TRANSITIVIDADE: UM ESTUDO COM BASE NA LINGÜÍSTICA FUNCIONAL Célia Maria Medeiros Barbosa UFRN/UnP INTRODUÇÃO O presente trabalho se insere no quadro da Lingüística Funcional Contemporânea. Nesse quadro, a abordagem funcionalista é definida como sendo a corrente de estudo do uso interativo da língua, que busca explicar as regularidades observadas nesse uso a partir das condições discursivas em que se verifica, segundo esclarece Votre (1991: 39). Sob o enfoque do paradigma funcionalista, a análise de uma dada estrutura gramatical da língua é estudada ao mesmo tempo em que se dá a situação comunicativa. Tal situação pode ser dividida em três componentes: os propósitos do ato de fala, a interação entre os participantes desse ato, bem como o contexto discursivo. Ao falar sobre transitividade, baseamo-nos em conceitos e trabalhos já desenvolvidos sobre este assunto na visão da Lingüística Funcional Contemporânea. No entanto, procuramos primeiro situá-la em definições já trabalhadas por gramáticos tradicionais, Said Ali (1966) e Cunha & Cintra (1985); autores de livros didáticos, Ulisses Infante (2001) e Faraco & Moura (2000); bem como por lingüistas, Francisco Dias (1999) e Perini (1995). A partir dessas definições e da análise feita por esses gramáticos e lingüistas, pudemos verificar e até mesmo discutir tais visões, para posteriormente centrarmos nossa pesquisa dentro da abordagem funcionalista. Assim, situando a transitividade dentro da visão funcionalista, enfocamos a importância desse paradigma em estudar a língua como instrumento de comunicação, priorizando o componente pragmático, ao qual estão ligados os componentes sintático e semântico, a fim de termos uma definição do assunto a partir do contexto em que esteja inserida a sentença. O processo de transitividade foi, então, discutido e analisado, nesta pesquisa, a partir de estudos desenvolvidos por Hopper & Thompson (1980). O Corpus Discurso & Gramática – A Língua Falada e Escrita na Cidade do Natal constitui os dados que foram analisados, além de trechos com falares populares. TRANSITIVIDADE: UM ESTUDO COM BASE NO PARADIGMA DA LINGÜÍSTICA FUNCIONAL CONTEMPORÂNEA. 1 Transitividade verbal : visão de alguns gramáticos tradicionais 1.1 Said Ali Ao começar a falar sobre transitividade , faz-se necessário citar o que alguns gramáticos tradicionais dizem sobre este assunto. Said Ali (1966: 164) define o verbo como uma contextura morfológica e a transitividade como um fato relacionado à natureza das formas, estando, dessa forma, localizada no capítulo que estuda os vocábulos (lexeologia): Definido o verbo como palavra que exprime ação ou estado, não se conclui daí que esta significação se deva conter toda somente no verbo. Para que isto fosse possível, seria necessário possuir nosso idioma uma contextura morfológica extremamente complexa. Muitos verbos requerem o acréscimo de um termo que lhes complete o sentido. Chama-se transitivo o verbo cujo sentido se completa com um substantivo usado sem preposição ou ocasionalmente com a preposição a .O termo que integra o sentido do verbo transitivo tem o nome de objeto direto ou acusativo e toma a partícula a quando denote ente animado e convenha por essa forma tornar bem clara a função objetiva do substantivo.Verbos que não admitem acusativo chamam-se intransitivos. E o termo regido de preposição, com que se completa o sentido de verbos intransitivos, dá-se de ordinário o nome de objeto indireto. Para ele, a lexeologia, como podemos verificar na citação acima, é que principiaria a classificação dos verbos em transitivos e intransitivos. E apenas a informação acerca do tipo de complemento (direto, indireto e, concomitantemente, direto e indireto), solicitado pelo verbo, é que se inseriria no quadro da sintaxe. Assim, a informação lexical do verbo determinaria o tipo de relação da frase. Percebemos, nesse caso, que a transitividade, para Said Ali, encontra-se no nível da forma. 