica. A
partir disso deve ser vista a sua utilização. A atividade e o
destino dos profetas antecedem aos de Maomé. A pregação do
juízo deles esclarece a sua. Ele encontra-se no final da lista.
Também Jesus, nos evangelhos, é integrado na sucessão do
envio de profetas, como filho é claro. Ele, como tantos profetas,
experimenta não só a rejeição mas também a morte violenta (cf
Mt 23,37-39 par.).
Antes de nos apresentar a questão do juízo sobre Jesus
no Alcorão, é preciso notar que há diferença de categoria entre
os profetas. Diz-se expressamente: “Assinalamos uns deles antes
dos outros” (Sura 2,253). Assim, Davi e Salomão foram
106
assinalados com especial sabedoria (27,15; 17,55). Também
Jesus foi especialmente assinalado. Para os crentes, contudo,
vale a regra de que não devem observar essas diferenças
(2,136.285; 3,84; 4,152). A mensagem de todos os profetas deve
ser aceita: “Aqueles que não crêem em Deus e em seus enviados
e que querem estabelecer alguma diferença entre Deus e seus
enviados, dizendo: Nós cremos numa parte e noutra não —,
querendo manter-se no meio, entre a crença e a incredulidade,
esses são os verdadeiros descrentes” (4,150s). Isso está
relacionado ao fato de toda a mensagem estar reduzida à
afirmação: Existe um só Deus.
JESUS – CRISTOLOGIA
Chegamos com isso a um ponto central da discussão. O
Alcorão também fala de Jesus. Falar de uma cristologia do
Alcorão — como em parte se tornou costume —, contudo, não
parece justificado. Acerca disso há algumas coisas a dizer. Se nos
colocamos na situação dos leitores do Alcorão, que não
conhecem a Bíblia e o Novo Testamento, constatamos que eles
têm pouca informação sobre Jesus. Maomé certamente
introduziu Jesus no Alcorão e sobre ele falou, por se julgar o
último profeta, portanto também profeta posterior a Jesus. Ele
se considerava dentro da linha dos bíblicos enviados de Deus.
Assim, ele obrigatoriamente tinha de colocar também Jesus
nessa ordem. É inquestionável que ele tenha conhecido e
assumido tradições bíblicas, inclusive neotestamentárias.
Contudo, é aconselhável distinguir as Suras que têm por objeto
Jesus das que possuem paralelos nos evangelhos. Estas, no
107
Alcorão, não são designadas como ditos de Jesus. Por isso devem
ser tratadas como elementos autônomos, por não
acrescentarem nada à figura de Jesus no Alcorão. O tom muitas
vezes é polêmico. A polêmica, contudo, não se dirige contra
Jesus, mas contra “as pessoas da Escritura”, entre as quais estão
também os cristãos, pois Maomé acredita que os cristãos teriam
falsificado a figura de Jesus — eles teriam deixado de ser uma
unidade — e que ele teria recuperado a verdadeira figura de
Jesus. A acusação que ele dirige aos cristãos é terem feito dele
um Deus — essa acusação é dominante — e de Maria, sua mãe,
uma deusa. Na concepção de Maomé, essa é a trindade da fé
cristã: Alá (Deus), Jesus, Maria. É óbvio que aqui; se trata de
grosseiros mal-entendidos. Com essa base uma discussão é
muito difícil.
Rejeitando o título de Filho de Deus para Jesus — como
de resto para todos os outros —, Maomé abandona a tradição
bíblica, aliando-se a uma outra imagem não-bíblica de Deus.
De tudo isso que apresentamos sobre Jesus, nada consta
no Alcorão. Mesmo assim ele fala de Jesus com grande respeito.
Ele é citado em muitas Suras. Assim, ao lado de Abraão e
Moisés, é a pessoa bíblica mais citada. Jesus é encaixado na
visão muçulmana do caminho de salvação. Isso é
importantíssimo de ser observado, mesmo que neste ponto
Maomé mais uma vez dependa claramente das tradições
bíblicas.
O mais das vezes Jesus é chamado filho de Maria. Seu
nascimento virginal é pressuposto. José, esposo de Maria, não é
citado. Singularmente, a perícope da anunciação do nascimento
de Jesus pelo anjo Gabriel, em cujo centro está a virgindade de
108
Maria, é a única história detalhada sobre Jesus narrada pelo
Alcorão (cf Lc 1,26-38). A ela voltaremos.
Na Sura 19,30-33, Jesus fala sobre si mesmo nestes
termos: “Eu sou o servo de Deus. Ele me deu a escritura e fez-me
seu profeta. Ele me tornou uma bênção em qualquer lugar onde
eu esteja, recomendou-me a oração e a esmola para todo o
tempo de minha vida e que seja piedoso com minha mãe Maria.
Ele não me constituiu um soberano violento portador de
desgraça. Bendito o dia em que nasci, bendito o dia em que
morrer, e o dia em que novamente serei despertado para a
vida”. É esclarecedor o fato de ser o menino Jesus quem assim
fala (cf 19,29). Com estas palavras afirmam-se aspectos nobres e
respeitáveis acerca de Jesus. Com o termo escritura quer-se
indicar o evangelho. O dia do seu despertar para a vida após sua
morte não é a ressurreição dos mortos no terceiro dia, conforme
a fé cristã, mas o despertar para a vida no fim dos tempos, do
qual todos participarão. A tarefa de ser profeta ele partilha com
outros mensageiros de Deus, como João Batista (3,39), e com
outros, enviados que foram assassinados (4,155), e também com
Maomé, que claramente vale como selo dos apóstolos. O
acréscimo à auto-apresentação do menino Jesus em 19,34: “Este
é Jesus, o filho de Maria. É a palavra da verdade, da qual eles
desconfiam”, é dirigido contra a fé cristã de que Jesus é o Filho
de Deus. Portanto: é só filho de Maria, não Filho de Deus, pois o
texto continua: “Não é adequado a Deus tomar um filho para si”
(19,35).
Onze vezes Jesus é citado com o nome Cristo, três vezes
ele é denominado Jesus Cristo. Mesmo assim não se pode
reconhecer que Cristo seja um título messiânico. Cristo é
109
tomado como nome próprio, costume que também havia se
tornado comum bem cedo no ambiente cristão. Isso tem a ver
com o fato de a confissão Jesus Cristo, isto é, Jesus é o Cristo, o
Messias, ser de grande significado especialmente para os judeocristãos. No ambiente étnico-cristão essa confissão em parte
quase caiu no esquecimento.
Discutida é a designação de Jesus como Palavra de Deus,
um uso que ocorre especialmente em conexão com a concepção
e o nascimento de Jesus. “Cristo Jesus, o filho de Maria, é apenas
o enviado de Deus e sua Palavra [kalima], que Ele infundiu
[inspirou?] em Maria [alqaha+” (4,171). De modo semelhante
soa a Sura 3,45 em relação à anunciação; os anjos dizem a
Maria: “Deus te anuncia uma palavra sua, cujo nome é Jesus
Cristo”. Estas passagens não têm nada a ver com a cristologia
neotestamentária do Logos, segundo a qual Cristo é o Logos
eternamente preexistente (cf Jo 1,1). Elas indicam o poder
criador de Deus. O nascimento de Jesus sem pai, que o Alcorão
assume de Lucas 1, é para ele exclusivamente expressão do
poder criador de Deus. “Este é o modo *de agir+ de Deus. Deus
cria o que quiser. Quando ele decidiu algo, ele apenas diz: Seja!
Então isso existe” (3,47). Por isso, para o Alcorão, a criação de
Adão é uma obra mais grandiosa ainda do que o nascimento de
Jesus sem o concurso de um pai, pois Adão não teve pai nem
mãe (cf 3,59; 15,26-30).
De Jesus pode-se dizer que Deus lhe deu “as provas
claras” (2,87.253), que ele o fortaleceu com o espírito santo
(2,87) ou que ele o constituiu como sinal (21,91; 23,50:
juntamente com Maria), ou que ele veio como um sinal (23,49).
Mas mesmo isto, apesar de distingui-lo, coloca-o na linha dos
110
demais enviados de Deus e profetas. As “provas claras” e os
sinais não se diferenciam muito entre si. As provas claras
referem-se mais à clareza e à solidez da doutrina, os sinais
atestam o poder de Deus e podem incluir também milagres.
As essenciais divergências em relação à tradição
neotestamentária estão na caracterização de Jesus. Em Lucas
1,32s o anjo Gabriel diz a Maria sobre Jesus: “Ele será grande, e
será chamado filho do Altíssimo. E Deus, o Senhor, lhe dará o
trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre a casa de
Jacó, e seu reinado não terá fim”. O reino de Jesus, sua
descendência de Davi e, principalmente, sua filiação divina estão
ofuscados no Alcorão. Jesus é visto como mensageiro de Deus
que ensina a Escritura. Em última análise, não trouxe nada de
novo. O cristianismo, como o islamismo, é visto como religião do
Livro.
O ponto decisivo de divergência entre o Alcorão e o Novo
Testamento está no significado de Jesus, tanto em sentido
pessoal como no relevante sentido salvífico, soteriológico. O
centro da fé cristã é a confissão de Jesus como Filho de Deus, no
qual Deus a nós se revelou, e como redentor da humanidade, e
que em sua morte na cruz e ressurreição dos mortos Deus nos
concedeu a salvação e a redenção. Ambos os aspectos, filiação
divina e redenção por ele operada, são amplamente
testemunhados pelas escrituras do Novo Testamento. Eles são a
quintessência da fé cristã.
Ambos esses aspectos não só são negados no Alcorão,
mas em parte também são combatidos com dura polêmica.
“Descrentes são aqueles que dizem: Deus é Cristo, o filho de
Maria, uma vez que Cristo disse: Filhos de Israel, servi a Deus, o
111
meu e o vosso Senhor. A quem acrescentar [outros] a Deus,
Deus negará a entrada no paraíso. O fogo do inferno o devorará”
(5,72). “Este é Jesus, o filho de Maria. É a palavra da verdade da
qual duvidam. Não é decente que Deus adote um filho” (19,34s).
“Crede em Deus e em seus enviados. Não digais: três” (4,171). A
última frase dirige-se contra a fé trinitária cristã. A palavra
acrescentar (sirk) neste contexto significa: colocar outros deuses
ao lado de Deus.
Tal como Maomé compreende a fé trinitária cristã, ela de
fato mereceria ser rejeitada. Ele a compreende como uma
espécie de politeísmo pré-islâmico, como era praticado em sua
pátria árabe, contra o qual ele saiu em luta. “Eles deram
participantes a Deus, os Djinn embora ele os houvesse criado.
Sem razão, atribuíram-lhe filhos e filhas. Louvado ele seja! Ele é
superior ao que eles dizem. O criador do céu e da terra, de onde
deveria ele ter um filho, uma vez que não tinha companheira,
tendo Ele criado tudo?” (Sura 6,100s). Maomé não tomou
conhecimento de que a fé trinitária cristã reforça a fé no Deus
único, tornando-a de fato plausível. A ideia da encarnação da
Palavra eterna em Jesus Cristo também lhe é estranha e, por fim,
não-coadunável com sua imagem de Deus. Se, conforme sua
noção da fé trinitária cristã, ao lado de Deus e de Jesus também
Maria, a mãe de Jesus, é uma deusa, o seu ponto de partida
deve ter sido a perícope da anunciação do nascimento de Jesus
pelo Espírito de Deus”. A consequência deverá ter sido: se Maria
gerou Deus, também ela deve ser deusa, o que ele precisava
repudiar. Ele não podia conceder que para a fé cristã Cristo fosse
uma pessoa humana real. Enfim, surge aqui a fundamental
divergência sobre a compreensão de Deus. Enquanto para o
112
Alcorão Deus persiste em sua absoluta transcendência, segundo
a fé cristã ele se torna um de nós, torna-se pessoa humana,
torna-se alguém absolutamente próximo a nós.
Também é lógico que Maomé rejeite a filiação divina dos
seres humanos. Já tivemos oportunidade de ver que ele não
assume a noção de que o ser humano seja imagem de Deus.
Igualmente diz: “Os judeus e os cristãos dizem: Somos filhos de
Deus e seus prediletos. Dize: Por que então ele vos castiga por
causa de vossa culpa? Não! Vós sois criaturas humanas que Ele
criou” (5,18). Conforme a noção cristã, a filiação divina de Jesus
tem por finalidade que também nós sejamos levados a essa
proximidade de Deus, tornando-nos seus filhos e filhas. “Os que
ele [Deus] conheceu [escolheu] de antemão, ele também
predestinou a serem igualados à imagem do Filho, para que ele
seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,29). Assim como
Jesus se dirigia a Deus dizendo “Abbá, querido Pai” (Mc 14,36),
igualmente o podem fazer os cristãos no Espírito Santo (Rm
8,15; Gl 4,6).
