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Educação Unisinos
15(2):105-114, maio/agosto 2011
© 2011 by Unisinos - doi: 10.4013/edu.2011.152.02
Prometeu acorrentado: uma proposta
esquiliana de formação para
o homem clássico
Prometheus Bound: An aeschylean
formative proposal to the classic man
Paulo Rogério de Souza
[email protected]
José Joaquim Pereira Melo
[email protected]
Resumo: O artigo tem por objetivo propor uma reflexão sobre como se deu o processo educativo
do cidadão grego no período clássico, ampliando o conhecimento histórico-educativo e, a partir
disso, promovendo uma análise, para a Educação, na contemporaneidade. A reflexão está
orientada, inicialmente, pela discussão da tragédia grega, entendida como uma arte da cidade,
utilizada pelos setores dominantes da cidade-Estado como um instrumento de grande força
didática para formar e educar o homem-cidadão. Evidencia-se o papel fundamental do poeta
trágico nesse processo educativo, pela habilidade técnica em desenvolver sua arte, utilizando-se
do seu caráter didático e se analisa a força educativa da obra de Ésquilo, um dos poetas trágicos
do período Clássico, cuja obra serviu como instrumento formativo. Em especial, mostra-se como
o conflito social daquele contexto foi ilustrado na peça Prometeu acorrentado, e o modo com que
o poeta representou suas personagens de maneira a tornar o mito de Prometeu pano de fundo
para dar visibilidade ao processo de formação de um novo homem, que exigia uma sociedade
democrática.
Palavras-chave: transformação social, tragédia grega, Ésquilo, educação, homem-cidadão.
Abstract: The aim of this work is to present a discussion on how the educational process
evolved in the Classic context, broadening historical-educational knowledge. Based on that, we
also aim to promote an analysis on Education in contemporaneity. Initially, there is a discussion
on Greek tragedy (conceived as a city art) which was used by City-state dominant sectors as a
way to form and educate the Citizen-Man. Thus the role of the poet arises within this educational
process, given his technical ability to create his art as well as the use he makes of art’s didactic
aspect. Furthermore, we analyze the educational strength of Aeschylus, one of the poets of the
Classic era, whose works served as a formative instrument. In this sense, special attention is
given to the social conflict depicted in Prometheus Bound and the way the poet represented
his characters to make Prometheus’ myth the background to highlight a new Man formation
requiring a democratic society.
Key words: social transformation, Greek tragedy, Aeschylus, education, man-citizen.
Paulo Rogério de Souza e José Joaquim Pereira Melo
Introdução
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No campo da historiografia da
educação, o entendimento de fonte
histórica inclui toda e qualquer peça
que possibilite notícias e informações sobre o passado histórico-educativo. Assim, a seleção e/ou opção
por incorporar ou deixar disponível
esse ou aquele documento em uma
investigação educacional significa
conferir-lhe a condição de documento histórico-pedagógico.
No debate a respeito das diferentes
formas de se fazer Historia da Educação, a qual é dinamizada e até mesmo
fomentada por essa mesma gama de
fontes à disposição do pesquisador,
ocorre a tendência a classificar os
documentos segundo sua natureza.
Nesta perspectiva de procurar
fazer “História da Educação” nesse
trabalho, utilizaremos para tal a
peça trágica de Ésquilo, Prometeu
acorrentado, com a finalidade de
mostrar sua relevância no processo
formativo do homem-cidadão do
período Clássico grego, e desta
maneira fazer uma retomada desta
forma de educação propiciada pelo
gênero trágico, propondo ao leitor
uma reflexão da importância do seu
arcabouço histórico sobre a educação em diferentes contextos, para
que assim possa ampliar o seu entendimento da educação que ultrapasse
as esferas de um horizonte escolar
atual e institucionalizado.
Nesse viés, precisa-se deixar
claro que, segundo uma análise que
considere as bases materiais, qualquer mudança histórica na forma
de organização de uma sociedade é
geradora de conflitos – que precisam
ser superados, geralmente com o suporte de alguma forma de instrução
coletiva – para a manutenção da ordem social. Essa afirmação pode ser
fundamentada ao analisar o processo
de transformação caracterizado pela
transição do génos arcaico, que
pautava suas bases na consciência
mítica e na coletividade familiar
aristocrática, para a pólis regida pela
racionalidade e pela administração
política, ocorrido na sociedade grega
nos séculos VIII e VII a.C.
O processo formativo da
estrutura social na Grécia
Clássica
Nesse período de transição, a
sociedade grega passou por processos de transformações nos âmbitos
econômico, político, social. Essas
transformações foram geradoras de
novas formas de estruturas organizacionais que mudaram a maneira
com que o grego passou a conduzir
sua vida em comunidade.
As mudanças ocorridas nesse período, com a estruturação da cidade,
alteraram a forma de ser, de agir e de
pensar do homem. A forma de organização social que se articulou com
a pólis causou um desmembramento
das relações fundamentadas nos laços de sangue do génos. Começou a
degeneração da amálgama que mantivera a comunidade gentílica unida:
o grau de parentesco que havia dado
sustentação à antiga comunidade.
Assim fez-se necessária a formação de um “novo homem”, educandoo para organizar e administrar essa
“nova forma” de estrutura social, bem
como de instrumentos didáticos para
educá-lo. Nesse contexto, surgiu a
“tragédia clássica” tendo como “criador” o poeta Ésquilo, que se utilizou
desse expediente pedagógico para
auxiliar nesse processo de formação
do cidadão democrático.
Na “nova” realidade citadina da
pólis, o grego abandonou velhos
preceitos da religião gentílica. Os
ensinamentos e as imposições que,
segundo a tradição, eram observados
pela religião doméstica deixaram de
ser aplicados pelo homem da cidade
e perderam a função de guias da comunidade em contínuo crescimento
populacional e espacial.
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O poder monopolizador do chefe
patriarcal não conseguia mais manter os integrantes da comunidade sob
o seu domínio. E a antiga forma de
produção da vida que tinha seu alicerce na agricultura familiar já não
podia sustentar todas as exigências
da nova ordem social, o que fez com
que se buscassem outras relações de
troca de produtos com outras comunidades, em substituição às trocas
simples entre integrantes tribais.
