História

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A construção de um mito
Libertad Borges Bittencourt. Especial para O POPULAR, 27 de janeiro de 2013
Mitos fundadores são indissociáveis das elaborações
idealizadas constitutivas das nações. No caso dos EUA, tais
idealizações são ainda mais reforçadas, pois vêm associadas
à “excepcionalidade norte-americana”, ali configurada
desde o acordo de autogoverno, conhecido na história do
país como o Pacto do Mayflower. Recebeu esse nome em
uma alusão ao navio que levou puritanos para a Virgínia,
estando entre eles líderes religiosos, nomeados “pais
fundadores”.
Importante ressalvar que esses líderes foram
responsáveis pela descrição da terra que habitariam como a
“terra prometida”; seria aquele lugar uma Nova Israel (ou,
ainda, Nova Canaã). Para essa terra, migrava um povo
predestinado. Essa narrativa idealizada, fruto de
apropriações de signos bíblicos, contribuiu para amalgamar
um sentimento peculiar em relação àquela terra e a seu
povo. Em virtude disso, em 1845, John L. O’Sullivan
afirmou que, para cumprir o “Destino Manifesto”, era
legítimo aos norte-americanos se espalharem pelo
continente, porque esse lhes era “designado pela
providência”. Essa concepção justificou o expansionismo
norte-americano e consolidou o sentimento de nação eleita
e povo excepcional.
Vinculados à nação, alguns presidentes alcançaram
um patamar quase mítico, reforçado em função de suas
biografias, que trataram de descrever suas trajetórias como
exemplares. Se a historiografia teve papel importante nesse
processo, o cinema hollywoodiano contribuiu para a
consolidação desse imaginário, que extrapolou as fronteiras
do país. Sob essa concepção, Abraham Lincoln foi alçado a
uma posição privilegiada no panteão nacional.
Abraham Lincoln governou o país entre 1860 e 1865.
Com uma aparência que impressionava, medindo quase
dois metros de altura e parecendo ainda mais alto devido
ao uso de cartola, era considerado um “homem de
fronteira”, ou seja, um habitante das regiões que ainda
estavam sendo incorporadas efetivamente à federação.
Nasceu em 1809, em Kentucky, vindo a frequentar a
escola apenas por alguns meses em Indiana, para onde sua
família migrara, em 1816. Autodidata, seguiu a carreira de
advogado e de político, destacando-se pela forma objetiva
de se dirigir aos jurados e aos eleitores. Exerceu apenas um
mandato no Congresso (1847-1849), não tendo sido
reeleito devido à ferrenha oposição à guerra contra o
México – ocorrida entre 1846 e 1848, foi vencida pelos
Estados Unidos, que anexaram boa parte do então território
mexicano.
Em 1854, assumiu a liderança do Partido Republicano
em Illinois. Mesmo tendo perdido a eleição ao Senado, em
1858, emergiu da disputa eleitoral como político
reconhecido
nacionalmente.
Em
decorrência
da
legitimidade angariada nas eleições para o Senado, Lincoln
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História
foi indicado para concorrer a presidente, tendo sido eleito
em 1860, quando se opôs a qualquer acordo pela
expansão da escravidão para os novos territórios
incorporados a oeste.
Apesar de não propor libertar os escravos, Lincoln
declarara ser favorável à restrição da escravidão, em um
primeiro momento, e à sua definitiva abolição mais adiante.
A defesa dessa posição, antes mesmo de sua posse, levou à
separação de 11 Estados escravocratas do Extremo Sul,
desdobrando-se, por sua vez, na Guerra da Secessão, que
dividiu o país.
Vinte e três Estados ao norte, que constituíram a
União, contra 11 Estados ao Sul, que integraram a
Confederação, se enfrentaram em uma renhida guerra, que
ambos os lados esperavam ser rápida, mas que se
prolongou entre 1861 e 1865. Com uma percepção
acurada de que uma política de emancipação seria também
importante para vencer a guerra, Lincoln elaborou a
Proclamação da Emancipação, que libertou os escravos nos
Estados rebeldes, conclamando-os a se juntarem às tropas
nortistas.