As afirmações do Alcorão sobre o fim de Jesus —
conforme a compreensão cristã, morte na cruz e ressurreição
dos mortos — são muito raras. Elas deram também ensejo a
muitas interpretações: Jesus teria morrido de morte natural,
Jesus teria sido crucificado, Jesus não teria morrido, mas teria
sido elevado ao céu. Ou então se pensava que Maomé teria
mudado sua opinião, de modo que seria possível interligar
diversas compreensões, embora ocorressem numa sucessão
cronológica. Não é fácil chegar a uma conclusão. Em todo caso,
está claro que a morte de Jesus, mesmo a morte de cruz, não
tem nenhum significado salvífico.
113
DITOS DE JESUS NO ALCORÃO?
Numa indagação sobre ditos de Jesus no Alcorão, deve-se
constatar desde o início que eles não são caracterizados como
tais. Em nenhum lugar, em relação a determinado dito, se afirma
que Jesus tenha dito isso ou aquilo.
O dito do camelo e do buraco da agulha tem por objetivo
apresentar a dificuldade e até a impossibilidade de um
empreendimento. Em Mateus 19,24 para ele apresenta a
impossibilidade de um rico entrar no Reino dos Céus. A Sura 7,40
observa de modo semelhante: “Para aqueles que declaram
como mentira nossos sinais e diante deles se comportam com
orgulho, as portas do céu não se abrirão e eles não entrarão no
paraíso. Mais fácil é um camelo passar pelo buraco de uma
agulha”.
As comparações que podemos detectar são de tal forma
que se torna praticamente inverossímil uma dependência direta
de determinadas passagens sinóticas. Há uma concordância na
terminologia, quando no Alcorão se fala de resgate (2,123; 6,70;
cf Mc 8,37 par.), endurecimento da cerviz (7,179; cf Mc 4,12; Is
6,9s.), da hora do juízo que somente é do conhecimento de Deus
(7,187; cf Mc 13,32 par.), do transporte de montanhas (13,31;
Mc 11,23), da boa nova (33,45) ou do reinado de Deus (2,107;
3,26; 4,53s; 5,18). Exemplos de tais analogias ainda poderiam ser
multiplicados.
De relevância teológica é a ameaça de um pecado
imperdoável. Segundo os sinóticos, trata-se do pecado contra o
Espírito Santo (Mc 3,28s). Sua interpretação implica uma série de
dificuldades. Pode-se comparar no Alcorão: “Aqueles que crêem
114
e então passam a ser descrentes, tornam a crer para voltar a ser
descrentes, tornam a crer para mais uma vez se tornar
descrentes, e nisso perseverarem, a esses será impossível que
Deus perdoe” (4,137) Esta sentença, elaborada a partir de
experiências práticas, aproxima-se mais de Hebreus 6,4-6.
Também ali se aceita a impossibilidade de penitência para os
que, uma vez iluminados, voltaram a desgarrar-se.
A COMUM REFERÊNCIA E ABRAÃO
Judaísmo, cristianismo e islamismo não só são
denominadas as três religiões monoteístas, mas resumidas neste
conceito comum. Comum a elas é também a referência a
Abraão. Por isso se fala também nas três religiões abraâmicas.
Essa referência a Abraão tem maior no judaísmo e no islamismo
do que no cristianismo. Mesmo assim ela adquire significado
importante, porque é uma volta às raízes. É evidente que nessa
orientação há diversas acentuações. Mas Abraão permanece
uma chave obrigatória. A seguir tentaremos reconhecer Abraão
como raiz comum e simultaneamente observar como essa raiz se
subdivide.
Claro que Abraão tem sua origem na Bilília hebraica do
judaísmo e que o cristianismo e o islamismo — no Alcorão ele se
chama Ibrahim — se servem dessa fonte, quando dele falam.
Comecemos, pois, com o Antigo Testamento e o judaísmo. A
história de Abraão dá início no Livro do Gênesis à história de
Deus com seu povo. À história da criação, em cujo topo se
encontra Adão, segue a história dos patriarcas, dos quais o
primeiro é Abraão.
115
A história de Abraão introduz o patriarca com as
seguintes palavras: “E Javé falou a Abraão: Sai da tua terra e da
tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te
mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, abençoar-te-ei e
tornarei teu nome grande, e tu serás uma bênção. Abençoarei os
que te abençoarem, e quem te amaldiçoar, eu amaldiçoarei, em
ti serão abençoadas todas as gerações da terra. Abraão então
partiu, como lhe havia ordenado Javé, e Ló partiu com ele.
Abraão tinha a idade de setenta e cinco anos, quando deixou
Harã” (12,1-4).
É importante, não somente por causa da comparação
com o Alcorão, chamar desde o início a atenção para a especial
relação com Deus que Abraão consegue ter a partir do chamado
de Deus. Ele é escolhido por Deus. Em conexão com a escolha de
que foi alvo, dele é exigido um profundo desprendimento,
triplamente expresso: de sua terra, de sua parentela (entendida
como clã mais amplo), de sua família (em sentido mais estrito).
Não está dito expressamente que ele deva abandonar os ídolos
que ele adorava na terra de onde partiu, ideia que para o
Alcorão constitui o ponto central. Em outra passagem alude-se a
essa ideia.
A especial relação com Deus que Abraão alcança e o
restante de sua vida em sentido abrangente constituem,
fundamentalmente, o tema da história de Abraão em Gênesis
12-25 e também das seguintes histórias dos patriarcas,
referentes a Isaac e Jacó, descendentes de Abraão. Repetidas
vezes Deus se revela ao patriarca. Sela com ele uma aliança e
renova a promessa de multiplicar sua descendência e de torná-lo
pai de muitos povos. A aliança está ligada à mudança de seu
116
nome (de Abrão para Abraão), interpretado como “pai da
multidão” (Gn 17,1-8).
Em seu especial relacionamento com Deus, Abraão é
posto à prova. Ele supera a prova. A cena que teve o maior
alcance no efeito histórico encontra-se em Gênesis 15,1-6. Aí
mais uma vez é apresentada, cenicamente, a promessa feita de
uma numerosa descendência. Abraão queixa-se diante de Deus
pelo fato de não ter filhos: “Não me destes descendência e um
dos servos de minha casa será meu herdeiro”. Diante disso ele é
conduzido para fora. Tão numerosa quanto as estrelas do céu
será a sua descendência. Segue então a sentença decisiva para a
tradição neotestamentária (paulina): “Ele creu em Javé, e lhe foi
tido em conta de justiça”. Numa situação crítica, ele se
comportou de forma adequada à sua relação de aliança com
Deus, e isso é reconhecido por Deus. Abraão confia em seu Deus.
Ambos, obediência da fé e confiança em Deus, entram
em ação na mais conhecida história do ciclo de Abraão, com a
ordem de Deus para que ofereça seu filho Isaac, que
entrementes havia nascido de Sara (Gn 22,1-19). A história
parece absurda, e não só de nosso ponto de vista, já que Isaac
era o filho da promessa. Com isso exige-se praticamente um final
feliz. A obediência, mesmo assim praticada por Abraão, é
reconhecida pelo anjo de Deus, não deixando de deslocar
substancialmente a essência da promessa. A promessa livre e
graciosa de Deus torna-se condicionada, quando o anjo diz:
“Porque fizeste isto, porque não me recusaste o teu único filho,
eu te abençoarei abundantemente e te darei uma posteridade
numerosa como as estrelas do céu e a areia que está na praia do
mar” (22,16s). De resto, segundo a tradição bíblico-judaica, o
117
monte Moriá, o lugar onde Abraão deveria sacrificar seu filho —
sacrifício que Deus evitou no último instante (22,2) —, é o
monte do Templo em Jerusalém, enquanto segundo a tradição
islâmica seria a Caaba em Meca.
Para a comparação Bíblia/Alcorão é de grande significado
Ismael, o filho que Abraão gerou com sua escrava Agar no Egito.
Enquanto a tradição israelita remonta à linha Abraão-Isaac, a
muçulmana remonta à linha Abraão-Ismael. O conflito entre as
duas mulheres, Sara e sua serva Agar, consiste no fato de Ismael
ser mais velho do que Isaac, podendo reivindicar o direito de
herança, embora antes a estéril Sara houvesse conduzido a serva
a Abraão (Gn 16,116). Também Ismael recebe de Deus a
promessa de uma numerosa posteridade (16,10): “Eu farei dele
uma grande nação” (21,18). Por meio dele realiza-se a promessa
de que Abraão será pai de numerosos povos, e não somente o
ancestral de Israel. Mas já em Gênesis 21,12 se faz uma severa
distinção: “É por Isaac que tua geração perpetuará o teu nome”.
Agar e seu filho Ismael — por exigência de Sara — são expulsos
por Abraão. Eles fogem para o deserto de Parã, na direção do
Egito. Graças ao socorro de um anjo eles sobrevivem,
encontrando uma fonte de água Ismael casa-se com uma egípcia
(21,8-21). Interessante é a sua caracterização: como um asno
selvagem, estará em conflito com todos (16,12). No deserto
surge uma tribo forte, estranha e, mesmo assim, aparentada
com Israel. Seu ancestral Ismael é filho de Abraão.
No judaísmo começa-se a narrar histórias detalhadas
sobre a conversão de Abraão da idolatria ao culto do único e
verdadeiro Deus, do politeísmo ao monoteísmo. O que no Antigo
Testamento era apenas aludido torna-se agora objeto da arte
118
narrativa oriental. Essas histórias encontram-se com sua maior
riqueza de detalhes no Apocalipse de Abraão 1-8 e no midrash
Bereshit Rabba a Gênesis 11,28. Para o Alcorão elas são de
grande significado, como ainda veremos. Segundo essas
narrativas, Taré, pai de Abraão, é um zeloso idólatra. Ele
inclusive fabricava ídolos e os comercializava. Abraão chega ao
conhecimento do único Deus pelo caminho da reflexão racional.
Surge daí uma desavença. Abraão esforça-se em vão —
novamente pelo caminho da racionalidade: Deus é
incomparavelmente maior do que o fogo, a água, o sol, a lua e as
estrelas — para convencer seu pai acerca do monoteísmo. Em
consequência, Taré entrega Abraão ao fogo, do qual, porém, é
salvo milagrosamente.
No Novo Testamento, o significado histórico-salvífico de
Abraão é plenamente reconhecido. Jesus fala do Deus; de
Abraão, de Isaac e de Jacó (Mc 12,26). Estar à mesa com Abraão,
Isaac e Jacó significa vida eterna (Mt 8,11 par.).
No Alcorão, Abraão é denominado hanif. Essa
caracterização também tem a ver com o desenvolvimento de
Abraão tal como nos é apresentado no Alcorão. O conceito de
hanif é delimitado negativamente. Como hanif Abraão não era
pagão, isto é, era alguém que não cultuava os ídolos: “Segue a
religião de Abraão, que foi um hanif— ele não era um pagão”
(16,123). Como hanif ele também é excluído dos judeus e dos
cristãos, que também o reclamam para si. “Abraão não era nem
judeu nem cristão. Ele era bem mais um hanif submisso a Deus,
ele não pertencia aos pagãos” (3,67). Com a formulação “hanif
submisso a Deus” (hanifan musliman) dá-se a entender a sua
tendência ao islamismo desde o início. A palavra hanif já era
119
usual antes de Maomé, empregada no sentido de “piedoso”.
Para Maomé eram hanif aqueles que não eram nem judeus nem
cristãos, mas estavam em busca de Deus. Nessas pessoas
operou-se uma transformação que as levou a abandonar a
idolatria, aproximando-se da fé no Deus único. Não somente
Abraão experimentou essa transformação, o próprio Maomé
também a realizou em sua própria pessoa. Ele mesmo se
compreende como um hanif (10,104s.). Ele reivindica, de
qualquer modo, ter sido aquele que compreendeu Abraão
corretamente: “As pessoas que mais bem compreendem Abraão
são aquelas que o seguiram, e este profeta [ou seja: Maomé] e
os que crêem [ou seja: seus discípulos+” (3,68). A etimologia de
hanif é discutida. Entre outras possibilidades, pensa-se na
palavra hebraica hanef (hipócrita) ou na palavra árabe hanif
(secessionista).
Com isso tocamos em dois campos dignos de nota. Por
um lado, a retrospectiva para o que é anterior ao Alcorão. Por
outro lado, a observação de que Maomé narra e formula a
história de Abraão à luz de suas próprias experiências. Na
vocação do patriarca ele vê prefigurada sua própria vocação. Já
pudemos fazer observação semelhante quanto à vocação de
Moisés junto à sarça ardente. Percebe-se aí uma extraordinária
consciência de missão. Ele próprio se entende integrado na
fileira das figuras do Antigo Testamento. Segundo a Sura 2,129,
Abraão ora (com Ismael) pela vinda do futuro enviado, que lerá
os versículos aos seus seguidores e ensinará a Escritura e a
sabedoria. Está claro que esta oração se cumpriu com Maomé.