Essa nova relação de troca deu base
ao surgimento do comércio e de
novos setores sociais.
A aristocracia gentílica remanescente da antiga ordem passou a
sofrer perseguições por parte dos
integrantes dos setores que se formaram com a expansão do comércio
e com o enriquecimento daqueles
que se empenharam em explorar
essa nova forma de relação social:
pelos comerciantes, pelos artesões,
pequenos proprietários de terra que
até então tinham sido oprimidos e explorados pela aristocracia composta
pelos grandes proprietários de terra.
As crescentes tensões entre esses
dois setores sociais – a aristocracia
familiar e os comerciantes enriquecidos – fizeram surgir um estado de
crise na sociedade, que já não tinha
condições de conservar e manter os
costumes e as tradições do antigo
sistema no quotidiano da realidade
da pólis. Essas tensões provocaram
na sociedade uma reação política
que levou ao surgimento da tirania, a
qual viria a influir na criação da pólis
clássica: “[...] a crise desembocou
num fenômeno que parece ter desempenhado um papel importante na
evolução das cidades gregas, embora
tenha sido relativamente circunscrito
no tempo e no espaço – a tirania”
(Mossé, 1993, p. 21).
A tirania aproveitou-se desse
processo conflituoso para tomar
o poder. Para isso fez uso de um
discurso que tinha como proposta
solucionar os problemas provocados
Prometeu acorrentado: uma proposta esquiliana de formação para o homem clássico
pelas crescentes desigualdades sociais. Desigualdades proporcionadas
pelo crescimento desordenado das
cidades e pelo empobrecimento da
aristocracia proprietária de terra
que acabara tendo suas colheitas
destruídas pelas guerras e suas propriedades tomadas por invasões ou
divididas pelos tiranos e distribuídas
aos mais pobres.
O regime tirânico tentou regular
o conflito vivido pelo grego nesse
período de transição. Os tiranos procuraram alternativas para resolver o
conflito social e elaboraram medidas
destinadas a solucionar os problemas
enfrentados por este homem. Estas medidas provocaram mudanças no cenário
helênico, tanto na estrutura social, que
terminou dividida em “classes”1, como
na estrutura política, que passou a ser
organizada pelos governos dos tiranos.
Os principais tiranos desse período foram Drácon (624 a.C.), Sólon
(638-558 a.C.), Pisístrato (605-527
a.C.) e Clístenes (565-490 a.C.).
Entre as medidas reformadoras por
eles adotadas, como mostra Michel Rostovtzeff (1983), estavam
as reformas sociais e econômicas.
Criaram para isso um sistema uniforme de pesos e medidas2 em toda
a Grécia, padronização que facilitou
a comercialização das mercadorias.
Outra medida adotada foi a abolição
da servidão e da escravatura motivadas
por dívidas, considerando-se inadmissível o adiantamento de dinheiro a um
proprietário mediante a garantia deste
de tornar-se escravo do seu credor caso
não pagasse a pendência.
Foi também alterado o sistema de
separação dos cidadãos, de modo que
as antigas divisões – aristocracia gen-
tílica, servos e escravos – perderam
espaço e a relevância política, abrindo
caminho para os novos setores da cidade – constituídos pelos comerciantes, artífices, pequenos proprietários
rurais, servos e escravos – e para as
novas instituições democráticas:
O poder das famílias aristocráticas
foi enfraquecendo em parte porque a
maioria delas foi banida e a sua terra
distribuída entre os cidadãos pobres
e, em parte, porque perderam totalmente a sua influência e começaram
a fenecer, preparando assim, o solo
para novas instituições democráticas
no futuro. Quando a Tirania caiu e foi
preciso reconstruir a vida pública,
esta não foi baseada numa aristocracia enfraquecida e desacreditada, mas
numa democracia forte e ciente da
sua força (Rostovtzeff, 1983, p. 107).
A criação dos tribunais para aplicação das leis elaboradas também foi
uma grande inovação, pois todos os
cidadãos podiam ser juízes ou magistrados. Todos podiam propor as
leis e discutir essas leis elaboradas
por seus concidadãos.
Com essas medidas reformadoras, a tirania pretendia anular o
poder da aristocracia, já que seu
poder era apoiado pelos setores mais
pobres, que recebiam benefícios dos
tiranos. E, a partir delas, mudou-se a
estrutura da cidade e esta começou
a tomar a forma do que viria ser a
pólis. É nesta esteira que o ideal
democrático se fortaleceu até que
seus adeptos tomaram o poder e o
comando da cidade, destituindo do
poder os próprios tiranos.
Para o homem do período Clássico, o poder político não podia estar
centrado nas mãos de nenhum gover-
nante – rei, basileu, tirano –, nem ser
concedido a ninguém que não ao cidadão da pólis. Era aos cidadãos que
cabia o poder de governarem “livres”
de submissão, fosse ao poder paterno
do génos, ou ao rei do período Arcaico, ou ainda ao tirano do período de
transição, procurando contribuir para
a estruturação desta cidade, buscando
o bem comum para todos.
O princípio democrático da pólis era
propiciar – pelo menos teoricamente – a
igualdade de condições nas quais todos
os cidadãos pudessem ser “iguais”3
perante a lei, tendo os mesmo direitos
de participar de todos os aspectos da
vida pública, “[...] independentemente
da fortuna ou da virtude” (Vernant,
2002, p. 103). A democracia foi a forma
de governar que o grego desenvolveu
e tomou para si como a maneira de
administração ideal para a condução da
pólis. Foi com a democracia que esse
homem da cidade, no período Clássico,
tirou do poder o governo único dos
tiranos e acreditou tomar para o povo
o poder de administrar a cidade-Estado
com os princípios democráticos de
“liberdade” e “igualdade”.
Com essas transformações, o homem do período Clássico teve que
organizar uma nova forma de viver na
sociedade. Teve de assumir a responsabilidade de criar as condições propícias
para regular sua existência e de manter
as relações sociais com seus iguais. E
foi pela democracia que o grego buscou
mediar essas relações na sua comunidade, e com ela tentou superar o conflito
pelo qual a sociedade estava passando
no processo de transição.
