O efeito da arquitetura: impactos sociais, econômicos e

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CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO AMAPÁ
CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO
INTRODUÇÃO À ARQUITETURA E URBANISMO - PROF° LÚCIO LOBATO
O efeito da arquitetura: impactos sociais, econômicos e ambientais de diferentes
configurações de quarteirão(1)
Vinicius Netto
Vinicius Netto é Arquiteto, PhD (Advanced Architectural Studies, University College London),
Mestre em Planejamento Urbano e Regional (UFRGS). Professor de morfologia arquitetônico-urbana (Unisinos). Membro da Comissão de Urbanismo do
IAB-RS, e de grupos de pesquisa sobre formas de integração entre arquitetura e urbanismo, e as relações entre espaço e o social
É lugar comum a idéia de que coisas que existem, que sejam produzidas ou que venham a acontecer têm ‘efeitos’ – isto
é, têm repercussões sobre nós mesmos e sobre outras coisas que existam, ou que virão a existir. Esse é na verdade o
fato central por traz das ‘relações’ entre coisas, o fato de que as coisas afetam umas as outras, de que há uma realidade
interligada – algo que está por trás da maneira como entendemos o mundo em volta, as conexões entre eventos ou
objetos, e que está por trás da própria possibilidade de ‘conhecer’ as coisas e nossa realidade. Que a arquitetura como
objeto construído é um fenômeno capaz de produzir efeitos é um tema ainda pouco discutido – muito menos discutido
do que deveria ser – sobretudo em nosso Estado, onde percebemos reduções dramáticas na possibilidade de variedade
de formas de nossas edificações, e a afirmação de tipos arquitetônicos aparentemente imposta pelo mercado da
construção civil. Exatamente essas tipologias (e seus ‘efeitos’) que o presente texto pretende analisar.
Não que a possibilidade da arquitetura gerar efeitos seja algo estranho à arquiteta e ao arquiteto; na verdade
observações e preocupações sobre certos efeitos da edificação são recorrentes na mente dos profissionais mais
atentos, tanto no mercado quanto aqueles envolvidos no ensino e na pesquisa em arquitetura.
Que efeitos serão esses? Refiro-me aos efeitos do objeto arquitetônico – aos impactos que o edifício construído gera,
independentemente daqueles efeitos desejados pelo arquiteto. Muitos desses impactos do edifício são sequer
conhecidos pelo arquiteto, e eventualmente até mesmo não desejados (por exemplo, o projeto de conjuntos
habitacionais, como o famoso Pruit Igoe nos Estados Unidos, rejeitados pelos moradores). Porém, efeitos ocorrem sobre
algo – mas que algo é esse? O que está sujeito ao edifício produzido? Em geral os efeitos da arquitetura são vistos
como o seu impacto sobre nossa percepção visual: a arquitetura ou o edifício é capaz de alterar nossa percepção, ter
um efeito positivo, negativo, neutro, agradável, desagradável, belo, feio, estranho e assim por diante. Esses efeitos são
na verdade evocados na nossa prática – e consistem de efeitos psicológicos sobre o humano. A arquitetura afeta o
sujeito, afeta sua leitura do ambiente, gera ambientes com ‘ruído’ menor ou maior. Vários termos e conceitos foram
produzidos para endereçar esses efeitos e, portanto, esse papel da arquitetura: harmonia, composição, equilíbrio,
ordem, desequilíbrio; mesmo conceitos peculiares como o de ‘sublime’, o aterrador, o caótico etc.; assim como temos
teorias e campos de pesquisa que apareceram para explicar esses efeitos, como a gestalt, as teorias semióticas em
arquitetura, a idéia de ‘estética’ que vem dos gregos, e mesmo a idéia de uma ‘psicologia em arquitetura’ (e não
tenhamos medo de admitir que para entender os efeitos da arquitetura sobre as pessoas, arquitetos tem emprestado
termos e estudos de outras áreas como a psicologia ou a semiologia). Estranhamente, nossa noção sobre os efeitos da
arquitetura tem se restringido a esses termos e a essa natureza estética e psicológica, amarradas necessariamente ao
aspecto visual da arquitetura. Há um conjunto de razões para essa ênfase usual, e aqui não poderei discutir sequer
parte delas. Deixem-me apenas reduzir essa discussão e colocar que temos nos concentrado na arquitetura como
fenômeno visual, perceptivo, e que o sujeito dessa ênfase, isto é, o que no ser humano poderia se relacionar a essa
ênfase é o sujeito estético, que se resume ao sentido da visão e a sua psique. Essas dimensões humanas e sua relação
com a arquitetura são naturalmente importantes, e muito. Mas eu gostaria de argumentar aqui que tanto essa visão da
pessoa (ou o que na pessoa) é afetada pela arquitetura, e esse entendimento da arquitetura como fenômeno puramente
visual é completamente insuficiente. Na verdade, temos tido cada vez mais conhecimentos (vindos sobretudo de outras
áreas) que nos permitem dizer que essas visões são cada vez mais insuficientes.