1.2 Cunha & Cintra Cunha & Cintra (1985) trabalham a transitividade verbal a partir da idéia de predicado verbal, com a visão de verbo significativo, que pode ser transitivo e intransitivo, e que completam o significado do verbo: O PREDICADO VERBAL tem como núcleo, isto é, como elemento principal da declaração que se faz do sujeito, um verbo SIGNIFICATIVO. VERBOS SIGNIFICATIVOS são aqueles que trazem uma idéia nova ao sujeito. Podem ser INTRANSITIVOS: Sobe a névoa...A sombra desce... (Da Costa e Silva) ; e TRANSITIVO: Ele não me agradece, / nem eu lhe dou tempo. (Fernanda Botelho). (Cunha & Cintra, 1985: 132). Observamos que os autores acima situam a transitividade verbal no capítulo dedicado à sintaxe. Um novo conceito surge, então, no sentido de integrar as informações relacionadas à forma com as referentes à combinatória, que é o conceito de processo verbal. Segundo eles, esse processo não está inteiramente dentro das formas de verbo, pois se transmite a outros componentes. Vê-se presente, nesse caso, a idéia de sintagma, a qual contempla o verbo e seus integrantes diretos e indiretos, assim como os elementos secundários do processo verbal. Como podemos constatar na passagem abaixo: 1. VERBOS TRANSITIVOS DIRETOS. Nestas orações de Agustina Bessa Luís: Vou ver o doente. (OM,206.) Ela invejava os homens.(OM, 207.) a ação expressa por vou ver e invejava transmite-se a outros elementos (o doente e os homens) diretamente, ou seja, sem o auxílio de preposição. São, por isso, chamados VERBOS TRANSITIVOS DIRETOS, e o termo da oração que lhes integra o sentido recebe o nome de OBJETO DIRETO. 2. VERBOS TRANSITIVOS INDIRETOS. Nestes exemplos: Da janela da cozinha, as mulheres assistiam à cena. (R . de Queirós, TR, 15) Perdoem ao pobre tolo. (C. dos Anjos, DR, 235) a ação por assistiam e perdoem transita para outros elementos da oração (a cena e o pobre tolo) indiretamente, isto é, por meio da preposição a .Tais verbos são, por conseguinte, TRANSITIVOS INDIRETOS . O termo da oração que completa o sentido de um verbo TRANSITIVO INDIRETO denomina-se OBJETO INDIRETO. 3. VERBOS SIMULTANEAMENTE TRANSITIVOS DIRETOS E INDIRETOS. Nestes exemplos: O sucesso do seu gesto não deu paz ao Lomba. (M. Torga, NCM, 51.) Apenas lhe aconselho prudência (C. de Oliveira, CD, 94.) a ação expressa por deu e aconselho transita para outros elementos da oração, a um tempo, direta e indireta. Por outras palavras: estes verbos requerem simultaneamente OBJETO DIRETO e INDIRETO para completar-lhe o sentido. (Cunha & Cintra, 1985: 132-33) Ao longo do capítulo relacionado à transitividade verbal, esse assunto vai estar no nível da frase. Há nessa idéia a concepção de sintagma, a qual contempla o verbo e seus integrantes diretos e indiretos com a presença ou não de uma preposição. Contudo, chama-nos atenção a observação que os autores fazem quando afirmam que a análise da transitividade verbal deve ser feita de acordo com o texto, e não isoladamente (Cunha & Cintra, 1985: 134): A análise da transitividade verbal é feita de acordo com o texto e não isoladamente. O mesmo verbo pode estar empregado ora intransitivamente ora transitivamente; ora com objeto direto, ora com objeto indireto. Comparem-se estes exemplos: Perdoai sempre [ = intransitivo] Perdoai as ofensas [ = transitivo direto] Perdoai aos inimigos [ = transitivo indireto] Perdoai as ofensas aos inimigos [ = transitivo direto e indireto] Percebemos, então, que Cinta e Cunha (1985) já começam a ver a transitividade verbal não só no nível da sintaxe, mas dentro de uma situação que pode mudar de acordo com o uso, pois já a transferem para o nível do discurso. No entanto, eles não discutem tal situação, deixando-a em aberto no capítulo. 2 Transitividade: a visão de gramáticos de livros didáticos 2.2 Ulisses Infante Assim como Cunha & Cintra (1985), Infante (2001) também situa a transitividade no capítulo referente à sintaxe. Para introduzir o assunto, o autor utiliza o poema Dependência, da Mário Chamie, em que afirma que tal poema “mostra como o processo expresso pelo verbo depender não se encerra em si mesmo”, haja vista que se depende de algo ou depende de alguém: “Em outros palavras: depender não é simplesmente depender, mas sim depender de algo ou depender de alguém. Para se obter uma unidade de significação completa, é necessário explicitar aquilo ou aquele de que se depende” (Infante, 2001: 440). A noção de dependência é trabalhada por Infante(2001) para justificar que entre o verbo e os termos com os quais ele forma um todo significativo há uma relação de significação, caracterizando, assim, a transitividade: “Entre o verbo e os termos com que ele constituem um todo significativo existe uma relação que recebe o nome de transitividade. Essa relação baseia-se na significação das palavras – o sentido ‘transita’ do verbo para o seu complemento e vice-versa” (Infante, 2001: 440). Para o autor, a transitividade é a relação de transferência da ação do verbo para o seu complemento e/ou deste ao verbo. Vemos nesse caso, o mesmo conceito de transitividade abordado por Cunha & Cintra (1985). Ao relacionar a transitividade à noção de transferência – “o sentido transita”, Infante (2001) mais uma vez se volta ao poema dependência para explicar que na língua a relação de sentido entre o verbo e seus complementos é de extrema importância: “Como o texto nos mostra, a importância dos termos que complementam é tão grande quanto a importância dos termos complementados: na realidade, o que é fundamental para o funcionamento apropriado da língua é a relação estabelecida entre uns e outros.”