Particípios em Português (Brasileiro): Verbais ou nominais? Ou um pouco de cada? Sergio Menuzzi, UFRGS/CNPq I Colóquio Brasileiro de Morfologia – PPGL/UFRGS Porto Alegre, 30-31 de Maio de 2011 1. Introdução # Particípios: "são melhor definidos como adjetivos verbais, i.é, palavras que se comportam como adjetivos com respeito à morfologia e à sintaxe externa, mas que são regularmente derivadas de verbos" (Haspelmath 1994, p.152). Notar: a definição cobre particípios passivos e adjetivais, mas não particípios passados; e, sem qualificação do que significa "regularmente derivadas", também não distingue quebrado/quebrável, admirado/admirável, etc. # A questão básica aqui: qual a relação entre as várias construções participiais? Especificamente: (1) a. b. c. d. Particípio Passado: Particípio Passivo: Particípio Adjetival: Partícipio Absoluto: João tinha aberto a porta A porta foi aberta (pelo João) A porta estava aberta (*pelo João) (Uma vez) Aberta a porta, todos poderão entrar. # A principal distinção, de acordo com a literatura gerativa: particípios passivos verbais x adjetivais. Algumas das diferenças (Wasow 1977, Levin & Rappaport 1986, Emonds 2006): (2) a. Compatibilidade com o agente da passiva ("by-phrase"), cf. (1b) x (1c) b. Em português: ser x estar, cf. (1b) x (1c) c. Comportamento relativo a sufixos derivacionais: un-/in- aplicam-se a adjetivos: O artigo foi alterado/*inalterado ontem (pela Maria). Os objetivos foram atingidos/*inatingidos (pela Maria). d. "Verbos de ligação" que selecionam APs como predicativos: A porta parece/permanece aberta. O artigo parece/permanece inalterado. Os objetivos parecem/permanecem inatingidos. # Aqui: sistematizar, numa primeira aproximação, as principais propriedades das construções participiais do português (brasileiro), tentando entender as relações entre elas e, especialmente, tentanto relacioná-las com a “categorização gramatical” – particípios são verbais ou nominais? # Duas qualificações: i) “português (brasileiro)”: inclui fatos tanto do português coloquial quanto de julgamentos relativos ao registro mais formal; ii) fica de fora uma construção importante: particípios como modificadores adnominais. 2. Particípios e "Graus de Nominalidade" # Hipóteses básicas subjacente às abordagens que se pode encontrar na literatura: i) Há uma relação "direcional" entre os particípios, isto é, uma das formas é "mais primitiva" (sincrônica ou diacronicamente), e as demais são "derivadas" (por extensão ou “sintatização”, por regras lexicais, 1 por derivação sintática, etc.). ii) Há nesta relação direcional alguma "gradiência" ou "escalaridade" na categorização morfossintática lexical dos particípios. # Haspelmath (1994): perspectiva diacrônica e tipológica i) onde há evidência, particípios "parecem originar de adjetivos relacionais (derivados) de nomes verbais"; quando se tornam particípios, "são interpretados como tendo orientação passiva" (p.168): (3) Indo-Europeu *-t(e)w-oExs.: adjetivo verbal em –téos do Grego Antigo; gerúndio em –tva do Índico Antigo; Derivado do nome verbal (infinitivo) em *-tu/tow/tew e o sufixo temático *-o-. ii) há uma escala da "nominalidade" de formas associadas a verbos (cf. Hopper & Thompson 1984, Givón 1979); diacronicamente, categorias da escala evoluem para categorias adjacentes em qualquer uma das direções (não é escala de "gramaticalização"): (4) Escala de "Nominalizações", cf. suas propriedades (adapt. da Tab. 2 de Haspelmath) +verbal <-------|-----------------|-------------------|------------------|----------------|------> +nominal verbos particípios relativos particípios orientados adjetivos verbais nomes de participantes mais flexional <------------------------------------------------------------------> mais derivacional mais relacional <------------------------------------------------------------------> mais absoluto menos orientação inerente <--------------------------------------------> mais orientação inerente menos estável temporalm. <--------------------------------------------> mais estável temporalm. Ex. na escala de “relacionalidade” (será importante): verbos são essencialmente relacionais, definidos por conjuntos de papéis temáticos; particípios relativos (construções participiais utilizadas para orações relativas) podem ser inespecíficos quanto ao argumento verbal relativizado, ou podem impor restrições aos argumentos relativizáveis (cf. Haspelmath 1994, Doron & Reintges 2011); particípios orientados – como o particípio passivo – necessariamente selecionam um tipo de argumento verbal específico para ser seu sujeito. # Teoria gerativa clássica das cats. lexicais, cf. Chomsky (1970, 1981), Stowell (1981), entre outros: i) principais categorias lexicais (isto é, classes do "vocabulário aberto" da língua) definidas a partir dos primitivos [±V], [±N] (cf. Chomsky (1981), possivelmente [±predicado], [±argumento]): (5) Nomes: Adjetivos: [+N, –V] [+N, +V] Verbos: [–N, +V] Preposições: [–N, –V] ii) Demais categorias definidas por novos traços ou neutralização, Quanto aos particípios, cf. resultados de Wasow (1977): part. passivo tem que possuir propriedades verbais e adjetivais; part. adjetivais são basicamente adjetivos. Na escala de "nominalização" definida pelos traços [±V, ±N]: (6) +verbal<-------|----------------|-------------------|------------------|----------------|-------> +nominal [–N, +V] [αN, +V] verbos particípios passivos [+N, +V] adjetivos (incl. part. adj.) [βV, +N] [–V, +N] ?? nomes iii) No caso dos particípios passivos, análise da relação traço categorial/propriedade gramatical: - especificação [+V]: responsável pelo caráter "predicativo" e, portanto, pelo caráter verbal e pela distribuição adjetival; 2 - ausência de especificação para [±N]: não é atribuidor de Caso (são atribuidores de Caso para elementos subscategorizados as categorias [–N] – isto é, verbos e preposições) # “Derivação” dos part. passivos verbais, cf. Chomsky (1981), Jaeggli (1986), Baker, Johnson & Roberts (1989); passivos adjetivais, cf. Wasow (1977), Bresnan (1982), Levin & Rappaport (1986): i) particípios passivos "derivados" de verbos pela afixação do sufixo -ed (-do), cuja principal alteração é a "supressão do papel-θ externo"; consequência da interação com a Generalização de Burzio ou com o caráter nominal do particípio: incapacidade de atribuir Caso acusativo. ii) particípios adjetivais "derivados" dos particípios passivos (principal argumento: particípios adjetivais são "irregulares" sempre que os passivos são); a principal alteração: a conversão categorial (em adjetivo); principal consequência: externalização do NP argumento direto do verbo (de onde a diferença entre particípios passivos e adjetivais com relação a NPs afetados pela regra). iii) análises recentes: elementos específicos da análise diferentes (por ex., -ed é visto como o núcleo de vo ou Voice, etc.), mas compatível em larga medida com a visão standard (ver Emonds 2006; mas Kratzer 2000 e Anagnostopoulou 2003 para visão mais refinada). iv) Notar: na visão standard, não há proposta para integrar os particípios passados ao quadro; mas é necessário: em inglês, particípios passivos são formas derivadas dos particípios passados (sobre o português, ver abaixo); tipologicamente, particípios passivos, quando especificados para tempo, são normalmente especificados para tempo passado (cf. Haspelmath 1994). # Algumas idéias importantes: i) para a abordagem tipológica, a distinção verbal/nominal é gradiente, e se reflete em diferentes parâmetros – morfológicos, sintáticos, semânticos; as relações de “derivação” (diacrônicas) entre diferentes construções não são unidirecionais. ii) para a abordagem gerativa, a distinção verbal/nominal também é gradiente; mas não parece claro como, por exemplo, uma categoria [+V] poderia ter algumas propriedades verbais e outras; iii) na análise gerativa da “derivação” dos particípios adjetivais a partir de particípios passivos, e destes a partir de verbos, há direcionalidade; além disso, há o pressuposto de que as propriedades da categoria “derivada” são herdadas, salvo aquelas afetadas pela regra. # No que segue: verificar propriedades dos particípios em português tendo em mente duas questões: i) possível relação de “direcionalidade na regra de formação” e ii) nominalidade/verbalidade. 