COM A PALAVRA, O EDIFÍCIO

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COM A PALAVRA,
O EDIFÍCIO
CONTA-SE QUE A HUMANIDADE POSSUI DOIS LIVROS, DOIS REGISTROS, DOIS TESTAMENTOS: A
ARQUITETURA E A IMPRENSA, A BÍBLIA DE PEDRA E A BÍBLIA DE PAPEL
POR YOPANAN REBELLO, EDISON ELOY
E MARIA AMÉLIA D'AZEVEDO LEITE
A
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Reprodução de Norberg-Schulz. Système logique
de l'architecture, Liège: Pierre Mardaga
clérigo como manifestação do temor de que o
surgimento da imprensa viesse a eliminar a
maneira tradicional de se registrarem as conquistas e avanços da humanidade até então,
isto é, pela palavra construída em pedra.
Limiar entre monumento e edificação, os
dolmens expressavam valores das
comunidades primitivas ligados às etapas
fundamentais da vida humana: nascimento,
procriação e morte
Não somente a literatura,mas também as ciências reconhecem que a arquitetura comunica e
explicita as idéias de seu tempo. Pode-se até considerar que todo pensamento humano, seja de
cunho popular,erudito ou religioso,tenha se feito
edifício,principalmente até o século 15,quando a
informação impressa passa a se consolidar. Mais
além, é razoável considerar que as edificações,
por sua solidez, perpetuem de modo especial as
idéias, bem como influenciem o comportamento
humano, estimulando ou inibindo reações, dado
que alteram sobremaneira o ambiente original.
Nas análises antropológicas que desenvolve
sobre a relação entre homem e meio ambiente,
Amos Rapoport diz que o espaço construído é
uma forma de comunicação não-verbal, e que
as relações estabelecidas entre os conjuntos e
elementos arquitetônicos, o mobiliário, os
objetos e os usuários conformam uma linguagem pela qual todo um universo de informações sociais pode ser transmitido. A com-
Reprodução de Aspectos humanos de la forma
urbana, de Amos Rapoport, Gustavo Gili
existência humana confunde-se
com a criação de espaços físicos. Originalmente apropriando recursos naturais, como
cavernas e florestas, os ambientes humanos se artificializaram em edificações, evoluindo a partir de uma mescla
impressionante de expressões arquitetônicas
que retratam, a seu modo, uma leitura de
nossa inserção na vida do planeta.
O escritor Victor Hugo (1802-1885), na célebre obra que tem como cenário principal a
catedral de Notre-Dame de Paris (1831), escreve o seguinte diálogo entre dois personagens:
"O que são, então, os vossos livros?"
"Aqui tendes um", disse o arcediago. E,
abrindo a janela, designou com o dedo a
imensa igreja de Notre-Dame que, recortando
sob um céu estrelado a silhueta negra das suas
duas torres, das suas ilhargas de pedra e da
sua cúpula monstruosa, assemelhava-se a
uma enorme esfinge com duas cabeças assentada no meio da cidade. O arcediago considerou algum tempo em silêncio o gigantesco
edifício, depois estendendo com um suspiro a
mão direita para o livro impresso que estava
aberto na mesa e a mão esquerda para NotreDame, e passeando um triste olhar do livro à
igreja, responde: "Infelizmente", disse ele,
"isto matará aquilo...".
À parte a ficção da obra, percebe-se a
importância da arquitetura como descrição da
realidade dos povos ao longo dos tempos. É
possível interpretar o gesto e as palavras do
O meio ambiente construído organiza-se por relações espaciais entre seus elementos,
determinando padrões de comportamento humano. Habitações dispostas ao redor de um pátio
ou alinhadas ao longo da rua produzirão, certamente, relações interpessoais e sociais distintas
preensão das informações que se encontram
codificadas no meio ambiente construído, por
intermédio do que se poderia denominar,
então, de uma "linguagem arquitetônica", é um
componente importante da vida coletiva e gera
efeitos sobre o comportamento, a saúde, o
bem-estar e as relações interpessoais.
