CAMINHOS DE GEOGRAFIA - revista on line http://www.ig.ufu.br/revista/caminhos.html ISSN 1678-6343 Instituto de Geografia ufu Programa de Pós-graduação em Geografia O VIVER E O HABITAR: OS CICLOS DA NATUREZA E OS USOS DOS TERRITÓRIOS 1 FLUVIAIS NO RIO SÃO FRANCISCO - PIRAPORA/MG Ângela Fagna Gomes de Souza Mestranda em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU [email protected] Rodrigo Herles dos santos Mestre em Geografia pela UFU e analista ambiental do IBAMA [email protected] Geraldo Inácio Martins Mestrando em Geografia pela UFU e orientando do professor João Cleps Júnior [email protected] Carlos Rodrigues Brandão Prof. Dr. do Programa de Pós-graduação em Geografia - UFU carlosrbrandã[email protected] RESUMO A intenção deste artigo é discutir algumas abordagens sobre o espaço geográfico do município de Pirapora/MG, local onde desenvolvemos nossa pesquisa. Buscamos primeiramente analisar o cenário agrário do município e posteriormente a forma de ocupação territorial das ilhas existentes no rio São Francisco. Em função das mudanças socioterritoriais ocorridas no campo, principalmente pela adoção de modernas técnicas agrícolas, os camponeses deste município se viram sujeitos a adoção de novas práticas cotidianas. Passaram a buscar novos espaços de produção, encontrando no território das ilhas, um pequeno pedaço de terra rodeado pelas águas, um lugar de refúgio para viver. Espaço este bastante limitado e adverso, com características bem diferenciadas das que estavam acostumados a viver nas grandes fazendas. Abordamos a articulação entre as categorias de análise procurando compreender, através da organização sócio-territorial, como o espaço das ilhas pode ser definido de acordo suas funcionalidades e representatividades. A ilha fluvial estudada tem seu território definido em função dos ciclos da natureza, possuem limites inconstantes, é ocupada e utilizada somente quando as estações climáticas são favoráveis. Traremos o conceito de território analisado segundo as relações sociais existentes, envolvendo o poder simbólico e cultural. As pessoas que habitam os espaços da ilha vivem de acordo com a mutação deste seu território, estão a cada dia, sujeitos a perdas e reconquistas em função do movimento das águas. Palavras-chave: Território, uso e apropriação espacial, ilhas, rio São Francisco, identidades, município de Pirapora. TO LIVE AND INHABIT: NATURE CYCLES AND THE USES OF THE FLUVIAL TERRITORIES ON SÃO FRANCISCO RIVER - PIRAPORA/MG ABSTRACT The intent of this article is to discuss some approaches about the geographical area of the municipality of Pirapora / MG. At first we analyze the agrarian scene in the city and then the form of territorial occupation of the islands in the San Francisco river. Because of socio-territorial changes in the field, especially the adoption of modern agricultural techniques, peasants found themselves forced to adopt new daily 1 1 Recebido em 22/03/2010 Aprovado para publicação em 14/11/2010 Caminhos de Geografia Uberlândia v. 11, n. 36 dez/2010 p. 308 - 317 Página 308 Ângela Fagna Gomes de Souza Rodrigo Herles dos santos Geraldo Inácio Martins Carlos Rodrigues Brandão O viver e o habitar: os ciclos da natureza e os usos dos territórios fluviais no Rio São Francisco Pirapora/MG practices. They started to seek new production areas, and found those places on the islands, small piece of land surrounded by water, a place of refuge for living. The Islands space was very limited and adverse, with clearly distinguished characteristics compared with the big farms. We discuss the relationship between the categories of analysis in order to understand by the socio-territorial organization how the islands spaces can be defined according their functionality and representativity. The researched Island defines its territory by nature cycles. It has inconsistent limits, It is occupied and used just when the seasons are favorable. We will introduce the concept of