Todas as alterações na estrutura
social na Grécia acabaram ajudando
na formação de novas concepções de
1
Segundo Claude Mossé, Sólon dividiu os cidadãos em quatro “classes” censitárias. Às duas primeiras classes, as dos pentacossiomedimnos e dos
hippeis, estavam reservadas as magistraturas. Os zeugitas compreendiam os camponeses de condições média, capazes de se equiparem e de se
transformarem em hoplitas. A última classe, a dos tetes, englobava todos os outros atenienses, a massa dos camponeses pobres e a dos artesões
(Mossé, 1997, p. 15).
2
O sistema de pesos e medidas foi criado por Sólon no século VI a.C. para padronizar as relações do comércio em toda a Grécia.
3
Os cidadãos de pleno direito eram todos os homens adultos livres. As mulheres, as crianças e os escravos não eram considerados cidadãos. A cidade
era sua pátria, mas não faziam parte do domínio público.
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Paulo Rogério de Souza e José Joaquim Pereira Melo
mundo, de homem e de sociedade para
o grego. O ideário de homem-cidadão
que surgiu com a estruturação da pólis
exigiu uma mentalidade voltada para
a vida na cidade-Estado e uma organização política, em oposição à antiga
ordem centrada na vida campesina e
chefiada pelo poder paterno 4.
As mudanças na economia, no
cenário organizacional e na estrutura
administrativa da sociedade no período Clássico fizeram o grego refletir
sobre o seu papel neste contexto no
qual estava inserido. Consequentemente, este mesmo homem passou
a expressar-se pelas mais diversas
formas de pensamento para explicar
ou tentar entender o seu novo posicionamento social: pela política, pela
filosofia ou ainda pela literatura, que
ganhou outros contornos no século
V a.C, com ênfase em sua função
didática, que foi utilizada com mais
vigor, pelos governantes da pólis.
A função didática da
tragédia e a influência
educativa de Ésquilo
No século V a.C., a literatura
passou a ocupar lugar de destaque na
sociedade, com o apogeu do teatro
trágico e a importância atribuída às
obras desse gênero, que teve papel
social significativo na vida do povo
devido à influência exercida na formação do pensamento:
Sem sombra de dúvida, o desenvolvimento cultural e/ou educacional
passa pela poesia, pela tragédia, pela
comédia. [...] O poder de formação dos
homens por meio dessa arte só pode
ser dimensionado pela importância
dada ao teatro, pelo fato do poeta ser
conhecido como herdeiro das musas
que tinham como função [...] “presidir
ao pensamento sob todas as formas
possíveis” (Nagel, 2006, p. 80).
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4
A obra trágica foi usada para descrever o processo de transformação
ocorrido na Grécia Clássica. Desta
forma, o estudo da tragédia mostra
a literatura enquanto produção social, bem como a influência que ela
exerceu na formação do povo, com
destaque para a produção literária
de Atenas:
O segredo da surpreendente proeza
literária de Atenas está no lugar central que ocupa não só na educação,
como também na vida da comunidade adulta a qual considera que a
literatura exerce influência sobre a
sociedade e é algo com que a sociedade deve preocupar-se (Baldry,
1968, p. 60).
Por isso, a tragédia, enquanto
reflexo da vida do grego, representando o cotidiano dessa sociedade,
sua forma de administrar a cidade,
de conduzir a nova ordem social e
seus conflitos, foi utilizada como
um instrumento de formação de
uma nova mentalidade do povo,
servindo como instrumento didático
e educativo.
Apesar de ter surgido no século
VI a.C., ainda sob o governo da
tirania, a tragédia atingiu o apogeu
e a forma definida no século V a.C.,
sob o regime democrático de Atenas,
o que acabou por torná-la a expressão da democracia desse período:
“A tragédia é a criação de arte mais
característica da democracia ateniense, e em nenhuma outra forma
de arte se discernem, tão direta e tão
claramente como nela, os conflitos
internos de sua estrutura social”
(Hauser, 1990, p. 124).
Essa interferência no teatro, tanto por parte dos tiranos como dos
cidadãos simpatizantes do regime
da democracia, utilizando para isso
a influência religiosa presente neste
gênero, acabou por transformar a
O pai era o chefe da família gentílica e sacerdote da religião doméstica.
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tragédia num “drama político” na
mais estrita acepção do termo: “[...]
à semelhança do que haviam feitos
os tiranos, a democracia utilizou também largamente a religião com o fim
de atrair as massas ao novo Estado”
(Hauser, 1990, p. 128).
Por isso, o que se verifica é que
a tragédia, com sua dupla ambientação – política e religiosa –, não era
uma forma de representação artística
com a função exclusiva de entreter
e divertir. Ela foi, antes de tudo,
um artifício usado, inicialmente,
por um governante – Pisístrato – ou
posteriormente por um grupo – os
magistrados e legisladores da pólis
– para auxiliar na organização e na
administração da comunidade:
A relação que existe entre a política
e a religiosidade no funcionamento
da instituição teatral obriga-nos a não
considerar esse espetáculo como um
divertimento, e sim como um dos
meios que um grupo humano criou
para expressar a si mesmo frente aos
outros. Assim como as instituições
políticas, esta é a forma como o grupo
tentou, num dado momento, traduzir
em práticas, em fatos, a noção que
tinha sobre o poder no interior do
próprio grupo (Vernant, 2002, p. 361).
Por representar a sua sociedade, e
por vezes também apresentar como
essa sociedade deveria ser para sua
manutenção e como deveria agir
para sua continuação, é que o teatro
revela o caráter didático que a tragédia passou a adquirir no período
Clássico.
Se a tragédia era “um gênero
didático” com “uma grande força
educativa”, o poeta grego era “um
educador do seu povo” (Bonnard,
1980), mesmo porque já é sabido que
os gregos educavam e alfabetizavam
suas crianças usando para tal fim
os versos cantados por seus poetas,
tendo como principais os versos
Prometeu acorrentado: uma proposta esquiliana de formação para o homem clássico
homéricos da Ilíada e da Odisseia.
Isso acabou por conceber ao poeta
Homero o título de educador do
povo grego na sua manifestação
mais clássica:
[...] A concepção do poeta como educador do seu povo – no sentido mais
amplo e profundo da palavra – foi familiar aos gregos desde a sua origem
e manteve sempre a sua importância.
Homero foi apenas o exemplo mais
notável desta concepção geral e, por
assim dizer, a sua manifestação clássica (Jaeger, 1979, p. 56).