Conforme a Sura 2,124, Deus diz a Abraão: “Eu farei de ti um
Imam para as pessoas”. Futuramente esta palavra se tornará o
120
termo técnico para o puxador de oração (imã). De modo geral
ela significa exemplo, designando aquele que toma a frente.
A história da visita dos três mensageiros a Abraão junto
aos terebintos de Mamrê, quando lhe é anunciado o nascimento
de seu filho Isaac, com subsequente juízo condenatório da
cidade de Sodoma (Gn 18s), é narrada repetidas vezes (11,69-83;
15,51-77; 29,31-35; 51,24-37), ressaltando sempre o juízo
condenatório. Em contrapartida, a história do sacrifício do filho
de Abraão ocorre uma vez só (37,102-111). Diversamente de
Gênesis 22, o filho é expressamente envolvido na disposição ao
sacrifício. Ele reforça sua disposição ao auto-sacrifício: “Pai, faze
o que te foi ordenado. Verás, se Deus quiser, que pertenço aos
constantes” (v. 102). Pela experiência atual dos tantos que se
auto-imolam entre os muçulmanos, lê-se estas palavras com
outros olhos. O filho, que Abraão quer sacrificar e que também
está disposto a sacrifícar-se a si mesmo, segundo o Alcorão, não
é Isaac, como em Gênesis 22, mas Ismael, o filho de Agar.
Embora não se cite o nome do filho na narrativa, no final se
anuncia a Abraão o nascimento de Isaac, que será um profeta
(37,112s). Resulta disso para o texto que o filho a ser sacrificado
não seja Isaac, mas Ismael, cerca de catorze anos mais velho.
Abraão adquire um enraizamento firme no islamismo por
meio da tradição na qual se fundamenta a peregrinação a Meca,
o que pode ser constatado em diversas passagens do Alcorão.
Abraão construiu a Caaba, que se denomina sua casa, objetivo
da peregrinação: “A primeira casa construída para um ser
humano é certamente a de Bakka [isto é, Meca], para bênção e
orientação de todas as pessoas do mundo. Nela, encontram-se
sinais bem claros. É o lugar sagrado de Abraão. Quem nela entra
121
está em segurança. E as pessoas têm diante de Deus o
compromisso de fazer a peregrinação à casa, todos os que
tiverem uma possibilidade” (3,96s). A região em que a santa casa
foi construída denomina-se “vale sem semente”. Ela encontra-se
numa região infrutífera. Deve estar livre de ídolos (14,35-37).
Segundo a Sura 2,125-128, Abraão teria erguido essa casa
juntamente com seu filho Ismael e a teria purificado (dos ídolos)
para “aqueles que cumprem a caminhada em seu redor, se
inclinam e se prostram” (cf também 22,26-29). Segundo essa
visão, Abraão fundamentou essencialmente a religião
muçulmana. Embora aqui Ismael fique à margem, está claro que
para o Alcorão ele é o filho mais importante de Abraão, que
garante a ligação com as origens, e não Isaac e seu filho Jacó,
embora eles sempre voltem a ser citados no Alcorão e mesmo
chamados de profetas (por exemplo, 37,112).
Olhando mais uma vez para o significado de Abraão no
judaísmo, no cristianismo e no islamismo, pode-se mais uma vez
constatar expressamente que essas três religiões consideram ter
suas raízes em Abraão. Isso pode e deve ser visto como um
elemento que as aproxime. Pelas suas origens Abraão pertence
ao judaísmo. Cristianismo e islamismo somente tiveram acesso a
ele mediante a Bíblia do judaísmo. Quem professa Abraão dirigese — querendo ou não — às raízes judaicas. O islamismo o faz
num sentido mais elementar do que o cristianismo, afirmando
ter restabelecido a religião de Abraão. Para o cristianismo,
Abraão tem grande significado por causa da promessa, que ele
recebeu e que afirma que nele todas as gerações da terra serão
abençoadas. A palavra de Deus mantém a sua força. Por qual
caminho a promessa se realiza? Para o cristianismo, Jesus é o
122
filho de Abraão simplesmente porque nele a promessa se
realizou. O que isso significa para a relação do cristianismo com
o judaísmo e o islamismo? Ao menos isso: reconhecer no
judaísmo suas raízes e ver no islamismo aqueles que, como
filhos de Ismael, também devem participar da bênção de
Abraão.
A IMAGEM DA PESSOA HUMANA
À primeira vista, a imagem da pessoa humana do Alcorão
concorda amplamente com a da Bíblia — ou, para dizê-lo mais
exatamente: as afirmações do Alcorão têm amplas
correspondências na história da criação de Gênesis 2,44,16. Isso
inclui a história de Caim e Abel em 4,1-16. Refiro-me aos textos
sobre a criação do ser humano, sua permanência no paraíso, sua
desobediência, sua expulsão do Paraíso e a situação daí
resultante e de algum modo definitiva. No Alcorão,
evidentemente, não lemos uma história contínua. Antes, os
elementos essenciais aparecem isolados, introduzidos em
diversas Suras, menos narrativos e mais instrutivos, sempre
como palavras de Deus, parcialmente em cansativas repetições.
Acena-se especialmente, em diversas ocasiões, ao papel do
tentador, do diabo.
Para a compreensão da imagem do ser humano na Bíblia
e no Alcorão, mais exatamente, para a compreensão da imagem
do ser humano no Novo Testamento e no Alcorão, em suas
interpretações da história veterotestamentária das origens,
deve-se necessariamente levar em conta as tradições
interpretativas que surgiram no judaísmo, antes do Novo
123
Testamento e antes do islamismo. Para o Alcorão entram
também em questão tradições interpretativas cristãs préislâmicas. Essas indicações já mostram o quanto exatamente
neste ponto as três religiões se entrelaçam e quanto o
cristianismo e o islamismo dependem do judaísmo.
Observemos em detalhes. Segundo Gênesis 2,7 a criação
do ser humano consta de dois atos: “Modelou então Javé o
homem do pó da terra, soprou em suas narinas um hálito de
vida. Assim o homem tornou-se um ser vivo”. A apresentação
antropomórfica faz Deus moldar o ser humano como um oleiro.
Este é o primeiro ato. Num segundo ato. Deus insufla nesta
imagem morta um sopro de vida. Este princípio vital, a
respiração, contudo, em termos de antropologia bíblica, não
pode ser entendido como alma imortal. A antropologia bíblica é
unitária, não dividida ou dicotômica. Se o sopro de vida
abandona o ser humano, este recai morto no pó da terra. Se o
material do qual o ser humano é feito é pó, sublinha-se com isso
sua finitude, sua mortalidade. Tirado do pó, o ser humano
retorna ao pó (3,19b).
No Alcorão lê-se algo semelhante: “Primeiro ele criou o
ser humano do barro. Depois fez sua descendência do
derramamento da água desprezível. Modelou-o então e soprou
nele do seu espírito. E ele vos fez ouvido, vista e coração. Mas
vós sois pouco gratos” (Sura 32,7-9). “Ele fez o ser humano da
argila, como um objeto de cerâmica” (55,14; cf 7,11; 15,26;
38,72). O Alcorão é mais instrutivo.
A posição proeminente do ser humano sobre todas as
demais criaturas ganha expressão na história da criação da
Bíblia, pelo fato de ele dar nome a todos os animais (Gn 2,19s).
124
O Alcorão retoma isso e o estende a tudo: “Então *Deus+ ensina
a Adão o nome de todas as coisas” (Sura 2,31). A pessoa humana
é o único ser dotado da capacidade de linguagem, e assim em
condição de apropriar-se intelectualmente das coisas.
O ser humano torna-se mandatário de Deus neste
mundo. Na narração da criação mais recente, em Gênesis 1, que
pouca influência teve no Alcorão, exceto pela notícia de que
Deus criou o mundo em seis dias, diz-se que o ser humano deve
dominar sobre a terra, relacionando isso com o fato de ele ser
imagem de Deus (Gn 1,26-28). O fato de a pessoa humana ser
imagem de Deus não é assumido pelo Alcorão, um dado sobre o
qual ainda tornaremos a falar. A posição de dominador na
criação, que lhe foi outorgada por Deus, poderia ter uma
referência na Sura 2,30, onde Deus fala: “Eu estabelecerei um
halifa *califa+ sobre a terra”, referindo-se a Adão. Isso, contudo,
é controverso, por causa do duplo sentido da palavra halifa. A
palavra pode significar tanto “representante” como “sucessor”.
No primeiro caso, representante de Deus. No segundo, sucessor,
mas de quem? De seres racionais ancestrais que habitavam a
terra, que então nada têm a ver com Adão? Dos anjos?
Enquadrar-se-ia bem na última possibilidade, de que o
ser humano deveria suceder aos anjos na terra, o fato de os
anjos terem colocado objeções à criação do ser humano, na Sura
2,30: “Queres estabelecer *sobre a terra+ alguém que lá
promoverá a desgraça e derramará sangue, enquanto nós
cantamos teu louvor e louvamos tua santidade?”, e que isso leva
à divisão no mundo dos anjos. É necessário perguntar por que
Maomé narra e claramente dá tanto valor a esta história, que
desemboca na sedução do ser humano por Satanás.
125
O conteúdo da história, várias vezes repetida no Alcorão,
é breve: após o ser humano ter sido criado e ter demonstrado
sua inteligência (dando nomes às coisas). Deus exige que os
anjos se prostrem diante dele. Todos o fazem, menos o anjo
Iblis. Iblis é o demônio. O nome deriva de diábolos. Com isso.
Deus amaldiçoa Iblis. Este roga a Deus por um prazo, para que
possa seduzir o ser humano, até o dia do juízo final. Iblis está
certo da vitória: “Eu estarei de tocaia contra eles no teu reto
caminho. Eu os atacarei pela frente e por trás, pelo lado direito e
pelo esquerdo. Tu constatarás que a maioria deles não são
gratos” (7,14-17; cf 2,3034; 15,26-40; 17,61-64; 18,50; 38,71-85).
A história da queda de Satanás, relacionada com a criação do ser
humano, não, se encontra na Bíblia. Ela provém, contudo, da
tradição judeo-cristã. Já Sabedoria 2,24 poderia ser uma alusão:
“Pela inveja do diabo a morte entrou no mundo”.
O interesse de Maomé por essa história, pelo qual
estamos indagando, poderia fundar-se no fato de ela colocar
drasticamente à vista o perigo da situação ameaçadora do ser
humano no mundo, já anunciada em Gênesis 3,15. Isso se ajusta
ao caráter eminentemente parenético do Alcorão. A sedução de
Adão por Satanás é narrada com diversos matizes. Falta a
promessa: “Sereis como Deus” (Gn 3,5). Isso não deve ser por
acaso. Em vez disso, lê-se: Tornar-vos-eis anjos ou seres que
vivem eternamente (Sura 7,20); conquistareis um reinado que
não passa (20,120). A árvore proibida não se chama “árvore da
ciência do bem e do mal” (Gn 2,17), mas “árvore da eternidade”
(Sura 20,120), isto é, seus frutos proporcionam vida eterna.
As consequências da “queda no pecado” são na Bíblia e
no Alcorão, em primeiro lugar, a perda do Paraíso. O que
126
significa a perda da proximidade de Deus.
Tomemos mais uma questão em que Bíblia e Alcorão,
quanto à visão acerca do ser humano, também se correspondem
apenas em parte: o ser humano, em virtude de seu destino final,
está determinado por Deus ou pode ele decidir-se livremente a
favor ou contra o seu chamado? Bíblia e Alcorão pressupõem a
liberdade de Deus, e isso significa, em relação ao ser humano,
graça divina. Se o ser humano encontra um acesso a Deus, se
pode viver sob sua palavra, se atinge seu destino eterno,
conforme ambos os livros isso é possível, primariamente, graças
à livre bondade de Deus.