(Infante, 2001: 440) Nesse sentido, percebemos que mais uma vez o autor tem a mesma posição de Cunha & Cintra (1985), onde a transitividade não é uma propriedade categórica do verbo, não está marcada no léxico. Esta depende,pois, do uso que o falante faz da língua. O verbo pode ser ou não usado transitivamente, de acordo com o contexto. Tal posicionamento é ratificado pelo autor na forma de “observações”: A transitividade de um verbo só pode ser efetivamente determinada num dado contexto. Observa nas orações seguintes como um mesmo verbo pode apresentar transitividade diferente de acordo com o contexto em que ocorre: (1) A chuva passou. (intransitivo) (2) Nos últimos segundos, o corredor queniano passou seu concorrente norte-americano. (transitivo direto) (3) Tenho de passar esta boa novidade a meus colegas. (transitivo direto e indireto) (Infante, 2001: 443) Nessas “observações”, verificamos que a posição do autor, em explicar que a transitividade de um verbo depende muito mais do contexto do que da oração isoladamente, está relacionado à transitividade como transferência de sentido que “transita” do verbo aos seus complementos, ou seja, é a partir da significação da relação desses termos que se pode dizer se o verbo é ou não usado transitivamente. Há, portanto, uma afinidade combinatória entre a função semântico-pragmática (sentido – uso) do verbo e sua ordenação na oração (sintaxe). No entanto, tal posição não é explorada nos exemplos citados ao longo do capítulo. A análise desses exemplos, como em (1), (2) e (3), resume-se ao fato de o verbo necessitar ou não de complemento e este ligar-se ao verbo precedido ou não de preposição, classificando-o em transitivo ou intransitivo . O conceito de transitividade como transferência de ação, levando em conta o conteúdo, é abandonado. O que se vê é uma análise isolada, descontextualizada da própria noção de transitividade a que o autor sugere no estudo. São exemplos soltos, elaborados com um único fim: detectar se o verbo precisa ou não de complemento. 2.2 Faraco & Moura Faraco & Moura (2000) também situam a transitividade no capítulo relacionado a sintaxe. O assunto é abordado para explicar a classificação do predicado verbal: “Para conhecer o predicado de uma oração, é preciso conhecer a predicação. Chama-se predicação verbal ao resultado da ligação que se estabelece entre o sujeito e o verbo e entre o verbo e o complemento” (Faraco e Moura, 2000: 441). A partir da classificação do predicado verbal como a conseqüente relação que se dá entre o sujeito e o verbo e entre este e o seu complemento, o autor caracteriza os verbos em intransitivo, transitivo ou de ligação1: 1. Verbo intransitivo – É aquele que não precisa de complemento, pois sua significação já é completa. O sentido do verbo não transita do sujeito para o complemento. (grifo nosso) (1) Crescem vendas de apartamentos novos. (Folha da Tarde) 2. Verbo transitivo – Trata-se de um verbo que precisa de um termo que lhe complete o significado. Esse termo chama-se objeto. Chama-se transitivo porque o seu sentido transita, passa do verbo para o objeto. (grifo nosso) (2) Caruaru acende 30 mil fogueiras. (jornal do Comércio, Recife) (Faraco & Moura, 200:441-42) Verificamos na passagem acima que a noção de transitividade abordada pelos autores se aproxima também da de Cunha & Cintra (1985), em que a transitividade é vista como transferência de ação do verbo para o seu complemento. Há, nesse caso, a integração das informações relativas à forma com aquelas relacionadas à combinação, que é o processo verbal. Aqui, denominado de predicação verbal. Assim, em (1) a ação expressa por “crescer” não é transferida a outro elemento da oração, está integralmente contida na forma do verbo. Já em (2), a ação atribuída ao verbo “acender” transfere-se a outro elemento da oração “30 mil fogueiras”. Há uma integração de sentido entre as informações relativas ao verbo com aquelas relacionadas ao complemento que se concedeu ao verbo. Nesse caso, o entendimento da oração deu-se a partir da transferência de informação que houve entre o verbo e o seu complemento. Ao explicar a predicação verbal, processo que determina ser o verbo transitivo ou não, eles abrem espaço, através de uma observação, para justificar que a transitividade deve ser vista levando-se em consideração a situação pela qual se encontra o verbo no texto, e não isoladamente “A classificação do verbo quanto à predicação deve ser feita de acordo com o texto em que o verbo ocorrer, e não isoladamente, pois mesmo pode ser empregado, com diferentes predicações: (3) O tempo virou (Verbo intransitivo). (4) O motorista virou o carro para a esquerda (Verbo transitivo direto).