A guerra transformou, simultaneamente, a estrutura
social e a forma de governar o país: Lincoln passou a
exercer um poder ampliado, incomum à época, em que a
federação se sobrepunha à figura presidencial. Havia forte
resistência quanto à abolição da escravatura nos Estados do
Sul e à convocação para a guerra, já que o serviço militar
era voluntário, mas Lincoln superou tais resistências.
Em plena guerra, em 1864, ocorreram novas eleições
presidenciais, sob um forte sentimento antibélico, em
virtude da guerra prolongada e das perdas humanas.
Enfrentando essas contendas, Lincoln foi reeleito, tendo
sido assassinado por um ator, simpatizante da causa
confederada, no Teatro Ford, em Washington, quando
comemorava a rendição do Sul. Em dezembro de 1865, o
Congresso ratificou a 13ª Terceira Emenda à Constituição
dos Estados Unidos, proibindo a escravidão em todo o país.
Com duração de cerca de dois anos, é esse processo
tenso e difícil, que conduziu à aprovação da lei de
emancipação dos escravos, que o filme Lincoln retrata. Os
mitos de fundação e a nação idealizada, componentes
também da narrativa fílmica, corroboraram para a sua
indicação ao Oscar 2013, em diversas categorias. Uma vez
mais, a trajetória biográfica associa o indivíduo exemplar à
nação.
Nesse sentido, as palavras do poeta James Russel
Lowell sobre o funeral de Lincoln sintetizaram o sentimento
que se generalizou no período e que, certamente, é
emblemático da associação mencionada: “Nunca antes
daquela surpreendente manhã de abril, houve tal multidão
vertendo lágrimas pela morte de alguém que nunca tinham
visto, como se com eles tivessem também perdido uma
presença amiga, deixando-os mais frios e em trevas mais
profundas.”
Libertad Borges Bittencourt é professora de História da América da UFG
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A festa de Abraham Lincoln
Élio Gaspari
Coisa muito boa. Um grande filme (Lincoln) de um
soberbo diretor (Steven Spielberg), com um magnífico
desempenho (Daniel Day-Lewis no papel do presidente),
extraído de um belo livro (Team of Rivals, de Doris Kearns
Goodwin) sobre um luminoso período da História, o final
da Guerra Civil americana, com o triunfo do progresso
sobre o atraso.
São duas horas e meia de arte, prazer e instrução.
Spielberg fez seu filme tratando das poucas semanas
durante as quais Lincoln dobrou a Câmara dos Deputados,
aprovou a 13ª emenda à Constituição e acabou com a
escravidão nos Estados Unidos. O Sul já estava derrotado,
mas a libertação definitiva de 4 milhões de negros
significaria o maior confisco patrimonial da História. O filme
saiu do Team of Rivals, no qual o episódio da aprovação
da emenda, com suas tramoias, ocupa menos de dez
páginas. A mágica de Spielberg esteve em capturar a alma
da obra de Doris Kearns Goodwin. Ela trabalhou na Casa
Branca, escreveu sobre os presidentes Roosevelt, Kennedy
e Lyndon Johnson. (Seu marido, Richard Goodwin,
assessorou os dois últimos e, em julho de 1962, defendia
que os militares derrubassem logo o presidente João
Goulart). O Lincoln de Daniel Day-Lewis entrará para a
história do cinema como uma das melhores caracterizações
de um personagem, disputando com o general Patton de
George C. Scott, que era mais fácil. Aquilo que parece
exagero tem tudo para ser acerto. O andar de Lincoln era
esquisito, sem se apoiar no calcanhar, porque tinha pés
chatos. Ademais, era desegonçado mesmo. Resta só um
problema: não há gravação de sua voz.
Spielberg cometeu poucas licenças cenográficas. Uma
delas, deliberada. Na rendição do general sulista Robert
Lee, Ulysses Grant, comandante das tropas do Norte,
aparece com o uniforme em razoável estado e as botas
limpas. Na realidade, estava enlameado e a roupa,
amarfanhada. Quem os visse, pensaria que o vencedor da
guerra fora Lee. Além disso, é improvável que Thaddeus
Stevens (Tommy Lee Jones) tenha levado para casa o
original da emenda.
