A FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA E SUA IMPORTÂNCIA NO CONFLITO COSMOLÓGICO CRIACIONISTA E CIENTÍFICO Maria Eugênia Nery de Carvalho1 Aloisio Cansian Segundo2 RESUMO: Uma das oposições mais acaloradas e polêmicas do século XXI baseia-se no conflito entre as cosmologias criacionista e evolucionista, relacionadas ao início e continuidade da vida. Com o auxílio da filosofia, é possível traçar uma linha contínua entre Deus e o conceito de arché. Através do estudo das teorias naturalistas de filósofos como Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes e Heráclito assim como Parmênides, Zenão, Empédocles e os atomistas Anaxágoras e Demócrito, fica clara a diversidade de pensamento e crenças fundada na península helênica. Apesar da diversidade de opiniões, é perceptível a descrença no acaso. Partindo deste argumento, podemos traçar uma linha unindo teorias como o criacionismo e Design Inteligente, aprofundados no desenvolvimento do texto. Uma das maiores motivações para o estudo científico é o descobrimento de respostas, porém, nem mesmo a teoria da Seleção Natural proposta por Charles Darwin e a ciência são capazes de responder tudo, dando espaço para outras hipóteses. Nenhuma teoria sobre o surgimento da vida ou até mesmo a ciência pode ser considerada absoluta, pois assim como a filosofia, as conclusões baseiam-se nas opiniões da pessoa que sobre esse assunto reflete. Agregando o conhecimento da filosofia, da ciência e do criacionismo, é possível aproximar-se de uma maneira mais concisa em respostas e soluções. Palavras-chave: Filosofia; filósofos pré-socráticos; criacionismo; evolucionismo. 1 INTRODUÇÃO O grande fascínio da humanidade pelo conhecimento se deve à pluralidade do pensamento,pluralidade essa muito conhecida pelos filósofos pré-socráticos concebidos na Grécia Antiga. A sociedade grega e seu contexto político permitiram que a filosofia ali nascesse, protegida de padrões dogmáticos e favorecida pela liberdade política. Embora essencialmente diferentes, a filosofia e a ciência possuem pontos em comum. A razão é o argumento que carrega o pensamento filosófico, dando assim uma característica científica à filosofia. Porém, a filosofia abrange toda a realidade, se preocupando em estudar a enorme gama de conhecimentos e áreas do mundo externo. A ciência é fundamentalmente metódica e concisa, todavia focando em pequenas ou singulares áreas. Múltiplas áreas como a filosofia, a ciência e a religião buscam então, através de seus próprios meios, explicar as 1 Acadêmica do segundo ano do Ensino Médio pelo Colégio Adventista Boqueirão. e-mail: [email protected]. 2 Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba e acadêmico de Filosofia pela Universidade Federal do Paraná. e-mail: [email protected]. grandes questões do surgimento e da manutenção da vida que avançaram juntamente à humanidade pela história. 2 NASCIMENTO DA FILOSOFIA NA GRÉCIA Berço da filosofia, a Grécia era adepta ao politeísmo e portadora de uma enorme sensibilidade mitológica. Dispunha de deuses substancialmente mitológicos, mas possuidores de características humanas de fácil assimilação. O pensamento grego em suas vastas vertentes sempre realçou a individualidade e o antropocentrismo, facilitando então o nascimento de diferentes opiniões, críticas e crenças.Surge então da crítica ao pensamento mitológico grego as primeiras concepções do pensamento naturalista e dos filósofos idealizadores da arché3. 3 OS PRÉ-SOCRÁTICOS E A INVESTIGAÇÃO DAS CAUSAS PRIMEIRAS Tales de Mileto, inspirado pelo pensamento de Aristóteles, é considerado o primeiro filósofo a investigar as causas primeiras e inquietar-se com as questões da origem do mundo e das transformações da natureza. Interessado por diversas áreas do conhecimento, propôs suas teorias a respeito dos eventos e mutações do cosmos. O princípio natural e imutável ou arché - o término, fonte e origem de todas as coisas, para Tales,era a água. Inaugurava-se então a filosofia da physis4. Oriunda da própria observação da natureza, a teoria de Tales baseava-se no ciclo infinito da água. O fluxo da água e sua diversidade contribuíram para a aceitação da mesma como substância primordial. Derivados da teoria de Tales sobre o princípio único, Anaximandro e Anaxímenes divergiram em suas suposições sobre a arché. Presente como princípio na filosofia de Anaximandro estava o apéiron5. Fundamento baseado na imortalidade e eternidade assim como no equilíbrio de todas as coisas. Não há origem para oapeíron pois ele próprio é sua origem. Por não possuir origem, este não há limites. É impessoal e infinito. Se torna o início e fim de todas as coisas: a causa primeira. Voltando aos quatros elementos, a tese de Anaxímenes reconhece como archéo ar, atribuindo a ele características essencialmente divinas. Causadora dessa afirmação seria justamente a incrível capacidade de transformação 3 Princípio originário de todas as coisas. Substância e movimento de todas as coisas. 