1 Teologia Joanina da Missão. O caráter distintivo do Evangelho de João, em contraste com os Evangelhos sinóticos, é patente à vista de todos. O problema da missão em João não desempenhou papel maior nos estudos recentes. A teologia da missão de João, como qualquer aspecto da sua mensagem, é única e sedutora. 1- O ambiente do evangelho e a perspectiva de missão da Igreja joanina. Uma das convicções mais importantes das erudições recentes é que a comunidade joanina estava em diálogo ou em disputa com amplo espectro de grupos e de ideologias no século I. Deste modo, o Evangelho também pode ser compreendido, na sua forma acabada, como uma tentativa por comunicar-se com uma variedade de sócios do diálogo. Os diversos grupos e experiências distintas possibilitaram o desenvolvimento de uma cristologia própria. Jesus era interpretado como modelo mosaico, como alguém que vira a Deus e o revelara, antes do que simplesmente interpretado em categorias messiânicas davídicas. Esta interpretação abriu o caminho para a teologia da preexistência característica de João: Jesus era a Palavra, o “Filho do Homem” que viera para revelar o Pai. Estas convicções cristológicas conduziram aos rompimentos, conflitos e tensões com o judaísmo farisaico e com os grupos judeu-cristãos. Pode também ter havido tensão com a Igreja apostólica primitiva, representada por Pedro e pelos apóstolos. João pode ter considerado a cristologia da Igreja apostólica adequada, mas não tão profunda como aquela da sua própria comunidade. A afluência dos gentios trouxe outra característica para a comunidade joanina, no que diz respeito aos seus membros, pois passa de uma composição puramente judaica e palestina para uma composição mista, incluindo judeus helenísticos, samaritanos e gentios. Isto também se torna um fator para um ponto de vista mais universalista. A admissão dos gentios parece ter sido realizada sem trauma, talvez sinal de que a comunidade joanina já havia queimado suas ligações com o judaísmo e que sua teologia era plenamente universal na extensão. A Igreja do quarto evangelho desenvolveu uma teologia excepcional e seu inflexível testemunho com respeito a essa visão a colocou em confrontação não só com o judaísmo farisaico, mas também com grupos cristãos. O ambiente em que se desenvolveu a comunidade joanina também possibilitou uma incorporação e transformação de algumas formulações acerca de Jesus. Por vezes o Evangelho parecera colocar lado a lado formulações mais antigas e mais novas, mesmo que se revelem contraditórias, com as mais antigas, sendo conservadas na perspectiva mais rica oferecida pelas novas. Segundo MacRae, esta reinterpretação de categorias tradicionais parece estar diretamente relacionada com as convicções da comunidade joanina a respeito da universalidade de Cristo. Desse modo, a audaciosa cristologia da comunidade de João e a sua vigorosa interação com outros pontos de vista foram as que levaram o quarto Evangelho a um diálogo criativo com o seu ambiente, tudo isso o torna significativo para a missão universal da Igreja. 2- Cristologia e missão. 2 O foco cristológico do quarto Evangelho é a chave para compreender a sua teologia de missão. Essa cristologia é universal, cósmica mesmo no seu alcance, não só porque o evangelista lidava com ambiente cosmopolita, mas também por causa da sua convicção a respeito do significado cósmico de Cristo. Já no prólogo são declaradas: a origem, finalidade e proporções cósmicas da missão de Jesus da parte do Pai. Assim, já desde o princípio a tela joanina é cósmica e universal em proporção. Embora o foco seja específico e histórico – o Jesus terrestre anunciado por João Batista e a comunidade que acredita em Jesus - , os temas são todos definitivos: a origem e o significado da criação, a consecução da vida autêntica, a busca de Deus. São estes os elementos comuns a todos os sistemas religiosos. Mesmo que o Evangelho de João seja intensamente cristocêntrico, estes problemas humanos e teológicos mais amplos sustentam a sua linguagem cristológica. No conjunto de títulos dados a Jesus no Evangelho de João, o mais significativo é o “Filho do Homem”, pois é usado para descrever a misteriosa origem celeste de Jesus e a sua descida com a missão de revelar a Deus, especialmente no instante da morte (3,14; 8,28). Para João, o momento mais intenso de Jesus de revelar o Pai chega na hora da morte: esta é a “hora” em que “Ele é levantado” e “dá glória ao Pai”, e revela o amor salvador de Deus pelo mundo (8,28). A missão de Jesus no Evangelho de João é também