(Faraco & Moura, 2000: 444) Percebemos, no exposto acima, que o contexto é fator fundamental à existência ou não da transferência da ação do verbo para outros elementos na oração. É ele quem determina o sentido dessa ação, e não a forma isolada em que se encontra o verbo no texto. A transitividade do verbo pode ocorrer ou não, dependendo da situação na qual se encontra o verbo. Dessa forma, em (3) entende-se que a ação expressa pelo verbo virar é a de mudar. Tal ação é retratada pelo verbo para relacionar a mudança que houve no tempo, não precisando, então, ser transferida para os outros componentes da oração. Já em (4), a ação expressa pelo verbo virar está relacionada a alguém que mexeu com algo. Dessa forma, existe um agente que pratica a ação expressa pelo verbo e um paciente que é afetado por tal ação. Há, assim, uma idéia de transferência de ação em que o verbo foi o elemento responsável por essa transferência. Em (4), há uma idéia de transferência da ação expressa pelo verbo, em que o sujeito, agente dessa ação, provoca em um outro componente da oração, que por sua vez é modificado/afetado (o objeto) por essa transferência, caracterizando, assim, em uma oração transitiva. Já em (3), tal transferência não de dá, haja vista a não existência, no contexto, de um elemento afetado por essa mudança. O que implica em dizer que a transitiva ou não de uma sentença está relacionada a fatores discursivos. 1 Interessa-nos, nesta pesquisa, apenas o verbo ser ou não transitivo. Apesar de os autores situarem a transitividade levando em consideração a função semânticopragmática, bem como a ordenação dos componentes na oração (a sintaxe), não há no capítulo nenhuma abertura para discutir o assunto a partir dessa visão. O que existe são exemplos formulados para atender às regras já preestabelecidas pela norma culta. 3 Transitividade: a visão de alguns lingüísticas 3.1 Luiz Francisco Dias Francisco Dias (1999), em um artigo intitulado “fatos sintáticos e propriedades enunciativas: uma visão semântica da transitividade verbal”, estuda o fenômeno da transitividade enquanto fato lingüístico produzido no âmbito de uma semântica da enunciação. Para desenvolver esse estudo, o autor faz algumas reflexões sobre o conceito de transitividade verbal que se encontra nas gramáticas escolares, a partir das diferentes visões gramaticais do século XX: a de Said Ali e a de Cunha & Cintra, como podemos constatar na passagem abaixo: Para Said Ali (1927), a transitividade é um fato relativo à natureza das formas, e se situa no capítulo que estuda os vocábulos (lexeologia). Por outro, Cunha e Cintra (1985) situam a transitividade verbal no capítulo referente a sintaxe justamente porque um novo conceito aparece em sentido de integrar a formações relativas à forma com às relativas à combinatória. (Francisco Dias, 1999: 180) Após apresentar essas duas posições, o autor faz a seguinte indagação: “como identificamos a transitividade num enunciado?”. Como foram vistas duas visões diferentes sobre transitividade, ele esclarece que tais visões não parecem indicar uma diferença significativa, haja vista que “elas adquirem relevância na medida que são determinados para definição de transitividade enquanto fato lingüístico, no quadro das reflexões gramaticais em língua Portuguesa” ( Francisco Dias, 1999: 181) Além dessas duas posições das gramáticas escolares, ele faz uma análise crítica sobre transitividade da forma em que ela aparece na visão formalista de Mário Perini, como vemos abaixo: Perini (1995) radicaliza uma das posições sobre a transitividade apontadas até agora. No seu entender, a transitividade é uma questão de regência, no sentido de que um constituinte determina em parte a forma de outro constituinte. A base do tratamento da transitividade está na idéia de que o verbo tem propriedade de estipular os traços