territory analyzed on existent social relation, involving the symbolic power and cultural. The people who inhabit the island lives according the mutation of this territory and are subject to losses and reconquests because of the water movement. Key words: territory, space use and appropriation, islands, São Francisco river, Identity, Pirapora municipal district INTRODUÇÃO O presente artigo faz parte de pesquisa desenvolvida no curso de Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia-UFU, sob a orientação do Prof. Dr. Carlos Rodrigues Brandão, e do trabalho do projeto de pesquisa financiado pela Fapemig e CNPq denominado “Opará: tradição, identidades, territorialidades e mudanças entre populações rurais e ribeirinhas no sertão roseano” – ligado ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. Ao longo do texto procura-se discutir as confluências existentes no espaço geográfico do município de Pirapora/MG, visando entendê-lo a luz das teorias e das pesquisas realizadas durante a vigência do citado grupo de pesquisa e das discussões geradas no ambiente acadêmico. Objetiva-se analisar as particularidades existentes no ambiente das ilhas fluviais do município de Pirapora/MG, procurando articular conceitos e avançar nas pesquisas dos povos ribeirinhos que vivem e trabalham na região da bacia do rio São Francisco. A busca por um trabalho multi (ou trans) disciplinar partiu do envolvimento de vários profissionais de áreas afins que participam ativamente do projeto trocando conhecimento e experiências, o que nos faz crer que avançamos no sentido de entender as mudanças do mundo rural em especial, neste caso, das comunidades tradicionais. Procura-se com este trabalho trazer para a discussão a articulação de algumas abordagens, não tendo a pretensão de esgotar todas as possibilidades neste primeiro momento, por se tratar de um estudo continuado. O texto ficou organizado em três momentos, a saber: 1. Introdução, buscando em um panorama geral, descrever o cenário do espaço agrário do município de Pirapora/MG e suas implicações no local da pesquisa. 2. Desenvolvimento, partindo primeiramente do referencial teórico adotado e, posteriormente, de uma análise das relações sociais existentes em escalas micros, enfocando as especificidades das ilhas do rio São Francisco. 3. Considerações, tecendo algumas abordagens, procurando refletir como as análises tratadas contribuem para o entendimento do local da pesquisa. Em geral, procurou-se através deste trabalho a realização de uma leitura dos processos sociais e territoriais existentes no município de Pirapora/MG, em especial da Ilha das Pimentas, presente neste espaço. O olhar: a metodologia da pesquisa Para entender a necessidade da pesquisa é necessário considerar as reflexões de pesquisadores que proporcionem saberes dinâmicos, compreendendo que o “ser pesquisador” encontra-se a cada dia motivado por novos ensinamentos e por perspectivas teóricometodológicas de fundamental importância, na busca continuada de um estudante/pesquisador. Caminhos de Geografia Uberlândia v. 11, n. 36 dez/2010 p. 308 - 317 Página 309 Ângela Fagna Gomes de Souza Rodrigo Herles dos santos Geraldo Inácio Martins Carlos Rodrigues Brandão O viver e o habitar: os ciclos da natureza e os usos dos territórios fluviais no Rio São Francisco Pirapora/MG Para melhor compreensão do local pesquisado, foi necessário o levantamento bibliográfico de alguns autores da geografia, economia, antropologia e das ciências sociais que tratam esta temática. Posteriormente, foram realizados alguns trabalhos de campo entre os meses de julho e agosto de 2008 e julho de 2009, visando entender com maior precisão a realidade pesquisada. A metodologia desta pesquisa baseou-se nos estudos e reflexões produzidos por Brandão (1995a, 1999), para compreender o processo da pesquisa e atuação do pesquisador no trabalho, isto é, como ele participa da pesquisa que desenvolve. Ainda em referência a Brandão (2003), quando descreve sobre o processo da entrevista, este remete aos dilemas e os cuidados na sua condução. Por sua vez, Malinowski (1978) nos lembra que em pesquisas devemos tentar compreender a realidade, com suas múltiplas interfaces e interações nos trabalhos e vivências com o ambiente pesquisado, além de Santos (1999) e Santos et al. (2006), que atentam para a observação do fato geográfico durante as etapas da pesquisa. Ao seguirmos este caminho, os procedimentos metodológicos devem nos aproximar ao máximo de uma abordagem qualitativa, trabalhando na perspectiva de uma prática da pesquisa participante, que em linhas gerais, compreende a investigação científica como práxis, ou seja, um encontro indissociável entre teoria e prática para a resolução dos problemas científicos propostos. Como referência empírica, o ‘lócus’ de investigação é a Ilha das Pimentas, localizada no rio São Francisco, compreendendo a extensão geográfica do município de Pirapora-MG. Nesta perspectiva, procurou-se fazer uma incursão histórica, buscando descobrir os principais pontos de rupturas que fizeram com que hoje existam pessoas que moram e trabalham em um lugar tão adverso como em uma pequena ilha fluvial. O CENÁRIO: leitura geográfica da paisagem pesquisada A nova perspectiva de desenvolvimento socioeconômico, em função do capitalismo no campo, vem beneficiando apenas as empresas privadas subsidiadas pelos incentivos públicos, demonstrando as recentes técnicas de produção, que contribui para a transformação do espaço Norte Mineiro, cada vez mais produtivo e seletivo, espaço este que vem se mostrando receptivo à difusão das inovações tecnológicas, adaptando-se as novas demandas de produção, tecnificando-se e transformando-o, em poucos anos, em uma área de agricultura capitalista fortemente consolidada. São atividades recentes nestas áreas, mas que demonstram o reordenamento espacial marcado pela presença de capital e de técnica, procurando adequar-se aos níveis de desenvolvimento exigidos pelo sistema econômico atual. Parte-se da análise de Santos (1999) sobre a difusão do meio técnico-científico-informacional, para compreender as transformações ocorridas no espaço rural de Pirapora/MG (Mapa 1), que passou de espaço de agricultura de auto-sustento e agropecuária extensiva, para espaço de produção capitalista. Procura-se analisar, em especial, os reflexos e as principais mudanças advindas da adoção de inovadas técnicas de produção neste município. A implantação e consolidação das grandes propriedades agrícolas por meio de um conjunto de modernas inovações científicas modificou a própria lógica da natureza, atingindo uma artificialização do espaço agrário: Da mesma forma como participam da criação de novos processos vitais e da produção de novas espécies (animais e vegetais), a ciência e a tecnologia, junto com a informação, está na própria base da produção, da utilização e do funcionamento do espaço e tendem a constituir o seu substrato. Santos (1999, p. 190). A conseqüência desta modernização é uma paisagem natural devastada, com o espaço de vivência reconfigurado em um espaço de produção comercial. A vida é mudada, os lugares são desarticulados, as relações de trabalho anteriormente baseadas no núcleo familiar, atualmente se adéquam as novas relações de produção baseadas no lucro e na produção intensiva. A seletividade do campo fez com que os camponeses desta região passassem por um intenso Caminhos de Geografia Uberlândia v. 11, n. 36 dez/2010 p. 308 - 317 Página 310 Ângela Fagna Gomes de Souza Rodrigo Herles dos santos Geraldo Inácio Martins Carlos Rodrigues Brandão O viver e o habitar: os ciclos da natureza e os usos dos territórios fluviais no Rio São Francisco Pirapora/MG processo de expropriação em função das inovações tecnológicas: as unidades familiares foram desarticuladas. Sem trabalho e terra para cultivar, os pequenos produtores se viram obrigados a sair de seu lugar de convívio e migrarem para