tornar conhecido o nome de Deus (17,3). Os ditos de “Eu sou” encontram-se quer na forma absoluta, quer como predicados, tais como “pão”, “vida”, “ressurreição”, “luz”, “caminho”, e assim por diante. Isso sugere que em Jesus se juntam, a presença manifesta de Deus e a procura às apalpadelas da humanidade por Deus, com suas fomes e anseios mais profundos. Porque possui este caráter básico de missão, ou seja, de revelar Deus ao mundo, uma das denominações mais importantes de Jesus em João é o de “enviado”. O Pai envia Jesus ao mundo para salvá-lo. Essa é a “obra” de Jesus, o seu “alimento”. E quem acolhe o enviado, entra em contato com o próprio Deus, que o enviou, e recebe já o dom da vida eterna. Esse é o peso cósmico que João dá à missão de Jesus. Outra categoria importante na cristologia de João é a de “testemunho”. O Evangelho utiliza a forma de um julgamento: o Pai dá testemunho a respeito da origem divina da missão de Jesus. Da mesma forma, João Batista, o discípulo amado, a própria comunidade e o Paráclito são chamados a dar este testemunho a respeito da missão de Jesus para o mundo. Como conclusão, portanto, podemos dizer que a missão de Jesus em João é cósmica: ele alarga as fronteiras históricas e nacionalistas (próprias dos Sinóticos), e vem realizar não só a esperança de Israel quanto ao governo de Deus, mas também revelar a toda a humanidade a face do Deus invisível. O Jesus de João começa em Deus e entra no mundo todo, o “cosmo”. A razão básica para esta perspectiva universal vem não só do ambiente de João, mas sim do alvo subjacente do Evangelho. Embora João se concentre na figura de Jesus, é o problema de Deus que em última análise freqüenta assiduamente o Evangelho; é o Deus invisível que profere a “palavra” e que é procurado pela humanidade, que só pode ser revelado por Jesus. 3. O paráclito e a missão: No Evangelho de João o Espírito é decisivo para a missão. João partilha de imagens convencionais do Espírito, próprias da tradição sinótica (a investidura messiânica de Jesus com o Espírito no Batismo, a insistência no Cristo ressuscitado como doador do Espírito...), mas vai além da concepção tradicional, por exemplo, no discurso com 3 Nicodemos, onde se fala de um novo nascimento, “do alto”, “da água e do Espírito”. Mas, mais específico ainda é o discurso dos capítulos 14 a 16, onde se emprega o termo “paráclito” e se focaliza a função do Espírito na comunidade. O termo “paráclito” não tem equivalente hebraico exato e pode ter conotações legais, tais como “advogado” e “mediador” ou significados tais como “confortador” e “incentivador”. A sua função é manter na comunidade, na ausência de Jesus, o mesmo relacionamento doador de vida que Jesus mantinha com os discípulos: o Paráclito está “com” os discípulos, os “ensina” e os “conduz”, revela-lhes a mensagem do Pai e entra em confrontação profética com o mundo não-crente. Mais que substituir meramente a presença de Cristo ressuscitado na Comunidade, o Espírito ainda intensifica essa presença. São mais felizes aqueles “que não vêem, mas crêem” (20,29), e pelo poder do Espírito a comunidade será capaz de fazer “obras maiores” do que os sinais realizados por Jesus (14,12). Provavelmente as “obras maiores” feitas pela comunidade e uma compreensão mais penetrante do ensinamento de Jesus estejam também ligadas à experiência de missão da comunidade. Na sua missão ao mundo, incentivada pelo Espírito, a Igreja descobre ao Cristo mais presente, mais compreensível, mais transformador. O Paráclito confirma o envio dos discípulos em missão na aparição culminante da ressurreição (20), dá testemunho de Jesus e ajuda os discípulos a testemunhá-lo (15,26-27), enfrenta o poder do mal, como Jesus o fizera e como a comunidade deverá fazer (16,8-11). 4. A Comunidade e a sua missão: Alguns intérpretes recentes especulam que a Igreja do Evangelho de João seria “sectária” em sua natureza. Empenhada em conflito tanto com os judeus como com os cristãos em várias frentes, parece haver uma mentalidade de assédio, de seita estritamente unida que procura a sua própria sobrevivência e despreza o resto da humanidade perdida na escuridão. Em tal quadro, “missão” tem um significado muito limitado; não há nenhum impulso positivo em relação ao mundo. Mas, não se pode desconsiderar apreciações positivas e substanciais do “mundo” no Evangelho de João. A fé e o amor progressivos são os sinais que identificam os discípulos como seguidores de Jesus. Outro sinal é que assumam a missão de Jesus no mundo. A missão da comunidade se baseia missão