construções do cérebro e desconstruções da “realidade”

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CONSTRUÇÕES DO CÉREBRO E
DESCONSTRUÇÕES DA “REALIDADE”
Madalena Grimaldi
UFRJ, Departamento de Técnicas e Representação
Transtechnology Research Group, Plymouth University
[email protected]
Resumo
Este artigo enfoca as ilusões visuais e sua utilização como instrumento útil
para a investigação dos processos cognitivos associados à percepção e às
estruturas associativas que se formam na memória. Apresenta um
conjunto de ilusões visuais construídas com palavras que "enganam" a
percepção e o sistema visual humano. Explorar-se a interpretação
ambígua que essas imagens causam mediante a correlação das
qualidades objetivas dos sentidos com os elementos subjetivos próprios de
cada indivíduo. Tal estudo serve como ancoragem para entendimento
do o processamento da informação visual e das diferenças
perceptíveis servindo como uma ferramenta para o desenvolvimento
dos processos de aprendizagem.
Palavras-chave: ilusão visual, percepção, representação mental.
Abstract
This paper focuses on visual illusions and its use as a useful tool for
investigating the cognitive processes associated with perception and
associative structures that are formed in memory. The present work shows
a group of constructed visual illusions with words that "deceive" the
perception and the human visual system. The ambiguous interpretation that
illusions cause is explored through the correlation of objective qualities of
the senses with the subjective elements specific to each individual. This
study serves as anchor for understanding the processing of visual
information and the perceived differences serving as a tool for the
development of learning processes.
Keywords: visual illusion, perception and mental representations.
1
A percepção da "realidade"
O ser humano normalmente acredita no que vê. Porém isso é a realidade ou uma
construção do cérebro? A observação do que se vê é diferente para cada pessoa?
Poderia ser diferente para o mesmo indivíduo em momentos diferentes? Como a
mente humana processa a “realidade”? Estas e muitas outras perguntas poderiam ser
feitas para tentar elucidar como percebemos o ambiente que nos cerca e como
armazenamos e utilizamos os dados processados.
Do ponto de vista fisiológico, a percepção é um processo construtivo que envolve
os estímulos elétricos evocados pelos órgãos dos sentidos. Designa o ato pelo qual
tomamos conhecimento de um objeto do meio exterior. Do ponto de vista psicológico
ou cognitivo, engloba também os aspectos próprios de cada indivíduo tais como o
raciocínio, a memória e qualquer outro que possa influenciar na apreensão daquilo
que observamos.
É através da ação cooperativa dos órgãos dos sentidos que obtemos um quadro
“realista” do nosso entorno. Há uma tendência de integração e concordância dos
vários sentidos, por isso quando ocorrem discrepâncias numa situação física real,
como no caso de construções ilusórias, nosso sistema sensorial tenta "corrigir" o
equivoco para possibilitar uma acomodação. Ajustamos o grupo de sensações
detectadas, criando novas inferências e testando novas conjecturas.
As ilusões podem ser ocasionadas por diferentes causas: deficiência fisiológica,
mau uso do conhecimento ou ainda por interferência física. Podem aparecer
naturalmente ou serem inventadas por artifícios visuais específicos, contudo, o
resultado da interpretação ou da leitura equivocada é o mesmo: uma ilusão.
2
A percepção e a memória
O alemão Hermann von Helmholtz (1910) caracterizou a percepção visual como uma
dedução do inconsciente formulada a partir dos dados sensoriais e do conhecimento
preexistente. Segundo ele, são hipóteses psicologicamente projetadas no espaço
externo e aceitas como uma realidade mais imediata. Ou seja, uma combinação entre
as qualidades objetivas dos sentidos e outros elementos subjetivos, próprios de cada
indivíduo.
A percepção não é, portanto, somente uma coleção de informações, qualidades,
objetos e acontecimentos detectados. Ela desempenha um papel importante no
armazenamento dos dados processados, proporcionando matéria prima para o
pensamento e para a estruturação das ideias.
Rudolf Arnheim defende, em seu livro Visual Thinking (1997), que a percepção e o
pensamento mantêm uma relação indissolúvel. Desta forma, existe um elo
permanente entre ambos e o estudo separado destes processos, como se fazia há
alguns anos, é um artifício que conduz a uma interpretação deficiente sobre as
competências dos indivíduos. Para o autor o ser humano percebe o ambiente com
base na interação entre os aspectos da percepção e as estruturas internas do
pensamento.
Um fenômeno importante sobre a percepção é que ela facilmente, pois não
identifica o mundo exterior como ele é de fato, e sim mediante interferências da mente.