5 Em tradução corriqueira: “Sem limites ou fronteiras”. 4 dessa substância área. Todas as outras coisas se originariam dessa substância, sucessivamente. A mudança seria o princípio. Heráclito, conhecido por sua obscuridade, concordou em partes com as teorias e observações de seus antecessores filósofos. O segredo para ele estava justamente no dinamismo das coisas. A eterna mutação da natureza era simbolizada pelo fogo, precisamente por sua maestria em tornar-se uma infinidade de outras coisas. O fluxo se compreende extremamente importante para a manutenção da vida. Chamada de devir6, a mudança era justamente o trânsito dos opostos, podendo ser comparada com o movimentar-se de um rio. Adverso à teoria de Heráclito, Parmênides, filósofo proveniente da cidade de Eleia, considerava o ser como algo imutável. Sua divergência com Heráclito não se fundava apenas nesse quesito. Parmênides consolidou seu pensamento na frase: “O ser é, o não ser não é”7.Ao analisar o pensamento de Parmênides, nos deparamos com um novo ponto de vista, agora ontológico. Denominado de princípio da verdade, o ser é o contrário absoluto do não ser. Simplificando: tudo que podemos pensar ou dizer, é, ao mesmo tempo que o não ser, por não poder ser dito ou pensado se torna o nada absoluto. O ser é algo incorruptível e imutável, perfeito. Tem-se como verdade absoluta no pensamento de Parmênides a ideia do ser “não gerado” e uno, sendo todo o resto apenas meras designações vazias. O pensamento espesso e intricado de Parmênides foi revalidado por Zenão, fundador da dialética da refutação. Zenão utilizou-se da teoria de Parmênides e demonstrou por meio da dialética e de paradoxos, a invalidade do não-ser e da pluralidade. Empédocles, Anaxágoras e Demócrito - filósofos conhecidos como pluralistas, preocupavam-se não apenas em formular teorias e hipóteses sobre a arché, mas em explicar seu funcionamento. Empédocles foi o filósofo preocupado em superar paradoxos como de Zenão e explicar a “agregação” e “desagregação” das coisas bem como os quatro elementos originários: água, ar, terra e fogo. Anaxágoras herdou a teoria de Empédocles, a complementando com a agregação de uma inteligência cósmica (independente e responsável pela pluralidade das substâncias). Demócrito, um dos fundadores da escola atomista, foi responsável por congregar as teorias naturalistas antecessoras e introduzir o conceito de átomo (eterno, forma originária e indivisível). Fundindo o pensamento de Demócrito temos como definição principal o vazio e o movimento agindo como explicações válidas para toda a realidade. 6 Fluxo constante e lei geral do universo. PARMÊNIDES, apud ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da Filosofia: filosofia pagã e antiga. Volume 1. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007. p. 59. 7 Todos os filósofos naturalistas pré-socráticos possuíam um interesse comum: a vontade de descobrir a origem e o funcionamento da natureza e das coisas, pensamento que perpetuou e continua perseverando pela sociedade e atingiu diversas áreas do conhecimento, da ciência e da religião. 4 O ESTATUTO EPISTÊMICO DO PENSAMENTO NATURALISTA NA CIÊNCIA OCIDENTAL Muito se divaga sobre o real sentido do Universo, suas origens e fundamentos. Disse Xenófanes: “A verdade certa, homem nenhum conheceu, nem conhecerá”8. Todavia, o homem sempre indagou sobre a natureza e o sentido da vida, sendo através da observação e raciocínio como os pré-socráticos, da explicação prática da ciência ou por meio de um Ser superior como no criacionismo. Na busca por respostas, o homem sempre desempenhou o papel principal. Sempre existiu uma sensibilidade mitológica sendo contraposta pela razão na incessável busca por soluções, independentemente de seu período ou contexto histórico. E é justamente essa rivalidade que gera os extensos e complexos argumentos sobre a origem da vida, dos seres e da realidade como um todo. 5 A CIÊNCIA COMO EXPLICAÇÃO PRÁTICA DA NATUREZA Charles Darwin, com sua publicação de A Origem das Espécies (1859), causou alvoroço