outros espaços em busca de alternativas de emprego. Foi neste contexto, que encontraram no território das ilhas fluviais presentes no rio São Francisco, na região do município de Pirapora/MG, um lugar de moradia. Buscaram, a partir de então, adequar-se a outro modo produzir em função da constante busca por um espaço de vivência. Organização:- RIBEIRO, Raphael Medina, 2009. Mapa 1 - Localização do município de Pirapora-MG Nesta nova realidade, os camponeses do município passaram a ocupar um pequeno pedaço de terra rodeado pelas águas, um lugar com características bastante diferenciadas das que estavam acostumados a viver nas grandes fazendas. Estas ilhas fluviais são territórios peculiares, onde vivem pessoas que fazem do convívio, na simplicidade do cotidiano, um verdadeiro mosaico de cultura. São moradores que ocuparam terras que não consideram de sua propriedade, mas sim “do rio”. Constroem suas casas com a Caminhos de Geografia Uberlândia v. 11, n. 36 dez/2010 p. 308 - 317 Página 311 Ângela Fagna Gomes de Souza Rodrigo Herles dos santos Geraldo Inácio Martins Carlos Rodrigues Brandão O viver e o habitar: os ciclos da natureza e os usos dos territórios fluviais no Rio São Francisco Pirapora/MG certeza de que mais cedo ou mais tarde podem ser tomadas e devastadas pelas águas. Estão sujeitos a perdas e reconquistas a cada ano de cheia do rio São Francisco. As mudanças socioterritoriais impuseram novas práticas cotidianas a estes sujeitos, que sempre carregam consigo modos de vida e laços culturais de um viver tipicamente rural. A ocupação de um espaço por um grupo de pessoas envolve a construção e a transformação deste espaço para prover as necessidades de sustento, de moradia de manifestações diversas de fé, crenças e partilha, da sociabilidade e das culturas que essas pessoas carregam de seus lugares. Reproduzir seus modos de vida são características da coletividade humana. Este espaço humano construído e habitado se transforma em lugar, a partir das ralações que vão se estabelecendo, entre as gentes, na construção de suas histórias. De Paula et al. (2007, p.16) Apesar de todas as mudanças advindas de um novo lugar de vivência, os moradores habitantes das ilhas procuram criar laços de afetividade com o seu lugar de acolhida, criando arranjos e estratégias de pertencimento nestes espaços. São as formas de convívios que fazem com que a maioria das famílias expropriadas busque estar apoiados em símbolos, visto que estes sujeitos convivem com a esperança de sobrevivência de um modo de vida em territórios até então desconhecidos por eles. O lugar nesta perspectiva passa a ser entendido enquanto reprodução dos modos de vida, pausa e de afirmação identitária. Tuan (1983) salienta que o lugar pode ser definindo como símbolo, vida, sonho, e trabalho todos mediatizados pelo sujeito, em suas mais variadas formas. Segundo ele o lugar é onde se constrói a vida, uma fração do espaço onde os homens reconhecem a sua história, estabelecem suas relações, criam vínculos, laços de pertencimento e identidade. Tuan (1983) acrescenta que um espaço só se transforma em lugar, a medida que adquire definição e significado, sendo a experiência uma das características fundamentais do lugar, pela qual as pessoas conhecem e constroem a realidade. Quanto mais se conhece um lugar, maior é o seu valor. O traço de afeição e identificação diz respeito à força do sentimento, do reconhecimento e da sensação de pertencimento nos lugares. Precisamos, contudo, considerar o contraditório, o movimento, os arranjos e as estratégias que estes moradores das ilhas criaram para permanecerem nestes novos lugares. Existem as incertezas e ansiedades por não morarem em um lugar fixo, de possuírem casas improvisadas (Fig. 1) e viverem em uma vigília constante de suas plantações. A qualquer momento de cheia do rio, suas casas, os animais, todas as plantações e produção ficam sujeitos a serem levados pelas águas. Nesse sentido, os moradores que