O cérebro extrai as informações captadas pelos sentidos e as interpreta em função de
experiências anteriores com as quais seja possível fazer associações. Isso acarreta
dificuldades em distinguir o real daquilo que é fornecido como suplemento no processo
de reconhecimento de algo real. Isso pode ser facilmente comprovado com um
desenho inacabado, que desperta a imaginação do observador ao projetar
informações incompletas.
Para
fazer
essas
associações
ou
construções
mentais
precisamos
fundamentalmente da memória, e é exatamente devido a esta não ser perfeita que
somos capazes de tentar outras possibilidades para resolver o mesmo problema.
Como afirma De Bono (1968, p.9) “O cérebro é um bom computador, simplesmente
por ser uma memória ruim. É esta memória ruim que alimenta o processo da
computação”.
Se
por um lado a
memória
interfere diretamente
no
que
se
vê
e
consequentemente dificulta a distinção do que efetivamente é realidade, por outro
essa mesma memória é de grande auxilio para descrever detalhadamente as imagens
mentais concebidas. O papel de tais estruturas do pensamento foi analisado por
Francis Galton no livro Inquiries into human faculty and its development, publicado em
1883. Segundo ele, uma faculdade de visualização vívida é de grande importância
para estimular o raciocínio generalizado. Essas representações mentais funcionam
como estruturas cognitivas que se formam na memória quando se deseja aprender,
compreender e desenvolver um determinado processo.
Outro autor que trata do valor da imagem mental é o psicólogo americano
Stephen Kosslyn (1996). Exemplificando com perguntais como: “Qual é a forma das
orelhas do Mickey Mouse?” ou "Qual verde é mais escuro, o de uma ervilha congelada
ou o de um pinheiro?”, ele elucida sua teoria de que organizamos nosso pensamento
com figuras e, portanto, o raciocínio precisa muitas vezes se utilizar de imagens para
resolver problemas.
Os artistas, ao longo dos séculos, têm apresentado essa habilidade de usar a
propensão do cérebro para fazer suposições, causando nos espectadores a ideia de
ver além do que realmente está lá (como, por exemplo, a sensação de enxergar três
dimensões em pinturas bidimensionais). Ao criarem essas ilusões, eles representam
coisas que não somente estão ausentes como não poderiam estar de fato lá.
Utilizando-se de truques visuais surpreendentes, concebem figuras impossíveis como
“A queda d’água” do gravurista M.C. Escher (Figura 01).
Figura 01: Waterfall, 1961
Fonte: http://www.petergh.f2s.com/escher.htm
3
A percepção das Ilusões Visuais
Os diferentes órgãos sensoriais - audição, tato, olfação, visão e gustação - podem ser
enganados, provocando uma confusão nos sentidos e consequentemente alterando a
percepção e apreensão do que está sendo observado. Contudo, quase todas as
percepções não são ilusórias, como, por exemplo, quando se olha para o sol e podese ter a ilusão de que ele anda à volta da terra, apesar e saber-se que a realidade é o
inverso. Ou seja, as aparências podem enganar a percepção.
Existem diferentes representações gráficas que podem ser construídas para criar
um efeito ilusório. As ambíguas nos permitem interpretar de formas diferentes uma
mesma imagem. O processamento cerebral fica numa eterna busca para definir o que
é o certo, ou o “menos errado”. Observe-se que nos dois exemplos da Figura 02, a
mente não se decide sobre qual palavra deve ser lida numa alternância constante
entre ambas as possibilidades.
Figura 02: Imagens ambíguas
Fonte: http://rossotron.com/tag/quiz/ e
http://www.marcofolio.net/other/15_cool_word_illusions.html
Vejamos outro exemplo bem conhecido. Na Figura 03 caso tente-se falar em voz
alta o nome das cores e não o das palavras o quão rápido se conseguir, acontece o
seguinte: nas primeiras, é possível dizer o nome das cores, mas à medida que se
continua o cérebro entra em conflito e insiste em ler a palavra invés do nome das
cores.
Figura 03: Imagens ambíguas
Fonte: http://psicob.blogspot.co.uk/2008_06_01_archive.html
Isso ocorre porque o processamento mental de todos os sentidos tende a prestar
mais atenção às mudanças nos sinais de entrada que se dão no espaço e/ou tempo
do que aos valores absolutos desses sinais. Assim, a percepção é facilmente alterada
por outros sinais na medida em que se tenta desenvolver mecanismos para encontrar
padrões e relações nas informações detectadas.