No século V a.C., o poeta trágico
tinha uma característica específica
que o distinguia como educador.
Ele não era um alfabetizador, e
seus textos não eram decorados
pelas crianças para serem recitados
como instrumento pedagógico. O
poeta trágico era um educador de
homens: “[...] ele educa os homens
do seu tempo pela exigência de complexidade da vida, pelas situações
contraditórias enfrentadas” (Nagel,
2006, p. 96).
A função do poeta trágico passou
a ser de interpretar os mitos, não de
acordo com a uma visão simplesmente religiosa, mas de maneira
a encontrar neles características e
virtudes humanas que aproximassem esses mitos aos homens das
cidades, educando os cidadãos da
pólis de maneira a tornarem-se
homens melhores que servissem ao
interesse desta forma de organização:
Estes mitos, e outros, muito anteriores ao nascimento da tragédia, é
dever do poeta interpretá-los e fazêlo em termos de moral humana. Esta
é a função social do poeta quando
fala, nas Dionísias, ao seu povo de
Atenas. Aristófanes, à sua maneira,
confirma-o pela voz de dois grandes
poetas trágicos, Eurípides e Ésquilo,
a quem põe em cena, e que, adversários na sua comédia, se entendem
pelo menos na definição do poeta
trágico e no objetivo que ele se deve
propor. “Em que deve ser admirado
um poeta?... No fato de tornarmos
melhores os homens nas cidades”. (E
a palavra “melhores” significa mais
fortes, mais adaptados ao combate da
vida) (Bonnard, 1980, p. 160).
Mas a obra do poeta grego
não estava voltada para educar e
formar qualquer homem. A sua
poesia tinha um direcionamento
e o seu público era constituído
pelos cidadãos da pólis, ou seja,
“os homens livres”, que, segundo
Bonnard (1980), eram os espectadores desses espetáculos.
O poeta trágico passou a ter
influência na formação da comunidade devido à sua habilidade de
trabalhar as palavras. Apesar de ser
considerada de ordem mística, sua
arte era algo sistematizado e organizado. O que para os antigos poetas
fora algo de subjetivo, inconsciente
e de inspiração divina das “Musas”,
adquiriu com a tragédia um caráter
didaticamente racional:
[...] o poeta não mais se põe como
testemunho do insólito ou do aparente extraordinário; ele passa a verbalizar a nova forma de homem e de
sociedade que, no caso, desenvolvese na Beócia sob o signo da racionalidade. O conhecedor do dom
das Musas passa a ensinar coisas
úteis para as gentes, passa a aconselhar os homens para que se tornem
melhores, fornecendo-lhes as primeiras reflexões sobre a natureza
humana (Nagel, 2006, p. 49).
A habilidade técnica foi fundamental para o poeta executar o seu
trabalho. O domínio da linguagem e
da escrita era essencial para influenciar o espectador e para possibilitar
que o poeta atingisse o seu objetivo,
fosse ele artístico ou político: “Aquilo
que para os antigos era uma fórmula
mágica converte-se em habilidade
técnica quando as artes da linguagem
volume 15, número 2, maio • agosto 2011
se profissionalizam e se racionalizam,
em finais do século VI e início do
século V” (Segal, 1994, p. 186).
Esse domínio técnico que o poeta
tinha sobre a arte trágica foi o que
possibilitou a ele sedimentar sua
importância no processo de organização da sociedade democrática no
período Clássico como um educador.
[...] o poeta, nesse momento, consolida-se e consolida sua missão
didática, civilizadora, posto que uma
global aprendizagem, induzida pela
tragédia, expressa e direciona uma
nova prática interessada na melhor
realização das possibilidades de vida
coletiva (Nagel, 2006, p. 88).
Com sua habilidade de convencimento e de atrair a simpatia do
espectador, o poeta passou a ser
um guia da sociedade. Por inúmeras
vezes, os vencedores dos concursos
trágicos realizados nas Dionisíacas
urbanas acabavam tendo tanto
influência na sua comunidade que
eram eleitos ou escolhidos pelos
cidadãos para ocupar cargos de destaque e de poder na administração
da cidade-Estado.
Dos três grandes poetas trágicos – Ésquilo, Sófocles e Eurípides
–, Ésquilo é o mais antigo e o que
vivenciou o período de transição
conflituoso supracitado, da queda
da tirania e ascensão da democracia:
Quando veio ao mundo (Ésquilo),
ainda não haviam desaparecido para
Atenas os graves abalos causados
pela dissolução e transformação do
antigo Estado aristocrático. Já chegavam ao fim seus anos de adolescência
quando, em 510, se encerrou a época
da tirania, época que, apesar dos
longos anos de calma e florescimento
da cidade, não logrou proporcionar
a solução definitiva dos conflitos
(Lesky, 1996, p. 94).
Ésquilo nasceu na cidade de
Eleusis, em 525 a.C., mas passou
praticamente toda vida na cidade de
109
Paulo Rogério de Souza e José Joaquim Pereira Melo
Atenas. Era filho do nobre proprietário de terras Eufórion, portanto
pertencia à aristocracia gentílica que
tivera a influência social reduzida
com a tomada do poder pela tirania.
Na juventude, combateu nas batalhas
de Maratona e Salamina contra os
invasores persas que procuravam
invadir sua pátria e alcançou a vitória em ambas as batalhas. Na fase
adulta, tornou-se poeta trágico e
escreveu aproximadamente 90 peças e em muitas delas logrou êxito,
vencendo os concursos trágicos nas
festividades dionisíacas urbanas5:
aproximadamente doze vezes. Morreu em 456 a.C. na Sicília.
O poeta eleusiano foi o primeiro a transpor a narração lírica do
ditirambo (primeira manifestação
trágica) para uma representação
encenada. Coube também a Ésquilo
a introdução de um ator, no que até
então era apenas uma narrativa coral,
o que possibilitou o diálogo e consequentemente a dramatização dos
fatos narrados nas peças. Por essas
transformações ele é considerado o
pai da tragédia em sua forma definitiva, com a qual ficou imortalizada
no período Clássico: “[...] a tragédia chegou à completude quando
coincidiram o gênio de Ésquilo e
a grande época de Atenas” (Lesky,
1996, p. 96).