Mas que outros efeitos a arquitetura poderia ter? Alguns poderiam argumentar, com razão, que a arquitetura, como
objeto produzido para atender as necessidades humanas, para abrigar as nossas atividades, pode falhar ou ser bemsucedida nesse sentido: ela pode atuar ‘ao lado’ das nossas atividades, ou atrapalhá-las – elas podem, termo usual em
arquitetura, ‘funcionar’ bem ou mal. Aqui, temos a visão de que a estrutura interna do edifício pode contribuir ou não no
desenrolar de uma atividade, de uma seqüência de práticas. Esse efeito começa a se aproximar do que eu gostaria de
endereçar aqui: o de que a arquitetura importa, isto é, tem efeitos sobre o que fazemos, e como interagimos no espaço–
e esse é um efeito na verdade bastante importante – talvez o mais importante de todos. Ainda que central, permitam-me
deixar as considerações sobre a estrutura dos espaços internos da arquitetura e sua relação com a atividade que ela
abriga (isto é, a configuração das plantas e seu efeito sobre nossas práticas dentro do edifício) para um outro espaço.
Deixe-me enfatizar os usos do edifício, mas de forma mais genérica, sem tocar na configuração interna, para concentrarme nos diferentes tipos arquitetônicos. Seriam todos os edifícios iguais, ou se aproximariam enquanto forma, enquanto
implantação no lote, no quarteirão, na cidade? Certamente não. De fato, parece haver grande diversidade de formas,
que podemos atestar diariamente na nossa experiência urbana. Essa grande diversidade, contudo, por necessidade
cognitiva ou por semelhança de fato, parece ser passível de agrupamento em ‘léxicos’, em gramáticas mais recorrentes,
em características que aproximam mais certos objetos que outros. Esses ‘tipos’, guardadas variantes culturais ou de
análise, são agrupados em 3 modalidades: a do edifício ‘livre’, isento de ligações (como explorado sobretudo no
modernismo em arquitetura, no séc.XX, e chamado em nossos planos diretores de ‘torre’); a dos edifícios ‘colados’ uns
aos outros (‘alinhados nas divisas’, como coloca a terminologia de plano diretor); e por fim um terceiro tipo, híbrido, uma
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justaposição um tanto desengonçada desses dois tipos, o edifício ‘base-torre’, edifício com volume duplo, um basal
horizontalizado, colado nas divisas, e um volume superior verticalizado, isento de contato com volumes laterais. Esses
três esquemas de formas, definidas sobretudo pelo seu aspecto externo (isto é, o grau de alinhamento ou continuidade
de suas fachadas), parecem representar grande parte das formas arquitetônicas produzidas em nossas cidades – algo
contemplado e mesmo prescrito por planos diretores. Estes são, grosso modo, os três tipos diferentes de arquitetura
reproduzidos em nossas cidades e em nossos ateliers de projeto.
Se a arquitetura como objeto construído tem efeitos, teriam tipos diferenciados os mesmos efeitos? Ou antes, poderiam
coisas diferentes gerar os mesmos efeitos, ou gerariam efeitos diferentes? É possível suspender essa relação entre
natureza de um objeto, e a particularidade de seu impacto? Se coisas diferentes geram efeitos diferentes como nossa
experiência das coisas parece confirmar, seria razoável dizer que esses tipos poderiam ter efeitos diferentes. Por
exemplo, voltando à bem-conhecida dimensão estética, um conjunto de edifícios alinhados teria um efeito estético, uma
percepção diferente de um conjunto de edifícios ‘soltos’, com alturas variadas, um conjunto fragmentado.
Determinismo arquitetônico?