3. Correlações Distribucionais e Direção Derivacional # Particípios Regulares e Irregulares: Poderia fornecer argumento análogo ao utilizado por Bresnan para direção particípio passivo>particípio adjetival. Mas, cf. Rodero (2010) (ver também refs. lá citadas), padrão de distribuição em português brasileiro corrente é incerto e não reproduz a generalização descrita na tradição gramatical – isto é, se o verbo é "abundante", deve ter o particípio passado (verbal) na forma regular e os particípios passivo e adjetival (nominais) na forma irregular. Estudo dos padrões fica para pesquisa futura... # Cf. introdução, há particípios adjetivais que possuem particípios passivos correspondentes (p.ex., aberta), e há particípios adjetivais que não possuem (p.ex., inalterado, inatingido). E há, ainda, particípios passivos que não possuem particípios adjetivos correspondentes, cf. (13). Portanto, nem particípios passivos são um subconjunto dos partícipios adjetivais, nem vice-versa. (7) a. O báu foi arrastado até a porta./*O baú estava/parecia/permaneceu arrastado até a porta. b. O carro foi comprado./ *O carro estava/parecia/permaneceu comprado. 3 # Particípios passivos possuem, em regra, o particípio passado correspondente (embora possam não ter a mesma forma, cf. suspenso/suspendido); há partícipios adjetivais que não possuem particípios passivos correspondentes e também não possuem particípios passados (cf. inalterado/inatingido); e há particípios adjetivais que possuem particípios passados correspondentes sem possuir os passivos. Portanto, particípios passivos são um subconjunto dos particípios passados (claro, estes são formas verbais, e os passivos também); mas os particípios adjetivais não – e podem estar associados a particípios passados/verbos sem a relação intermediário com um particípio passivo: (8) a. João está/*foi desaparecido. João tinha desaparecido. b. Nesta época do ano, todas as folhas já estão/*foram caídas. Todas as folhas já tinham caído. # Quanto à construção absoluta: i) IMPORTANTE: não recebe facilmente adjetivos; melhora com part. adjetivais. Portanto, para quem vê diferente de aceitabilidade entre (9a) e (9b): indica que pode haver relação entre particípios adjetivais e particípios absolutos, que são uma construção “mais verbal” (ver abaixo); NOTAR: a relação pode ser sem a “intermediação” do particípio passivo (já que inalterado/inatingido não possuem particípio correspondente)!! (9) a. ??/*(Se/Sendo) Justas as propostas, aceitaremos o acordo. ??/*(Uma vez/Ficando) Velhos os meus pais, terei de dedicar mais tempo a eles. b. ?(Se/Permanecendo) Inalteradas as propostas, não poderemos aceitar o acordo. ?(Se/Permanecendo) Inatingidas as metas, seremos obrigados a demitir o João. ii) como é sabido, part. passivos podem ser part. absolutos (cf. Perlmutter 1989, Belletti 1992): (10) a. (Uma vez tendo sido) Arrastado o báu, poderemos colocar a mesa no canto. b. (Uma vez tendo sido) Comprado o carro, Maria agora vai insistir para ganhar um apartamento. iii) alguns particípios absolutos devem ter origem em particípios passados (ou, em alguns casos, em particípios adjetivais, cf. (9b)), pois não há part. passivo correspondente (11a,b); neste caso, uso de auxiliares sugere que se trata do particípio passado (e não do particípio adjetival correspondente – por exemplo, “As folhas estavam caídas” para (11a)). Trata-se dos casos de part. absolutos com verbos inacusativos (cf. também Perlmutter 1989; ver abaixo). Além disso, há particípios absolutos que devem ser derivados de particípios passados, pois não há nem particípio passivo nem adjetival correspondente (11c,d). Em conjunção com a restrição sobre adjetivos (cf. (9)), a conclusão deve ser: particípios absolutos são um subconjunto dos particípios passados (isto é, portanto, de verbos). (11) a. ?