Um dado não menos importante sobre a percepção é o fato de que quando nos
acostumamos com uma situação, o inconsciente passa a predominar sobre o
consciente, deixando-se então de perceber a “realidade”. O consciente propriamente
dito refere-se às experiências que a pessoa percebe, incluindo lembranças e ações
intencionais. Ele funciona de modo realista, de acordo com o tempo e o espaço. Já o
inconsciente cognitivo, faz suposições que se desenvolvem sem intervenção da
consciência. A dedução do inconsciente formula hipóteses, a partir dos dados
sensoriais e do conhecimento preexistente, de modo a organizar dentro do que
considera a realidade mais imediata e correta.
Vejamos um exemplo de como esse conhecimento preexistente interfere
diretamente no sentido do que sendo observado, quando se tenta ler o que está
escrito na Figura 04.
Figura 04: Mistura de letras e números
Fonte: http://www.noteshared.com/2012/08/como-criar-uma-senha-segura.html
Não existe nada realmente escrito no sentido cognitivo da linguagem. Porém, se o
leitor tiver o domínio prévio do idioma português conseguirá identificar perfeitamente o
texto. Ou seja, o cérebro consegue redefinir a normalidade, até nas coisas mais
simples e automáticas, fazendo os devidos ajustes em função do que possui de
conhecimento previamente armazenado.
O que se percebe é um “palpite” do que se considera como correto. É uma
tentativa de dar uma ordem estável ao que poderia ser incompreensível, sendo o
melhor entendimento para se encaixar em uma determinada situação.
O cérebro é, portanto um sistema de processamento contínuo de informações,
que são atualizadas de forma probabilística de acordo com o que se considera mais
adequada para cada situação. Vamos exemplificar com a Figura 05. Leia o que está
escrito a seguir.
DE AORCDO COM UMA PEQSIUSA DA
UINRVESRIDDAE IGNLSEA NÃO IPOMTRA EM QAUL
ODREM AS LTERAS DE UMA PLRAVAA ETÃSO A
ÚNCIA CSIOA IPROTMATNE É QUE A PIREMRIA E
ÚTMLIA LTERAS ETEJASM NO LGAUR CRTEO. O
RSETO PDOE SER UMA BÇGUANA TTAOL QUE
VCOÊ ANIDA PDOE LER SEM POVRLMEA.
ITSO É POQRUE NÓS NÃO LMEOS CDAA LTERA
.
ISLADOA, MAS A PLRAVAA CMOO UM TDOO.
Figura 05: Ordem das letras trocadas
Fonte: criação da autora
Esse texto circulou na internet em setembro de 2003, e apesar de não haver
qualquer comprovação sobre o que foi feito pela Universidade Inglesa (na versão em
inglês o texto cita como sendo uma pesquisa da Universidade de Cambridge), ele
serve para explicar que o processamento mental formula alternativas lógicas, mesmo
no para aquilo que aparentemente não possui sentido coerente. Isso porque
a mente não lê palavras conhecidas soletrando, e, sim, sempre buscando coesão e
simplicidade. As células cerebrais trabalham diretamente, independentes das palavras
estarem certas ou erradas, além disso, a percepção do todo é maior que a soma das
partes apreendidas.
Outra comprovação sobre como a percepção do conjunto é extremamente
dominante na mente é o exemplo da Figura 06. Caso se afaste um pouco a imagem
será possível ler-se facilmente a palavra LIFE, porém ao se olhar com atenção e mais
de perto parecerá que as linhas do contorno da palavra não se encaixam. Ou seja, fazse um “ajuste” pela ideia da totalidade.
Figura 06: Ilusão de totalidade
Fonte: http://www.marcofolio.net/other/15_cool_word_illusions.html
Mais um aspecto a ser destacado aqui, refere-se às ambiguidades ilusórias, que
ocorrem em virtude de a linguagem e a memória serem vizinhas no cérebro, e graças
a essa peculiaridade procurarmos semelhanças para reconhecer o que estamos
vendo. Vejamos outro exemplo na Figura 07. Que letra é essa?
Figura 07: Letra ambígua
Fonte: criação da autora
A resposta correta é: depende do contexto, pois o cérebro se utiliza de outras
informações da memória para definir o que é correto. Poderia ser um “A” ou um “H”,
conforme exemplificado na Figura 08.
Figura 08: Letra contextualizada
Fonte: criação da autora
Um ponto interessante sobre a percepção é o fato de que, quando temos
informações parciais, a mente deduz o resto pelo que lhe é mais conhecido. Vejamos
o exemplo da Figura 09. O que está escrito?