Esse argumento faz sentido sobretudo contra a idéia de ‘determinismo arquitetônico’, ou a existência de relações
absolutas de causa-efeito, ou de causalidade entre uma forma e seu resultado funcional ou social. Pessoas que
argumentam contra o determinismo em arquitetura têm uma posição em princípio cuidadosa e inteligente. Contudo, esse
cuidado não pode implicar na suspensão completa dos efeitos diferenciados que coisas diferenciadas têm. Do contrário
teríamos um mundo onde coisas diferentes, ao terem suspensas as relações diferenciadas e particulares com seus
efeitos, passariam: 1) A ter efeitos iguais. Elas perderiam seu sentido, e teríamos um mundo onde as diferenças não
importariam, porque coisas diferentes teriam os mesmos resultados. Nossa experiência do mundo seria a de um mundo
homogêneo, sem ‘elementos’, sem diferenciação interna. Entretanto, um mundo sem relações de causa-efeito, para
desconforto dos ‘pós-estruturalistas’, seria impossível. 2) Ou a ter efeitos aleatórios – imprevisíveis. Aqui, a relação
aleatória entre arquitetura e seus efeitos implica em suspender a própria possibilidade de uma relação entre forma e
função, isto é, que uma forma pode ser mais apropriada que outra para a funcionalidade de uma atividade, pode
‘auxiliar’ mais ou menos a atividade. Se não pudéssemos de algum modo antecipar ao menos alguns dos efeitos de
projeto (isto é, do edifício construído), perderíamos o sentido como profissionais – seríamos desnecessários. O próprio
papel social do arquiteto surge em função da consciência de uma certa causalidade, uma ‘causalidade parcial’ entre
projeto, edifício e seus efeitos, devidamente entendida e controlada pelo arquiteto. Mesmo esteticamente, dimensão
freqüentemente taxada como ‘subjetiva’, existem relações de causalidade: certos arranjos de formas arquitetônicas
sugerem certas formas de uso (como exemplo, fachadas com mais transparência se relacionarem a atividades mais
públicas, como comércio). Do contrário, teríamos suspensa até mesmo a idéia de ‘caráter’ em arquitetura, ou de uma
gestalt arquitetônica. Se essas formatações são mera definição cultural ou se a cultura apenas fixa os significados que
podemos ler em certas formas, o fato é que nossa experiência termina por estabelecer, e ser baseada em certas
causalidades entre arquitetura e seus efeitos.
Contudo, aprendendo com os cuidados do argumento anti-determinismo, devemos sim rejeitar a tese de implicações
lineares, absolutas, diretas entre ‘a’ e ‘b’ – mesmo porque tudo o que existe, e a arquitetura incluída, tem relações e
efeitos complexos, parcialmente imprevisíveis; estão presos em emaranhados os quais vemos apenas parte. Mas afinal
qual é o nível de causalidade, de relação entre objeto arquitetônico e seu efeito sobre as pessoas? Onde ele se
manifesta? Ou mais gravemente, onde essa relação não acontece? “O problema é: a arquitetura determina o quê?
Como? E em que condições? Certamente não determina como os modernistas clássicos o pensavam. Mas talvez a
tarefa central deva ser esta: mostrar a real dimensão da determinação arquitetônica” (2). Existe um nível de causalidade
e ao mesmo tempo de indeterminação – a possibilidade de haver sempre outras faces para um mesmo fenômeno.
Devemos aceitar tanto a existência das causalidades quanto a das complexidades do objeto, e entender sobretudo o
primeiro grupo de efeitos, para que erremos menos e acertemos mais na passagem entre intenções de projeto, e os
efeitos do objeto construído. “[O] problema tem sido como descrever tanto a ação do social sobre a forma do edifício,
quanto a ação do edifício sobre a sociedade” (3). Advogando que o determinismo forma-função na verdade não existe,
Hillier e seus colegas da University College London afirmam que o erro é assumir que edifícios pode agir
mecanicamente sobre o comportamento das pessoas. “Como pode um objeto material como um edifício se impor
diretamente sobre o comportamento humano?”. A idéia de um determinismo espacial “nos cega para o mais importante
fato sobre o ambiente construído: que o espaço não é um pano de fundo para o comportamento social – ele é em si
comportamento social. Antes de ser experienciado pelo sujeito, ele é na sua própria espacialidade carregado de padrões
que refletem a sua origem nos comportamentos que o criou” (4). “Hillier resolve esse mistério com a hipótese de que a
relação entre forma e função passa, em todos os níveis do ambiente construído, da residência à cidade, pela variável da
configuração espacial” (5). O espaço arquitetônico (e sua continuidade com a rua e outros edifícios) consiste de uma
estrutura de partes, de ‘vazios’ que ocupamos, definidos por paredes e formas construídas. As relações e seqüências
desses espaços tornam-se fundamentais na nossa apropriação do espaço. Elas têm o efeito de distribuir o movimento
dos nossos corpos no espaço. Além disso, espaços são produzidos, inconscientemente (e em casos felizes, assim
definidos em projeto) para reproduzir padrões de movimento e co-presença das pessoas dentre desses espaços – de
acordo com formas variáveis de organização e relação sociais (6). A determinação arquitetônica de que falo é, portanto,
restrita a sua influência sobre níveis de movimento das pessoas e padrão de uso do espaço, além da distribuição de
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atividades e de densidades no espaço da cidade – ambos demonstrado em pesquisas sistemáticas em arquitetura e
urbanismo (da sintaxe espacial à economia urbana).
