arq-estr.qxd 23/2/2007 15:23 Page 66 A R Q U I T E T U R A S , E S T R U T U R A S E L I N G U A G E M COM A PALAVRA, O EDIFÍCIO CONTA-SE QUE A HUMANIDADE POSSUI DOIS LIVROS, DOIS REGISTROS, DOIS TESTAMENTOS: A ARQUITETURA E A IMPRENSA, A BÍBLIA DE PEDRA E A BÍBLIA DE PAPEL POR YOPANAN REBELLO, EDISON ELOY E MARIA AMÉLIA D'AZEVEDO LEITE A 66 ARQUITETURA&URBANISMO MARÇO 2007 Reprodução de Norberg-Schulz. Système logique de l'architecture, Liège: Pierre Mardaga clérigo como manifestação do temor de que o surgimento da imprensa viesse a eliminar a maneira tradicional de se registrarem as conquistas e avanços da humanidade até então, isto é, pela palavra construída em pedra. Limiar entre monumento e edificação, os dolmens expressavam valores das comunidades primitivas ligados às etapas fundamentais da vida humana: nascimento, procriação e morte Não somente a literatura,mas também as ciências reconhecem que a arquitetura comunica e explicita as idéias de seu tempo. Pode-se até considerar que todo pensamento humano, seja de cunho popular,erudito ou religioso,tenha se feito edifício,principalmente até o século 15,quando a informação impressa passa a se consolidar. Mais além, é razoável considerar que as edificações, por sua solidez, perpetuem de modo especial as idéias, bem como influenciem o comportamento humano, estimulando ou inibindo reações, dado que alteram sobremaneira o ambiente original. Nas análises antropológicas que desenvolve sobre a relação entre homem e meio ambiente, Amos Rapoport diz que o espaço construído é uma forma de comunicação não-verbal, e que as relações estabelecidas entre os conjuntos e elementos arquitetônicos, o mobiliário, os objetos e os usuários conformam uma linguagem pela qual todo um universo de informações sociais pode ser transmitido. A com- Reprodução de Aspectos humanos de la forma urbana, de Amos Rapoport, Gustavo Gili existência humana confunde-se com a criação de espaços físicos. Originalmente apropriando recursos naturais, como cavernas e florestas, os ambientes humanos se artificializaram em edificações, evoluindo a partir de uma mescla impressionante de expressões arquitetônicas que retratam, a seu modo, uma leitura de nossa inserção na vida do planeta. O escritor Victor Hugo (1802-1885), na célebre obra que tem como cenário principal a catedral de Notre-Dame de Paris (1831), escreve o seguinte diálogo entre dois personagens: "O que são, então, os vossos livros?" "Aqui tendes um", disse o arcediago. E, abrindo a janela, designou com o dedo a imensa igreja de Notre-Dame que, recortando sob um céu estrelado a silhueta negra das suas duas torres, das suas ilhargas de pedra e da sua cúpula monstruosa, assemelhava-se a uma enorme esfinge com duas cabeças assentada no meio da cidade. O arcediago considerou algum tempo em silêncio o gigantesco edifício, depois estendendo com um suspiro a mão direita para o livro impresso que estava aberto na mesa e a mão esquerda para NotreDame, e passeando um triste olhar do livro à igreja, responde: "Infelizmente", disse ele, "isto matará aquilo...". À parte a ficção da obra, percebe-se a importância da arquitetura como descrição da realidade dos povos ao longo dos tempos. É possível interpretar o gesto e as palavras do O meio ambiente construído organiza-se por relações espaciais entre seus elementos, determinando padrões de comportamento humano. Habitações dispostas ao redor de um pátio ou alinhadas ao longo da rua produzirão, certamente, relações interpessoais e sociais distintas preensão das informações que se encontram codificadas no meio ambiente construído, por intermédio do que se poderia denominar, então, de uma "linguagem arquitetônica", é um componente importante da vida coletiva e gera efeitos sobre o comportamento, a saúde, o bem-estar e as relações interpessoais. De forma semelhante à linguagem literária, a linguagem arquitetônica se vale de elementos e regras reunidas no repertório de figuras e formas geométricas. Também compõem esses recursos de linguagem o emprego dos materiais e dos sistemas construtivos, a cor e a luz, além de propriedades