Figura 09: Informações parciais
Fonte: criação da autora
Num teste feito com dez arquitetos, todos responderam COTA para a primeira
palavra e IOGA para a segunda. Porém, as palavras eram respectivamente GOTA e
JOGA, conforme exemplificado na Figura 10. Isso mostra dois outros aspectos do
arranjo mental. O primeiro é que buscamos o que nos é mais comum ou usual na
memória para fazer associações. A palavra “cota” é um termo corriqueiro a todos os
arquitetos. E o segundo é que existe uma tendência natural da mente de
autoorganização através de uma ordem, nesse caso a ordem alfabética das letras.
Consequentemente a primeira letra a ser lembrada foi o “I” e não o “J”.
Figura 10: Informações totais
Fonte: criação da autora
Outro aspecto da ambiguidade das ilusões é que ela pode induzir à construção de
duas ou mais percepções distintas. Vejamos o exemplo da Figura 11. O que se vê?
Figura 11: Imagem de um rosto?
Fonte: http://www.marcofolio.net/other/15_cool_word_illusions.html
Visualiza-se o contorno de um rosto de alguém usando um óculo. Porém, quando
se rotaciona o desenho em 270º, como mostra a Figura 12, o que se passa a ver?
Certamente se lerá a palavra “Liar”. Isso é uma brincadeira para mostrar que o que se
percebe pode ser uma “mentira”. A mente interpreta imagens pela melhor estimativa e
suposição dentre as compatíveis com a “realidade” de cada um.
Figura 12: Imagem da palavra “Liar”
Fonte: http://www.marcofolio.net/other/15_cool_word_illusions.html
Essa imagem também serve para exemplificar a comprovação do psicólogo David
Marr (2010), ao afirmar que quando usamos um referencial de alinhamento para
reconhecer uma forma que esteja representada em outra posição que não seja a dos
eixos cartesianos x e y, não conseguimos identificá-la facilmente. Esse sentido de
orientação também foi analisado pelo psicólogo Irvin Rock (1984) que, por meio de
testes e estudos referentes a formas geométricas iguais posicionadas em diferentes
arranjos, constatou que nos guiamos com uma orientação norte – sul, leste – oeste.
O que é particularmente intrigante sobre figuras ambíguas é que é possível vê-las
de maneiras diferentes, e que as distintas possibilidades podem ser corretas, não
existindo uma razão para a mente escolher uma em detrimento da outra. A percepção
do inconsciente cognitivo é capaz, portanto, de dar não só um palpite, mas vários
outros diferentes, sem que a consciência perceba que isso está acontecendo.
4
Conclusão
Quanto mais se aprende sobre o cérebro, mais parece que a "realidade" é de fato uma
construção mental. Durante o processo de percepção, cria-se uma imagem completa.
Não se trata, então, de uma impressão passiva e, sim, de uma combinação de
elementos sensoriais com uma organização ativa da mente, de modo a formar uma
experiência coerente.
Figuras ambíguas fornecem algumas hipóteses para entender o que se passa no
cérebro, sendo úteis para “desconstruir” o processo de percepção. Podem, assim,
fornecer uma “janela” para entender como percebemos o que está em nosso entorno e
como funciona o cérebro e os processos correlatos, relacionados à atenção visual e à
capacidade de representar graficamente.
As ilusões também permitem reconhecer que o ser humano tem a aptidão de
continuar a criar novas formas e possibilidades para resolver um mesmo problema.
Servem para reforçar o argumento de que a consciência humana tem a competência
de ir além da adivinhação que o nosso inconsciente cognitivo nos proporciona e
podem ser usadas para o desenvolvimento cognitivo com ênfase no ‘pensamento
visual’ e na criatividade.
Referências
ARNHEIM, Rudolf. Visual Thinking. Los Angeles: University of California Press. 1997.
BONO, Edward de. The Mechanism of Mind. 8th edition. Ed. V. H. T. James. London:
J. & A. Churchill, 1968.
GALTON, Francis. Inquiries human faculty and its development. London: J.M. Dent
& Company.1883.
HELMHOLTZ H von. Treatise on Physiological Optics. New York:Dover; 1910.
KOSSLYN, Stephen. Image and Brain: The Resolution of the Imagery Debate.
Bradford Books , EUA. 1996.
MARR. David. Vision. A Computational Investigation into the Human
Representation and Processing of Visual Information. The MIT Press. Foreword by
Shimon Ullman, afterword by Tomaso Poggio. 2010.
ROCK, Irvin. Perception. New York: Scientific American Books, Inc. 1984.
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