A edição americana do Team of
Rivals tem 944
páginas. A autora fez uma versão resumida que foi
publicada na França e saiu no Brasil, com um terço do
tamanho. Com os cortes, sumiu a cabala narrada no filme.
O Lincoln acaba de chegar às livrarias. Custa R$ 34 e
não tem versão eletrônica. Desse jeito, cria-se um pedágio
para o uso da língua portuguesa, pois o e-book da edição
integral, em inglês, sai por R$ 20,39.
Em Pindorama, o Sul venceu
Deve-se a Darcy Ribeiro um resumo da desdita
brasileira na segunda metade do século 19: “Aqui o Sul
venceu”. Enquanto na Guerra Civil americana morreram
600 mil pessoas e, entre 1863 e 1865, libertaram-se todos
os escravos, em Pindorama, onde nessa época havia cerca
de 2 milhões de pessoas escravizadas, a Abolição só veio
em 1888.
D. Pedro II se manteve neutro (piscando o olho para o
Sul) e os portos brasileiros davam guarita a navios rebeldes
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que pirateavam no Atlântico Sul. Isso até outubro de 1864,
quando o governo acolheu no porto de Salvador uma
embarcação confederada. Uma canhoneira do Norte
atacou o barco, sequestrou-o e afundou-o em alto mar. A
essa época o embaixador americano no Brasil era James
Webb, um jornalista americano, cupincha do secretário de
Estado William Seward (aquele que usa roupa de brocado
no filme).
Um picaretaço. Achava que a abolição era mais perigosa
que a escravatura. Diante da simpatia de Lincoln pela ideia
de uma deportação dos negros americanos, Webb foi à luta
e tentou organizar uma empresa de colonização capaz de
trazer 100 mil negros para a Amazônia. Ela teria um capital
binacional de até 5 milhões de dólares e cada deportado
receberia um lote de 40 hectares, uma choupana e algum
equipamento. O presidente da companhia seria nomeado
pela Casa Branca. Quem? Ele. O plano naufragou em
Washington, em Londres e no Rio de Janeiro. Aqui,
mostrando que Darcy Ribeiro tinha razão, o Marques de
Abrantes disse a Webb que a migração lhe parecia inviável,
pois o governo imperial não pretendia admitir negros livres
na Terra da Santa Cruz. (Passados mais de 150 anos, o
gerente da concessionária Autokraft da BMW, na Barra da
Tijuca, enxotou da loja uma criança negra livre de sete
anos).
A guerra civil americana causou tanto horror à
sociedade escravocrata brasileira que o maior dos poetas
abolicionistas, Castro Alves, passou batido no assunto. Seis
anos depois da morte de Lincoln chamou seu assassino de
“cavaleiro sinistro”.
Terminada a guerra, D. Pedro foi aos Estados Unidos,
visitou o presidente Grant e andou de braço dado com o
general Sherman, o devastador do Sul. Sua obra foi
mostrada em E o Vento Levou....
As relações dos Estados Unidos com o Brasil nesse
período estão contadas num grande livro: O Sul mais
Distante (The Deepest South), do professor americano
Gerald Horne. A tradução, em papel, sai por R$ 59,50. O
original está na rede por R$ 20,72.
In: www.opopular.com.br. 27 de janeiro de 2013.
EXERCÍCIO
01. (FUVEST-2009)
“Uma casa dividida contra si mesmanão
subsistirá. Acredito que esse governo, meio
escravistae meio livre, não poderá durar para
sempre. Não esperoque a União se dissolva; não
espero que a casa caia. Masespero que deixe de
ser dividida. Ela se transformará sónuma coisa ou
só na outra.”
Abraham Lincoln, em 1858.
Esse texto expressa a
a) posição política autoritária do presidente Lincoln.
b) perspectiva dos representantes do sul dos EUA.
c)
proposta de Lincoln para abolir a escravidão.
d) proposição nortista para impedir a expansão para o
Oeste.
e) preocupação de Lincoln com uma possível guerra
civil.
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