Se admitirmos que tipos arquitetônicos geram percepções diferenciadas, que outros efeitos diferentes esses tipos
teriam? Eu gostaria de argumentar que esses efeitos se relacionam àqueles aspectos de funcionalidade ou uso que
mencionei acima – efeitos que tem a ver com a forma e o uso de nossos edifícios-tipo. Investiguemos essa
possibilidade. Sob o ponto de vista de uso, a diversidade de atividades a ser abrigada sob forma de arquitetura é
comprovadamente positiva. É ponto comum aceitar que a proximidade de serviços diversos é algo bom para as
pessoas, que têm, sem grandes deslocamentos, a chance de encontrar e satisfazer seus interesses e rotinas, desde
trabalho, moradia, consumo até lazer e ócio. Na verdade, muitos arquitetos, economistas e geógrafos afirmam que é
exatamente essa a razão para produzirmos os complexos arquitetônicos tão densos e estruturados que chamamos
‘cidades’ – a própria razão para a existência das cidades. Aqui, a presença de térreos comerciais nesses tipos
arquitetônicos tem sido vital: sem térreos comerciais, não teríamos a chance de produzir esses usos e essa diversidade
de atividades tão positiva, que é o próprio motor das cidades e das nossas trocas sociais, econômicas, políticas.
O efeito social da arquitetura
Freqüentemente, quando arquitetos alteram esse princípio fundamental (sobretudo no século XX), esse verdadeiro
‘gene’ espacial da vida social, da produção e da troca econômica, da difusão das idéias, correm o risco de cometer um
grave erro. Ideologias, qualidades e dogmas arquitetônicos à parte, Brasília, nossa extraordinária capital, está aí para
demonstrar isso. Brasília teve seu padrão de distribuição das localizações de atividades meticulosamente definido de
acordo com princípios de ordem aparente das separações, das distinções entre zonas funcionais (divulgados
sistematicamente na Carta de Atenas, de 1933 – uma ordem apenas aparente, já que a cidade auto-produzida é
certamente dotada de ordem, de uma ordem muito menos óbvia, que vai além das geometria cartesiana dos
paralelismos e ortogonalismos racionalistas, uma ordem contida nas estruturas internamente diversas e imprevisíveis
dos padrões de localização de atividades e de densidade e forma arquitetônica). Nada provaria menos "prático"’,
"eficiente" (se quisermos usar esse termo pragmático) ou mesmo "vivo" socialmente: alterar esse "gene" da vitalidade
social, econômica, política, urbana enfim, implica em um tremendo aumento nas distâncias a serem percorridas pelas
pessoas, e no tempo investido, se quisermos atender um número de atividades ou fazeres. Riqueza compositiva à parte,
Brasília, ou melhor, a distribuição de suas atividades – diversificadas mas que não geram volume, densidade,
intensidade e variedade gerada pela continuidade morfológica – se coloca o tempo todo contra, e não a favor, das
pessoas em suas rotinas (7).
Na verdade, quase nada provaria menos prático. Outra questão, agora sob o ponto de vista da forma, também é
fundamental: teríamos a mesma possibilidade de achar serviços e vivermos imersos nessa intensidade de trocas em
qualquer configuração espacial, geométrica? Em qualquer padrão arquitetônico? Os estudos pioneiros de morfologia
arquitetônico-urbana e configuração de quarteirão de Martin, March e seus colegas em Cambridge (8) mostram que não:
eles de fato demonstram a eficiência superior dos quarteirões periféricos quanto à absorção de área construída (e
também seu desempenho em habitabilidade – ao contrário do que acreditamos), em uma comparação entre as torres de
Manhattan e uma cidade idealizada com edifícios periféricos (9).