de Jesus: “como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (17,18). Assim, torna-se decisivo revisar exatamente de que modo a missão de Jesus é retratada no Evangelho: Ele veio ao mundo a fim de ser “vida”, “luz”, para dar o poder de tornar-se filhos de Deus, para dar a conhecer o Deus invisível; “veio ao mundo não para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele”; “veio para realizar a vontade daquele que o enviou.. que é que não se perca nada do que Ele me deu, mas o ressuscite no último dia”. A posição fundamental do Evangelho de João em relação ao mundo é enfaticamente positiva. As apreciações negativas (o mundo que “odeia Jesus e os discípulos”, o mundo que se alegra quando a comunidade se entristece...) se deve ao exercício da liberdade humana, à aceitação ou rejeição de Jesus, à crença ou não-crença nele. Do ponto de vista de Deus, o mundo é objeto de amor: o Filho é enviado não para condenar a humanidade, mas para salvá-la. Mas, do ponto de vista humano, esta iniciativa vital de Deus pode ser ora aceita, ora rejeitada. Estas declarações negativas a respeito do mundo são também conseqüência da experiência de missão da comunidade: assim como a missão da Igreja primitiva experimentara acolhida, mas também rejeição da parte de 4 Israel, da mesma forma acontece com a missão da Igreja no mundo dos gentios. E é também por isso que a missão da comunidade é apresentada por João num molde profético. Assim como Jesus venceu o mundo, não obstante a sua hostilidade, assim como o Paráclito enfrenta o mundo denunciando-lhe os erros, da mesma forma os discípulos devem enfrentar o mundo que lhes é hostil. Como conclusão, portanto, podemos afirmar que a missão do Pai, a missão de Jesus, a missão do Paráclito e a missão da Comunidade estão estreitamente ligadas entre si: o Pai envia o Filho, o Filho envia o Paráclito, o Paráclito é enviado aos discípulos para dar testemunho de Jesus, e os discípulos são enviados por Jesus para fazerem o que Ele fez. Estas quatro missões são executadas no campo do mundo e têm como meta a salvação do mundo. Todas envolvem relacionamento pessoal entre o que envia e o que é enviado. Os enviados não falam em nome de si próprios, mas em nome daquele que os envia. Todas essas missões giram em torno de Jesus (o Paráclito reforça a sua presença, os discípulos declaram a sua Palavra ao mundo...), mas está essencialmente relacionada à procura mais profunda da face de Deus. Assim, o ponto final da missiologia de João não é Jesus, mas o Pai. Só o Pai não é enviado. Ele é a origem e o alvo de todo o testemunho do Evangelho. Conclusão: O Evangelho de João compartilha com o resto dos Evangelhos uma perspectiva universal e uma orientação missionária. Ele é universal porque apresenta a busca perene e penetrante da humanidade por Deus. Apresenta essa busca através de muitos símbolos: o anseio pela verdade, pela vida, pelo caminho, pela luz... A missão de Jesus é revelar o amor salvador de Deus pelo mundo inteiro e conceder-lhe a vida eterna. Ele tem uma orientação missionária, pois a sua palavra final para a comunidade é que os autênticos discípulos de Jesus são “enviados”, como Ele foi enviado, ao mundo inteiro, para lhe trazer a vida. Esses moldes dinâmicos e esse caráter universal não significam abdicar das convicções a respeito da identidade e da missão excepcionais de Jesus. Nenhum escrito do NT foi escrito a fim de persuadir o não-crente. João escreve para revigorar a fé em Jesus de seus próprios cristãos e para oferecer-lhes perspectiva sobre as tarefas cósmicas que eles precisam executar em nome de Jesus. O Evangelho, portanto, mantém vivo o poderoso impulso missionário encontrado nos Sinóticos e nos Atos dos Apóstolos. Discute-se se as Cartas joaninas conservam este sentido de missão: sustenta-se que o seu objetivo seria a defesa da interpretação correta da mensagem do Evangelho, combatendo a heresia dentro da Igreja; o seu interesse missionário estaria dirigido não mais para fora da Igreja, para o mundo, mas para um interesse mais estreito e interno da Igreja. Pode-se afirmar prudentemente que as cartas joaninas proporcionam muito pouco no que diz respeito ao problema da missão. A cristologia das Cartas tem ainda dimensões universais, mas os problemas que elas evocavam eram problemas internos. Mas, isso não significa que as Igrejas joaninas tivessem perdido a sua perspectiva missionária. Fonte: Teologia joanina de missão. In SENIOR, D.; STUHLMUELLER, C. Os fundamentos bíblicos da missão. São Paulo: Paulinas, 1987. pp.384-403.