DIREITO A ORIGEM GENÉTICA Prof. José Roberto Moreira Filho1 RESUMO: O presente artigo versa sobre o direito que qualquer pessoa tem, em face de seus direitos de personalidade, de saber sobre sua verdadeira origem genética, sem que isso corresponda com a anulação ou desconstituição de seu estado de filiação, seja essa filiação estabelecida pelos vínculos jurídicos, biológicos ou sócio-afetivo. Palavras chaves: Origem genética. Filiação. Direitos de Personalidade. Sabemos que, hoje em dia, que o conceito de paternidade acha-se baseado em três pilares, ou seja, o pilar biológico, o pilar jurídico e o pilar socioafetivo. O liame biológico é aquele que estabelece a relação de parentesco com base na identidade biológica e sanguínea entre a criança nascida e seus pais; o liame jurídico é aquele que estabelece a relação de parentesco com base em uma decisão judicial, como é o caso da adoção onde a filiação é estabelecida por sentença, e o liame socioafetivo que estabelece os liames de filiação com base na posse de estado de filho, onde se deve provar a tríade: nome, trato e fama, sendo o nome comprovado pela inserção do sobrenome dos pais no nome do filho, o trato pelo tratamento dispensado de forma recíproca entre o filho e seus pais afetivos onde aquele os chama de pai e de mãe e é chamado de filho e a fama que é baseada na publicidade e conhecimento dessa relação aos familiares, vizinhos, amigos e todos aqueles que se relacionam com aquela família. Portanto, o conceito de filiação e sua definição no mundo jurídico evoluiu da filiação calcada em liames meramente biológicos até a atual filiação socioafetiva que prepondera em nosso ordenamento, quando em confronto com os laços de sangue. O Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a questão no Resp 1087163/RJ, da Terceira Turma, em relato da lavra da Ministra Nancy Andrighi: 1 Possui Mestrado em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2004). Especialista em Bioética, Direito e Aplicações pelo IEC Puc Minas (2002). Conselheiro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Assessor especial da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais (OAB/MG). Vice-Presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/MG.Professor Universitário em várias instituições de ensino e cursos preparatórios para as carreiras jurídicas e Conselheiro Nato do Núcleo de Bioética da PUC Minas. A filiação socioafetiva, por seu turno, ainda que despida de ascendência genética, constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, frise-se, arrimada em boa-fé, deve ter guarida no Direito de Família.2 Ser pai ou mãe, atualmente, não é apenas ser a pessoa que gera ou a que tem vínculo genético com a criança. É, antes disso, a pessoa que cria, que ampara, que dá amor, carinho, educação, dignidade e que trata aquele como seu verdadeiro filho, ou seja, a pessoa que realmente exerce as funções de pai ou de mãe em atendimento ao melhor interesse da criança. Conforme leciona nossa douta Professora Juliane Fernandes Queiroz: Assim, o novo comportamento cultural, no tocante à paternidade, insere o mundo moderno em outro contexto social, em que a função de pai deve ser exercida no maior interesse da criança, sem que se atenha à própria pessoa em exercício da referida função3. Diz ainda : "Por isso, atribui-se que o verdadeiro vínculo que se trava com os pais é o afetivo e, portanto, pais podem perfeitamente não ser os biológicos", e completa da seguinte forma : "Assim, em questões que envolvam conflitos de paternidade biológica e social, o interesse melhor e maior da criança deverá nortear a decisão". Questões como as relativas à adoção, inseminação heteróloga e adoção à brasileira estabelecem, entres os pais e seus filhos, verdadeiras filiações socioafetivas tendo em vista que, em tais casos, não há liame biológico entre os envolvidos apesar da clara demonstração da posse de estado de filho. A filiação, portanto, estabelece-se não apenas em face do vínculo biológico ou jurídico, mas principalmente em face do vínculo socioafetivo que atende mais ao princípio do melhor interesse da criança, da dignidade da pessoa humana e também da paternidade responsável. 2 Consulta ao sítio do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA; acesso em 26 de abr. 2012. 