Empiricamente, o caso de Brasília (10) uma vez mais nos permite atestar que, sobretudo quando comparado, um tipo
particular gera efeitos particulares. Quarteirões rarefeitos, sem continuidade de fachadas, cujos edifícios apresentam
grandes espaçamentos entre si ou recuos laterais (previstos em nossos planos diretores), terminam por reduzir
consideravelmente a densidade dos quarteirões (cujos edifícios precisam então verticalizar-se para atingir densidade
razoável) (11) reduzem o número de portas voltadas para o espaço público, e enfraquecem a relação fachada-rua que
parece bem-vinda na animação do espaço público (12). Essas observações nos permitem entrar em uma dimensão
quase normativa – em elementos potencialmente importantes na definição do projeto e das guias morfológicas dos
Planos Diretores. A noção de urbanidade proposta por Holanda nos é útil nesse sentido, ao explicitar decisões de
natureza arquitetônica que devem se consideradas tanto no ensino quanto na prática da arquitetura e do planejamento
urbano:
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minimizar espaços abertos em prol de ocupados;
menores unidades de espaço aberto (ruas, praças);
maior número de portas abrindo para lugares públicos;
minimizar espaços segregados (topologicamente, e não apenas perifericamente), guetizados (becos sem saída,
condomínios fechados) e efeitos panópticos (pelos quais tudo se vê e se vigia) (13).
Proponho essas características como ativas em dimensões morfológicas mais amplas: elementos arquitetônicos que, a
partir de observações empíricas e estudo científico, podem ser considerados como elementos da vitalidade de nossos
espaços:
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Configuração e implantação do edifício, buscando como qualidades:
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a continuidade de fachadas;
densidade arquitetônica (não necessariamente através de altura);
pluralidade de usos dos edifícios, e da rua;
atividade comercial de térreo, quando há demanda e possibilidade.
Entretanto, os efeitos de diferentes tipos arquitetônicos não se encerram na intensidade de uso social e de trocas e
eficiências de nossa micro-economia. Eles têm sérias relações também quanto a questões de poluição em nossas
cidades; e o que parece ainda mais alarmante, para as relações (pouco discutidas) entre arquitetura e segurança
pública.
Cidades onde tipos arquitetônicos com recuos laterais e térreos privados e gradeados são reproduzidos sem restrição
tendem a ter mais dependência do automóvel. Isto é, a tipologia dos recuos, ao tornar quarteirões rarefeitos e com
menos diversidade social e econômica (um padrão consagrado no mercado!), passa a induzir o uso do automóvel –
simplesmente porque reduz a oferta de serviços e a variedade de atividades que precisamos em nosso dia-a-dia, tais
como aquela que encontramos em certos bairros, quando em um raio de 5 minutos a pé encontramos serviços variados
como restaurantes, padaria, locadora, e cyber-café – atividades de pequena escala que favorecem o pequeno
empresário, a relação pessoalizada com os clientes, e uma idéia de vizinhança (que não tem nada de abstrata). O tipo
dos recuos tende a reduzir o número de pedestres, porque ao limitar a quantidade de serviços disponíveis nos térreos e
ao reduzir a apropriação pública desses espaços, induz a busca de serviços em localizações afastadas, impondo
percursos mais longos às pessoas, mais adequados ao veículo privado ou coletivo. Ao induzir o uso do automóvel, essa
configuração arquitetônica tem ainda o efeito de aumentar o volume de veículos nas ruas. E, portanto, tende a aumentar
seus ‘efeitos colaterais’: congestionamentos, tempo de deslocamento, consumo de combustível, e poluição.
Arquitetura – e segurança pública?
Mas talvez o mais grave efeito ‘colateral’ (certamente o que mais tememos em nossas cidades, sem desconfiar que os
projetos dos edifícios possam ter a ver com isso) seja o impacto desses tipos sobre a segurança e a ocorrência de crime
em nossas ruas. A densidade arquitetônica e a presença abundante de térreos comerciais (algo que o mercado e a
indústria da construção civil, sem saber das conseqüências, vêm eliminando) contribuem para intensidade de uso
pedestre. Ora, temos cada vez mais estudos que demonstram a relação entre espaço e crime: pesquisas que apontam
para uma importante dimensão urbana na oportunidade, na incidência, e na distribuição do crime (14). Novamente, o
tipo dos recuos e térreos privados, quando reproduzida como ‘regra’, tende a ‘espantar’ o pedestre (por eliminar as
razões para o movimento e ao reduzir as densidades e continuidades de térreo), e esvaziar nossas ruas. E exatamente
aqui está o problema: o melhor meio de aumentar a segurança é manter as ruas com pedestres. Pedestres, ao
utilizarem os espaços das ruas, aumentam a ‘vigilância mútua’ – isto é, um pedestre ‘vigia’ inconscientemente o outro,
para sua própria segurança, e ao fazer isso aumenta o grau de controle sobre o espaço, o que beneficia a todos. De
fato, pesquisas mostram que crimes violentos tendem a ocorrer longe dos olhos das pessoas. Aqui, o estranho não é o
‘inimigo’ como pensamos: ruas movimentadas são a melhor defesa contra o crime (15).