da estrutura em que ocorre. A transitividade seria portanto uma propriedade dos verbos enquanto o item lexical. (Francisco Dias 1999: 181) Ao analisar a noção de transitividade em Perini, o lingüista esclarece que tal noção aproxima-se da de Said Ali. No entanto, ressalta que, ao contrário da visão de Said Ali, a visão de transitividade em Perini é de natureza puramente sintática. Para justificar tal asserção, afirma que “um verbo é transitivo não porque exige uma informação que lhe complete o sentido, mas porque ele apresenta determinado comportamento na estrutura formal da sentença”(Francisco Dias, 1999: 182) A partir dessas noções sobre transitividade, o autor começa a discutir o assunto, considerando os aspectos enunciativos e as implicações de tais noções para configuração de um conceito de fato lingüístico. Para isso, encaminha a discussão tomando como ponto de partida o verbo fazer, na medida em que este já havia sido analisado por Perini como um verbo que exige objeto direto, independente de seu aparecimento ou não no enunciado: “Perini observa que o verbo fazer pode parecer sem o objeto direto se a situação de comunicação deixar suficientemente claro qual é a coisa feita”. (Francisco Dias, 1999: 184) Ao apresentar enunciados com o verbo fazer, em que não há presença do objeto, como: (6) Quem sabe, faz. (7) Quem fez, fará. (8) Rouba, mas faz. (9) Em Goiás, o governo faz. (10) O governo faz por Mato Grosso. O autor esclarece que, nesses enunciados, dificilmente poderíamos definir uma “situação de comunicação” em que se pode identificar a “coisa feita”, pois existe um “intervalo significativo, devido à própria natureza simbólica da linguagem, entre a palavra e sua exterioridade que tem no real o seu efeito” (Francisco Dias, 1999:185) Por isso, ele estuda essas situações levando em consideração a convergência enunciativa, que é a relação de sentido, a qual converge para os enunciados, e destaca que alguns elementos da enunciação não estão marcados no léxico, tampouco no complemento, e sim no “domínio do dizer”. Dessa forma, a transitividade é concebida a partir da idéia de que alguns verbos envocam uma procura por um “objeto”, relacionado aos vários direcionamentos enunciativos os quais se “configuram em domínios discursivos diversos”. Assim, o que denota de “objeto” é uma entidade enunciativa, a qual representa fato lingüístico enquanto forma. 3.2 Perini Perini (1995) trabalha a transitividade verbal a partir de uma visão de regência. Segundo ele, os verbos fazem exigências quanto a existência de alguns termos na oração. Alguns exigem objeto direto ou indireto; outros aceitam livremente a presença ou ausência desses termos. Para ele, a base da transitividade está no fato de que o verbo tem caráter de determinar os traços da estrutura na qual ocorre. A transitividade seria, pois, uma característica dos verbos enquanto item lexical. Francisco Dias (1999: 181) faz um comentário acerca dessa idéia: Seguindo esse raciocínio, Perini disthngue dois tipos de informação sobre os itens lexicais: a informação particularizada, relativa ao contexto em que o item ocorre na estrutura em um uso específico, vale dizer, num enunchado específico e a informação generalizada, relativa ao contexto em que o item pode ocorrer na estrutura, independente do seu aparecimento num enunciado específico. A informação generalizada é fornecida para o item “em estado de dicionário”, num estágio anterior ao seu aparecimento no enunciado. A informação particularizada serviria para avaliarmos se a nossa descrição tem base nos fatos. Verificamos, a partir do comentário de Francisco Dias, que a visão de transitividade de Perini se aproxima da de Said ali. Contudo, vale salientar que tal visão, diferente da de Said Ali, é de natureza puramente sintática: um verbo é transitivo porque apresenta certa característica na estrutura formal da sentença, e não porque exige uma informação que lhe complete o sentido. Para Perini (1995), o traço formal [EX-OD]2, o qual marca verbos como fazer , estabelece uma informação sintática e não semântica. Tal informação seria generalizada, pois esse verbo só se apresenta com objeto direto: (1) Evaristo faz lindas cortinas. (2) *Evaristo faz. Em outros verbos, como é o caso do verbo comer, o autor propõe que sejam marcados com o traço [L-OD]3 , tendo em vista que podemos encontrar: (2) Meu gato comeu toda a comida. (3) Meu gato já comeu. (4) Meu gato quase não come. Ao nos depararmos com tal proposta, percebemos um equívoco na idéia de