Página 62 a 70 GUERRA DO PARAGUAI E NAVEGAÇÃO FLUVIAL EM VILA MARIA DO PARAGUAI Maria de Lourdes Fanaia Castrillon1 [email protected] A povoação de Vila Maria do Paraguai foi fundada em 6 de outubro de 1778, pelo governador e capitão-general Luis de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, como parte da política da Coroa Metropolitana portuguesa de defesa da fronteira oeste, contra a invasão dos espanhóis. Quanto aos limites territoriais configurava-se pela parte norte com o rio Jauru; a leste com o sangrador do Melo; ao sul com Albuquerque e a oeste, o limite foi estabelecido somente na segunda metade do século XIX com o Tratado de La Paz de Ayacucho de 1867 que estabelecia a demarcação de limites e a navegação fluvial entre o Brasil e a Bolívia.2 A respeito dessa demarcação de limites podemos observar como o presidente de província Augusto João Manoel Leverger se expressa em relatório de 1869: Incertos ou contestados, há mais de um século, os limites ocidentais das freguesia de Albuquerque,Corumbá, Poconé, Vila Maria e Mato Grosso que são também limites do império com a república da Bolívia [...] foram definitivamente fixados pelo supro mencionado Tratado de 1867, que define a fronteira do seguinte modo: Partirá do rio Paraguai, na latitude de 20º10’ onde deságua a Bahia Negra; seguirá pelo meio desta até seu fundo e daí em linha reta até a Lagoa Mandioré e a cortará pelo seu meio, bem como as Lagoas Gahiva e Uberaba, em tantas retas quantas forem necessárias , de modo que fiquem do lado do Brasil as terras Altas da Pedra de Amolar e de Ínsua. Do extremo norte, a Lagoa Uberaba irá em linha reta ao extremo sul da Corixa grande, salvando as povoações brasileiras e bolivianas, que ficarão respectivamente do lado do Brasil.3 Os rios, lagos, baías, riachos e corixos serviam para demarcar as divisas entre os dois países, quais sejam, o Império do Brasil e a República da Bolívia. Desse modo, o “extremo sul da Corixa”4 mencionado no documento acima, foi o espaço que serviu de divisa de fronteira com o Brasil especificadamente com a província de Mato Grosso localizado no território de Vila Maria a 60 kilômetros da 1 Graduada em História, especialista em História, Mestrado em História pelo Programa de Pós –Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso. 2006. UFMT 2 COSTA, Wilma Peres. 1996. p. 3 Relatório do Presidente de Província Augusto Leverger. (1869). APMT: Cuiabá. 4 Apontamentos do Dicionário Corográfico da Província de Mato Grosso pelo Barão de Melgaço Corixa é um ribeirão que nasce numa gruta da serrinha a poucas léguas da cidade de São Luis de Cáceres; corre a sul e vai desfazer-se um tremedal, cujas águas provavelmente se esgotam na Lagoa Uberaba. Ver em dicionário Corográfico da Província de Mato Grosso. Página 62 a 70 República, constituído por um destacamento militar desde 1868, quando os bolivianos se retiraram do lugar razão pela qual o presidente de província mencionou em seu relatório as “povoações do lado brasileiro.” Essa demarcação de limites estabelecida entre o governo central e a república platina vizinha de Vila Maria indica-nos não só o aspecto geopolítico mas principalmente a navegação pelo prata cujos interesses naquele momento, não se restringia apenas aos da província de Mato Grosso pois era um fenômeno que fazia parte de uma conjuntura política e econômica mundial. Ressalta-se que o rio Paraguai atravessa o Mato Grosso constitui a Bacia do Alto Paraguai, separa-o da República da Bolívia; penetra na República do Paraguai e limita-se com a República Argentina, indo desaguar no Rio Paraná, aproximadamente a 40 quilômetros ao norte da cidade de corrientes. Considerando um rio de baixada, passa por Cáceres e estendese dessa maneira, até a sua foz, permitindo assim, acesso a embarcações.5 Segundo Nei Reynaldo, no prata, encontrava-se as “fronteiras importantes do Brasil, a do Paraguai e da Bolívia, e nelas havia intercâmbio de alguma relevância para o país”.6 Para Volpato, a fronteira oeste era “conferida a responsabilidade da defesa”; Cabe lembrar que na fronteira do Paraguai houve maior investimento de segurança que a da Bolívia esta, porém, era assumida socialmente por sua população com pouca ajuda da metrópole e, posteriormente, da Corte do Rio de Janeiro.7 Embora o Tratado de