Mas como se deve julgar a situação daqueles que
rejeitam o chamado de Deus? O caminho deles também está
estabelecido por Deus? Ou será sua exclusão resultado
unicamente de sua livre decisão? Existe uma reprovação divina,
isto é, uma predeterminação divina de excluir determinadas
pessoas? No Alcorão há algumas manifestações a favor dessa
concepção. Citemos algumas: “Se Deus quer que alguém seja
abatido pela tentação, tu nada podes fazer a seu favor diante de
Deus” (5,41). “Muitos dos djinn e muitos dos seres humanos nós
criamos para o inferno. Eles têm coração, com que nada
compreendem, eles têm olhos com que nada vêem; eles têm
ouvidos com que nada ouvem. Eles são como animais, inclusive
decaindo mais ainda” (7,179). “Deus induz em erro quando quer
e conduz corretamente quando quer” (14,4; cf 35,8). “Nós
cobrimos seus corações com invólucros, de modo que não
compreendam, e tornamos seus ouvidos pesados” (6,25). “Tu
podes esforçar-te para conduzi-los corretamente. Deus não guia
corretamente os que ele induziu ao erro” (16,37). Em
127
contrapartida a essas palavras, há fortes palavras sobre a
eleição, como por exemplo: “Ninguém pode crer, a não ser com
a permissão de Deus” (10,100). “Quem Deus quer guiar
corretamente, a este ele faz inclinar-se para o Islamismo”
(6,125). “Deus oferece sua misericórdia de modo especial a
quem ele quer” (2,105). Mesmo Iblis, o demônio nada pode
fazer contra os predestinados, ao dizer: “Eu confundirei a todos
[os seres humanos], exceto os teus servidores eleitos que há
entre eles” (15,39s; cf 17,65).
Por trás dessas frases pode estar o horizonte da
experiência de Maomé, que — principalmente no início de sua
atividade — experimentou muitos insucessos. Os crentes foram
fortalecidos com esta doutrina. Mas ela também é responsável
pela divulgação de uma visão fatalista da vida. No Alcorão não se
reflete sobre a relação entre a liberdade de Deus e a liberdade
humana.
Esta reflexão começa bastante cedo na exegese do
Alcorão. Ambas as concepções estão representadas. O livrearbítrio do ser humano é rejeitado ou defendido. Contudo, no
islamismo sunita prevaleceu a primeira concepção. No século XX
tem início uma tendência ligada ao anseio de desvencilhar-se do
colonialismo, visto como fatalismo.
A liberdade humana sempre é pressuposta na Bíblia.
Impressionantes são as passagens em que o ser humano é
chamado à decisão: “Hoje eu invoco o céu e a terra contra vós
como testemunha: Vida e morte, bênção e maldição, são
colocados diante de ti. Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e
tua descendência!” (Dt 30,19). “Estende a tua mão para onde
quiseres. Diante do homem estão a vida e a morte. O que ele
128
quiser, lhe será concedido” (Ecl 15,11-20, aqui 17). No Novo
Testamento se poderia indicar o ensinamento dos dois caminhos
no final do Sermão da Montanha (Mt 7,13s), ou a parábola da
casa construída sobre a rocha (7,24-27), em que o ser humano
que ouve e pratica as palavras de Jesus é confrontado com
aquele que, de fato, ouve mas não pratica. O problema da
relação entre a liberdade de Deus e a liberdade do ser humano é
aludido em Paulo, mas sem uma reflexão profunda.
O ser humano, expulso do Paraíso, recebe também uma
palavra de esperança na caminhada. Assim ao menos é a
compreensão cristã de Gênesis 3,15, palavra dita por Deus à
serpente: “Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a
tua semente e a semente dela. Ela [semente] te esmagará a
cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar”. Originariamente a palavra
trata da constante inimizade entre o ser humano (em sentido
coletivo) e a serpente, da luta entre o bem e o mal. Preparada
no judaísmo, no ambiente cristão ela logo foi interpretada
individualmente em função do Messias, que submete a serpente
(Satanás), tornando-se o Proto-evangelho, o primeiro anúncio da
salvação messiânica. Acrescentou-se uma interpretação
relacionada a Maria, incentivada pela tradução da Vulgata: ipsa
[feminino] conteret caput tuum.
No Alcorão lê-se: “Um seja inimigo do outro” (Sura 2,36;
ser humano e Satanás). Segundo a Sura 7,24, por ocasião da
expulsão do Paraíso, Adão recebeu a promessa de que, embora
devesse morrer, também um dia ressuscitaria da terra. Lê-se a
mesma promessa na Vida de Adão e Eva 42, onde, contudo, a
futura ressurreição de Adão é fundamentada na ressurreição de
Cristo. Essa relação possivelmente se explica pela influência
129
cristã, mesmo que o Alcorão não se refira a Cristo.
Na história da construção da torre de Babel (Gn 11,1-9)
ocorre mais um passo decisivo na história da humanidade. Em
sua ânsia de ser como Deus, os seres humanos provocam a ira
de Deus. Eles são espalhados sobre a terra e perdem a unidade
de linguagem. O Alcorão não narra essa história, mas
certamente a pressupõe na Sura 10,19: “Os seres humanos eram
uma só comunidade (umma). A partir disso tornaram-se
desunidos”.
ESCATOLOGIA
Antes de nos dedicarmos à especificidade de cada
escatologia, verifiquemos as desconcertantes semelhanças no
horizonte do pensamento apocalíptico, que podem ser
constatadas entre as escatologias judaica, neotestamentária e
do Alcorão.
Em primeiro lugar, todas as três falam da ocasião do juízo
como o “dia”, com diferentes acréscimos, apoiando-se
certamente no veterotestamentário “dia de Javé”. Este dia é
desejado e esperado como próximo: Jesus, conforme Marcos
1,15, apresentou-se com as palavras: “Completou-se o tempo e
o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no
Evangelho!”. Paulo diz: “A noite está avançada, e o dia se
aproxima” (Rm 13,12). Maomé anuncia: “Aproximou-se a hora e
a lua dividiu-se ao meio (Sura 54,1; cf 53,57). É possível calcular
a hora. Em última instância, porém, somente Deus sabe quando
será a hora (Mc 13,32). Semelhante é o que se diz no Alcorão:
“As pessoas querem saber a hora. Dize: Somente Deus o sabe.
130
De onde queres tu sabê-lo” (Sura 33,63) . Se a Sura 22,47 faz os
críticos pensarem: “Vê, um dia com o teu Senhor é como mil
anos segundo o vosso cálculo”, isso recorda 2 Pedro 3,8, onde o
mesmo argumento ocorre quase literalmente.
Para as três o último dia é o dia em que os mortos
ressuscitam (Dn 12,2s; Jo 5,28s; 1Ts 4,16 etc). Em referência ao
dia da ressurreição (Sura 50,42; 75,1) lê-se no Alcorão: “Soará a
trombeta [cf 4Esd 6,23; 1Cor 15,52]. É o dia da ameaça. E cada
alma vem, acompanhada por um condutor e por uma
testemunha” (50,20s). Passam os céus e a terra (Mc 13,24s). O
sol será encoberto, as estrelas se precipitarão, as montanhas
serão deslocadas (Sura 81,1-14; 56,1-7). O céu será enrolado
como um rolo de escritura (21,104; cf 2Pd 3,10-12). Será aberto
um livro, no qual estão anotadas todas as ações das pessoas,
não lhes será feita injustiça, “nem mesmo de um só fio de
tâmara” (Sura 17,71; 18,49). Também esta ideia provém da
apocalíptica judaica. O Apocalipse neotestamentário recorre à
ideia do “livro da vida”, no qual estão consignados os nomes
daqueles que foram salvos (Ap 20,15; 3,5; Enoc etíope 47,3). O
Alcorão acentua o aspecto ilusório da vida terrena. Em
retrospectiva o ser humano tem a impressão de ter vivido no
mundo apenas por um breve tempo, um dia, uma hora. Referese isso também ao tempo transcorrido no túmulo? (cf Sura
23,112: “na terra”?).
De acordo com as expectativas apocalípticas, o tempo
final anterior ao fim do mundo é um tempo de escalada do mal.
Fala-se das dores de parto do messias.
No “apocalipse dinótico” (Mc 13 par.) os elementos
descritivos apocalípticos do mau tempo final: guerra, terremoto,
131
fome, discórdia nas famílias, descrença (13,5-13), e então, em
13,14-24, a mais aguda tribulação, imediatamente antes do fim.
O ponto de cristalização do mal é o anticristo, que pode
aparecer sob diversos nomes, como o “homem ímpio” em 2
Tessalonicenses 2,3; como o regente, “que os habitantes da
terra não esperam” (4Esd 5,6). É de supor que ele também se
oculte por trás da “abominação da desolação” (Mc 13,14). No
Alcorão também se encontram tais elementos de expectativa.
Possivelmente com o “animal” que Deus faz surgir da terra (Sura
27,82) se esteja indicando aquela força maligna que no
cristianismo se denomina “anticristo” A ameaçadora derrota dos
povos de Gog e Magog é conhecida no Alcorão (21,95; 18,94; cf
Ap 20,8). A mulher que amamenta e a grávida sofrerão mais
intensamente (Sura 22,ls; cf Mc 13,17). Característico para
aquele dia “ensurdecedor” é a dissolução das famílias: “O
homem foge de seu irmão, de sua mãe e de seu pai, de sua
esposa, de seus filhos (Sura 80,33-36; cf Mc 13,12).
Apesar desses contatos e dessas concordâncias flagrantes
nos detalhes apocalípticos, existe uma diferença essencial entre
o Alcorão e o Novo Testamento, fundamentada no fato de no
Novo Testamento a cristologia, o evento Cristo, constituir o fator
determinante, justamente também na escatologia, e não a
apocalíptica.
O Alcorão desconhece a escatologia presente. Nisso deve
ser vista a decisiva diferença em relação à escatologia
neotestamentária. Se acima entendemos escatologia como o
discurso sobre a ação definitiva de Deus, assim o Alcorão espera
essa ação de Deus para o final, no último dia, no dia do juízo
final. Naquele dia retornarão a Deus todas as pessoas, tanto as
132
boas como as pecadoras (Sura 2,46; 8,24 etc). Por essa razão a
pregação de Maomé está concentradamente orientada para
este juízo final: as pessoas devem crer em Deus (e em seu
enviado) e no último dia (9,44.45.99; 12,37 etc). Mas o profeta
confronta-se com muitos que não querem crer na vida para além
da morte e na ressurreição dos mortos. Com essa orientação
consequente para o além e para a ressurreição, o Alcorão
permanece totalmente dentro do quadro da apocalíptica
judaica.
A vida no além é descrita com cores vivas, tanto o paraíso
como o inferno. Descrições da beatitude celeste não são
encontradas na Bíblia. Recordando os sacrifícios humanos que
eram oferecidos a Moloc no vale do Hinnom, em Jerusalém, falase na Bíblia desse lugar como o local do castigo para os
pecadores (Geena, inferno) (Is 66,24). No Novo Testamento o
discurso sobre o inferno ocupa pouco espaço. João Batista fala
do “fogo inextinguível” (Mt 3,12 par.). Na pregação de Jesus ele
ocorre sobretudo no anúncio do julgamento do mundo (Mt
25,31-46; aqui, 46), que ocorrerá segundo as obras de
misericórdia realizadas ou omitidas, isto é, num texto
secundário, que não remonta diretamente a Jesus . Com maior
riqueza de detalhes encontramos o inferno, no Novo
Testamento, no Apocalipse de João (“fogo” e “mar de enxofre”,
Ap 20,9-15; 19,20; 21,8). Isso indica mais uma vez que a
configuração do lugar de castigo tem seu lugar vivencial na
apocalíptica. De lá o Alcorão também recebe a influência quanto
a esse ponto. Chama a atenção, contudo, o grande número das
amplas descrições do céu e do inferno no Alcorão. Enquanto as
apresentações do inferno são marcadas pela apocalíptica, as
133
alegrias celestes, como aparecem no Alcorão, praticamente não
possuem paralelos na apocalíptica.
Como exemplo para ambos os casos, citemos a Sura 55,856: “Aqueles do lado direito, de que tipo são? E os do lado
infeliz, de que tipo são? E os que estão à frente, estes serão os
primeiríssimos. Estes são os que estão na proximidade [de
Deus], nos jardins das delícias. Uma grande multidão das antigas
e poucas das posteriores [gerações]. Reclinam-se, uns diante dos
outros, sobre almofadas bordadas a ouro. Entre eles circulam
sempre meninos com cálices e jarras e com um copo
proveniente de uma fonte e de que jamais terão dor de cabeça e
nem se embebedarão, e frutas, conforme desejarem, carne de
aves, como quiserem. Há companheiras de grandes olhos [huri],
comparáveis a pérolas preciosas, como recompensa pelo que
eles [em sua vida terrena] realizaram. Lá não se ouve conversa
vazia nem pecaminosa, mas somente a palavra: paz, paz! Os do
lado direito, o que são os do lado direito? Eles encontram-se sob
árvores de Sísifo sem espinhos e sob cachos de bananas e em
sombra espraiada e junto a águas borbulhantes, com muitas
frutas, infindáveis e sempre à disposição, e com camas altas. Nós
mesmos as [companheiras] criamos, fazendo-as virgens,
amorosas e todas da mesma idade, para aqueles do lado direito,
uma grande multidão das antigas e uma grande multidão das
posteriores. E aqueles do lado esquerdo — o que são os do lado
esquerdo? Eles encontram-se no mormaço e na água quente e
na sombra da fumaça preta, que não é nem fresca nem
agradável. Anteriormente eles viviam na opulência e se
obstinavam no crime violento. Eles diziam: quando nós tivermos
morrido tornando-nos pó e ossos, por acaso seremos
134
ressuscitados? E também nossos antepassados? Dize: Sim, os
antigos e os posteriores serão reunidos todos num lugar
determinado. Então, ó enganados e negadores [da mensagem],
comereis do sagueiro, enchendo com isso vossos estômagos.