transitividade de Perini. Como vimos, para ele o verbo fazer exige sempre objeto direto; e verbos como comer são livres de objeto direto, ou seja, como em (2), (3) e (4) podem apresentar objeto direto, indireto ou ser intransitivo. Essa proposta abre espaço para mostrarmos que a transitividade não seria apenas uma característica dos verbos, mas também do contexto, pois se não o fosse como Perini explicaria, então, a [E-OD] 2 do verbo fazer nas seguintes situações: 2 3 Entende-se “exige objeto direto”. Entende-se “livre ocorrência de objeto direto” (5) Quem sabe, faz ao vivo. (Fausto Silva, apresentador de TV) (6) ... eu comecei a chorar e era tanto choro ... eu chorando ... morrendo com a dor ... aí quando a minha amiga chega ... a que tava lá embaixo ... que foi ... foi ... espantada ... toda preocupada ... “e agora o que a gente faz?”...(Informante do terceiro grau , narrativa de experiência pessoal, 1998:53) (7) Quem quer faz, quem não quer manda. (ditado popular) Se o autor afirma que o verbo fazer sempre aparece com objeto direto, e explica que a transitividade é uma questão de regência, que tem a ver com a sintaxe, com a estrutura da sentença, como se explicaria esse verbo em (5) (6) e (7)? Se a transitividade não é uma questão de contexto, como se justificaria a não existência de objeto direto nessas sentenças? Se a exigência de objeto direto para o verbo fazer é categórica, como afirma Perini, não se constataria a ocorrência de fazer como em (5), (6) e (7). Tentamos mostrar que a transitividade não é uma questão só de sintaxe, mas também de semântica e, sobretudo, discursiva. É o contexto de ocorrência que norteia a classificação de um dado verbo como + ou – transitivo. Em termos mais precisos, a determinação da transitividade de uma oração é sensível ao contexto discursivo imediato. 4 Transitividade : uma visão funcionalista Para a Lingüística Funcional, a língua é usada em parte para satisfazer as necessidades comunicativas. Conseqüentemente, o estudo da língua deve incluir o da situação comunicativa, o qual envolve o propósito do ato de fala, seus participantes e seu contexto discursivo. As estruturas sintáticas devem ser explicadas, nessa linha de pesquisa, com base no uso real a que elas se prestam na situação da comunicação, pois a forma da língua reflete a função que exerce ou é por ela restringida. Caso a língua seja concebida, primordialmente, como instrumento de comunicação, a tarefa de descrição lingüística deve alcançar o exame das circunstâncias discursivas, envolvendo, então, as estruturas lingüísticas e seus contextos de uso. Beaugrande apud Neves (1997:23-24) afirma que uma das propriedades do funcionalismo é superar a abordagem modular típica do formalismo, em que “um esquema de ‘níveis’ ou ‘componentes’ (cada um deles definido por suas formas) pode ser construído como uma divisão de trabalho entre escolas ou departamentos isolados, um para estudar fonologia e outro para morfologia, um para sintaxe, um para semântica e um para pragmática”. O funcionalismo supera, assim, a abordagem formalista, porque se preocupa com o estudo da utilização da língua em situação comunicativa, priorizando o componente pragmático, ao qual estariam ligados os componentes sintático e semântico. A integração desses componentes é, hoje, uma das características de qualquer abordagem funcionalista. Partindo dessa integração, Givón (1984:40) manifesta o objetivo de fornecer “um quadro explícito, sistemático e abrangente da sintaxe, semântica e pragmática unificadas como um todo” . Segundo o autor, nessa unificação, a gramática não constitui uma simples lista não-ordenada de domínios funcionais não relacionados. Ao contrário, ela parece ser interiormente estruturada como um conjunto, no qual alguns subsistemas são mais relacionados entre si – quer em função, quer em estrutura – do que outros, e exibem uma hierarquia complexa. A sintaxe é vista por Givón como a codificação de dois diferentes domínios funcionais: a semântica (proposicional) e a pragmática (discursiva). Dessa forma, uma sentença que transmite apenas informação semântico-proposicional, e não função pragmático-discursiva, não existe na comunicação real, apenas pode retratar um segmento artificial descontextualizado, para fins de análise. Por isso, a ria transitividade deve ser vista como um metafenômeno, o qual é responsável pela codificação sintático-estrutural das funções de fato semântico e pragmático. 