No entanto, Ésquilo não manteve
o seu trabalho artístico apenas no
âmbito da arte. Apesar da qualidade estética e da “evolução” de sua
poesia, nela está presente também o
espírito do homem grego do período
Clássico. O mito grego foi retomado
e recriado por ele para descrever a
sua sociedade e, também, para instruir e educar esse homem diante das
novas relações sociais. Os conflitos
dos heróis e dos deuses em suas peças não representam só um conflito
religioso, mas são representação do
conflito do homem da cidade diante
das transformações na sua forma de
comportamento social e moral:
Infelizmente não temos qualquer
ideia precisa das mais antigas formas
da tragédia, e portanto só podemos
ajuizar das formas superiores das sua
evolução. Na forma acabada que lhe
vemos em Ésquilo, aparece como o
renascimento do mito na nova concepção do mundo e do homem ático
a partir de Sólon, cujos problemas
morais e religiosos atingem em Ésquilo o seu mais alto grau de desenvolvimento (Jaeger, 1979, p. 271).
O mito nas obras desse poeta
não está num plano metafísico, mas
é narrado de forma atual para o
período Clássico. Suas personagens
mitológicas são atraídas para a realidade da pólis, e as ações, funções
e obrigações deles perdem o caráter
puramente religioso e assumem uma
postura política e social. Os deuses e
heróis, antes seres ideais e autores de
atos invejados pelos seres humanos,
em Ésquilo passam pelas mesmas dificuldades e temores que os homens
da cidade-Estado.
Pode-se verificar isso nas personagens da peça Prometeu acorrentado, na qual Ésquilo procurou mostrar
toda a força educativa da tragédia ao
apresentar a relação do homem grego com a sociedade no momento de
transição da cidade governada pelos
tiranos para uma pólis democrática.
A força educativa do
mito de Prometeu na
formação do homemcidadão da pólis
Apesar de quase todas as personagens esquilianas da tragédia Prometeu acorrentado fazerem parte do
mundo mítico, ou seja, serem deuses
ou semideuses, pode-se verificar
que o foco principal da discussão do
autor era o homem, mesmo havendo
uma única personagem humana na
peça: a jovem Io.
Ao descrever a trajetória da condenação de Prometeu, a preocupação
do poeta foi enfatizar a desobediência
do condenado à autoridade até então
inquestionável do deus supremo do
Olimpo: Zeus. Roubando o fogo que
pertencia a Zeus, Prometeu rompeu a
hierarquia que até então regia a ordem
do universo “divino”, provocando,
assim a ira dos outros deuses por fragilizar um direito até então considerado exclusivamente divino: “Deus descuidoso
do rancor dos outros deuses,/ quisestes
transgredir um direito sagrado/ dando
aos mortais as prerrogativas divinas”
(Ésquilo, 1993, p. 16, Prometeu acorrentado, vv. 44-46).
O crime do titã fora prontamente
respondido com castigo e condenação, pois o seu ato rompera com toda
uma estrutura organizacional que até
então estivera sustentada no comando do soberano do Olimpo e que
estava em risco de sucumbir devido
à rebeldia de Prometeu: “É hora de
pagar aos deuses por seu crime/ e de
aprender a resignar-se humildemente/
ao mando soberano de Zeus poderoso” (Ésquilo, 1993, p. 15, Prometeu
acorrentado, vv. 11-13).
Em sua defesa, Prometeu procurou destacar inicialmente o sentimento de pena pela fragilidade
do homem diante da “ignorância”
da natureza humana: “Em seus
primórdios tinham olhos mas não
viam,/ tinham os seus ouvidos mas
não escutavam [...]” (Ésquilo, 1993,
p. 35, Prometeu acorrentado, vv.
576-577). Originalmente, segundo
a mitologia, o ser humano era totalmente desprovido de qualquer
110
5
Festividades em honra ao deus Dioniso onde se realizavam os concursos trágicos, nos quais cada poeta concorria apresentando três peças cada
um, e no final um vencedor era escolhido.
Educação Unisinos
Prometeu acorrentado: uma proposta esquiliana de formação para o homem clássico
racionalidade. A humanidade era
formada por seres que viviam num
mundo letárgico e confuso, e se
aglomeravam em bandos sem nenhuma ordenação ou estruturação
organizacional:
PROMETEU
[...] e como imagens dessas que vemos em sonhos
viviam ao acaso em plena confusão.
Eles desconheciam as casas bemfeitas
com tijolos endurecidos pelo sol,
e não tinham noção do uso da madeira
(Ésquilo, 1993, p. 35, Prometeu acorrentado, vv. 578-582).
Segundo a narrativa de Prometeu,
antes do seu ato, os “sofridos mortais”
eram igualados a seres irracionais que
viviam distante da luz, pois esses:
“[...] como formigas ágeis levavam a
vida/ no fundo de cavernas onde a luz
do sol/ jamais chegava [...]” (Ésquilo,
1993, p. 35, Prometeu acorrentado,
vv. 583-585). A falta de razão era tão
danosa para os seres humanos que
esses nem ao menos conseguiam
distinguir as diferentes estações
do ano para que pudessem dela se
proteger como no frio inverno. Nem
faziam diferença para esses mortais
sem razão as belezas da natureza na
primavera ou a sua força produtiva,
que poderia proporcionar melhorias
na alimentação e na forma de viver.
“[...] não faziam distinção/ entre o
inverno fértil; não usavam a razão/
em circunstância alguma” (Ésquilo,
1993, p. 35, Prometeu acorrentado,
vv. 585-587).
Considerados como seres fragilizados pela sua essência primitiva
que gerava uma total falta de cultura
e ciência para viver e se proteger, os
efêmeros mortais despertaram a comoção e a audácia do titã, que então teve
a ideia de roubar o fogo dos deuses do
Olimpo – fonte do conhecimento – para
dá-lo aos homens e, consequentemente,
salvar a raça humana de quem se tornou
“benfeitor”: “Ele roubou teu privilégio,
o fogo rubro/ de onde nasceram todas
as artes humanas,/ para presenteá-lo
aos mortais indefesos” (Ésquilo, 1993,
p. 15, Prometeu acorrentado, vv. 8-10).