3 QUEIROZ, Belo Horizonte, 2001. Estabelecido o vínculo da filiação, o mesmo poderá, contudo, ser contestado ou repelido, desde que não mais se observe o interesse da criança, pela perda do poder familiar4, ou desde que não haja consentimento livre em face da inseminação heteróloga feita, ou se o mesmo for externado sob fraude, erro ou coação5. Mas, atendendo-se ao melhor interesse da criança e externando de forma livre e esclarecida o consentimento à técnica heteróloga de inseminação artificial ou à adoção, forma-se liame de filiação, com base na filiação socioafetiva, que não mais poderá ser contestado ou repudiado e que prevalecerá sobre as demais formas de filiação, mesmo a biológica. É o que ilustra o REsp 1059214 / RS, proferido pela 4ª turma do STJ, de Relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão: Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar, quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva6. Portanto, o vínculo de filiação, uma vez formado, não mais será objeto de contestação ou de impugnação e imporá, aos que externarem de forma livre e esclarecida o seu consentimento, os direitos e obrigações relativos à filiação. Ocorre, data venia discordando do entendimento externado pela Professora Juliane Fernandes Queiroz 7 , que a escolha do casal pelas técnicas de inseminação heteróloga ou pela adoção não tem o condão de impedir que o filho gerado possa investigar e ter acesso à sua origem genética, tendo em vista ser este um direito personalíssimo, indisponível, intransferível e oponível erga omnes. Tycho Brahe Fernandes, citando Álvaro Villaça de Azevedo e Walter Ceneviva, diz: 4 Artigo 1.638 do Código Civil. 5 Artigo 1.604 do Código Civil. 6 Consulta ao sítio do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA; acesso em 26 de abr. de 2012. 7 QUEIROZ, Op. cit., p. 126. ... posiciona-se Álvaro Villaça de Azevedo, para quem o filho concebido através de uma das técnicas de reprodução assistida poderá, a qualquer tempo, investigar sua paternidade, esclarecendo, ainda, que os responsáveis pela guarda dos dados do doador de sêmen deverão fornecê-los, em segredo de justiça.8 No mesmo sentido é a posição de Walter Ceneviva, quando assegura que o direito da mãe não vincula o filho, e este, ao atingir a maioridade, poderá ingressar com a competente ação investigatória para tentar a identificação do homem que, mesmo involuntariamente e apesar das circunstâncias, é seu verdadeiro pai. O direito ao reconhecimento da origem genética é direito personalíssimo da criança, não sendo passível de obstaculização, renúncia ou disponibilidade por parte da mãe ou do pai. O artigo 5º da C.F. preconiza que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...". Além do mais, o artigo 227, § 6º da C.F. pontifica a igualdade entre os filhos. Leciona Tycho Brahe Fernandes que Ao se negar a possibilidade do aforamento de ação investigatória por criança concebida por meio de uma das técnicas de reprodução assistida, em inaceitável discriminação se estará negando a ela o direito que é reconhecido a outra criança, nascida de relações sexuais.9 Além do mais, estar-se-ia se impedindo o seu direito à ação. Por sua vez, J. Franklin Alves Felipe defende que diante do novo texto constitucional, não há mais que se restringir os casos em que a investigatória de paternidade é admissível. Simplesmente cabe ação para o filho pleitear o reconhecimento de sua paternidade.10 O artigo 27 da Lei 8.069/90 estabelece o seguinte: Art. 27 - O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça. 8 FERNANDES, Op. cit., p. 85 9 FERNANDES, Op. cit., p. 86. 10 FELIPE, Rio de Janeiro, 2000, p. 66. Portanto, mesmo que os pais tenham firmado documento de consentimento informado no qual se comprometiam a não demandar a paternidade, o termo não vincula o filho nascido, pois o direito do reconhecimento do estado de filiação e, por conseqüência, do reconhecimento da origem genética, é indisponível e personalíssimo e pode ser exercido sem qualquer restrição, não podendo constituir objeto de renúncia por parte de quem não os possui. Ter direito ao reconhecimento da origem genética não significa subjugação, discriminação ou preponderância da filiação biológica em face da filiação socioafetiva, pois tal entendimento só seria relevante quando tratamos da discussão travada em um conflito positivo de paternidade, mas ao tratar de uma criança que não terá pai algum e desejando conhecer seus verdadeiros pais, nada mais lógico que se reconheça esse direito.11 O direito ao reconhecimento da origem genética não importa, igualmente, em desconstituição da filiação jurídica ou socioafetiva e apenas assegura a certeza da origem genética, a qual poderá ter preponderância ímpar para a pessoa que a busca e não poderá nunca ser renunciada por quem não seja o seu titular. Em entrevista à Tribuna do Direito, a doutrinadora Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida, ao dissertar a respeito de sua tese de livre docência pela Universidade de São Paulo, ressalta em seu trabalho o direito à identidade genética, ou seja, "o direito de os filhos gerados por doação de gametas (óvulos e espermatozóides) conhecerem os pais biológicos, sem que o exercício deste direito importe em desconstituição de paternidade, nem menosprezo à paternidade socioafetiva." Respondendo ao questionamento acerca do temor que sofreriam os pais socioafetivos ante a possibilidade de o