na comunidade científica da época. Com uma explicação racional e biológica da origem da vida, condensou os pensamentos sobre a teoria da evolução antecedentes apresentando um ancestral comum para todas as espécies. Em conjunto de Alfred Russel Wallace, elaborou a teoria da seleção natural, que atua como “selecionador” heterogêneo dos seres mais fortes e com melhores condiçõesde reprodução e perpetuação de suas espécies, favorecendo assim a continuidade da natureza. Controversa no seu tempo de lançamento, a teoria foi rejeitada por muitos biólogos e cientistas da época. Com o avanço da ciência e de suas descobertas, o evolucionismo e a seleção natural atualmente são vistos como hipóteses verossímeis para o princípio da vida. 8 XENÓFANESapud TARNAS, Richard. A epopeia do pensamento ocidental: para compreender as ideias que moldaram nossa visão de mundo. 8. ed. Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 2008. p. 39. Do lado outro, no entanto, a teoria do Design Inteligente9 mostra-se o oposto das hipótesesdarwinistas. Através da interferência de um ser inteligente e superior, a vida teve início. Com três argumentos primordiais essa teoria é fundada: a complexidade irredutível (dependência das espécies para sua eficiência na natureza); a complexidade específica (impossibilidade do acaso como gerador da existência); e o princípio antrópico (condições perfeitas para a vida). Ainda assim, o Design Inteligente não pode ser comparado em sua totalidade com o criacionismo pois não reporta como ser inteligente nenhum tipo de Deus. Mesmo assim, por mais que não haja correlação imediata, é certo que a base argumentativa é muito semelhante entre o Design Inteligente e o Criacionismo – não havendo razão alguma para atribuir alguma diferença de nível epistêmico entre ambos. 6 OS EXTREMOS DA CIÊNCIA E DO CRIACIONISMO Segundo Marilena Chauí, “o objeto científico é uma representação intelectual universal, necessária e verdadeira das coisas representadas e corresponde à própria realidade, porque esta é racional e inteligível em si mesma”10. A ciência é baseada em certezas. Diferente da mitologia e até mesmo da filosofia, o método científico garante a veracidade dos fatos. Por ser tão baseada na verdade, a ciência se depara com uma série de obstáculos epistemológicos11. Até mesmo o vasto campo das ciências não é capaz de abranger e resolver todos os dilemas do início e continuidade da vida, dando espaço assim para a filosofia, a mitologia e a religião. Contrário da teoria evolucionista, o Criacionismo é aceito na maior parte do planeta. Porém, assim como a ciência e a filosofia, não é único. Como objeto, será analisado o Cristianismo, uma das muitas vertentes da teoria criacionista. Todo o argumento do Cristianismo é baseado em seu instrumento principal, a Bíblia. Em seu primeiro livro,Gênesis, o texto bíblico narra a criação do homem através de Deus, assim como toda a vida na terra. Maior do que as teorias evolucionistas e criacionistas é o conflito entre elas. A ciência vê a religião, mais precisamente o criacionismo, como algo tolo e retrógado. Da mesma maneira, crentes do criacionismo e religiosos fundamentalistas enxergam a ciência ou os cientistas como hereges. Não é cabível,porém, a generalização. Existem muitos cientistas 9 Para efeitos de simplicidade, agruparemos todas as teorias cosmológicas teístas sob a denominação de “Design Inteligente”. 10 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Ática: São Paulo, 2000. p. 320. 11 Conceito criado por Gaston Bacherlard; dificuldades e barreiras enfrentadas no processo da aprendizagem. religiosos e criacionistas, assim como religiosos que utilizam a ciência como meio comprovante de sua fé. 7 A FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA COMO CONVERGENTE NA OPOSIÇÃO CRIACIONISTA E CIENTÍFICA Seria utópico tentar transformar fundamentalistas religiosos em crédulos da ciência, assim como introduzir Deus como criador para cientistas evolucionistas. Todavia, é possível mostrar que a ciência e a religião – o criacionismo, não são totalmente opostos. É possível traçar uma linha entre aarchée Deus. A filosofia pode agir como “ponte” entre os extremos criacionistas e científicos. Como seu princípio básico, a filosofia vê como conhecimento algo compreendido na individualidade. É claro, no ramo filosófico há inúmeras teorias e opiniões, mas temos aqui o argumento filosófico como exemplo. É contra os princípios filosóficos a crença por imposição. Um adolescente que possui pais