(Uma vez) Caídas todas as folhas, poderemos podar o velho ipê. ??Estando caídas todas as folhas, poderemos podar o velho ipê. Tendo caído todas as folhas, poderemos podar o velho ipê. b. ?(Uma vez) Desaparecido o problema, por que se preocupar com ele? ??Estando desaparecido o problema, por que se preocupar com ele? Tendo desaparecido o problema, por que se preocupar com ele? c. (Uma vez) Chegada a autorização da matriz, faremos a entrega rapidamente. *Estando chegada a autorização, faremos a entrega rapidamente. Tendo chegado a autorização, faremos a entrega rapidamente. d. (Uma vez) Surgida a dúvida, será difícil convencer o Paulo de que a solução é viável. *Estando surgida a dúvida, será difícil convencer o Paulo de que a solução é viável. Tendo surgido a dúvida, será difícil convencer o Paulo de que a solução é viável. 4 sempre tem correspondente em # Resumo: Part. Passado Part. Passivo Part. Absoluto Part. Adjetival Part. Passado não não não Todo o Part. Passivo Part. Absoluto sim sim não sim não não Part. Adjetival não não ? - Em resumo, se há ordem de “derivação”, ela deve ser como em (12). Isto é, impondo restrições aos particípios passados (verbos), pode-se obter o conjunto de particípios absolutos, mas não vice-versa, etc.: (12) Particípio passado Part. Absoluto Part. Passivo Part. Adjetival Outras fontes 4. Propriedades Morfológicas e Morfossintáticas 4.1 Flexão: Verbal ou Nominal? # Todos os particípios são, flexionalmente, "não-verbais": não apresentam as flexões típicas dos verbos do português, isto é, de tempo-modo-aspecto e de número-pessoa. # Todos os particípios, exceto o particípio passado, mostram flexão nominal de gênero e número: (13) a. b. c. d. Particípio Passado: Particípio Passivo: Particípio Adjetival: Partícipio Absoluto: Os rapazes tinham aberto/*-os/*-a a porta. As portas foram abertas/*-o às 18h. As portas estavam abertas/*-o desde cedo. (Uma vez) Abertas/*-o as portas, todos poderão entrar. # O particípio passado não apresenta flexão nominal mesmo nos contextos onde outras línguas românicas apresentam – p. ex., com objetos diretos clíticos (exs. adaptados de Belletti 2001): (14) a. (Les chaises,) Je les ai repeintes. b. (Le sedie,) le ho ridipinte io. c. (As cadeiras,) Eu as tinha pintado/*-as novamente. 4.2 Sufixos de "Grau": Nominal? # "Nomes" – substantivos, adjetivos e advérbios (com estrutura morfológica de adjetivos) – podem receber o sufixo diminutivo -inho: (15) a. As tuas coleguinhas são difíceis. b. O João está velhinho, velhinho. c. A Maria anda rapidinho, rapidinho. # Dos vários particípios, o único que recebe facilmente -inho é o particípio adjetival: (16) a. Os rapazes tinham fechado/*fechadinho a porta. b. A porta foi fechada/*fechadinha (pelo Paulo). 5 c. A porta estava fechada/fechadinha. d. (Uma vez) Fechada/??Fechadinha esta porta, ninguém mais conseguirá entrar. # Distribuição do sufixo superlativo –íssimo (apenas com adjetivos e advérbios) parece a mesma. 