como proporção, simetria, ritmo, harmonia e contrastes, sem contar as necessidades ligadas ao uso da edificação e de referências, como local e símbolos culturais. Dentre estes, a estrutura desempenha um papel preponderante, pois está intimamente associada à definição das formas da construção e à escolha dos materiais. Seja qual for a idéia vigente a ser transmitida pela arquitetura, sem dúvida, um trecho do discurso será feito pela estrutura. Por exemplo, as tendas e cabanas utilizadas por inúmeros povos nômades relatam em sua composição a mensagem do viajante, para quem a leveza, a flexibilidade de formas e a possibilidade de construir o transitório são pressupostos fundamentais. E a estrutura delineia-se privilegiando elementos a tração e compressão simples, permitindo, inclusive, ampla utilização de materiais de obtenção local, como fibras vegetais, couro e tecidos. Na Antigüidade, o pragmatismo romano e seu afã de conquista refletem-se na composição dos arcos de pedra que formavam estruturas complexas como os aquedutos e pontes. Tal natureza dos conquistadores romanos talvez tenha sido um estímulo importante para a superação dos limites construtivos impostos pelos modelos anteriores, representados, por exemplo, nos templos helênicos e egípcios, nos quais a extensão dos vãos entre as colunas restringiase pela resistência limitada da pedra à flexão. Valendo-se do excelente desempenho do mesmo material à compressão, os romanos traduziram-se construtivamente pelo arco que, projetando-se de modo ousado no espaço, parece trazer intrínseca a mensagem de seus construtores "...somos conquistadores, alcançaremos novos horizontes, saltaremos vãos e obstáculos...". Reproduçãos de Shelter, Bolinas, Shelter Publications Page 67 As tendas utilizadas pelos povos nômades possuem um vocabulário variado de possibilidades estruturais para a construção das múltiplas formas de seus assentamentos transitórios Reprodução de Structures or why things don't fall down, de J. E. Gordon, Da Capo Press Inc. 15:23 Reprodução de Aspectos humanos de la forma urbana, de Amos Rapoport, Gustavo Gili 23/2/2007 Maria Amélia D. F. D'Azevedo Leite arq-estr.qxd Difundidos pelos romanos, e contrapondo-se às limitações dos modelos estruturais anteriores dos templos helênicos e egípcios, os arcos em pedra são exemplares de uma arquitetura cuja sintaxe se expressa pela organização dos esforços de compressão e comunicam a vontade de vencer o vão livre Sucessoras imponentes ao legado construtivo romano, as catedrais góticas medievais representaram uma linguagem da opulência do divino. O edifício, projetando-se verticalmente no espaço, declara em alto e bom tom o caráter celestial dele esperado. Constituindo um passo importante na transição entre sistemas construtivos de grande massa e sistemas em esqueleto, o arcobotante gótico incorpora novos vocábulos ao repertório arquitetônico, em um diálogo intenso entre os dilemas da religiosidade, do poder político da igreja e dos desafios da construção. No contexto de um mundo fragmentado e onde a obtenção de grandes blocos de pedra e imensos volumes de madeira para cimbramento se tornava difícil, o aprendizado das técnicas bizantinas de formas mais esbeltas feitas com tijolos e pequenos blocos de pedra, promovido pelas cruzadas, aportou conhecimentos oportunos aos arquitetos construtores medievais. Saltando alguns séculos, encontramos na arquitetura moderna uma linguagem de caráter racional, em que predominam formas geométricas puras, de contraposição ao período anterior neoclássico, marcado formalmente pelas ordens clássicas e quando a linguagem da arquitetura parecia confundir-se com estilo. Ícones da fase moderna, como Le Corbusier e Mies van der Rohe, descrevem nitidamente em suas obras o novo tom da arquitetura, de composições precisas e falas sintéticas na concepção do espaço. A estrutura torna-se também econômica, de poucas palavras, composta de conjuntos repetitivos de elementos, autônoma em relação às vedações, utilizando uma sintaxe de funções construtivas claramente defini- MARÇO 2007 ARQUITETURA&URBANISMO 67 