Amizade, Comércio e Navegação fosse estabelecido em (1856), a questão dos limites e do domínio da margem direita do Rio Apa resultou em dissensões entre o Brasil e o Paraguai, culminando no conflito de 1864, quando as tropas paraguaias invadiram Mato Grosso.8 Segundo Domingos Sávio da Cunha Garcia, quando a Guerra do Paraguai se iniciou, a partir da ocupação da região sul de Mato Grosso por forças paraguaias ficou evidente o contraste entre as preocupações e iniciativas com a questão da defesa frente aos vizinhos platinos e bolivianos e o despreparo pela insuficiência das forças encarregadas de efetivar essa defesa na fronteira oeste.9 Mesmo não sendo palco privilegiado da guerra, a cidade de Cuiabá teve que se adaptar a uma nova realidade: o sul da província estava em poder dos paraguaios e a navegação do Prata bloqueada provocou reflexos na província de Mato Grosso, sob vários aspectos. No início da guerra a província de Mato Grosso contava com uma guarnição de 875 soldados do exército e uma força naval organizada em quatro unidades das quais apenas o Amambaí era provido de dois canhões.10 A referida guerra dificultou a comunicação com o centro sul do império, gerando falta de alimentos, carestia de vida, e a inundação do Rio Cuiabá em 1865 ajudou agravar a situação.11 Segundo Reynaldo 5 Ata da Câmara Municipal de São Luis de Cáceres. (1875). APMC: Cáceres REYNALDO, Ney L ared. Comércio e Navegação no Rio Paraguai. Cuiabá, Edufmt, 2004. Op. Cit. p.72. 7 VOLPATO, Luiza R. R. Cativos do sertão; vida cotidiana e escravidão em Cuiabá: Marco zero/ Editora da UFMT. 1993. nº 41 a 45. p. 59. 8 REYNALDO, Ney L ared. Op.cit. p. 60 9 GARCIA, Domingos Sávio da Cunha. Territórios e negócios na era dos Impérios: Os belgas na fronteira Oeste do Brasil. Tese de Doutorado. Campinas. 2005. p. 34 10 REYNALDO, Ney L ared. Op.cit.p.63 6 Página 62 a 70 Ney, a crise econômica que imperou na região de Mato Grosso durante a guerra do Paraguai, em nenhum momento bloqueou completamente as atividades comerciais principalmente em Corumbá e nem mesmo em outras regiões envolvidas no conflito, o que nos revela que os paraguaios também dependiam do comércio, mantido ainda que precariamente.12 Os rios Paraná e Paraguai no século XIX, era “importantes vias de comunicação hídrica, obstruída a navegabilidade, prejudicava o comércio cuiabano e a rota terrestre fora rearticulada”.13 Para Volpato, durante a Guerra do Paraguai, havia na capital da província uma insegurança por parte do governo provincial: medo dos paraguaios, dos bolivianos, dos desertores considerados pelas autoridades como inimigos perigosos e conhecedores dos terrenos e das possibilidades de defesa da população, tinham destino certo procuravam os quilombos existentes na província.14 Além disso, dentre os reflexos provocados pelo conflito na província de Mato de Mato Grosso, estavam os medos, e as doenças como febre amarela, varíola, bexiga e a peste- da -cadeira. Jean Delemeau,considera que o medo é inerente ao homem e sendo inerente é uma defesa essencial uma garantia contra os perigos.15 Considerando-se que a citada guerra em si não atingiu efetivamente a cidade de Vila Maria do Paraguai mas mediante conflito a administração Municipal da referida localidade criada em 1859, dava seus primeiros passos, reagia tomando medidas preventivas ou seja, a guerra tornou grande alvo de atenção por parte das autoridades políticas tanto do governo provincial quanto do governo local. Uma das primeiras reações dos representantes políticos do governo provincial foi fazer com que houvesse a participação dos contingentes de Vila Maria na retomada de Corumbá. Segundo Marlene Vilela, no plano que previa a retomada de Corumbá, forças do governo provincial tiveram participação, incluindo-se os municípios de Cuiabá, Poconé e Vila Maria.16 Para Vilela, o comandante do contingente militar de Vila Maria, João Carlos Pereira Leite, organizou uma expedição distribuída em canoas e, de acordo com o planejamento, “encontrou-se na desembocadura do rio São Lourenço, com a frota que tendo saído de Cuiabá no dia 10 de junho de 1868 levava a bordo o presidente de província José do Couto Magalhães e, a partir desse local levou as canoas a reboque, até Corumbá”.17 Outras providências agilizadas pelos representantes da referida vila são encontradas no relato de Luis Benedito Pereira Leite comandante do Distrito militar da localidade, no ano de 1868. As correspondências desse comandante expressam o cuidado VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Op. Cit. P. REYNALDO, Ney. Op. Cit. P. 80 13 Op.cit.p.65 14 VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Op. Cit. P. 62. 