hoje vivem nas pequenas ilhas do rio São Francisco podem ser caracterizados como sujeitos camponeses, que criam no território vínculos de pertencimento e enraizamento através dos seus modos de vida e trabalho. A conceituação de camponês, como afirma Moura (1998), é aquele que junto com sua unidade familiar retira da terra todo o seu sustento. É um observador dos elementos naturais, água, terra, sol e chuva. Povo que partilha uma história de vida em comum e seguem a mesma tradição, ou seja, vivem o mesmo tempo e dividem o mesmo espaço. Lógicas de apropriação da natureza: os ciclos das águas e a metamorfose do território A partir deste ponto serão abordados os modos de vida do sujeito camponês, homens e mulheres que se apropriam de uma parcela do espaço, criando e modificando tanto a sua vida, quanto de seu lugar de convívio, através do viver o/do rural. São pessoas que migraram para as ilhas fluviais na busca por manterem suas relações sociais específicas de um devir peculiar característico do campo, porém adaptados a novos ambientes e formas de produzir. O território das ilhas fluviais é para os seus moradores uma maneira de se auto-afirmarem enquanto construtores de formas próprias de produção. Em função das necessidades básicas de sobrevivência, os que vivem nas ilhas partilham saberes e estabelecem vínculos, com a intenção de se manterem enquanto viventes de um grupo e pertencentes a um espaço. Caminhos de Geografia Uberlândia v. 11, n. 36 dez/2010 p. 308 - 317 Página 312 Ângela Fagna Gomes de Souza Rodrigo Herles dos santos Geraldo Inácio Martins Carlos Rodrigues Brandão O viver e o habitar: os ciclos da natureza e os usos dos territórios fluviais no Rio São Francisco Pirapora/MG Autora: SOUZA, A. F. G. Julho/2009. Figura 1- Casa típica dos moradores da ilha da Pimenta município de Pirapora/MG Podemos pensar a constituição do espaço geográfico das ilhas fluviais do São Francisco (Fig. 2) a partir dos ciclos da natureza. Mas, como entender de que forma estes espaços quase imperceptíveis podem ser habitados e produtivos? Ilha das Pimentas Rio São Francisco Autora: SOUZA, A. F. G. Julho/2009. Figura 2 - Vista panorâmica da ilha da Pimenta município de Pirapora/MG. Caminhos de Geografia Uberlândia v. 11, n. 36 dez/2010 p. 308 - 317 Página 313 Ângela Fagna Gomes de Souza Rodrigo Herles dos santos Geraldo Inácio Martins Carlos Rodrigues Brandão O viver e o habitar: os ciclos da natureza e os usos dos territórios fluviais no Rio São Francisco Pirapora/MG O território das ilhas são formados e passam a ser espaços de moradia e produção material em função dos ciclos das águas. Estes territórios são ocupados e utilizados somente quando as estações climáticas são favoráveis. O movimento espacial acontece pelas observações da natureza. O limite territorial é ditado pelo movimento das águas, as fronteiras são estabelecidas pelas “cheias” e “secas” do rio. Esta mobilidade territorial delimita o uso do território de acordo como a natureza o forma. Assim, a cada ciclo das águas o espaço físico é re-configurado e cabe aos seus moradores adaptarem-se a ele. A configuração socioespacial das ilhas fluviais do São Francisco permite uma variação na vida cotidiana de seus moradores em função do movimento das águas sendo, portanto, um território de fluidez, onde as ações acontecem em função da “mobilidade”. Conforme reflete Mascarenhas (2006, p. 155) “como pensar, por exemplo, a presença simultânea da concentração e da dispersão, ou os territórios estáveis e a mobilidade, ou ainda a dualidade das culturas sem território”. Estes territórios com extensão geográfica definida pelas inconstâncias da natureza se formam e se dissolvem, mas permanecem sendo referência na vida dos que vivem e dependem dele. As pessoas não consideram como essenciais à forma como este é constituído, mas sim de que forma poderá retirar dele a sua sobrevivência. As formas geográficas das ilhas mudam, mas a produção humana continua, com