4.1 Transitividade para Hopper & Thompson Hopper & Thompson (1980) propõem o conceito de transitividade como um universal discursivo, contrariando, assim, o ponto de vista da Gramática Tradicional, em que transitividade refere-se à transferência de uma ação de um agente para um paciente, centrada, apenas, no verbo. Defendem como um parâmetro que reflete a fatores sintáticos e semânticos, bem como a mediação de fatores discursivos. Esse parâmetro é visto intrinsecamente relacionado à organização de planos no discurso, pois apresenta distinção entre aquilo que é central (figura), a qual se forma das partes que colaboram no propósito comunicativo do falante; e aquilo que é periférico (fundo), o qual se constitui das partes que só ampliam, discutem ou fundamentam a narrativa central, sem deixá-la progredir. Para H&T, a transitividade oracional é concebida como uma noção contínua (não categórica), escalar, condicionada por dez parâmetros sintáticos e semânticos, independentes, que compõem o complexo de transitividade. Cada um desses parâmetros contribui para a ordenação de orações segundo o grau de transitividade que manifestam. São eles: 1 Participantes (um ou mais) 2 Cinese (ação) 3 Aspecto (mais ou menos completo) 4 Punctualidade do verbo (mais ou menos punctual) 5 Intencionalidade do sujeito (mais ou menos intencional) 6 Polaridade da oração (mais ou menos afirmativa) 7 Modalidade da oração (mais ou menos real) 8 Agentividade do sujeito (mais ou menos agente) 9 Afetamento do objeto (mais ou menos afetado) 10 Individuação do objeto (mais ou menos individuado) Embora independentes , esses dez traços de transitividade funcionam juntos e articulados na língua, o que significa que nenhum deles sozinho é suficiente para determinar a transitividade de uma oração. A manifestação de cada um desses traços está ligada às necessidades de expressão dos usuários, ou seja, a uma função discursiva/comunicativa, em que o maior ou menor grau de transitividade reflete a maneira como o falante estrutura o seu discurso, a fim de atingir seus alvos comunicativos. Dessa forma, a alta transitividade se liga ao propósito comunicativo do falante, permanecendo, então, no plano da “figura”; e a baixa transitividade, ao que é discutido e ampliado nesse propósito, estando, pois, no plano de “fundo”. Assim, aplicando os parâmetros de transitividade, desenvolvidos por Hopper & Thompson, nos verbos fazer em (8) e (9), temos: (8)...durante a semana tenho corrido aí na praia...eu corro dois dias e três dias eu faço exercícios parado...localizados mesmo. (Informante do terceiro grau, descrição de local, 1998:117) (9)... o que que os jovens faz:: que num é de acordo ... e eles não vê esses contrastes que geralmente existe na adolescência e já mais ou menos adulto ... (Informante do terceiro grau , narrativa de experiência pessoal, 1998: 73) PARÂMETROS Participantes Cinese Aspecto Ponctualidade do verbo Intencionalidade do sujeito Polaridade da (8) (9) +1 +1 -1 -1 -1 +1 -1 -1 +1 +1 +1 +1 oração Modalidade da oração Agentividade do sujeito Afetamento do objeto Individuação do objeto Total de pontos +1 +1 +1 +1 +1 -1 +1 -1 08 05 Ao fazer a aplicação dos traços de transitividade do verbo fazer em (8), verificamos que este apresenta na oração um alto grau de transitividade, pois obteve oito pontos. Isso implica dizer que o propósito comunicativo do falante foi atingido, ou seja, ele estruturou todo o seu discurso para alcançar seu alvo comunicativo. No caso mostrar ao seu interlocutor que faz exercícios parado e localizado e com isso, talvez, justificar a sua boa forma. Em (9), apesar de termos o mesmo verbo, observamos que a oração apresentou um grau de transitividade menor em relação à anterior, apenas cinco pontos. Isso demonstra que o falante estrutura a sua informação, tem claro o seu alvo discursivo, mas não pretende atingi-lo de imediato. Assim, ratificamos a idéia de que a transitividade não é uma questão só de sintaxe, mas também de semântica e, acima de tudo, do contexto. É a situação de ocorrência que norteia a classificação de um dado verbo como + ou – transitivo, bem como a determinação da transitividade de uma oração é sensível ao contexto discursivo imediato. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como pudemos observar, o estudo sobre transitividade, nesta pesquisa, foi centrado nos trabalhos já desenvolvidos com base no paradigma da Lingüística Funcional Contemporânea, bem como em conceitos também trabalhados por gramáticos tradicionais, autores de livros didáticos e lingüistas. Partindo do princípio de que esse paradigma tem por objetivo estudar a língua em seu contexto de uso, através de textos falados e escritos, produzidos em situações reais de comunicação, estudamos o assunto com base nas pesquisas realizadas por Hopper & Thompson(1980). Contudo, para chegarmos a fazer análise de textos reais, procuramos observar qual a visão que alguns gramáticos tradicionais, autores de livros didáticos e lingüistas têm sobre o assunto. Verificamos que estes vêem a transitividade verbal apenas como um processo sintático, exceção feita a Said Ali, que a vê como um processo da lexeologia, ou seja, do vocábulo, e a Francisco Dias que estuda o assunto levando em consideração o enunciado. Apesar de Cunha & Cintra, gramáticos tradicionais, bem como de os autores de livros didáticos, aqui estudados, já citarem que a transitividade do verbo deverá levar em conta o contexto, não há uma exploração contextualizada sobre o assunto, e, assim, deixam sempre o tema em aberto no capítulo. A partir da análise feita por Perini, que conceitua a transitividade através da regência, discutimos a visão de transitividade, baseando-nos em estudos já desenvolvidos por Hopper & Thompson. Estes propõem um conceito de transitividade como universal discursivo, e não como a transferência de uma ação de um agente para um paciente, centrado só no verbo, e sim no contexto. Tomando por base os verbos estudados por Perini (o verbo fazer, principalmente), centramos a nossa análise. Verificamos que ao trabalhar a transitividade levando em consideração os traços [EX-OD]2 e [L-OD]3, tendo-a apenas como uma questão sintática, Perini não se mostra certo, pois ao analisar orações com o verbo fazer, que segundo o lingüista [EX-OD]2, percebemos que esse traço, em determinadas situações, não enquadraria a oração como totalmente transitiva, como foi o caso em (5), (6), (7) e (9). Observamos, então, que a marcação de “exigência” ou “livre” do objeto “direto”, sugerida por Perini, não funciona quando nos deparamos em outros usos reais. Analisamos, assim, as sentenças discursivas a partir do grau de transitividade, que manifestam segundo Hopper & Thompson que, como vimos, associam o universal lingüístico transitividade a uma função discursiva, em que o maior ou menor grau de transitividade da oração reflete como o falante estrutura o seu discurso para atingir seus alvos comunicativos. Considerando que a alta transitividade se liga ao propósito comunicativo do falante e que esta permanece no plano da figura; e a baixa transitividade, ao que é discutido e ampliado nesse propósito, estando no plano de fundo, constatamos que ao fazer a aplicação dos dez parâmetros de transitividade, o verbo fazer em (8) apresentou um alto grau de transitividade; já em (9), um baixo grau. Tal constatação demonstra que o falante estrutura a sua informação para atingir de imediato, ou não, seu alvo discursivo, e intensifica o argumento de H&T de que a transitividade é escalar, não categórica. É, antes de tudo, não só uma questão de sintaxe, mas também de semântica e, sobretudo, discursiva. REFERÊNCIA BOBLIOGRÁFICA CUNHA, Celso e CINTRA, Luís F. Lindley . Nova Gramática do Português Contemporâneo.2ª edição/14ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. DIAS, Luiz Francisco. Fatos sintáticos e propriedades enunciativas: uma visão da transitividade verbal. HORA, D. da & CHRISTIANO, E, (orgs). Estudos lingüísticos: realidade brasileira. João Pessoa: Idéia, 1999. FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto de. Gramática. 12ª edição. São Paulo: editora Ática, 2000. FURTADO da CUNHA, Maria Angélica. Transitividade e Passiva. Revista de Estudos da Linguagem. Belo Horizonte, ano 5, n. 4, v. 1, p. 43-46,1996. _______(org.). Corpus Discurso & Gramática – A Língua Falada e Escrita do Natal. Natal: EDUFRN, 1998. GIVÓN, Talmy. Syntax l. Nova York: Academic Press, 1984. HOPPER, Paul J. e THOMPSON, Sandra A .Transitivity in Grammar and Discourse. Language. 56(2): 251-299, 1980. INFANTE,Ulisses. Curso de Gramática Aplicada aos Textos. 6ª edição. São Paulo: Editora Scipione, 2001. NEVES, Maria Helena de Moura. A Gramática Funcional. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1997. PERINI, Mário A . Gramática descritiva do português. São Paulo: Editora Ática, 1995. SAID ALI, M. Gramática Secundária da Língua Portuguesa. 3ª edição. São Paulo: Editora Universidade de Brasília, 1964. _______ SAID ALI, M. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. 6ª edição. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1966.