15 DELEMEAU. Jean. História do Medo no ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 23. 16 VILELA, Marlene. Quando Deus apontou o dedo para a província de Mato Grosso. Dissertação de Mestrado em História. Cuiabá: UFMT, 2000. p. 53. 17 Idem. Op. Cit. p. 319 11 12 Página 62 a 70 com a fronteira boliviana, durante o conflito bélico, pois Vila Maria recebia materiais bélicos como cartuchos, enviados pelo Arsenal de Guerra da Marinha de Cuiabá, conforme citação em documento: Nos diversos pontos deste distrito não ocorreu novidade alguma que alterasse a tranqüilidade pública, a fronteira pelo lado da Bolívia está em paz... Foi também recebido pelo distrito e existe em depósito os dez mil cartuchos embalados remetidos pelo Arsenal de Guerra de ordem da Exmª. Presidência dos quais chegaram em mal estado cento e setenta. 18 Além dos cartuchos o Arsenal de Guerra localizado na capital da província também enviava a Vila Maria: machados, foices, facas e fardamentos. Desse modo para coibir os ataques paraguaios foram instalados no território de Mato Grosso uma força naval, além das instalações militares. Contudo, todo material bélico não produzido na província de Mato Grosso, como fardamentos, armas leves e pesadas , peças de reposição chegavam “à província via terrestre, por Goiás e Minas, uma vez que a navegação do Rio Paraguai estava proibida durante o conflito, o que nos revela que não era a única via de acesso a Mato Grosso. 19 Após a invasão dos paraguaios no território matogrossense o presidente de província e comandante das armas Antonio Leverger reorganizou a defesa da província, “estimulando o recrutamento militar criando o corpo de Voluntários cuiabanos que também estabeleceu em Vila Maria”. 20 Fato interessante é que nos anos de 1864 a 1870 observamos em todas as ruas, de Vila Maria uma grande quantidade de mulheres, estava à frente dos fogos. Possivelmente isso estaria relacionado com a Guerra do Paraguai, momento em que muitas mulheres, esposas de homens livres envolvidos no conflito bélico engajados, recrutados ou mesmo voluntários, assumiram tarefas nos lares e nos espaços públicos.21 Segundo Marlene Vilela, em 1868, na província de Mato Grosso fora estabelecido o cordão sanitário, preventivo contra o avanço da varíola um recurso bastante utilizado, que parte do princípio de separar, ou melhor isolar o doente. Segundo a autora, essa medida preventiva foi criada após a epidemia, que provocou a reorganização sanitária bem como uma medida preventiva para outras epidemias.22 Para Marlene Vilela, a epidemia da varíola atingiu não somente Cuiabá, mas outras localidades da província como: Guia, Brotas, Rosário, Diamantino, Rio Abaixo e Serra Acima e Vila Maria, único lugar onde foi efetuado um isolamento dos suspeitos na fazenda Caiçara e, ao que consta, foi atribuído a ele o pequeno número de contágio.23 18 Correspondência emitida pelo comando do distrito militar de Vila Maria em 1868. Lata A. APMT: Cuiabá. REYNALDO, Ney Lared. Op cit. p. 73 20 Idem Op. Cit. p. 79. 21 PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império; Família e Sociedade em Mato Grosso no século XIX, 22 VILELA, Marlene. Op. Cit., p. 113 23 Idem. Op. Cit., p. 61. 19 Página 62 a 70 Em Vila Maria, um dos pontos que compunha o cordão de isolamento parece ser o lugar denominado de Barranco Vermelho” situado na margem esquerda do rio Paraguai.24 Vejamos como o comandante do distrito militar Luiz Benedito Pereira Leite referia-se sobre a epidemia mencionando a quarentena em alguns pontos que faziam parte do território da Vila Maria. Os índios Guatós que habitam nas imediações daquela Bahia foram afetados da bexiga e muitos deles tem parecido de tão horrível mal, e foi ele trazido por um dos índios da mesma tribo que habitava no rio São Lourenço que fujido do mesmo mal que ali estava assolando nos seus companheiros, veio até a Gahiva onde morreu passando logo o mal aos dali. Proibi a subida de tais para essa