No mito prometeico narrado por
Ésquilo, o fogo carregava o sentido
de ciência, de engenhosidade, de
sabedoria, de cultura. O fogo era o
que tinha o poder de iluminar o que
antes estava nas trevas e não se podia
enxergar, ajudando a eliminar o medo
do desconhecido. E só pela posse e
uso desse fogo que a humanidade
teve revelado o dom das artes: “Para
ser breve, digo-vos em conclusão:/ os
homens devem-me todas as suas artes” (Ésquilo, 1993, p. 37, Prometeu
acorrentado, vv. 652-653). Somente
pelo fogo do rei dos deuses foi que
essa raça conseguiu atingir a consciência da sua existência e das suas
possibilidades: “[...] a fim de servirlhe de mestre/ das artes numerosas,
dos meios capazes/ de fazê-la chegar
a elevados fins” (Ésquilo, 1993, p. 21,
Prometeu acorrentado, vv. 144-146).
Ao dominar o fogo roubado de
Zeus pelo titã, a raça humana conseguiu atingir “elevados fins”. A partir
deste momento, o homem dotado
de razão – iluminado fogo presenteado por Prometeu – tornou-se capacitado a dar os primeiros passos na direção de uma nova forma de conduzir
a vida e a sua existência de maneira
madura e consistente, deixando de ser
como criança irracional:
PROMETEU
Falar-vos-ei agora das misérias todas
dos sofridos mortais e em que circunstâncias
fiz das crianças que eles eram seres
lúcidos,
dotados de razão, capazes de pensar
(Ésquilo, 1993, p. 35, Prometeu
acorrentado, vv. 568-571).
O amadurecimento propiciado
pelo poder e pela luz do fogo possibilitou a capacitação e a libertação
da vida oscilante, árdua, sofredora
na qual estava inserido. Por essa in-
volume 15, número 2, maio • agosto 2011
terferência transformadora na forma
de guiar a existência humana o titã
tornou-se o espírito criador – e porque não dizer formador e educador
– da cultura desse homem:
Prometeu é o que traz a luz à humanidade sofredora. O fogo torna-se o
símbolo sensível da cultura. Prometeu é o espírito criador da cultura, que
penetra e conhece o mundo, que o põe
ao serviço da sua vontade por meio
da organização das forças dele de
acordo com os seus fins pessoais, que
lhe confere os tesouros e assenta em
bases seguras a vida débil e oscilante
do Homem (Jaeger, 1979, p. 287).
Pode-se verificar como o poeta
explorou o mito proporcionando
algo mais do que apenas uma narrativa religiosa. O que ele buscava era
apresentar ao expectador o processo
de transição no qual ele, espectador,
estava inserido. A história mítica
serviu como pano de fundo para
que Ésquilo pudesse encenar esse
homem que passava por um processo
de transformação na sua forma de
viver em sociedade, que começava a se desgarrar de uma religião
controladora, dependente da crença
nos deuses e num destino predeterminado, e que precisava ser educado
para se integrar adequadamente às
exigências da nova ordem posta.
O objetivo do poeta era utilizar-se
da força educativa da tragédia para
mostrar ao homem, ao seu espectador, que essa religião mítica, que
por muito tempo organizou e conduziu a vida desse povo e regeu sua
existência, fora substituída por uma
outra forma de pensar do homem, e
de pensar o homem.
Não se pode esquecer que Ésquilo
era um poeta da pólis clássica e sua
preocupação, como de todo poeta
desse momento histórico, era falar
de uma maneira acessível e didática,
para que sua mensagem chegasse
aos cidadãos dos diferentes setores
sociais que assistiam à sua apresen-
111
Paulo Rogério de Souza e José Joaquim Pereira Melo
tação: “[...] os poetas se exprimiam
como cidadãos e falavam aos cidadãos” (Romilly, 1984, p. 74). É por
isso que o mito de Prometeu serviu
tão bem ao propósito educativo do
poeta. Sua história fazia parte da religião grega e estava inserida na cultura
do povo. E também por ser o mito de
Prometeu “[...] o germe dum imortal
símbolo humano” (Jeager, 1979, p.
287) e carregar em sim o símbolo de
uma humanidade em busca de respostas para sua existência conflituosa.
Mas o homem contemporâneo de
Ésquilo, no centro do processo de
transição, não havia se desprendido
completamente da influência da
religião gentílica e da crença nos
deuses. No entanto, a nova estrutura
da cidade, sua organização política e
as novas descobertas proporcionadas
pela filosofia e suas ciências já faziam com que o grego vislumbrasse
e utilizasse diferentes maneiras para
conduzir a vida em sociedade e educar o cidadão. Foi nesse momento
que se acelerou o processo de transição de uma comunidade guiada por
preceitos divinos para uma sociedade
então organizada sobre a técnica, a
engenhosidade, a racionalidade.
Na sua peça, Ésquilo procurou
apresentar essa transição ao mostrar
que a submissão dos homens aos
deuses não tinha mais sentido. Zeus,
o senhor todo poderoso do Olimpo,
já estava com o império ameaçado,
e, segundo a personagem de Prometeu, o fim do seu reinado estava
se aproximando: “Fica sabendo: sua
queda ocorrerá” (Ésquilo, 1993, p.
48, Prometeu acorrentado, vv. 993).
A previsão de Prometeu não era
apenas a ameaça de um prisioneiro
rancoroso e vingativo. O rei dos
deuses já não se sustentava no trono,
112
e esse comandante que até então era
servido, respeitado e temido por todos
– principalmente pela raça humana –
estava prestes a se tornar servidor:
PROMETEU
No dia em que afinal for atingido o alvo
e tiver fim a minha longa provação,
Zeus ficará sabendo qual é a distância
imensurável entre reinar e servir!
(Ésquilo, 1993, p. 58, Prometeu
acorrentado, vv. 1227-1230).
Isso foi confirmado quando a
personagem de Prometeu revelou
que seria um homem aquele que,
segundo a profecia, nasceria do
ventre de uma mortal: a jovem Io – a
única personagem humana da peça
de Ésquilo –, que iria livrá-lo das
suas correntes, desafiando assim o
poder do tirano do Olimpo:
PROMETEU
Da nobre estirpe oriunda do teu leito
um dia nascerá o herói (Heracles)
que vergará
seu arco glorioso para me livrar,
com o passar do tempo, destes sofrimentos (Ésquilo, 1993, p. 54, Prometeu acorrentado, vv. 1443-1446).