Sobre isso tomareis água fervente como camelos com alucinação
de beber. Essa será a sua alimentação no dia do juízo.
As representações realistas do paraíso pressupõem que
este se localize na terra. A vida bem-aventurada após a morte
contém felicidade terrena em grau elevadíssimo. O Alcorão fala
de um novo céu e de uma nova terra (14,48), de uma segunda e
nova criação (30,11; 32,10; 50,15). Deus repete a criação (10,4).
Também a Bíblia anuncia um novo céu e uma nova terra (Is
66,22; 65,17; 2Pd 3,13; Ap 21,1). Segundo Apocalipse 21,5 Deus
fala: “Vede, eu faço novas todas as coisas”. O primeiro céu e a
primeira terra retiram-se e desaparecem (21,1). A esperança de
um novo céu e de uma nova terra surge mais uma vez da
apocalíptica judaica, na qual tanto o cristianismo como o
islamismo a buscaram (cf p. ex., Jub 1,29: No “dia da nova
criação”, céu e terra e todas as suas criaturas serão renovadas).
De acordo com o Novo Testamento, porém, os cristãos balizados
já são vistos como “nova criação” (Gl 6,15; 2Cor 5,17). Eles se
entendem como antecipação do novo mundo. Volta aqui a
questão decisiva da escatologia presente.
Em relação às representações da vida além da morte,
numa passagem o Alcorão e a Bíblia se aproximam de modo
admirável.
Uma importante concordância entre a Bíblia e o Alcorão
consiste no fato de em ambos ser exaltado o Reino de Deus. No
Antigo Testamento, Deus demonstra ser rei por meio de suas
135
obras libertadoras do povo.
O Alcorão em diversas passagens exalta o reinado de
Deus, conseguindo com isso, talvez, a maior proximidade com os
salmos. “A Deus pertence o reinado sobre o céu e sobre a terra e
sobre tudo o que entre eles existe” (Sura 5,18; cf 9,116).
No louvor do Reino de Deus os muçulmanos e judeus
podem unir-se, podendo também os cristãos a eles juntar suas
vozes, mas com o acréscimo de que para eles o Reino de Deus se
revelou em Jesus Cristo, embora de modo paradoxal (ver-se a
inscrição na cruz em Mc 15,26).
JUDEUS – CRISTÃOS – MUÇULMANOS
Judeus, cristãos e muçulmanos que surgiram
sucessivamente e existiram e lado a lado naturalmente tomaram
conhecimento uns dos outros. Isso cristalizou-se na Bíblia e no
Alcorão. Deve-se aqui mais uma vez recordar que o Antigo
Testamento, ou melhor, as tradições por ele marcadas
tornaram-se um importante ponto de referência para o Novo
Testamento e para o Alcorão. Uma vez que o Novo Testamento e
o Alcorão se apropriam do Antigo Testamento ou de suas
tradições (o Alcorão de modo semelhante, mas apenas
parcialmente), assim o Novo Testamento fala dos judeus e o
Alcorão dos judeus e dos cristãos. Esse é o tema de que agora se
tratará.
O Antigo Testamento deve aqui, evidentemente, ser
distinguido como livro surgido antes do cristianismo e do
islamismo. Além disso, deve-se recordar também que os escritos
do Antigo Testamento se dirigem a Israel, enquanto o Novo
136
Testamento e o Alcorão têm pretensão universal. Isso constitui a
dificuldade fundamental para a avaliação — e concretamente
para a relação entre ambas as religiões mundiais, cristianismo e
islamismo —, pelo fato de ambas terem essa mesma pretensão
universal.
O cristianismo certamente tem relações mais profundas e
fundamentais com o judaísmo do que o islamismo. O fundador
do cristianismo, Jesus de Nazaré, seus apóstolos e os membros
da mais antiga comunidade em Jerusalém eram judeus. Esses
judeo-cristãos estavam convictos de que em Jesus haviam se
cumprido as promessas e esperanças do Antigo Testamento.
Sobre essas relações torna-se sempre a refletir, de diversos
modos, nos escritos do Novo Testamento. Elas são parte
indispensável da autocompreensão da comunidade mais antiga,
como pode ser verificado no Novo Testamento. Os cristãos
estariam arruinando a si mesmos caso rompessem as relações
com os judeus. O Novo Testamento não seria mais
compreensível se fosse eliminado seu pano de fundo, isto é, o
Antigo Testamento. Assim, para os mais antigos cristãos,
provenientes do judaísmo e que começam a levar o Evangelho
aos povos, realizando atividade missionária, constitui uma
dolorosa experiência o fato de a grande maioria de Israel não
acolher o Evangelho. Pelo fato de neste ponto judeus e cristãos
se separarem, desligando-se a Igreja da sinagoga, cristãos
começam a falar de judeus. Esse é já o caso no Novo
Testamento, embora o processo de separação ainda não
houvesse terminado. Nos vários escritos do Novo Testamento
ele teve desenvolvimento diverso.
No Alcorão o discurso sobre os judeus apresenta-se de
137
forma bem diversa. Isso já se mostra ao se falar de judeus e
cristãos como um grupo só. Fala-se a seu respeito como “as
pessoas da escritura” ou “as pessoas do livro”.
Do tratamento “Vós, pessoas da escritura” pode-se tirar
uma série de conclusões. Por um lado, ele demonstra que os
povos da Arábia ainda não possuem uma “escritura”, Maomé
sentindo-se na obrigação de proporcionar-Ihes uma escritura
própria, o Alcorão. Por outro lado, Maomé confirma a unidade
da Bíblia. Ele notadamente tem conhecimento do “Evangelho” e
da “Torá”, tendo-os conhecido dentro do contexto de um livro, a
Bíblia. Claro que se deve separar disso a questão sobre o alcance
de seus conhecimentos detalhados da Bíblia. Não devem ter sido
muito extensos. Mesmo assim, a ideia da pertença mútua de
Evangelho e Torá é um indício da presença de judeo-cristãos em
suas proximidades. Está claro, além disso, que ele conheceu
judeus e comunidades judaicas em Medina.
Diferentemente do Novo Testamento, no Alcorão não se
fazem maiores reflexões teológicas sobre a relação com o Antigo
Testamento e com o judaísmo, no sentido de continuidade,
apesar de o Alcorão utilizar largamente o Antigo Testamento. De
qualquer modo, trata-se de um número bastante reduzido de
textos, repetidos muitas vezes. Isso também tem a ver com o
fato de Maomé — à diferença de Jesus — não ter sido judeu. A
determinação da relação é outra. Basicamente ela pode ser
assim descrita: Torá e evangelho são claramente revelações de
Deus vinculantes para judeus e cristãos. Mas com o Alcorão
Deus proporcionou ao profeta o conhecimento de sua vontade
definitiva. Ela tem sua norma primordial num livro que se
conserva no céu e que existe desde toda a eternidade, ao qual
138
foi permitido que Maomé tivesse acesso. As outras escrituras
sagradas, ao lado do Alcorão — Torá e evangelho — não
correspondem a conhecimentos tão plenos quanto o Alcorão.
Por essa razão, elas são supérfluas para o crente do Alcorão. Ele
não precisa preocupar-se com os conhecimentos daqueles livros.
Algumas citações do Alcorão podem tornar este ponto de
vista mais concreto. “Ele *Deus+ enviou a ti *Maomé+ a escritura
que contém a verdade, como confirmação daquilo que já existia
antes dela. E ele enviou anteriormente a Torá e o Evangelho
como norma de conduta para as pessoas” (3,3s). “E nós demos a
Moisés a escritura [...] fazendo dela uma norma de conduta para
os filhos de Israel. E nós suscitamos dentre eles pré-figuras que
se comportaram conforme nossa ordem” (32,23s; cf 6,154). Às
pessoas da escritura dirige-se a acusação; “Se eles observassem
a Torá e o Evangelho, e o que foi enviado pelo seu Senhor, eles
encontrariam alimento, onde quer que fosse” (5,66). Judeus e
cristãos obscureceram a verdade (3,71), tornaram-se desunidos
quanto à escritura (11,110; 27,76). Mas agora, com o Alcorão, a
verdade chegou à humanidade (10,108). A seu respeito se diz:
“Esta é a escritura que não comporta nenhuma dúvida. Ela é
uma norma de conduta para os tementes a Deus” (2,1). Mas ela
é rejeitada pelos judeus e cristãos. Eles tornaram-se incrédulos.
“E se a eles é dito: crede naquilo que Deus enviou do alto, eles
dizem: nós cremos naquilo que do alto nos foi enviado. Nós
negamos, contudo, o que veio depois” (2,89-91; aqui, 91). O que
veio depois é agora o único normativo e decisivo.
Contra este pano de fundo tornam-se compreensíveis
duras palavras: “Entre aqueles que são judeus, alguns deturpam
as palavras [da escritura]. Mas Deus os amaldiçoou por causa de
139
sua descrença. Por isso eles pouco crêem” (4,46). “Nós
amaldiçoamos os companheiros do sábado” (4,47s). “Aqueles
dentre os filhos de Israel que eram descrentes foram
amaldiçoados pela boca de Davi e de Jesus, o filho de Maria”
(5,78). Os cristãos são atingidos de modo semelhante: “E os
cristãos dizem: Cristo é o filho de Deus. É o que eles dizem com a
boca. Com isso igualam-se aos que antigamente eram
descrentes. Deus os combata!” (9,30).
Há ditos que diferenciam com mais intensidade, por
exemplo: “Entre o povo de Moisés havia uma comunidade que
se deixava orientar pela verdade, agindo em conformidade com
ela na justiça” (7,159). “Eles não são todos iguais. Entre as
pessoas da escritura há uma comunidade que está correta. Em
determinadas horas da noite eles recitam os sinais de Deus,
prostrando-se por terra. Eles crêem em Deus e no úiltimo dia,
permitem o que é justo, proíbem o que é pernicioso e
competem nas coisas boas. Eles são contados entre os justos, e
não colherão ingratidão pelo bem que realizam. Deus tem
ciência
acerca dos tementes
a Deus”
(3,113s.).
Comparativamente, os cristãos ficam em situação melhor do que
os judeus: “Tu certamente acharás que aqueles que mais são
hostis aos crentes são os judeus e os politeístas [pagãos]. E
certamente acharás que aqueles que mais próximos estão dos
crentes no amor são aqueles que dizem: 'Nós somos cristãos'
[literalmente: nassara]. Isso é assim porque entre eles há
sacerdotes e monges e porque não são orgulhosos” (5,82).
Certamente é difícil conciliar essas expressões num
sistema coerente, pois foram formuladas em diversas ocasiões a
partir da experiência do momento. Mas talvez haja uma chance
140
exatamente nessa formulação livre e ainda não cristalizada.
Antes de tentarmos uma visão de conjunto, porém, percorramos
a Sura 5 em suas declarações sobre judeus e cristãos. Ela parece
justamente ser esclarecedora quanto a nosso tema.
Palavras de louvor e de maldição estão justapostas. Deus
aceitou o compromisso dos judeus e dos cristãos, mas eles o
esqueceram (5,12-14). Porém agora chegou a eles o enviado
(Maomé). Os cristãos, contudo persistiram em sua fé em Cristo,
demonstrando-se incrédulos, os judeus igualmente (5,15-19).
Estes últimos fazem guerra contra Deus e contra seu enviado
(5,32s). Eles sofrerão terríveis castigos. Judeus e cristãos
receberam a Torá e o Evangelho mas deles se desviam (5,43-47).
Também os crentes são criticados (5,3). Deus poderia ter
constituído toda a humanidade numa só comunidade, mas ele
queria prová-la. “Assim, continuai a aspirar pelas boas coisas”
(5,48). Essa frase em tom liberal quase recorda a parábola do
anel em Natã, o Sábio, de Lessing. Mesmo assim, vêm então
maldições selvagens. A maioria das pessoas da escritura são
criminosas. Deus transformou alguns em macacos e porcos
(5,59s.). Adverte-se contra a amizade com eles (5,51). Retornam
então palavras positivas (5,69), principalmente com referência
aos cristãos (5,82). Por fim, contudo, eles são vistos como
incrédulos, por causa de sua fé em Cristo (5,72). Toma-se a
defesa de Jesus e de Maria (5,110-118). Se as pessoas da
escritura são vistas como tutoradas, isso atinge sua posição na
sociedade islâmica (5,5).