vila, colocando na margem direita do rio Paraguai no lugar Cambará patrulha dos índios Bororos, que todos são vacinados. Os habitantes do Taquaral, Santa Ana e Palmeira onde a bexiga apareceu, estão livres dela tendo falecido alguns deles. Em São Mathias, colônia boliviana cessou esse horrível mal depois de seifar quase todos os habitantes, e por isso abri a quarentena estabelecida para aquele lado, continuando a conservar o dos Barreiros no caminho desta vila. Nesta vila nenhum caso dessa flagelante epidemia se deu graças a Divina providência.25 Na capital da província de Mato Grosso a propagação da varíola foi mais intensa causando calamidade causando inúmeras mortes e segundo os discursos a solução só poderia vir de Deus. Segundo Volpato, o bispo de Cuiabá estimulou a realização de preces e celebrações litúrgicas a invocando as bênçãos do Senhor e sua proteção contra a peste. (VOLPATO, Luiza Rios Ricci. 1993. p. 77) Vale lembrar que a epidemia da varíola foi um assunto discutido pelas autoridades tanto da província quanto das localidades não somente no período da guerra, poderia adentrar-se pela fronteira boliviana, local onde vinham e iam os transeuntes. Sobre isso, consta na ata de 1886: Com o fim de obstar a propagação da varíola ora reinante na fronteira e em algumas localidades da Bolívia cumpre-me dizer que [...] Todo indivíduo que entrar doente da referida moléstia, ou que sofra a manifestação depois de entrada deve ser convenientemente tratado.26 Não por acaso houve um intenso discurso sobre a “segurança pública” que na época tinha um sentido mais amplo , pois também significava medidas preventivas contra as epidemias. Á exemplo, os relatórios dos chefes de polícia chamavam constantemente a atenção dos representantes da administração local dessa e de outras vilas da província de Mato Grosso. Vejamos que as medidas preventivas variam em diversos aspectos, porém, não encontramos em nossa investigação muitos casos de mortandade em Vila Maria, a não ser o caso ocorrido em 1868, quando o Padre Cassimiro Ponce Martins registrou no livro de óbitos da igreja Matriz, de Vila Maria, falecimentos de treze pessoas de variadas idades e de ambos os sexos vítimas da peste da bexiga no lugar denominado Palmeiras localizado na zona rural do município. Na época da Guerra, diante de boatos que corriam de que 24 Correspondência emitida pelo comando do distrito militar de Vila Maria em 1868. Lata A. APMT: Cuiabá. 25 Relatório emitido pelo comandante do distrito militar de Vila Maria, Luis Benedito Pereira Leite (1867). Lata D. APMT: Cuiabá Ata da Câmara Municipal de São Luís de Cáceres (1886). APMC: Cáceres 26 Página 62 a 70 a república boliviana fazia acordos com o Paraguai, o governo provincial agilizou a defesa dessa “fronteira” que esteve sob a responsabilidade da Guarda Nacional. Para Volpato, o medo do ataque por parte da Bolívia só foi controlado após a assinatura do Tratado de Comércio e Navegação em 1867, entre o Brasil e aquela República.27 Na ocasião foram acertadas a demarcação do acordo jurídico pela navegação fluvial entre os países do qual Vila Maria fazia divisa com essa república. Esse acordo acabou propiciando a república boliviana intercâmbio com a capital da província de Mato Grosso. O boato sobre o possível ataque boliviano, foi difundido pelo jornal de Cuiabá A Imprensa. Segundo Lefebvre [...] quando uma população inteira espera o aparecimento de um inimigo, é bem raro que a presença deste não seja anunciada num dia para o outro um rumor quando é lançado, manifesta-se de tudo, produz metásteses em múltiplas direções, passando do estatuto de “diz-se” ao de certeza.28 Na ocasião esse jornal relatava que havia recebido uma carta datada em 3 de fevereiro proveniente de Vila Maria (embora não especificasse qual representante político havia expedido a referida correspondência) cujas notícias versavam sobre a falta de víveres e o comércio encontrava-se paralisado. O redator do jornal, ao noticiar que a Bolívia estava de mãos dadas com o Paraguai, anunciava o seguinte: A Bolívia já fez duas estradas, uma que vai ter altura com Corumbá e a outra do rio Pelemongue que se dirige ao Paraguai. As intenções tem feito para ser comunicada a colônias militares que te m estabelecido e povoados que há criado.29 As constantes notícias