Para Ésquilo, esse ser humano
educado pela razão e dotado de coragem para desafiar os antigos preceitos
da religião gentílica era o próprio
homem da pólis que buscava novas
explicações e soluções para os seus
conflitos. O homem que, segundo a
personagem de Oceano na peça, deveria primeiro conhecer a si mesmo
para somente então poder elaborar a
estratégia para superar as mudanças
que estavam ocorrendo no seu espaço
social: “[...] conhece-te a ti mesmo,
amigo, e adaptando-te/ a duros fotos,
lança mão de novos modos” (Ésquilo,
1993, p. 29, Prometeu acorrentado,
6
vv. 409-410). Desta forma, ele seria
capaz de romper as correntes da antiga tradição que o prendia à crença
nos deuses e, consequentemente, à
crença no destino que não mais regia
ou norteava sua vida.
Para ilustrar seu discurso, Ésquilo
utilizou-se da voz do “Coro” da peça
para buscar na própria mitologia
outra personagem que pudesse dar
sustentação ao seu intento. Para isso,
trouxe à memória dos espectadores a
figura mítica do guerreiro Odisseu6.
Esse homem engenhoso desafiou os
deuses e reclamou para si as glórias
dos seus feitos e de suas ações.
O que Ésquilo pretendia ao rememorar a personagem heroica de
Odisseu era reforçar a “mensagem”
ao espectador – ao cidadão da pólis
– de que, iluminado pelo fogo que
Prometeu roubou de Zeus e entregou a
humanidade, esse não deveria mais se
consorciar com os deuses e divindades
ou se prender a preceitos e crenças que
não mais faziam parte do cotidiano.
Assim como Odisseu, seria “um verdadeiro sábio” aquele que conseguisse
enxergar a sua condição de ser racional
e tivesse na razão o verdadeiro bem
para conduzir sua vida:
CORO
Sim, era um sábio, um verdadeiro
sábio,
o primeiro dos homens cujo espírito
pensou e sua língua enunciou
que se consorciar estritamente
de acordo com a sua condição
é realmente o bem maior de todo,
é que jamais se deve ter vontade,
quando se é apenas um artífice,
de unir-se a um parceiro presunçoso
por causa de sua riqueza
e inebriado por sua linguagem (Ésquilo, 1993, p. 55, Prometeu acorrentado, vv. 1167-1177).
Odisseu era, na mitologia, um dos heróis da guerra de Troia e uma personagem da Ilíada e da Odisseia, de Homero. Na Ilíada,é ele quem tem a ideia
de se fazer um cavalo de madeira em que coubesse parte do exército grego e entregá-lo aos troianos como presente, conseguindo, assim, atravessar
os muros da fortaleza inimiga, sendo esse um dos elementos principais da vitória dos gregos sobre os troianos. Esse evento reforça a ideia de ser ele
o mais sábio e astuto dos guerreiros gregos, o que fez com que exigisse para si as glórias da vitória grega em oposição à interferência dos deuses.
É também o protagonista da Odisseia, que narra a dramática e longa jornada de volta de Odisseu para o seu reino, Ítaca, após a guerra de Troia.
Educação Unisinos
Prometeu acorrentado: uma proposta esquiliana de formação para o homem clássico
O poeta utilizou-se da personagem de Odisseu por ser esse herói o
símbolo do homem que se levantou
contra o temor e a dependência
divina e tomou para si as rédeas do
seu “destino”: por seu ato ardiloso e
racional, e não pela ajuda dos deuses, os gregos venceram os troianos
na Guerra de Troia, e também pela
sua engenhosidade ele conseguiu
voltar à sua terra natal depois de uma
longa e tortuosa viagem pelo mundo:
“Ó Musa, fala-me do solerte varão,
que, depois de ter destruído a cidade
sagrada de Troia, andou errante por
muitas terras” (Homero, 1956, p.
1). A grande astúcia do rei de Ítaca
levou o próprio Zeus, segundo a
narrativa homérica da Odisseia, a
considerá-lo: “[...] em inteligência
o primeiro dos homens” (Homero,
1956, p. 3).
Assim, a retomada proposital do
mito do herói grego da Odisseia
foi providencial para mostrar que
o “verdadeiro homem sábio” era o
cidadão que tomava para si as suas
responsabilidades na comunidade
da qual fazia parte. Novamente o
poeta trágico não teve como intenção
usar o mito para enaltecer o herói,
mas exaltar as virtudes do homem,
utilizando-se do expediente didático do gênero trágico para mostrar
a necessidade de formação de um
cidadão sábio.
No entanto, o processo de “enfraquecimento” da influência da crença
religiosa e exaltação do homem em
Ésquilo foi além da retomada do
mito de Odisseu. O poeta procurou
reforçar a ideia de que o tempo de
submissão aos deuses já não mais
se sustentava ao enfatizar a discussão da sua peça no sistema de
desarticulação da figura “divina” e
“onipotente” de Zeus.
No Prometeu acorrentado, apesar
de Zeus ainda ser descrito como
todo-poderoso do Olimpo que desprezava a humanidade que pretendia
destruir por considerá-la insignifi-
cante, no decorrer da apresentação o
mesmo começava a se revelar uma
divindade que vai perdendo suas
características superiores. Descendo do seu espaço sagrado para se
submeter à paixão, entregando-se
aos desejos celerados por uma “insignificante” mortal, a jovem Io, ele
se igualara ao seres que despreza:
IO
As Flechas ígneas dos anseios por ti
feriram Zeus; ele deseja ardentemente
gozar contigo os prazeres oferecidos
pela sagrada Cípris [...] (Ésquilo,
1993, p. 44, Prometeu acorrentado,
vv. 841-844).
Ao deixar-se seduzir por Io,
Zeus perdeu o prestígio de senhor
onipotente do Olimpo e passou a
ser considerado um apaixonado
impulsivo, uma divindade seduzível, corrompida e conduzida pelas
emoções como qualquer mortal. O
trono do rei dos deuses estava sendo ameaçado, pois o seu ocupante
demonstrava fraqueza ao sujeitarse aos caprichos de uma mulher,
um ser menor de uma raça até
então inferiorizada e odiada pelo
deus dos deuses: a raça humana:
“Como não ouviria eu, pobre mulher [...]/ Que há pouco tempo acalentavas com amor/ O coração de
Zeus [...]” (Ésquilo, 1993, p. 40,
Prometeu acorrentado, vv. 760/
763-764).