De forma semelhante à linguagem literária,
a linguagem arquitetônica se vale de elementos
e regras reunidas no repertório de figuras e
formas geométricas. Também compõem esses
recursos de linguagem o emprego dos materiais e dos sistemas construtivos, a cor e a luz,
além de propriedades como proporção, simetria, ritmo, harmonia e contrastes, sem contar
as necessidades ligadas ao uso da edificação e
de referências, como local e símbolos culturais.
Dentre estes, a estrutura desempenha um
papel preponderante, pois está intimamente
associada à definição das formas da construção
e à escolha dos materiais. Seja qual for a idéia
vigente a ser transmitida pela arquitetura, sem
dúvida, um trecho do discurso será feito pela
estrutura. Por exemplo, as tendas e cabanas utilizadas por inúmeros povos nômades relatam
em sua composição a mensagem do viajante,
para quem a leveza, a flexibilidade de formas e
a possibilidade de construir o transitório são
pressupostos fundamentais. E a estrutura
delineia-se privilegiando elementos a tração e
compressão simples, permitindo, inclusive,
ampla utilização de materiais de obtenção
local, como fibras vegetais, couro e tecidos.
Na Antigüidade, o pragmatismo romano e
seu afã de conquista refletem-se na composição
dos arcos de pedra que formavam estruturas
complexas como os aquedutos e pontes. Tal
natureza dos conquistadores romanos talvez
tenha sido um estímulo importante para a superação dos limites construtivos impostos pelos
modelos anteriores, representados, por exemplo, nos templos helênicos e egípcios, nos quais
a extensão dos vãos entre as colunas restringiase pela resistência limitada da pedra à flexão.
Valendo-se do excelente desempenho do
mesmo material à compressão, os romanos
traduziram-se construtivamente pelo arco
que, projetando-se de modo ousado no espaço, parece trazer intrínseca a mensagem de
seus construtores "...somos conquistadores,
alcançaremos novos horizontes, saltaremos
vãos e obstáculos...".
Reproduçãos de Shelter, Bolinas, Shelter Publications
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As tendas utilizadas pelos povos nômades possuem um vocabulário variado de possibilidades
estruturais para a construção das múltiplas formas de seus assentamentos transitórios
Reprodução de Structures or why things don't
fall down, de J. E. Gordon, Da Capo Press Inc.
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Reprodução de Aspectos humanos de la forma
urbana, de Amos Rapoport, Gustavo Gili
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Maria Amélia D. F. D'Azevedo Leite
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Difundidos pelos romanos, e contrapondo-se às limitações dos modelos estruturais anteriores dos
templos helênicos e egípcios, os arcos em pedra são exemplares de uma arquitetura cuja sintaxe se
expressa pela organização dos esforços de compressão e comunicam a vontade de vencer o vão livre
Sucessoras imponentes ao legado construtivo romano, as catedrais góticas medievais
representaram uma linguagem da opulência
do divino. O edifício, projetando-se verticalmente no espaço, declara em alto e bom tom o
caráter celestial dele esperado. Constituindo
um passo importante na transição entre sistemas construtivos de grande massa e sistemas
em esqueleto, o arcobotante gótico incorpora
novos vocábulos ao repertório arquitetônico,
em um diálogo intenso entre os dilemas da
religiosidade, do poder político da igreja e dos
desafios da construção.
No contexto de um mundo fragmentado e
onde a obtenção de grandes blocos de pedra e
imensos volumes de madeira para cimbramento se tornava difícil, o aprendizado das
técnicas bizantinas de formas mais esbeltas
feitas com tijolos e pequenos blocos de pedra,
promovido pelas cruzadas, aportou conhecimentos oportunos aos arquitetos construtores medievais.
Saltando alguns séculos, encontramos na
arquitetura moderna uma linguagem de caráter racional, em que predominam formas geométricas puras, de contraposição ao período
anterior neoclássico, marcado formalmente
pelas ordens clássicas e quando a linguagem da
arquitetura parecia confundir-se com estilo.