4.3 Clíticos: Verbal? # Pronomes átonos, mesmo quando semanticamente associados a uma palavra nominal (adjetivo, substantivo ou advérbio), precisam ser "hospedados" por uma "palavra verbal": (17) a. A Maria sempre me-foi fiel. / *A Maria sempre foi me-fiel. b. João me-arrebentou o carro./ João arrebentou o meu carro./ *João arrebentou o me-carro. c. Não consegui jogar: O treinador deles me-pôs um zagueiro encima./ O treinador deles pôs um zagueiro encima de mim./* ... pôs um zagueiro me-encima. # Somente o particípio passado parece ser capaz de hospedar clíticos. (Uso hífen para indicar a cliticização fonológica. Notar, além disso, que o clítico é estranho com particípios adjetivais, ainda que hospedados pelo verbo de ligação. Há observação semelhante em Emonds 2006 no caso da construção de objeto duplo do inglês...) (18) a. A justiça (não) tinha (ainda) me-entregado/?entregue a guarda dos meus filhos. b. A guarda dos meus filhos me-foi entregue, temporariamente, pela justiça. (Mas: ??A guarda dos meus filhos foi me-entregue, temporariamente, pela justiça.) c. A guarda dos meus filhos não me-será novamente entregue pela justiça. *A guarda dos meus filhos não será novamente me-entregue pela justiça. c. ?(?)A guarda dos meus filhos me-está/estava entregue, temporariamente, pela justiça. Cf. A guarda dos meus filhos estava entregue a mim, temporariamente, pela justiça. d. ??Me-entregue/entregada a guarda de meus filhos, lutarei até o fim para mantê-la. Cf. (Uma vez) Entregue/entregada a mim a guarda de meus filhos, lutarei até o fim... 4.4 Resumo Part. Passado Part. Passivo Part. Absoluto Part. Adjetival Flexão +N +N +N Sufixos de "Grau" –N –N –N +N Clíticos –N +N +N +N 5. Propriedades Sintáticas e Sintático-Semânticas 5.1 Frames Sintáticos Básicos # Os únicos particípios que oferecem frames sintáticos que acomodam confortavelmente adjetivos são os particípios passivos e os particípios adjetivais; adjetivos são excluídos da posição dos particípios passados e, se não são excluídos, ficam muito desconfortáveis na construção absoluta: (19) a. b. c. d. João está/parece envelhecido/doente. João sempre foi/é elogiado/humilde. (Uma vez) Fechada/??Perigosa a travessia, ninguém mais cruzará a fronteira. João tinha deitado/*doente/*humilde. 6 Frames Nominais (admitem adjetivos) Part. Passado –N Part. Absoluto –N Part. Passivo +N Part. Adjetival +N 5.2 Caso # Somente o particípio passado mantém a atribuição de Caso acusativo – propriedade verbal. Particípios passivos e adjetivais não possuem capacidade própria de atribuir Caso. Importante observar que, em italiano, também particípios absolutos atribuem acusativo – isto é, a construção absoluta pode ser “mais verbal” do que é em português... (cf. Belletti 1992). # Por outro lado, qualquer particípio que entre na construção de particípio absoluto (portanto, particípios passados, passivos e, talvez, particípios adjetivos – mas não adjetivos “realmente adjetivos”), adquirem a capacidade de atribuir Caso nominativo. Esta pode ser considerada uma propriedade “verbal”, pois normalmente (isto é, salvo o contexto das construções participiais) depende das propriedades das flexões verbais. Acusativo Nom. (na constr. absol.) Part. Passado –N –N Part. Absoluto +N –N Part. Passivo +N –N Part. Adjetival +N ? 5.3 Modificação Adverbial # Sintaxe dos advérbios: Tanto verbos quanto adjetivos podem ser combinados com o advérbio intensificador muito; mas diferem quanto à ordem – muito antecede adjetivos e segue verbos, cf. (20). Todos os particípios, salvo pelo particípio passado, preferem a ordem adjetival, cf. (21). Mas é preciso observar que, no caso dos particípios absolutos, só parece possível o teste com aqueles que correspondem a um particípio passivo (e não parecem naturais); já os part. absolutos que correspondem a verbos inacusativos (chegado, surgido, desaparecido, caído) não admitem satisfatoriamente a modificação com muito... (20) a. João está muito triste com tudo isso./ * João está triste muito com tudo isso. b. João gosta muito de Maria./ ?? João muito gosta de Maria. (21) a. b. c. d. Particípio Passado: Particípio Passivo: Particípio Adjetival: Partícipio Absoluto: O governo tinha limitado muito a importação de tecnologia. A importação de tecnologia foi muito limitada pelo governo. A importação de tecnologia estava muito limitada ?