23/2/2007 15:24 Page 68 E S T R U T U R A S E L I N G U A G E M Reprodução de www.farnsworthhouse.org/history.htm A R Q U I T E T U R A S , Reprodução de Système logique de l'architecture, Norberg-Schulz, Pierre Mardaga arq-estr.qxd Reprodução de As formas do século XX, de Josep Maria Montaner, Gustavo Gili Reproduçãos de Shelter, Bolinas, Shelter Publications No sistema estrutural Domino (1914), elaborado por Le Corbusier, e na residência Farnsworth (1951), de Mies van der Rohe, lêem-se algumas das regras da nova gramática da forma arquitetônica proposta pelo modernismo: planos livres, coordenação dimensional dos elementos e autonomia estrutural em relação às vedações O arcobotante e as formas ogivais das catedrais góticas relatam a troca de conhecimentos técnicos entre ocidente e oriente durante as cruzadas, e explicitam o caráter celestial requerido do edifício No edifício da Fundação Cartier (1991-1994), em Paris, de Jean Nouvel, o esqueleto estrutural de aço desdobra-se em um diálogo de planos verticais e horizontais junto ao boulevard. A obra é uma sensível reinterpretação dos planos horizontais de Le Corbusier e dos preceitos de arquitetura ideal de Mies van der Rohe das – ou seja, fundações, estrutura, vedações, instalações e circulações – em busca de novos valores, como flexibilidade de arranjos internos e possibilidade de crescimento sem perda da integridade construtiva e formal do edifício. A linguagem arquitetônica contemporânea, por seu lado, prega uma grande liberdade no repertório das formas geométricas, desvincu- la-se da rígida relação com o uso, apropria-se de recursos materiais e tecnológicos inovadores e aventura-se em novos conceitos inspiradores como virtualidade, desmaterialização e transparências, com vistas a uma estética que traduza o diverso mundo atual em constante e intensa mutação. Solidária, a estrutura responde ao apelo próprio de cada projeto, 68 ARQUITETURA&URBANISMO MARÇO 2007 sejam esqueletos sustentantes, sejam planos autoportantes ou outras formulações. Se a arquitetura, como processo de comunicação, confirma-se por sua linguagem, a estrutura pode ser uma grande aliada em sua compreensão, contribuindo para enfatizar os pressupostos da concepção do projeto e indo mais além do que o mero compromisso com a 23/2/2007 15:24 Page 69 Bitter & Bredt arq-estr.qxd Arquivo sustentação e a estabilidade da construção. Em geral, para um mesmo desafio construtivo, haverá diversas soluções estruturais prováveis, mas certamente nem todas soarão em uníssono com a arquitetura. Que tal um teste? Por exemplo, o conhecido Museu de Arte de São Paulo, o Masp. Prezados leitores, avaliem. E, com a palavra, o edifício. Desenhos de Yopanan C. P. Rebello Os planos estruturais em concreto do Museu Judaico (1999), em Berlim, de Daniel Libeskind, expressam em forma, texturas, dimensões, luz e sombras as mensagens do autor. Aos visitantes dos três eixos que compõem o edifício (Holocausto, Exílio e Continuidade) se sucedem sensações e emoções, como tensão, sofrimento, solidão, alívio e paz Yopanan C. P. Rebello é engenheiro civil, doutor pela FAUUSP e professor nos cursos de graduação e pós-graduação em arquitetura e urbanismo da Universidade São Judas Tadeu. É diretor pedagógico da Ycon Formação Continuada. ([email protected]) Edison Eloy de Souza é arquiteto e urbanista pela FAUUSP, diretor da E & A Arquitetura e Engenharia. É professor do curso de graduação em arquitetura e urbanismo da Universidade São Judas Tadeu. ([email protected]) Diversos outros sistemas poderiam ser utilizados para resolver os desafios do projeto do Masp, tais como estruturais pênseis, pórticos associados, estruturas mistas a tração e flexão, vigas Vierendeel e treliças planas em aço Maria Amélia D. F. D'Azevedo Leite é arquiteta e urbanista, doutora pela FAUUSP, pesquisadora e professora nos cursos de graduação em arquitetura e urbanismo e engenharia ambiental da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Especialista em Controle do Ambiente e formação em Educação Internacional. ([email protected]) MARÇO 2007 ARQUITETURA&URBANISMO 69