Observamos que a tipologia consagrada no plano diretor e no mercado da construção consiste de soluções
arquitetônicas mais verticalizadas (implicando redução de custos relativos para o construtor, enquanto aumenta
progressivamente o valor de venda das unidades em andares mais altos) e mais isoladas da rua (que oferecem uma
idéia de segurança). Esse tipo consagrado nos anos 1990 em diante precisa dos recuos e térreos privados que, quando
reproduzidos em conjuntos extensos, parecem gerar muitos dos efeitos nocivos listados acima. Comparemos por
exemplo dois bairros de Porto Alegre, o bairro Bela Vista, de classes média e alta, caracterizado pelo alto grau de
fragmentação arquitetônica e pouca continuidade de fachadas, com abundância de recuos laterais de altura e de térreos
privados e cercados, cuja arquitetura é resultado da influência direta dos planos diretores mais recentes e dos "gostos
de mercado", e o Bonfim, bairro denso e compacto, com alta quantidade de movimento pedestre, veicular, e diversidade
de serviços oferecidos nos térreos. Ao passo que no Bela Vista vemos pedestres somente em certos pontos (como em
torno de praças) e horas do dia (fim-de-tarde), com grande número de ruas desertas de pedestres mas abundantes de
guaritas de segurança, o Bonfim consiste em um bairro altamente movimentado (tanto de pedestres quanto de veículos),
um espaço onde moradores encontram-se com mais freqüência e convivem bem com o estranho (e lembremos que a
presença abundante de "passantes" estranhos deixa as ruas mais seguras). Um bairro mais diverso socialmente,
portanto propício para uma ‘urbanidade’ ou mesmo para a idéia de integração social, segurança e ‘cidadania’.
Vale notar que a tipologia dos edifícios com recuos, grades, guaritas e térreos privados só foi consagrada porque parece
responder aos anseios de classes média e alta por mais segurança – mas que termina por gerar exatamente o efeito
oposto.
Uma denúncia
Gostaria de fazer aqui uma importante denúncia: os tipos arquitetônicos que vêm sendo vendidos abundantemente hoje
em nossas cidades oferecem apenas uma “ilusão de segurança”. Trata-se de uma segurança que só ocorre
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internamente, gerada pela separação do espaço exterior com o edifício recuado, com térreo privado cercado por grades
e guarita. Esse rompimento com o espaço externo na verdade produz efeitos sobre a segurança das ruas em volta, ao
renunciar a relação entre edifício e uso público de térreos, a relação franca entre o edifício e a rua – relações geradoras
de movimento e segurança. O que é grave aqui é o fato de exatamente ao gerar segurança interna, se produz mais
insegurança nas ruas e bairros onde esses tipos tornam-se ‘regra’. Seguros dentro de áreas privadas, a maioria de nós
experimenta o medo e a tensão da chegada às residências, nas sinaleiras e esquinas próximas, e a tensão da espera
enquanto se abre o portão de uma garagem. Mas presos na irracionalidade do medo ou na ilusão de segurança dos
muros, não entendemos que a segurança interna assim engendrada é parte da causa da insegurança externa. Térreos
com serviços (não necessariamente todos os térreos) tornam a rua mais movimentada, e mais seguras. A mesma
análise pode ser feita sobre os condomínios fechados: produzem segurança interna, mas contribuem para esvaziar as
ruas em torno, com seus muros cegos, sem atividades e portas, gerando insegurança na chegada em casa, nas ruas
próximas ao condomínio, exatamente para as pessoas que buscam segurança vivendo internamente. Os tipos exibidos
em folders nas sinaleiras e tornados o objeto do marketing e da publicidade que exploram exatamente o medo do crime,
a necessidade de segurança, e de diferenciação e segregação social, terminam por aumentar os riscos de incidência de
crime nos espaços públicos que tornam mais vazios.
Esses efeitos parecem ter, portanto, origem no tipo arquitetônico em si: no caso negativo, um tipo que torna nossos
quarteirões mais ‘rarefeitos’, eliminando fachadas contínuas, públicas, com comércio e serviços (16). Mas qual a forma
que o quarteirão deve ter? Qual a combinação e quantidade de tipos para gerar a intensidade de usos e de movimento
nas ruas? Nem sempre alinhamentos laterais e junto ao passeio são coisas possíveis ou generalizáveis (17). Que outras
soluções mistas ofereceriam os impactos sociais adequados? Esse é uma questão ainda difícil de responder – até
mesmo porque não temos estudos sistemáticos sobre essas configurações. Pesquisas têm apontado que continuidade
de fachadas e usos públicos de térreos com densidade e uma proporção suficiente de térreos contínuos, naturalmente
diversificados de acordo com demanda e oferta de serviços, são fortes ingredientes para os resultados desejados.