mais ou com menos espaço. [...] formar-se e dissolver-se, construir-se e dissipar-se de modo relativamente rápido [...], ser antes instáveis que estáveis ou, mesmo, ter existência regular mas apenas periódica, ou seja, em alguns momentos – e isto apesar de que o substrato espacial permanece ou pode permanecer o mesmo. Souza (1995, p. 87) O que caracteriza o espaço de uma ilha fluvial é a sua instabilidade sazonal, as flutuações de usos ou a mobilidade das fronteiras. Isso porque são pequenas extensões de terras rodeadas pelas águas do rio São Francisco (Figs. 3, 4). Margem esquerda do rio São Francisco Lateral da ilha das Pimentas Autora: COTTA, Elisa. Jul./2007. Figura 3 - Ilha da Pimenta localizada no município de Pirapora/MG. Caminhos de Geografia Uberlândia v. 11, n. 36 dez/2010 p. 308 - 317 Página 314 Ângela Fagna Gomes de Souza Rodrigo Herles dos santos Geraldo Inácio Martins Carlos Rodrigues Brandão O viver e o habitar: os ciclos da natureza e os usos dos territórios fluviais no Rio São Francisco Pirapora/MG Estes são espaços pouco observáveis ao olhar da ciência geográfica que necessita de um estudo minucioso a respeito da sua dinâmica, são territórios “construídos (e desconstruídos) dentro de escalas temporais das mais diferentes: séculos, décadas, anos, meses, ou dias; territórios podem ter uma existência periódica, cíclica” (Souza 1995, p. 81). Outro fator importante é a forma de uso do território das ilhas. São as mesmas pessoas que os utilizam, o que muda é a característica da produção material. Por exemplo: “no tempo da seca” a ilha é um recurso e um abrigo, “no tempo da águas” é apenas recurso, quando o rio permite. Estes territórios podem aparecer e desaparecer de acordo com o tempo/espaço. São “territórios com uma temporalidade bem definida” (Souza 1995, p. 91), que se faz e desfaz ao longo dos ciclos naturais. No caso das famílias que moram na ilha das Pimentas, todos sabem conviver com a mutação de seus territórios, observam a natureza e sabem quando é chegada a hora de abandonar suas propriedades e partir para a “terra firme” em busca de abrigo, enquanto não é possível residir e trabalhar nas “terras do rio”. Buscam moradia em outros espaços já que os seus territórios, em algumas épocas, perdem a função de abrigo. A ilha, para os seus moradores, remete sempre ao lugar de moradia e de trabalho, porém, é preciso respeitar as regras da natureza. Conforme relato de um dos moradores da ilha da Pimenta “nós que invadimos o rio. Não sou dono do rio, mas zelo por ele!”. Quando as águas do rio São Francisco diminuem, é chegada a hora dos moradores retornarem para as suas residências, onde realmente criaram as marcas de um lugar. Esta afinidade com o território é sentida quando eles estão ausentes de seu lugar de origem, ou seja, de seus territórios de vida. Margem esquerda do São Francisco Margem direita do São Francisco Ilha das Pimentas Autora: SOUZA, A. F. G. Julho/2009. Figura 4 - Ilha e margens do rio São Francisco em Pirapora/MG. Estes homens e mulheres vivem “territorialidades flexíveis”, um “vir-a-ser” das águas e da terra, como lugares de vivência em comum. [...] os processos de deslocalização de indivíduos com fraca mobilidade espacial fazem do enraizamento no espaço local e dos Caminhos de Geografia Uberlândia v. 11, n. 36 dez/2010 p. 308 - 317 Página 315 Ângela Fagna Gomes de Souza Rodrigo Herles dos santos Geraldo Inácio Martins Carlos Rodrigues Brandão O viver e o habitar: os ciclos da natureza e os usos dos territórios fluviais no Rio São Francisco Pirapora/MG dispositivos de afiliação e pertença, o que nos leva a definir o espaço como um recurso simbólico na produção de sua identidade e a definila como uma identidade de território. Lopes (2006, p. 150) As ilhas são territórios com limites inconstantes (Fig. 4). São espaços de produção social, onde todas as ações de vida e trabalho acontecem em função da existência de um território que não é fixo, mas sim