Por questão de ordem, é preciso distinguir afirmações
teológicas de afirmações jurídicas. Em sua posição jurídica na
sociedade islâmica eles estão acima dos pagãos, mas
141
subordinados aos crentes. Teologicamente, são vistos como
descrentes. Sua religião está superada. Existe uma saída para a
citada concorrência?
Voltemos agora ao Novo Testamento! Como já
observamos, o judaísmo e o Antigo Testamento estão
significativamente presentes no Novo Testamento. A nova
comunidade nascente só poderá ser entendida como plena,
como tendo atingido sua finalidade, quando nela estiverem
reunidos pagãos e judeus. As prerrogativas de Israel são
valorizadas sob diversos aspectos, e de modo mais apaixonado
no apóstolo Paulo: “Eles são israelitas, a eles pertencem a
filiação, a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas,
a eles pertencem os patriarcas e deles provém Cristo segundo a
carne. Deus, que está acima de tudo, seja louvado para sempre.
Amém” (Rm 9,4s). Paulo está convencido disso, mantém-se
coerente, na convicção de que o evangelho primeiro deve ser
anunciado aos judeus, depois aos gregos (1,16). Os Atos dos
Apóstolos mantêm este princípio. Conforme sua apresentação, o
apóstolo inicia sua atividade missionária, nas cidades,
regularmente nas sinagogas, em Antioquia da Pisídia (13,14), em
Tessalônica (17,1s), em Corinto (18,4). Depois de chegar a Roma
como prisioneiro, procura em primeiro lugar um encontro com
os judeus (28,17). Jesus em sua atividade restringe-se ao
território judaico. Ao realizar uma excursão para além das
fronteiras judaicas, para o norte, rumo à região de Tiro, ao ser
interpelado por uma grega, uma siro-fenícia, que pede a cura de
sua filha, ele precisa ser forçado a realizá-la. Ele justifica-se com
as palavras: “Deixa que primeiro os filhos *= os judeus+ se
saciem. Não é justo tomar o pão dos filhos para lançá-lo aos
142
cachorrinhos [pagãos] (Mc 7,27 par.). Trata-se do mesmo
“primeiro” da ordem histórico-salvífica, como em Paulo.
Tomando mais um exemplo, do Evangelho de João, remetemos
ao discurso do bom pastor. O bom pastor reúne suas ovelhas em
redor de si. Mas ele tem ainda outras ovelhas, “que não são
deste aprisco”, que ele também deve reunir. Só então haverá
um rebanho e um só pastor (10,16). Também nesta imagem se
propõe a reunião de judeus e pagãos.
O fato de a maioria de Israel rejeitar o Evangelho
proporciona consideráveis problemas teológicos para a Igreja. O
plano de salvação — por ora — não vinga. Tenta-se trabalhar a
questão em retrospectiva escriturística. Percebe-se que já os
profetas viveram experiências semelhantes, reflete-se sobre as
antigas razões, entre as quais se torna importante a ideia do
endurecimento de Israel (Is 6,9s; Mc 4,12 par.; Jo 12,40). Paulo
argumenta a partir da liberdade de Deus (Rm 9,6-33).
Na luta por Israel ocorrem também ditos duros sobre os
judeus. Em Mateus 23 par. alguns estão reunidos num discurso
composto, com sete “ais” sobre os escribas e fariseus. Em João
8,44 eles são reprovados como “filhos do diabo”. Uma palavra
terrível encontra-se em 1 Tessalonicenses 2,15s: “Eles *os
judeus] mataram o Senhor Jesus e os profetas, e nos
perseguiram e não agradam a Deus, sendo inimigos de todas as
pessoas. E, para completar a medida de seus pecados, eles nos
impedem de pregar a salvação aos pagãos. Mas a ira de Deus já
os atingiu em toda a sua medida” .
Uma posição acerca da descrença de Israel que merece
nossa atenção ocorre em Romanos 11. Aqui Paulo apresenta
Israel como uma nobre oliveira, na qual Deus, condutor da
143
história, trabalha como um jardineiro. Ele cortou alguns ramos
nobres (os judeus), para enxertar ramos silvestres (os pagãos).
Os étnico-cristãos devem ter consciência disso, para não se
sobreporem aos judeus: “Se te vanglorias, deves saber que não
és tu que sustentas a raiz, mas é a raiz que te sustenta” (11,18).
Está com isso introduzida uma história na qual Israel — em
relação ao Evangelho — está endurecido, mas apenas por certo
espaço de tempo. Nesse espaço de tempo os povos serão
reconduzidos, mais exatamente: o pleroma, a plenitude, o
número completo — não é possível identificar o que se queira
com isso dizer exatamente. É o tempo dos pagãos. (Também
Lucas 21,24 fala dos tempos dos pagãos, em que os judeus serão
arrastados como prisioneiros para todas as nações e em que
Jerusalém será arrasada pelos pagãos). Então, porém, todo o
Israel será salvo, como está escrito: “De Sião surgirá um
salvador, que eliminará toda impiedade de Jacó. Esta é minha
aliança com eles, quando eu eliminar seus pecados” (Rm 11,2527).
A questão neste contexto é se para Israel há um caminho
especial de salvação. Que exista um caminho especial que não
passe por Jesus não está previsto no pensamento paulino. O
caminho especial consiste em que Israel chegue à salvação pelo
desvio que passa pela conversão dos pagãos, e que é o Cristo da
parusia que pronuncia a sentença de perdão. Como isso
acontece em detalhes não é explicado por Paulo. Paulo fala de
um mistério. Deus não esqueceu seu povo, sua oliveira. Sua
palavra dirigida a seu povo não pode ser superada. A visão que o
apóstolo abre para Israel em Romanos 11 pode e deve ser vista
como a última palavra do Novo Testamento em relação ao
144
problema de Israel.
Evidentemente, não se trata diretamente dos
muçulmanos na Bíblia. Mas por meio do Alcorão eles têm
conhecimento de Jesus. Mesmo que saibam pouco sobre Jesus,
há pontos de contato. Eles têm presente a mensagem moral de
Jesus, sobretudo o Sermão da Montanha do Evangelho de
Mateus. Teologicamente, pode-se com legitimidade, sem querer
açambarcá-los, aludir a Mateus 25,31-46, a conclusão do
discurso escatológico de Jesus em vista do julgamento do
mundo. O impressionante nesse discurso está em que se
pressupõe um serviço a Jesus e com isso, de algum modo, um
culto, que pode ser realizado tanto por não-cristãos como por
cristãos. É o serviço aos irmãos mais humildes (e irmãs), com os
quais Jesus se identifica. O bem que a eles se fez foi feito a Jesus.
É o que o Filho do Homem anunciará no juízo fmal. Essa é uma
ponte de compreensão a partir do fim, mas que pode e deve
incidir no tempo e na história. Isso não só em nível ideal, mas
também no agir prático.
INSTRUÇÃO ÉTICA: DECÁLOGO, GUERRA SANTA ETC.
Do grande complexo temático “instrução ética” tomamos
principalmente aqueles elementos para os quais há paralelos
visíveis na Bíblia e no Alcorão. Diferentes acentuações
novamente se tornarão claras. No centro da atenção estarão o
Decálogo, as “dez palavras”, os “dez mandamentos”, e a ideia da
guerra religiosamente motivada, para a qual se consagrou a
expressão “guerra santa”. Evidentemente a expressão “guerra
santa” não ocorre nem na Bíblia, nem no Alcorão. A ideia da
145
guerra religiosamente motivada, contudo, está presente e
merece nossa atenção.
O Alcorão está familiarizado com o Decálogo, sempre
voltando a reforçar os mandamentos isoladamente, apesar de
não ser apresentada em parte alguma uma tábua completa do
Decálogo. Mesmo que por vezes haja outra formulação ou a
ordem do modelo veterotestamentário não seja observada, a
concordância existe. Como exemplo apresentamos a Sura 17,2239. Aqui se encontra lado a lado: “Não coloques outro deus ao
lado de Deus [cf 1o mandamento] [...] E ser bondoso para com os
pais [4o mandamento] [...] E não cedais à luxúria [6o
mandamento] [...] E não mateis [5o mandamento+”. Ou então a
Sura 25,68-72: “Não invocar nenhum outro deus, não matar
ninguém [...] Não cometer adultério [...] Não dar falso
testemunho”. Aqui acrescenta-se o oitavo mandamento. “Temer
somente a mim” (2,40), que pode ser comparado com o segundo
mandamento, e a advertência a não tocar nos bens dos outros
(17,34; cf 23,8; 70,32), com o sétimo.
Encontram-se entremeados, em grande número,
esclarecimentos detalhados e fundamentações, por exemplo
quanto ao mandamento referente aos pais: quando estão
avançados em idade, não dizer “que feio” a eles (17,23);
enquanto na proibição de matar se reconhece o direito de vingar
o sangue (25,68; 17,33); quanto ao adultério masculino, as
escravas são excetuadas (23,5). Também são permitidas duas,
três ou quatro mulheres (4,3). Intercaladas estão também
prescrições próprias, sendo antes de mais nada reforçado o
compromisso com a oração e com a esmola. Papel importante
tem igualmente a caridade para com os pobres. Terá Maomé
146
conhecido também a introdução ao Decálogo em Êxodo
20/Deuteronômio 5: “Eu sou Javé... teu Deus”? A Sura 2,40
poderia tornar isso plausível: “Ó filhos de Israel, recordai a
minha graça com que vos agraciei e cumpri a vossa aliança
comigo, assim cumprirei minha aliança convosco”. Seguem
mandamentos a ser observados em relação a Deus. Deve-se
levar em conta também que se está falando aos filhos de Israel.
Fazer guerra em nome de Deus é uma ideia que não é
exclusiva do Alcorão. Poder, violência e guerra desde sempre
foram as possibilidades negativas das relações culturais entre os
povos. Num ambiente marcadamente religioso, era possível
contar com Deus como aliado e como ajudante.
No Antigo Testamento a guerra está muito presente em
textos instrutivos, mas bem mais nos livros históricos. Não raras
vezes os intérpretes tiveram atitudes controvertidas diante
desses textos. Houve a tendência a reprimir a guerra, por
motivos apologéticos, como se ela não existisse. Mas houve
também, especialmente em tempos de guerra, por motivos
“patrióticos”, a pretensão de apropriar-se dos textos em função
dos próprios interesses.
Era corrente a ideia de que as guerras do povo de Deus
eram as guerras de Deus. Segundo 1 Samuel 8,20, o rei conduz
as guerras do Senhor (cf Eclo 46,3). Os inimigos do povo são os
inimigos do Senhor (Jz 5,31). O Senhor combate por Israel (Js
10,14) e demonstra sua força na luta (Ex 15,3). Nas dificuldades
da guerra Asá clama em sua aflição: “Ó Senhor, somente tu
podes ajudar na luta entre um forte e um fraco. Ajuda-nos,
Senhor, nosso Deus! Pois em ti nós confiamos e em teu nome
nós saímos para o campo de batalha contra esta multidão” (2Cr
147
14,10). Deus orientou a mão de Davi na luta (2Sm 22,35). Sim,
conforme 2 Crônicas 32,8 o Senhor conduz as guerras de Israel.
Ele vai à frente de Davi para derrotar o exército dos filisteus (1Cr
14,15). Em 1 Crônicas 5,22 fala-se de uma guerra favorecida por
Deus. Há leis bélicas, discursos e preces antes da batalha (Dt
20,1-7; 2Cr 13,12; Nm 10,9). O povo deve santificar-se antes da
luta, a arca da aliança vai à sua frente (Js 3,511). Essa formulação
talvez seja a mais aproximada da ideia de guerra santa. É preciso
ver que a guerra, aqui e em outras passagens, está relacionada
com a tomada da terra, isto é, por meio dela cumpre-se a
promessa de Deus de que ele dará esta terra a seu povo. Deus
adquiriu para si o seu povo “por meio da guerra e com mão forte
e braço estendido, por meio de grandes obras que provocam
terror” (Dt 4,34).
Impressão especialmente macabra provocam as notícias
sobre a execução do extermínio de diversas cidades, por ocasião
da tomada da terra, por exemplo: “Quando os israelitas haviam
derrubado todos os habitantes de Hai no campo aberto, na
estepe, para onde os haviam perseguido, tendo eles todos, até o
último homem, caído a fio de espada, os israelitas se dirigiram
contra Hai, passando toda a população a fio de espada (Js 8,2429; cf 10,35-43). Mesmo que também este não seja um relato
histórico, devendo ser entendido apenas como uma “notícia de
vitória” elaborada com muita distância cronológica, torna-se
extremamente necessária uma dura e objetiva crítica teológica.