Ícones da fase moderna, como Le Corbusier
e Mies van der Rohe, descrevem nitidamente
em suas obras o novo tom da arquitetura, de
composições precisas e falas sintéticas na concepção do espaço. A estrutura torna-se também econômica, de poucas palavras, composta
de conjuntos repetitivos de elementos, autônoma em relação às vedações, utilizando uma sintaxe de funções construtivas claramente defini-
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Reprodução de www.farnsworthhouse.org/history.htm
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Reprodução de Système logique de l'architecture,
Norberg-Schulz, Pierre Mardaga
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Reprodução de As formas do século XX, de Josep Maria Montaner, Gustavo Gili
Reproduçãos de Shelter,
Bolinas, Shelter Publications
No sistema estrutural Domino (1914), elaborado por Le Corbusier, e na residência Farnsworth
(1951), de Mies van der Rohe, lêem-se algumas das regras da nova gramática da forma
arquitetônica proposta pelo modernismo: planos livres, coordenação dimensional dos elementos
e autonomia estrutural em relação às vedações
O arcobotante e as formas ogivais das
catedrais góticas relatam a troca de
conhecimentos técnicos entre ocidente e
oriente durante as cruzadas, e explicitam o
caráter celestial requerido do edifício
No edifício da Fundação Cartier (1991-1994), em Paris, de Jean Nouvel, o esqueleto estrutural de
aço desdobra-se em um diálogo de planos verticais e horizontais junto ao boulevard. A obra é
uma sensível reinterpretação dos planos horizontais de Le Corbusier e dos preceitos de
arquitetura ideal de Mies van der Rohe
das – ou seja, fundações, estrutura, vedações,
instalações e circulações – em busca de novos
valores, como flexibilidade de arranjos internos
e possibilidade de crescimento sem perda da
integridade construtiva e formal do edifício.
A linguagem arquitetônica contemporânea,
por seu lado, prega uma grande liberdade no
repertório das formas geométricas, desvincu-
la-se da rígida relação com o uso, apropria-se
de recursos materiais e tecnológicos inovadores e aventura-se em novos conceitos inspiradores como virtualidade, desmaterialização e
transparências, com vistas a uma estética que
traduza o diverso mundo atual em constante e
intensa mutação. Solidária, a estrutura responde ao apelo próprio de cada projeto,
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sejam esqueletos sustentantes, sejam planos
autoportantes ou outras formulações.
Se a arquitetura, como processo de comunicação, confirma-se por sua linguagem, a
estrutura pode ser uma grande aliada em sua
compreensão, contribuindo para enfatizar os
pressupostos da concepção do projeto e indo
mais além do que o mero compromisso com a
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Bitter & Bredt
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Arquivo
sustentação e a estabilidade da construção.
Em geral, para um mesmo desafio construtivo, haverá diversas soluções estruturais prováveis, mas certamente nem todas soarão em
uníssono com a arquitetura.
Que tal um teste? Por exemplo, o conhecido
Museu de Arte de São Paulo, o Masp.
Prezados leitores, avaliem.
E, com a palavra, o edifício.
Desenhos de Yopanan C. P. Rebello
Os planos estruturais em concreto do Museu Judaico (1999), em Berlim, de Daniel Libeskind, expressam em forma, texturas, dimensões, luz e
sombras as mensagens do autor. Aos visitantes dos três eixos que compõem o edifício (Holocausto, Exílio e Continuidade) se sucedem sensações
e emoções, como tensão, sofrimento, solidão, alívio e paz
Yopanan C. P. Rebello é engenheiro civil,
doutor pela FAUUSP e professor nos cursos de
graduação e pós-graduação em arquitetura e
urbanismo da Universidade São Judas Tadeu.
É diretor pedagógico da Ycon Formação
Continuada. ([email protected])
Edison Eloy de Souza é arquiteto e
urbanista pela FAUUSP, diretor da E & A
Arquitetura e Engenharia. É professor do
curso de graduação em arquitetura e
urbanismo da Universidade São Judas Tadeu.
([email protected])
Diversos outros sistemas poderiam ser utilizados para resolver os desafios do projeto do Masp,
tais como estruturais pênseis, pórticos associados, estruturas mistas a tração e flexão, vigas
Vierendeel e treliças planas em aço
Maria Amélia D. F. D'Azevedo Leite é
arquiteta e urbanista, doutora pela FAUUSP,
pesquisadora e professora nos cursos de
graduação em arquitetura e urbanismo e
engenharia ambiental da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas.
Especialista em Controle do Ambiente e
formação em Educação Internacional.
([email protected])
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