fluido, presente na vida das pessoas por todo o tempo. Brandão (1995, p. 171) lembra que “os espaços são os mesmos e são outros, mudam. Tal como as sociedades, os territórios têm também a sua história”, o que justifica os laços de pertencimento com os mesmos. Estes limites inconstantes do território das ilhas fazem com que seus moradores estabeleçam um período determinado para a apropriação e utilização dos seus recursos. Todos os que vivem nele/dele sabem da necessidade de adaptarem-se, compartilhando a mesma experiência de enraizamento e deslocamentos durante as estações do ano. E é através da partilha dos mesmos espaços, reconhecidos como elementos de enraizamento local, que se forjam as representações colectivas do território e a que se associa um sentimento de pertença. Esses traços de reconhecimento colectivo geram, no confronto com outros espaços, a imagem de marca de um lugar, cidade ou região. Vaz (2001, p. 220) São esses ciclos que dão essência as ilhas, aos territórios habitados por gentes com significados ímpares e modos de ser e viver particulares. As ilhas enquanto territórios dão dinâmica a vida social. Neste sentido, a ocupação dos moradores no/do território das ilhas fluviais é o acontecer da vida de cada um nestes espaços. CONCLUSÃO Analisou-se o espaço geográfico do município de Pirapora/MG, procurando articular algumas abordagens sobre os usos do território das ilhas fluviais presentes no rio são Francisco, enfocando em especial as particularidades da ilha das Pimentas, espaço representativo e território de múltiplas funcionalidades, bastante divergente do cenário agrícola do município. O pressuposto adotado nesta pesquisa admite a necessidade de refletir sobre os conceitos e considerar dialeticamente os elementos que engendram essas concepções. A categoria território é, para os moradores das ilhas do rio São Francisco, uma maneira de se auto-afirmarem enquanto construtores de formas próprias de produção. Em função das necessidades básicas de sobrevivência, os que vivem nas ilhas partilham saberes e estabelecem vínculos, com a intenção de se manterem enquanto viventes de um grupo. Para isso, procurou-se entender as formas de construção de um território explicado a partir das relações simbólicas e culturais. Além disto, as ilhas possuem seus limites geográficos inconstantes, formadas em função das regras da natureza. São territórios com uma sazonalidade climática estacionária. Estes territórios não devem ser analisados pelos limites geográficos tradicionais, levando em consideração que são permanentemente mutáveis morfologicamente, se construindo de maneiras múltiplas, o que nos leva a uma reflexão minuciosa deste conceito. A mutação destes territórios permite características ímpares às ilhas. Sendo possível determinar suas formas de produção e utilização aliadas basicamente aos ciclos das águas. Na grande maioria, os territórios estão sujeitos ao domínio econômico, político e cultural. Já nas ilhas, a força maior que rege a vida nestes territórios está organizada em função da sua formação natural e ocupação social. Sendo assim, a ocupação das ilhas caracteriza-se pela metamorfose de seus territórios, formados a partir de arranjos e estratégias próprias de existência, o que faz destes, um lugar formado por múltiplas territorialidades, reproduzindo um modo de vida peculiar, uma identidade, enfim um mosaico com representatividades impares. REFERÊNCIAS BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Do sertão à cidade. Os territórios da vida e do imaginário do Caminhos de Geografia Uberlândia v. 11, n. 36 dez/2010 p. 308 - 317 Página 316 Ângela Fagna Gomes de Souza Rodrigo Herles dos santos Geraldo Inácio Martins Carlos Rodrigues Brandão O viver e o habitar: os ciclos da natureza e os usos dos territórios fluviais no Rio São Francisco Pirapora/MG camponês tradicional. In: MESQUITA, Zilá; BRANDÃO, Carlos Rodrigues. (org.). 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