(Sendo) Muito limitada a importação de tecnologia, não era possível fazer progressos científicos significativos. # Semântica dos advérbios: Há advérbios que, por modificarem semanticamente “processos”, são incompatíveis com adjetivos em construções estativas, como rapidamente em (22a); evidentemente, tais advérbios são compatíveis com verbos não-estativos, cf. (22b). Cf. (23): Particípios adjetivais (em construções estativas) são incompatíveis com tais advérbios, mas particípios passivos não, assim como os partícipios passados; com particípios absolutos correspondentes a part. passivos, parece OK (com inacusativos: de novo, difícil de fazer o teste...) (22) a. *João está/parece rapidamente triste/doente. João ficou rapidamente triste/doente. b. João adoeceu/entristeceu rapidamente. 7 (23) a. b. c. d. Particípio Passado: Particípio Passivo: Particípio Adjetival: Partícipio Absoluto: João tinha confirmado rapidamente o encontro. O encontro foi rapidamente confirmado (pelo João). O encontro está (*rapidamente) confirmado. ?(Se/Sendo) Rapidamente confirmado o encontro, tivemos tempo suficiente para fazer todos os arranjos. # Resumo: Sintaxe com muito Semântica com rapidamente Part. Passado –N –N Part. Absoluto +N –N Part. Passivo +N –N Part. Adjetival +N +N 5.4 Restrições sobre Argumento Promovido # Lembrar: quanto maior o grau de “relacionalidade”, mais verbal; quanto maiores as restrições sobre os argumentos, mais “nominal”. # É bem sabido que, no caso da passiva, a principal restrição quanto ao argumento promovido a sujeito é de que seja um objeto direto; portanto, não há passivas de verbos intransitivos (e, em regra, de transitivos indiretos, embora haja casos como João foi muito falado ontem na reunião...), sejam eles inacusativos (chegar, desaparecer, cair) ou inergativos (caminhar, nadar, telefonar). (24) a. João atravessou o parque rapidamente. / O parque foi rapidamente atravessado (pelo João). b. João chegou repentinamente no parque. / *O parque foi repentinamente chegado (pelo João). c. João caminhou rapidamente no parque. / *O parque foi rapidamente caminhado (pelo João). # Obviamente, particípios passados não mostram tal restrição e são regularmente formados com verbos intransitivos; o que a literatura não costuma observar é que também é possível encontrar particípios adjetivais formados com alguns verbos intransitivos: (25) a. João tinha atravessado o parque rapidamente. b. João tinha chegado repentinamente no parque. c. João tinha caminhado rapidamente no parque. (26) a. João tinha desaparecido./ João estava desaparecido. b. As folhas tinham caído no chão./ As folhas estavam caídas no chão. c. Os avôs do João tinham envelhecido./ Os avôs do João estavam envelhecidos.. # Entretanto, part. adjetivais só podem ser derivados de intrans. inacusativos, não de intrans. inergativos (isto é, só de intransitivos cujo argumento é um “argumento interno” ou “não agentivo”; possíveis exceções: Já estou jantado/almoçado) (cf. Gese, Maienborn & Stolterfoht 2008): (27) a. *O João/*O parque estava/parece/permanece (completamente) caminhado. (De O João caminha/caminhou no parque.) b. *O João/*A piscina estava/parece/permanece (completamente) nadada. (De O João nada/nadou na piscina.) c. *O João/*A Maria estava/parece/permanece sempre telefonado/telefonada. (De João sempre telefona/telefonava para Maria.) # Há uma restrição conhecida na literatura sobre “passivas adjetivais” – na verdade, é por causa dela que se assume que passivas adjetivais resultam de uma “regra lexical” de promoção de argumento, enquanto que a “passiva verbal” é uma “regra sintática” (cf. Wasow 1977, Levin & 8 Rappaport 1986, entre outros). Somente “passivas verbais” podem promover o argumento de um predicado subordinado; “passivas verbais” se limitam aos argumentos do próprio verbo: (28) a. A justiça declarou/considerou/julgou [que Maria era inocente]. A justiça declarou/considerou/julgou [Maria inocente]. Maria foi declarada/considerada/julgada [ ____ inocente] pela justiça. b. Maria *estava/*parece/??permanece declarada [ ____ inocente]. Maria *estava/*parece/*permanece considerada [ ____ inocente] Maria *estava/*parece/*permanece julgada [ ____ inocente]. # Particípios absolutos são como particípios passivos quanto aos argumentos de verbos transitivos que podem ser promovidos: qualquer objeto direto pode, inclusive os de predicados subordinados: (29) a. ?