Quarteirões ‘híbridos’ por assim dizer (isto é, formado parte por edifícios colados parte recuados, com térreos cuja
somente parte é pública) também oferecem a morfologia e uso adequado, quando ‘trabalhando’ com outros quarteirões
densos assim.
Há sem dúvida uma tensão muito sutil aqui, e frágil: uma tensão socio-espacial onde a configuração dos tipos
arquitetônicos agrupados em conjuntos gera uma intensidade variável de uso da rua, de uso pedestre. Essa tensão
pode ser adequada, em áreas onde há densidade arquitetônica, continuidade de fachadas animadas e térreos de uso
público em quantidades suficientes para ‘tensionar’ o movimento de pessoas e a presença de atratores para aumentar a
possibilidade de interação (comunicativa, ou apenas perceptiva, a ‘atenção mútua’ do outro), a sensação de segurança e
a segurança efetiva contra crimes violentos, além dos benefícios micro-econômicos das trocas facilitadas entre
consumidor e serviço, da redução do tempo de deslocamento, assim como os efeitos ecologicamente necessários de
redução da dependência do automóvel, de consumo de combustíveis não-renováveis, e de emissão de gases poluentes
em nossas cidades.
Impactos da arquitetura
Para concluir, permitam-me listar certos efeitos que continuam ignorados em nossa prática de projeto – os efeitos
diferenciados de tipos diferenciados, presentes quando reproduzidos extensamente em quarteirões e áreas da cidade –
e que merecem estudo sistemático:
I. Intensidade de interação social e troca econômica (a ‘animação da rua’). Aqui, quatro fatores são centrais:




As atividades nos térreos (interface entre arquitetura e espaço público da rua);
A diversidade de atividades, quando há densidade e tipos adequados;
A densidade arquitetônica, função de padrões de crescimento e localização;
A continuidade de fachadas animadas, dependente da morfologia dos recuos laterais e frontais, e dos usos de
térreo menos ou mais privados/públicos.
II. Praticidade na busca de atividades e eficiência no suprimento das demandas da população.
III. Tempo e custo de transporte veicular, nível de congestionamento, e consumo de combustíveis, em função da
necessidade de busca de serviços (longe ou perto, veicular ou pedestre).
IV. Emissão de gases poluentes, em função da influência dos tipos arquitetônicos sobre o uso pedestre ou a indução ao
uso do automóvel.
V. Segurança pública: quando diferentes tipos contribuem para gerar movimento pedestre e aumentar a co-vigilância
nas ruas, ou para esvaziar a rua de pedestres ao induzir o uso do automóvel – aumentando riscos de crimes violentos.
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Todos esses fatores – ou esses efeitos da arquitetura – voltam a repercutir, como causas, na nossa qualidade de vida.
Eles não podem ser percebidos em casos isolados; somente quando parte de conjuntos. Assim como os danos de uma
indústria poluente ao sistema ecológico só são percebidos ao longo do tempo, os tipos arquitetônicos que renunciam a
interface com o espaço público da rua e o pedestre (aparentemente ‘inocentes’ e sem qualquer repercussão além da
[ilusão de] segurança para seus moradores) também têm efeitos para toda uma população – ainda que não estejamos
acostumados a pensar sobre isso. Precisamos assumir e estudar com seriedade o fato que diferentes tipos e
densidades arquitetônicos têm impactos diferenciados, que vão desde os espaços movimentados, seguros, socialmente
e economicamente apropriados até aqueles rarefeitos, segregados, e inseguros. Assim, avançaremos tanto em
conhecimento quanto em domínio projetual do potencial da arquitetura para além do estético – entendendo a arquitetura
como parte fundamental de nossas vidas.
Notas
1) Agradeço ao Profs. Dr. Frederico de Holanda (UNB), Dr. Romulo Krafta (UFRGS) e Júlio Celso Vargas (UNIRITTER) pelos
comentários em versões anteriores deste artigo, ao Prof. Fernando Duro (UNISINOS) por nossas discussões sobre
determinismo arquitetônico e morfogênese. Imprecisões e equívocos são responsabilidade do autor.
2) HOLANDA, Frederico (em comunicação pessoal).
3) FORTY, Adrian. Words and Buildings: A Vocabulary of Modern Architecture. London, Thames&Hudson, 2000. Tradução
pessoal.