O amor de Zeus pela mortal Io
afetara as estruturas do Olimpo e
interferira na conduta das outras
divindades. Os deuses já não
eram tão supremos e inatingíveis.
Como exemplo Ésquilo apresentou a deusa Hera, esposa de Zeus,
que também passou a demonstrar
sentimentos semelhantes aos expressados pelos humanos. Ao saber
da paixão de Zeus pela jovem Io
e da tentativa de traição por parte
do marido, Hera também desceu
ao pórtico do mundo humano e
volume 15, número 2, maio • agosto 2011
revelou o seu ciúme, vingando-se
cruelmente de uma inferior mortal:
“[...] e agora, atormentada/ Pelo
rancor de Hera, és sempre constrangida/ a percorrer assim estes
longos caminhos” (Ésquilo, 1993,
p. 40, Prometeu acorrentado, vv.
764-765).
Por esse processo de desestruturação do universo divino, a personagem de Prometeu, por várias vezes,
prediz que o rei dos deuses perderia
o trono. Segundo Lízia Helena Nagel
(2006, p. 100), é nessas circunstâncias que “[...] Ésquilo transforma
Zeus em um ser perplexo e interrogante, inseguro quanto à sua própria
força e destino”. O enfraquecimento
de Zeus desarticula o Olimpo, e os
deuses perdem a condição de senhores da humanidade. E o titã conclui
sua previsão da queda definitiva de
Zeus conclamando:
PROMETEU
A minha resposta é essa: há de chegar o dia
em que, malgrado a pertinência de
sua alma,
Zeus passará a ser extremamente
humilde,
pois os festejos nupciais já programados
custar-lhe-ão o fim do trono e do poder
com seu inevitável aniquilamento
(Ésquilo, 1993, p. 56, Prometeu
acorrentado, vv. 1200-1205).
Para Ésquilo, a queda de Zeus
e a libertação de Prometeu eram
também a libertação da humanidade:
“Todos os séculos viram nele a imagem da humanidade” (Jaeger, 1979,
p. 288). As correntes que prendiam o
titã eram representações dos preceitos divinos que mantinham os seres
humanos, os homens da sociedade
gentílica, acorrentados à religião e
aos deuses, vivendo sob a sombra da
crença mítica. E a razão filosófica, a
iluminação e o verdadeiro conhecimento pelo qual o homem da pólis
deveria ser educado – simbolizado
pelo fogo divino – então ajudariam o
homem a libertar-se dos grilhões da
ignorância e da submissão da mesma
113
Paulo Rogério de Souza e José Joaquim Pereira Melo
forma que Prometeu se livraria das
correntes de Zeus.
O que se verifica é que a proposta
educativa de Ésquilo, ao apresentar
no teatro o conflito existente entre as
suas personagens, tinha como objetivo educar o espectador, encenando,
de forma didática, como o novo
homem-cidadão da cidade-Estado –
do qual esse espectador presente na
plateia era representante – deveria
se comportar diante dos embates
políticos e das novas exigências da
sociedade frente às transformações
que estavam acontecendo. Dessa
forma, a peça esquiliana não deixou
de expressar e de auxiliar no processo de (re)estruturação da pólis,
demonstrando a sua característica
educadora e a importância formativa
que a tragédia teve na vida do grego
no período Clássico; além disso, o
poeta trágico não só não perdeu a sua
“função de educador do seu povo”,
mas ficou consagrado em toda a
literatura da antiguidade.
Considerações finais
114
A proposta deste artigo de analisar,
a partir das bases materiais, o papel
da tragédia clássica no contexto grego
do século V a.C, buscando destacar
a função didática desse gênero e
utilizando para isso a peça Prometeu
acorrentado de Ésquilo, teve como
premissa inserir o leitor num processo
reflexivo sobre a questão educativa e
formativa do ser humano na história,
mostrando como essa pode ser ampliada para outros âmbitos sociais,
deixando de centralizar-se no contexto escolar institucionalizado atual,
como é privilegiado por algumas
análises contemporâneas.
Ao apresentar para o leitor como
a tragédia foi usada como um instrumento educativo pelos governantes
(os tiranos) e/ou por uma forma de
governar (a democracia), buscou-se
ampliar seu horizonte de análise,
possibilitando que o mesmo possa
ter um subsídio acadêmico-histórico
para entender como esse processo
educativo acontece também no contexto no qual está inserido, em sua
sociedade. Da mesma forma que a
tragédia foi utilizada como instrumento formativo do povo no século
V a.C, atualmente outros cenários
sociais – teatro, cinema, televisão,
música, religião, moda, entre outros
– também são usados pelos setores
dominantes e administrativos em
diversos âmbitos da sociedade
para manter a ordem, orientar o
consumo, direcionar o pensamento
político, propor uma moral coletiva,
impor um comportamento social,
enfim, para formar desta maneira o
homem-cidadão contemporâneo, de
acordo com os interesses dos setores
dominantes.
Assim, pode-se entender que,
da mesma forma como o objetivo
de Ésquilo ao representar o embate
entre Prometeu e Zeus na peça
Prometeu acorrentado foi mostrar
– utilizando-se da função pedagógica da tragédia nesse processo
de transformação social – que as
mudanças sociais na Grécia do
período Clássico já estavam se solidificando e o processo formativo
e educativo de um “novo homem”
estava em andamento acelerado, ele
também deve suscitar – no leitor
atento, no estudioso do assunto e/
ou no pesquisador da História da
Educação – uma reflexão sobre
quais mudanças estão acontecendo
na sociedade atual, e quais são os
autores, os argumentos, o cenário e
os instrumentos usados e apresentados no processo de formação e de
educação do homem-cidadão diante
das mudanças nessa sociedade na
qual está inserido.
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VERNANT, J-P. 2002. As origens do
pensamento grego. São Paulo, Edusp,
143 p.
Submetido em: 14/04/2010
Aceito em: 03/12/2010
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