religiosos e crê em Deus como criador, porém, não refletiu e chegou em sua opinião através de seus próprios argumentos não pode ser considerado alguém dono de sua própria verdade, do mesmo jeito que um cientista que não considera outras ciências além da sua como hipótese não é conhecedor da vasta natureza que nos rodeia. Através da própria história da Filosofia, nos deparamos com filósofos extremamente racionais, assim como filósofos religiosos. A grande questão, talvez a mais importante, não é o motivo de traçar uma linha entre dois extremos aparentemente tão distantes, mas sim a necessidade. O conhecimento nunca será alcançado em sua máxima se não for possível unir as informações conquistadas pela ciência e por outras áreas. Agregando o entendimento dessas duas áreas – a ciência e a religião, será possível fornecer melhores respostas para as contínuas questões do surgimento da vida, levantadas pelos primeiros filósofos naturalistas. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS A filosofia, além de ser uma das áreas mais abrangentes do conhecimento, funciona como base para o entendimento dos pensamentos mais simples aos mais complexos. Como meio apaziguador de um dos conflitos mais extensos e acalorados da humanidade - a ciência evolucionista contra o criacionismo, o argumento filosófico e suas teorias de séculos atrás ainda se mostram extremamente necessárias e úteis. A ciência, como produto típico do Ocidente, teve seu início justamente na capacidade (ou, ao menos, a tentativa) que o ser humano possuiria de explicar a realidade exterior nas suas mais diversas manifestações. Assim, o que deu o primeiro passo para a Filosofia, e consequentemente para a cultura geral e para a ciência do Ocidente, foi precisamente o interesse em investigar os fundamentos e as origens das coisas que existem. A partir da concepção daquilo que chamaram arché, os filósofos naturalistas pré-socráticos idealizaram possibilidades para explicar os princípios de surgimento do universo. Ao concebermos tal realidade que como algo ordenado, regido por leis de causas e efeitos, chegaremos perto do conceito de “cosmos” – o oposto do caos. Por haver ordenação causal dos eventos, é necessário conceber também e ao mesmo tempo um princípio ordenador, algo capaz justamente de prover a origem, o surgimento e a manutenção das coisas que existem; dando conta simultaneamente de explicar como é possível que tais coisas se transformem e para onde se encaminham no contexto da realidade ordenada. A primeira filosofia, no sentido formal do termo, foi metafísica, e constituiu por isso um grande divisor de águas entre a especulação e a ciência. Interessante notar que modernamente distingue-se também a “metafísica” da “ciência”, sendo a primeira considerada uma “explicação de segunda classe” para os fenômenos naturais, por não poder, em tese, ser posta à prova empírica. Tal distinção deriva fundamentalmente de um ideal cientificista e positivista do século XIX, quando o conceito de realidade exterior passou a abarcar questões muito mais complexas que aquelas que foram pensadas pelos primeiros filósofos gregos. No entanto, toda ciência, é, nesta acepção muito específica, metafísica – justamente por tentar investigar as relações causais entre os fenômenos que ocorrem na realidade. Fazer ciência, em qualquer seara, é fazer uma espécie de metafísica, ou, no mínimo, depender dela, uma vez que é precisamente tal explicação que dá fundamento ao sentido da investigação. Neste contexto, chega-se a uma concepção muito peculiar do criacionismo. Mais que uma concepção puramente religiosa, o criacionismo pode ser encarado como uma proposta metafísica para a compreensão da realidade exterior e de seus princípios ordenadores – caracterizada justamente pela regulação e pela lógica interna de seu argumento principal. O criacionismo não precisa ser visto necessariamente como uma tese teísta e cientificamente ilógica; mas, ao contrário, pode oferecer uma estrutura teórica muito semelhante à filosofia pré-socrática na explicação dos fenômenos da natureza e também do que os transcende (oferecendo, portanto, resposta a questões que a própria ciência não responde). É possível, portanto, compreender o criacionismo como uma alternativa cosmológica perfeitamente válida, íntegra, e dotada de lógica interna argumentativa –com o mesmo statusdas teorias filosóficas pré-socráticas:um limiar da ciência e da metafísica no contexto dos saberes humanos. 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