4) HILLIER, Bill. Space is the Machine. Cambridge, University Press, 1996, respectivamente p. 378; p. 388. Tradução pessoal.
Hillier fundou na University College London uma tradição de estudos morfológicos que competia, na sua origem nos anos 1970,
com a clássica tradição em morfologia de Cambridge. Atualmente, sua pesquisa relaciona fundamentalmente a abordagem
morfológica à dimensão social do espaço.
5) FORTY, Adrian. Op. cit.
6) HILLIER, B.; HANSON, J. The Social Logic of Space. Cambridge, University Press, 1984.
7) Veja estudos sobre a densidade arquitetônica de Brasília, e seus efeitos sobre a variedade de atividades e de pessoas
utilizando espaços públicos. HOLANDA, Frederico (org). Arquitetura e urbanidade. Brasília, ProEditores, 2003.
8) Veja os estudos de morfologia de Cambridge (atualmente chamado The Martin Centre for Architectural and Urban Studies,
Cambridge University), como MARCH, Lionel (Ed) The architecture of form. Cambridge, University Press, 1976; MARCH,
Lionel; STEADMAN, Philip. The geometry of environment. Cambridge USA, MIT Press, 1971; MARTIN, Leslie “Architects’
approach to architecture” In RIBA Journal, May 1967; MARTIN, Leslie.; MARCH, Lionel (Eds) Urban space and structures.
Cambridge, University Press, 1972. Veja também os trabalhos de STEADMAN, Philip. “How day-lighting constrains acccess”. In
Proceedings
of
the
Fourth
International
Space Syntax
Symposium
London,
UCL
Press,
2003
<
www.spacesyntax.net/symposia/SSS4/fullpapers/05Steadmanpaper.pdf>; “Sketch for an archetypical building”. In Environment
and Planning B – Planning and Design, 27, Anniversary Issue 92-105, 1998; e principalmente Architectural Morphology: An
Introduction to the Geometry of Building Plans London, Pion 1983.
9) Veja um artigo recente, que retoma a tradição de Cambridge (UK) agora no M.I.T. (EUA), sobre o desempenho de
configurações do edifício e do quarteirão quanto a habitabilidade, de RATTI, Carlo, RAYDAN; Dana; STEEMERS, Koen.
“Building form and environmental performance: Archetypes, analysis and an arid climate”. In Energy and Buildings nº 35, 2003,
p.49-59. <senseable.mit.edu/papers/pdf/RattiRaydanSteemers2003E&B.pdf>. A pesquisa do desempenho energético ganha
crescente atenção, devido aos desafios de sustentabilidade em arquitetura – sob o nome de “sustainable architecture and
building design”. As dimensões social e econômica do projeto arquitetônico ainda carecem de atenção.
10) Veja os diversos artigos em HOLANDA, Frederico. Op. cit.
11) VARGAS, Julio. “Densidade, paisagem urbana e vida da cidade: jogando um pouco de luz sobre o debate porto-alegrense”.
Arquitextos
nº
039,
Texto
especial
nº
195.
São
Paulo,
Portal
Vitruvius,
ago.
2003
<
www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp195.asp>.
12) Obviamente nem todas as áreas de uma cidade poderiam oferecer o grau de densidade delineado acima; mas
freqüentemente observamos que, mesmo em áreas predominantemente unifamiliares, mais distantes das centralidades de
uma cidade, temos certa disponibilidade de serviços oferecidos na escala local, em função da natural relação urbana entre
intensidade de demanda de serviços, e sua oferta.
13) HOLANDA, Frederico (org). Op. cit., p. 16.
14) Veja recentes estudos na correlação entre estruturas urbanas e a distribuição do crime por BATTY, Mike. “Crime and
policing <www.casa.ucl.ac.uk/research/crime.htm>; e principalmente HILLIER, Bill; SAHBAZ, Ozlem. “High resolution analysis
of crime patterns in urban street networks”. In Proceedings of the Fifth International Space Syntax Symposium, 2005
<www.spacesyntax.net/symposia>. Mike Batty e Bill Hillier são pesquisadores da University College London.
15) Diferentemente, crimes sem violência (como roubo de carteiras, etc.) tendem a ocorrem em ruas extremamente
movimentadas. Cf. HILLIER, Bill; SAHBAZ, Ozlem. Op. cit..
16) mUm estudo recente, não publicado, realizado na Bartlett School of Graduate Studies, University College London, aponta
que mais densidade residencial em quarteirões, com maior número de portas para a rua, tem co-relação positiva, com menos
incidência de crimes.
17) KRAFTA, Romulo (em comunicação pessoal).
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