(Uma vez) Declarada inocente a Maria, poderemos comemorar a vitória da justiça. b. ?(Uma vez) Considerada inocente a Maria, poderemos comemorar a vitória da justiça. c. ?(Uma vez) Julgada inocente a Maria, poderemos comemorar a vitória da justiça. # Mas particípios absolutos são como os particípios adjetivais – e diferentes dos particípios passivos – em relação aos intransitivos: permitem a formação com verbos inacusativos, mas não com verbos inergativos (cf. Perlmutter 1989, Dini 1994): comparar (17) acima com: (30) a. *(Uma vez) Caminhado o João no parque, pediremos que ele atenda você. b. *(Uma vez) Nadado o João na piscina, temos certeza que ele se sentirá melhor. c. *(Uma vez) Telefonado o João para a Maria, temos certeza que ela se sentirá melhor. A observação é importante: de um lado, ajuda a entender a aceitabilidade parcial dos part. adjetivais na construção absoluta (cf. (9)), indicando “resquícios de verbalidade” neles; de outro, indica que particípios absolutos, embora “menos nominais” que os passivos, ainda assim são mais nominais que os particípios passados – confirmando o que o comportamento morfológico já indicava. # Resumo: Restrições sobre o (NP promovido a) Sujeito Sem restrições Apenas arg. não agentivos Apenas OD Apenas OD argumentais Part. Passado Part. Absoluto Part. Passivo Part. Adjetival + - + - + + - + + Admitindo que, quanto maior o número de restrições à estrutura de argumentos, “menos relacional” (portanto, menos verbal, segundo Haspelmath), temos, por este critério: (31) +relacional (+verbal) <-------------|----------------|-----------------------> –relacional (+nominal) part. passado part.absoluto part.passivo e adjetival 6. Conclusão # Voltando as concepções diacrônico/tipológicas vs. gerativas: i) para a abordagem tipológica, a distinção verbal/nominal é gradiente, e se reflete em diferentes parâmetros – morfológicos, sintáticos, semânticos; as relações de “derivação” (diacrônicas) entre diferentes construções não são unidirecionais. 9 ii) para a abordagem gerativa, a distinção verbal/nominal também é gradiente; mas não parece claro como, por exemplo, uma categoria [+V] poderia ter algumas propriedades verbais e outras; iii) na análise gerativa da “derivação” dos particípios adjetivais a partir de particípios passivos, e destes a partir de verbos, há direcionalidade; além disso, há o pressuposto de que as propriedades da categoria derivada são herdadas, salvo aquelas afetadas pela regra. # Qual parece melhor, numa primeira aproximação? A conclusão me parece clara: particípios podem ter diferentes graus de “verbalidade/nominalidade” conforme o parâmetro/propriedade (morfológica, sintática, semântica) que se considera. Certamente, difícil de conciliar com a concepção clássica da teoria gerativa... Referências Anagnostopoulou, E. (2003) Participles and Voice. In A. Alexiadou, M. Rathert e A. von Stechow, eds., Perfect Explorations, p.1-36.. Berlin: Mouton de Gruyter. Kratzer, A. (2000) Building Statives. In Berkeley Linguistic Society 26, p. [...] Baker, M., K. Johnson, I. Roberts 1989. Passive Arguments Raised, Linguistic Inquiry 20, pp. 219252 Belletti, A. (2001). Agreement Projections. In M. Baltin. & C. Collins, eds., The Handbook of Contemporary Syntactic Theory, p. 483-510. Londres: Blackwell. Belletti, A. (1992) Agreement and Case in Past Participial Clauses in Italian. In T. Stowell e E. Wehrli, eds., Syntax and the Lexicon, p.21-44 (Syntax and Semantics, vol.26). Academic Press: Nova Iorque. Bresnan, J. 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