Bem outras tonalidades podem ser percebidas nos
escritos proféticos. Cansado do rumor de guerra, Isaías (2,25)
apresenta a perspectiva da peregrinação dos povos a Sião no fim
dos dias: “Transformarão suas espadas em arados, suas lanças
148
em podadeiras. Uma nação não erguerá mais a espada contra a
outra. Não se aprenderá mais a guerrear” (Mq 4,3). No tempo do
esperado soberano messiânico da tribo de Davi, haverá paz
duradoura (Is 9,6). Esta paz é descrita em cores utópicas: “Então
o lobo habitará com o cordeiro, a pantera se deitará com o
cabrito. Vaca, leão e ovelha pastarão juntos, um menino os
conduzirá...” (11,6-9).
No período intertestamentário a esperança messiânica
voltará a ser misturada com ideias bélicas. Na comunidade de
Qumran promovem-se os preparativos para a guerra
escatológica dos filhos da luz contra os filhos das trevas, da qual
nos informa o assim chamado Rolo da Guerra. Sob o comando
do “sumo sacerdote” que pronuncia a prece no momento da
guerra (1Q M 15,4s), o exército se ordena para a luta. A guerra
apresenta agora traços cultuais, o que no Antigo Testamento
ainda não ocorria. Ela é definida como guerra de destruição
(1,10). Seu desenvolvimento é descrito em cores fantásticas e
utópicas. Bélica é também a aparição do messias real no “Salmo
de Salomão 17”, surgido no século I a.C. (em círculos farisaicos?):
“Providencia, Senhor, faze surgir para eles o seu rei, o filho de
Davi, no tempo que desejaste, ó Deus, para que ele domine
sobre Israel teu servo. Cinge-o com tua força, para que esmague
os dominadores injustos, para que purifique Jerusalém dos
pagãos que lamentavelmente a pisoteiam, para que, na
sabedoria e na justiça, afaste o pecado da herança de Israel, para
que quebre o orgulho do pecador como vasos de barro, para que
destrua com barra de ferro todo seu ser *...+” (17.21-24).
No Novo Testamento, a rigor, a guerra é um tema que
não está presente. Em textos apocalípticos ela é esperada com
149
pavor (Ap 6,4; 13,7; 16,14; 19,19; 20,8; Mc 13,7s. par.). Mas a
paz é tema tratado. Em Efésios 2,14-18 Cristo é proclamado
“nossa paz”. Essa paz implica a paz com Deus, a quem temos
livre acesso “em Cristo”, e, com base nisso, a paz entre as
pessoas.
Se queremos saber algo concreto sobre as possibilidades
da paz, é preciso ater-nos ao Sermão da Montanha. Jesus
engajou-se de forma quase inimitável a favor da paz e da
concórdia entre os seres humanos. Ele proclamou bemaventurados os construtores da paz, prometendo a eles o Reino
de Deus (Mt 5,9). Na quinta e na sexta antítese ele exige a
renúncia à violência e o amor aos inimigos (5,38-48). Eles devem
superar a mentalidade de vingança: “Ouvistes o que foi dito:
olho por olho, dente por dente. Eu porém vos digo: não resistais
ao malfeitor, mas, a quem te bate na face direita, oferece-lhe
também a outra [...] Amai vossos inimigos e orai por aqueles que
vos perseguem, para que vos torneis filhos de vosso Pai que está
nos céus, e que faz nascer o seu sol sobre maus e bons e cair a
chuva sobre justos e injustos”. Oferecer a outra face não
significa que após a segunda bofetada se estaria autorizado a
revidar. Antes, Jesus quer evitar a espiral da violência que, pela
ação da contraviolência, acaba em catástrofe. Por mais utópicas
que possam parecer suas exigências — com razão foram
designadas como as mais radicais —, ele próprio orientou-se em
conformidade com elas. Conforme Mateus 26,52, por ocasião de
sua prisão no monte das Oliveiras, ele diz ao discípulo que reage
com a espada: “Mete a tua espada na bainha, pois todos os que
usam a espada, pela espada perecerão”. É preciso admitir,
contudo, ao recordar essas palavras em retrospectiva histórica,
150
que os cristãos raramente se ativeram a elas. Mesmo assim,
permanece válido este engajamento radical a favor da paz.
As orientações do Alcorão acerca da guerra são
ambivalentes. Isso tem a ver com o fato de Maomé ter estado
envolvido em situações muito cambiantes. Está claro que ele
dirigiu guerras. Um sistema que estivesse fechado em si não
permitiria desenvolvimento.
Citemos inicialmente alguns textos bélicos: “E lutai no
caminho de Deus contra aqueles que lutam contra vós, mas não
cometais transgressões. Deus não ama aqueles que cometem
transgressões. E matai-os, onde quer que os encontreis, e
expulsai-os, de onde eles vos expulsaram. Pois sedução é pior do
que matar. Contudo, não luteis contra eles junto à santa
mesquita, a não ser que eles lutem lá contra vós. Se eles lá
lutarem contra vós, então matai-os. Assim é a recompensa dos
incrédulos. Mas, se eles pararem. Deus é misericordioso e
disposto a perdoar. Lutai contra eles até que não haja mais
sedução e a religião pertença somente a Deus” (Sura 2,190-193).
Para melhor compreensão do texto, é necessário chamar
a atenção para um condicionamento cronológico. Ele se dirige
contra os mecanos (“junto à santa mesquita”), que, incrédulos,
rejeitaram a mensagem de Maomé e expulsaram seus
seguidores. Eles deveriam parar de seduzir, isto é, de provocar o
abandono da fé. A sedução é vista como algo pior do que matar.
O objetivo é a submissão a Deus, ou seja, à mensagem do
profeta.
Contra os mecanos ou contra árabes pagãos
provavelmente também se dirige a Sura 4,89: “Eles querem que
vós vos torneis incrédulos, para vos tornardes iguais a eles. Por
151
isso não tomeis a ninguém deles como vosso amigo, antes que
eles tenham entrado no caminho de Deus. E se eles se
desviarem, então tomai-os e matai-os, onde quer que os
encontreis”.
Isoladas do seu quadro histórico, essas instruções
ultrapassam seus próprios limites. O mesmo vale para 4,101: “Os
incrédulos são para vós um inimigo declarado”, ou “Tendo
acabado os meses santos, matai os pagãos, onde quer que os
encontreis, tomai-os, cercai-os e espreitai-os em toda parte.
Mas, se eles se converterem, se fizerem a oração e praticarem a
esmola, então deixai-os seguir seu caminho” (9,5; cf. 9,13; 8,65).
Repetidas vezes é recordado que cada um que na luta
estiver lutando “no caminho de Deus” pode esperar uma
enorme recompensa na outra vida (4,74; 3,157s; 3,195; 9,111;
22,58s). Especialmente concreto é 47,4-6. Deus é declarado
comandante de guerra, ao se dizer: “Não fostes vós que os
matastes, mas foi Deus que os matou” (8,17). Isso faz recordar a
ideia veterotestamentária do Deus guerreiro.
A partir de sua experiência Maomé tomou conhecimento
de que é impossível converter toda a humanidade ao islamismo.
Soa a resignação quando em 11,17 se diz: “Mas a maioria das
pessoas não crêem”. Pode-se dizer com Zirker que uma
expansão forçada e bélica do islamismo é vista como sem
sentido e impossível. “Não há obrigação na religião” (2,256).
Somente Deus é capaz de superar o endurecimento das pessoas
(cf 10,99; 88,21-24). Mesmo assim a luta é necessária. Mas ela
deve acontecer da “melhor forma possível” (16,125)
Disso não surge um quadro unívoco. Há tentativas de
intérpretes modernos do Alcorão de reinterpretar eticamente a
152
guerra “no caminho de Deus”. Ela neste caso é entendida como
luta contra Satanás, que consiste na ascese e na auto-superação.
Não se trataria, portanto, de “empreender a guerra em nome de
Deus”, mas de “esforçar-se no caminho de Deus”. Aqui também
se pode incluir a luta contra o subdesenvolvimento ou
genericamente o trabalho humano. Este poderia ser um
caminho que leva ao futuro. Este é, tem todos os casos, um
caminho melhor do que o da Sura 9,29: “Lutai contra aqueles
que não crêem em Deus nem no úiltimo dia, e que não proíbem
o que Deus e seu enviado proibiram, e que não pertencem à
verdadeira religião — daqueles que receberam a escritura — até
que paguem tributo como subjugados”.
O Alcorão, para nós na Europa ocidental, continua em
grande parte a ser um livro de sete selos. Para aqui aproximá-lo
um pouco mais da nossa mentalidade, quer-se na conclusão
deste capítulo indicar mais algumas singularidades que
determinam o livro sagrado do islamismo. Trata-se da dedicação
aos pobres, pedintes e àqueles que estão à margem da
sociedade. Poder-se-ia imaginar que as sentenças escolhidas que
a seguir serão apresentadas também estivessem na Bíblia. Será
necessário restringir-se a alguns exemplos:
“Piedade não consiste em que vós dirijais vosso rosto
para o oriente e para o ocidente. Piedade consiste em crer em
Deus, no último dia, nos anjos, na escritura e no profeta, que se
empregue o próprio dinheiro — por mais caro que ele nos seja
— em favor da liberdade do parente, do órfão, do pobre, do
viajante, do esmoleiro, para alforria de escravos, praticando a
oração e pagando o tributo da esmola, cumprindo os
compromissos assumidos, sendo paciente na necessidade, no
153
incômodo e em tempos de guerra” (2,177).
“Vós não alcançareis a piedade, enquanto não doardes
algo que prezais” (3,92).
“Não consumais a propriedade dos órfãos, como se fosse
vossa propriedade. Isso seria um grande pecado” (4,2).
“A ação má e a boa não são deveras a mesma coisa.
Evita-a [a ação má] com algo melhor e já aquele com o qual
havia inimizade te parecerá um verdadeiro amigo” (41,34).
“Quem se dedica totalmente a Deus sendo correto, este
tem seu prêmio junto ao Senhor” (2,112).
“Deus somente me basta” (9,129).
Difíceis de entender são presecrições tais como o
açoitamento (24,2.4), cortar as mãos (5,38), vingança de sangue
(2,178; cf 2,194). Maomé, contudo, aconselhava paciência
(16,126) ou compensação em dinheiro (2,178; 5,45). Poliginia
(poligamia) é permitida ao homem, “duas, três ou quatro
[mulheres]. Mas se temeis não poder tratar todas com
igualdade, então uma só” (4,3). Para Maomé vale uma
regulamentação especial muito ampla na Sura 33,50. Pode-se
bater em mulheres rebeldes (4,34).
A circuncisão ainda não é prevista no Alcorão. No Antigo
Testamento é sinal da aliança (Gn 17,9-14). Também o uso do
véu pelas mulheres ainda não é conhecido no Alcorão.
Fundamento para esta prescrição tornou-se o assim chamado
“versículo do véu” na Sura 33,53. Este fala de uma separação
entre espaços privados e oficiais por meio de uma cortina.
Literalmente: quando uma mulher visitante pede algo às
mulheres do profeta, ela “pede atrás de uma cortina”.
154
CONCLUSÃO
O presente estudo foi dedicado à comparação entre a
Bíblia e o Alcorão. O que pode ser resumido em termos de
resultado?
Desde o início estávamos conscientes de que o islamismo
surgiu num ambiente cultural diverso do ambiente
mediterrâneo, dotado de leis e costumes que continuaram a
influir naqueles que aderiram a ele. Algo semelhante vale para o
cristianismo nascente e o ambiente cultural greco-romano
circundante.
Havia comunidades judaicas na Arábia, principalmente na
região noroeste (Yatrib, Medina). Também deve ter havido
comunidades cristãs, mas não é mais possível assegurar em que
extensão e número.
Comparando a caminhada de Jesus de Nazaré com a de
Maomé, percebe-se que ela é de importância decisiva para os
fundadores de ambas as religiões. Jesus é rejeitado e crucificado.
Maomé, após a rejeição inicial, tornou-se um bem-sucedido
legislador, estadista e chefe militar.
Comparando a Bíblia e o Alcorão em sentido bastante
geral, chama a atenção a grande proximidade. O Alcorão contém
muito material veterotestamentário, embora se restrinja
consideravelmente aos cinco livros de Moisés. O Novo
Testamento está presente em primeira linha por meio de
tradições sinóticas. A Bíblia é interpretada de modo próprio.
Critério é a adaptação à pessoa, à missão e à mensagem de
Maomé. Ao lado disso, também a questão parenética tem seu
papel. O Alcorão de fato assumiu material bíblico, mas Maomé
155
defende o ponto de vista de que a Bíblia foi superada pelo
Alcorão, ficando com isso reduzida a um documento histórico. O
muçulmano não precisa preocupar-se com a Bíblia.