filho buscar a sua origem genética, leciona a ilustre Silmara Chinelato: O ‘direito à identidade Genética’ não significa a desconstituição de paternidade dos pais socioafetivos. Hoje, enfatiza-se a importância da paternidade socioafetiva e a denominada ‘desbiologização’ da paternidade. E o filho só conheceria os pais biológicos se quisesse. O que não se pode é negar o Direito de Personalidade à identidade e fazê-lo crescer sob uma mentira, como alertam os 11 FERNANDES, Op. cit., p. 89. psicólogos. Um simples exame de tipo sanguíneo pode destruir toda a fantasia de que a criança é filha biológica de um casal. Em palestra proferida no III Congresso Brasileiro de Direito de Família, as Dras. Heloísa Helena Barboza, da Universidade do Estado Rio de Janeiro – UERJ e Jussara Maria Leal de Meirelles, da Universidade Federal do Paraná – UFPR, foram enfáticas em afirmar que o ser nascido de técnicas heterólogas de inseminação artificial tem total direito ao reconhecimento de sua origem genética e que tal direito é personalíssimo, irrenunciável e imprescritível. No Direito alemão, O Tribunal Constituição, em decisão de 1994, reconheceu nitidamente o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, mas sem efeitos sobre a relação de parentesco; é o chamado "Direito ao conhecimento das Origens".12 Em relação à relevância que representa o conhecimento da filiação biológica para o filho adotado, ou para o filho fruto de inseminação artificial, podemos perceber a discussão que se travou na mídia com a publicidade dada pelo sociólogo Kiko Goifman na procura de sua mãe biológica e que foi até mesmo divulgada pela Internet, através do site http://projeto33.no.com.br, onde conta que desenvolveu um projeto para, em 33 dias, procurar o paradeiro de sua mãe biológica com aquiescência e ajuda de sua esposa e de sua mãe adotiva. Ao permitir ao filho o seu direito de conhecer e saber a sua verdadeira identidade genética, estamos reconhecendo-lhe o exercício pleno de seu direito de personalidade e a possibilidade de buscar nos pais biológicos as explicações para as mais variadas dúvidas e questionamentos que surgem em sua vida, como, por exemplo, as explicações acerca da característica fenotípica, da índole e do comportamento social, das propensões ou resistências a certas doenças, etc. O reconhecimento da origem genética também tem importância em casos de doenças somente solucionáveis através de compatibilidade consangüínea, tal é o caso de certos transplantes de órgãos e certas doenças, como a leucemia. 12 CHINELATO, entrevista citada. Atento a isso foram alterados os procedimentos de adoção, através da Lei 12.010 de 03 de agosto de 2009, que alterando o artigo 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estipula: Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos. Parágrafo único. O acesso ao processo de adoção poderá ser também deferido ao adotado menor de 18 (dezoito) anos, a seu pedido, assegurada orientação e assistência jurídica e psicológica. (NR) A própria resolução 1957/10 do CFM, que regula a reprodução humana assistida, prevê a possibilidade do fornecimento de informações acerca do pai biológico, em situações especiais e sempre preservada a identidade civil do doador, para o médico que a requisitar. Portanto, concluímos dizendo que, se for vontade do filho, seja por ato próprio, assistido ou representado, ele poderá a qualquer tempo, em face da imprescritibilidade de seu direito, investigar a sua origem genética e biológica sem que isto constitua diminuição, discriminação ou desconsideração da filiação socioafetiva ou jurídica, porventura formada, e sem que implique quaisquer outros direitos inerentes à filiação, pois o reconhecimento de sua origem genética ou biológica não permite a desconstituição da filiação havida e não implicará em nenhum direito ou dever paterno ou materno àquele ao qual se investiga a origem. ABSTRACT: This article is about the right that everyone has, in the face of his personality rights, to know about their true genetic origin, without that corresponds with the cancellation or deconstitution their state affiliation, that affiliation is established by legal ties , biological or socio-affective. Keywords: Origin genetics. Membership. Personality rights. REFERÊNCIAS BRASIL. Código Civil. 15.ed. São Paulo: RT, 2010. CHINELATO, Silmara de Abreu Juny. Entrevista. FELIPE, J. Franklin Alves. Adoção, guarda, investigação de paternidade e concubinato. Rio de Janeiro: Forense, 2000. FERNANDES, Tycho Brahe. A reprodução assistida em face da bioética e do biodireito: aspectos do direito de família e do direito das sucessões. Florianópolis: Diploma Legal, 2000. QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. Doutrina e Jurisprudência. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=filia %E7%E3o+socioafetiva&b=ACOR> Acesso em: 26 abr. 2012.