Na comparação entre a Bíblia e o Alcorão, perguntamos o
que os une e o que os separa. Apresentando agora, em
sequência, os aspectos que unem e que separam, estamos
conscientes de que esta divisão entre o que une e o que separa
se assemelha a uma tarefa de matemática, que somente se
entende perfeitamente após feito o cálculo até o final. Mesmo
assim apresentamos os resultados, de modo que as leitoras e os
leitores tomem consciência da complexidade do processo.
Simultaneamente deverão ser apresentadas as passagens de
proximidade.
Primeiramente, portanto, o que une:
1. Bíblia e Alcorão representam uma religião de revelação. Isso
significa que o conhecimento definitivo de Deus somente se
tornou possível pelo fato de Deus se revelar e se manifestar,
pelo fato de ter falado aos seres humanos;
2. Bíblia e Alcorão representam religiões monoteístas. Isso
significa que Deus é único. Rejeita-se o politeísmo, a proliferação
de deuses. Os ídolos dos pagãos são vistos como nada. O Alcorão
está visivelmente empenhado em aliar-se ao Deus da Bíblia. O
Deus do Alcorão é o Deus da Bíblia. Isso se torna claro
especialmente nas respectivas compreensões da narrativa da
aparição de Deus a Moisés na sarça ardente. Pode também
haver uma ligação etimológica entre o nome bíblico El e o nome
Alá do Alcorão;
3. Em continuidade com a Bíblia, o Alcorão vê o mundo como
criação de Deus. Deus criou o céu e a terra. Deus deve ser
156
louvado pela multiplicidade das boas obras de sua criação. É
possível identificar seus vestígios na criação. Deus é adorado por
causa de sua criação;
4. No Alcorão sempre se fala de Jesus com palavras respeitosas,
jamais de modo pejorativo. Dele se diz que era fortalecido pelo
Espírito Santo e que Deus o instruiu na escritura, na sabedoria,
na lei e no evangelho. Também a respeito de Maria, a mãe de
Jesus, repetidas vezes se fala com veneração. Ela gerou Jesus
virginalmente. Afirma-se a virgindade de Maria;
5. Bíblia e Alcorão representam religiões abraâmicas. Isso
significa que ambas se referem a Abraão. No Alcorão esse
aspecto aparece mais intensamente, uma vez que o Islamismo é
denominado religião de Abraão (Sura 22,78). Com essa estrita
orientação abraâmica o Alcorão aproxima-se mais ainda do
judaísmo, pois para a compreensão do judeu é de central
importância ser filho de Abraão. Abraão é modelo para o Alcorão
pelo fato de se ter convertido ao monoteísmo. Para o povo
judeu Abraão é o patriarca;
6. Em concordância com a Bíblia, o Alcorão ensina que toda a
humanidade tem sua origem comum na criação de Adão, ou
seja, do ser humano. Em Adão é possível reconhecer a situação
do ser humano. Ele é mortal. Foi feito da terra e à terra
retornou. Está dotado da capacidade de falar, podendo dar
nomes aos animais. Com isso, está no topo da criação. Pela
sedução tornou-se desobediente a Deus. Com isso é um ser
humano não livre da tentação. Ao assumir também a história de
Caim e Abel, o Alcorão também alude à solidariedade de toda a
humanidade no bem e no mal: “Se alguém mata uma pessoa *...+
é como se tivesse matado toda a humanidade *...+” (5,32);
157
7. Em concordância com a Bíblia do Novo Testamento, o Alcorão
espera pelo “dia” do juízo universal, com a ressurreição dos
mortos. O dia está próximo. Essa expectativa determina os
inícios tanto do cristianismo como do islamismo. No dia do juízo
os livros serão abertos. Somente Deus tem conhecimento da
hora. O último tempo, antes do fim, é uma época de escalada do
mal. Encontramos essas ideias também na apocalíptica judaica,
de modo que se deve contar com uma dependência dessas
fontes — mais do que com uma dependência do Novo
Testamento;
8. O Alcorão conhece o decálogo, interpretando-o, contudo, em
diversos pontos, a seu modo. Isso se aplica especialmente à
concepção de matrimônio e família. Observa-se aqui o efeito de
estruturas
pré-islâmicas.
Continua
viva
a
ideia
veterotestamentária da guerra em nome de Deus. Deve-se
ressaltar a dedicação da ética do Alcorão aos pobres, pedintes e
necessitados. A prática da esmola é o mais importante
mandamento;
Observando a lista dos elementos que unem Bíblia e
Alcorão, torna-se claro que o aspecto comum tem sua raiz no
Antigo Testamento. Jesus é um capítulo à parte. Mas as
concepções em seu conjunto também têm seu efeito sobre o
Novo Testamento, onde são reinterpretadas de modo particular.
Deve-se dar atenção a essa relação com o Antigo Testamento,
que vale tanto para o Novo Testamento como para o Alcorão, e
que então é interpretado em direções diversas. Ponto central
para a nova interpretação cristã do mundo e da história é a
revelação de Deus ocorrida em Cristo.
Com isso chegamos ao que separa Bíblia e Alcorão:
158
1. Ponto culminante da revelação de Deus, segundo a
compreensão cristã, é Jesus Cristo. Compreender e aceitar isso,
contudo, depende de uma compreensão de revelação que se
diferencia fundamentalmente da do Alcorão. Segundo o Alcorão,
Deus se revela no Livro. O islamismo é uma religião do Livro.
Maomé, em visões, viu o Livro celeste, o Alcorão primordial, no
qual as verdades divinas estão escritas de modo imutável. Essa
imutabilidade vale também para o Alcorão. Deus mesmo não sai
de sua transcendência. Para o cristianismo (e para a Bíblia) a
revelação de Deus acontece na história. Deus interessa-se pelos
seres humanos e por sua história. Em Jesus Cristo ele se torna
um de nós, assumindo o sofrimento e a morte do ser humano,
para vencer seu destino de morte por meio de sua ressurreição.
Denominou-se a compreensão de revelação do Alcorão como
enlibração (tornar-se livro), colocando-a em paralelo com a
encarnação (tornar-se pessoa humana de Deus em Cristo). Na
verdade, com isso estão indicados dois caminhos totalmente
diversos de Deus em direção à humanidade. O cristianismo não é
uma religião do Livro. Acrescenta-se ainda que o Alcorão tem
uma ideia errônea da fé trinitária cristã. Deus, Jesus e Maria
seriam as três divindades coexistentes. Isso, de fato, seria
politeísmo. O Espírito Santo provavelmente foi entendido como
um anjo. Para a fé cristã, a fé no Deus trino é expressão de sua
unicidade e de seu amor criador e redentor, com que Ele desce
do alto para junto da humanidade;
2. Conforme a fé cristã Jesus é mais do que um profeta, na linha
dos antigos profetas. Ele é o Filho, o “Primogênito” entre muitos
irmãos e irmãs, que nos quer conduzir e elevar a Deus como
filhos de Deus. O Alcorão ataca essa crença com palavras fortes,
159
julgando-a inclusive um pecado imperdoável. É preciso
acrescentar, contudo, que o Alcorão neste ponto não ataca Jesus
— Jesus não teria tido essa pretensão, mas inclusive a teria
rejeitado —, mas as “pessoas da escritura”, que crêem em Jesus
como Filho de Deus. Está claro que aqui está o ponto
fundamental da separação. Voltaremos a tratar desse ponto.
3. O Alcorão também não tem nenhuma compreensão para com
a ideia cristã de redenção. A pessoa redime-se de algum modo
por si mesma, observando os mandamentos de Deus. Neste caso
é preciso caracterizar o islamismo como religião da lei — em
contraposição à religião de redenção. Contudo, somente os
predestinados alcançarão o destino eterno. A eles Iblis, o
tentador, o diabo, nenhum mal pode fazer, mas somente aos
não-escolhidos, os condenados desde o início. Segundo a
compreensão cristã Deus também redime as pessoas por meio
de sua graça livre. Redentor é Jesus Cristo em sua morte de cruz
e em sua ressurreição dos mortos. Ambos estes aspectos são
rejeitados no Alcorão. Ele apenas os trata com brevidade. A cruz
seria um mal-entendido. A ressurreição de Jesus ocorreria como
a ressurreição dos mortos no último dia. Não ficou claro se
Maomé pensava num arrebatamento de Jesus mediante o qual
Deus o teria livrado das mãos de seus inimigos.
4. A referência comum a Abraão sofre diversas interpretações.
Para os judeus, Abraão é o patriarca; para os muçulmanos, o
fundador da religião da fé num Deus único; para os cristãos —
aqui especialmente para o apóstolo Paulo —, modelo de fé.
Segundo Paulo, Abraão creu, como o cristão, no Deus que
vivifica, que ressuscita os mortos (Rm 4). Em Abraão, contudo, os
caminhos também se separam. Para judeus e cristãos, a linha da
160
promessa segue a linha do filho de Sara, Isaac, para os
muçulmanos, a de Ismael, o filho da escrava Agar.
5. Na escatologia o Novo Testamento e o Alcorão se distinguem
quanto às suas expectativas. Ambos são influenciados pela
apocalíptica, mas os cristãos esperam a volta de Cristo, a
comunhão com Ele e a participação na vida divina. Os
muçulmanos almejam o paraíso. Mais importante é, porém, que
o Novo Testamento tem consciência da presença do definitivo,
da irrupção do reinado de Deus. Este quer já agora transformar a
humanidade.
6. O enraizamento no Decálogo liga a Bíblia e o Alcorão entre si.
No Novo Testamento o decálogo é interpretado no Sermão da
Montanha. Ponto alto dessa interpretação é o mandamento do
amor aos inimigos. Ele não tem paralelo no Alcorão. Outra
questão é em que medida os cristãos o levaram e o levam a
sério.
Qual é, portanto, a relação entre Bíblia e Alcorão? O que
podemos iniciar com os resultados? Pode-se ter em vista um
entendimento no andamento das negociações? Seria possível,
por exemplo, entender-se sobre o que une, ignorando o que
separa? Teologias pluralistas da religião por vezes pensam nesse
sentido. Assim procedendo, estaríamos cometendo injustiça a
ambas as religiões, ocasionando graves danos a elas. Sua força
está na sua propriedade. Só é possível compreender tanto a
Bíblia como o Alcorão — judaísmo e cristianismo aqui mais uma
vez separados — levando-os a sério como um todo, mantendo
as partes que os unem nos seus devidos contextos. Uma análise
isolada de textos levaria a resultados enganadores, com os quais
nos iludiríamos a nós mesmos.
161
A fé que se manifesta na Bíblia e no Alcorão é expressão
da vontade de crer de uma comunidade que vive essa fé, que a
preenche com vida, que com ela está a caminho, aqui a Igreja, lá
a Ummá, como se denomina a comunidade islâmica de fé. Por
essa razão, a aceitação de uma religião é sempre mais a adesão a
determinado sistema. Por isso é necessário que os esforços
científico-teológicos se restrinjam, reconhecendo seus limites.
A confissão de Jesus Cristo, que marca a Igreja cristã, é o
ponto de divergência, onde os caminhos se dividem. É a
confissão de Jesus, o Messias, o Filho de Deus. Reconhecê-lo
como Filho de Deus e nele crer corresponde plenamente à
revelação de Deus, da qual o Novo Testamento dá testemunho,
correspondendo também totalmente à autoridade da missão de
Jesus, que nos anunciou Deus como seu Pai e que a ele orava
dizendo “Abbá”. Maomé não estava disposto a assumir essa fé,
que ele chegou a conhecer. Em diálogo com muçulmanos não
deveríamos colocar este ponto em primeiro plano, mas observar
que o Alcorão tem Jesus em grande apreço como profeta,
venerando também sua mãe.
Acredito que haja dois aspectos na Bíblia e no Alcorão
apropriados para nos aproximar. Em primeiro lugar está a
referência a Abraão. Com a eleição de Abraão tem início a
“história da salvação”, a história de Deus com seu povo. Os
povos enveredaram por caminhos diversos. Mas Abraão é para
todos nós o pai da fé. Isaac e Ismael de fato tiveram mães
diversas, mas tiveram um pai comum. A referência a Abraão em
si também poderia ajudar a diminuir a oposição entre judaísmo
e islamismo.
O segundo aspecto consiste na fé no Deus criador, que
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traz consigo a consequência de que nós nos compreendemos
como criaturas desse Deus. Em muitos hinos de louvor, tanto na
Bíblia (salmos) como no Alcorão, celebra-se o criador. É um só
acorde que se eleva ao céu. A consciência de sermos criaturas
une-nos na responsabilidade pela criação.
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