que eram divulgadas nesse jornal, objetivavam propagar informações de como se encontravam os moradores de cada vila ou cada cidade em tempos da Guerra. Segundo Delumeau, um rumor é uma espécie de boato, alarido, se propaga em muitas direções, sem rumos geográficos e temporais, tende sim, a ser mais ou menos intenso, dependendo de como se propaga e como cada região assimila. Assim eram as notícias que diziam sobre as vilas da província: ... de Vila Maria tivemos notícia que alcançam a 26 passado nada de extraordinariamente havia ocorrido. De Miranda a Nioac continua a deficiência de notícias. De Poconé alcançam as datas de 27 passado. De Sant’ana do Paranaíba alcançam as datas de 27 de dezembro. Nenhuma notícia havia ainda ali chegado sobre os acontecimentos de Coimbra.. Do Coxim são as datas de 12 passado também alteração havia na tranqüilidade pública.30 27 VOLPATO, Luiza R. R.. Op. Cit., p. 77 LEFEBVRE, Georges. O grande medo de 1789: Os camponeses e a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Campus, 1979. p. 59. 29 A Imprensa de Cuiabá. Nº 319, 1865. Rolo 34. APMT: Cuiabá. 30 Jornal A Imprensa de Cuiabá de 3 de fevereiro de 1865. Rolo 34. Nº 316. Ano VII. APMT: Cuiabá. 28 Página 62 a 70 È preciso considerar que mesmo antes de ocorrer o conflito com o Paraguai, a fronteira boliviana, já era visada pelas autoridades da província de Mato Grosso com desconfiança. Em 1835, quando ocorreu a transferência da capital da província de Mato Grosso de Vila Bela para Cuiabá, segundo Augusto João Manoel Leverger, Vila Maria entrou em disputa para ser a capital e a principal objeção foi a proximidade com a fronteira boliviana pois a cidade estaria sujeita a um golpe repentino.31 (). Um outro episódio datado de 1846, revela essa desconfiança, quando o general boliviano Firmino Rivera cumprindo o decreto de seu país à frente de uma tropa, percorreu os campos próximos à Vila Maria, tentando estabelecer uma posição amigável junto ao rio Paraguai. Novos boatos no mesmo sentido foram disseminados em 1847. A resposta dos militares brasileiros foi o reforço nas posições de fronteira.32 Em 1861, encontramos um outro exemplo no relatório do presidente de província, Pedro de Alencastro, que comunicava à Câmara sobre a fuga do torneiro do Arsenal de Guerra da Marinha, Amaro Francisco dos Santos, com destino á Bolívia.33 Desse modo, durante a Guerra do Paraguai, a referida fronteira foi alvo de atenção das autoridades do governo provincial e local de maneira mais intensa pois os rumores difundidos na província de Mato Grosso, provocavam os microrumores, numa revelação de que os variados medos não se tratavam apenas das epidemias. A fronteira boliviana fora ressaltada com veemência nos relatórios dos chefes de polícia na década de 1870, como um espaço da marginalidade, da criminalidade e como espaço que possibilitava fugas dos desertores e escravos. Assim dizia José de Miranda Reis, presidente de província em relatório datado de 1873: Consta por dados fidedignos a existência de um outro em maior escala nas imediações da povoação de San Mathias da província de Chiquitos da República de Bolívia, não longe do destacamento da Corixa, distrito de Vila Maria onde não só escravos, como desertores e criminosos em grande número se tem reunido.34 A fronteira boliviana fora visada não só como o lugar do “perigo” mas como um lugar que representava para a Coroa imperial os limites jurídicos de fronteiras entre o Brasil e a Bolívia. Para as autoridades do governo provincial e de Vila Maria, era nesse espaço que também ocorriam as chamadas transgressões desordeiras já que segundo os relatórios dos presidentes de província e dos chefes de polícia existia quilombo no território da Bolívia. Podemos também entender essa fronteira como um lugar instável, de desencontros e de movimentos diversos. Fato é, que, naquele momento, esse lugar possibilitava mobilizações por parte dos vários agentes sociais conforme as necessidades de cada indivíduo fosse para o presidente província, 31 MELGAÇO, Barão de. Op. Cit., p. 177-178. In: GARCIA, Domingos Sávio da Cunha. Op. Cit., p. 31. Garcia, Domingos Sávio da Cunha. Op. Cit. P. 61. 33 Livro Registro nº 190, de Correspondências da província com as autoridades juizes, bispos e vereadores (1860-1863). APMT: Cuiabá. 34 Relatório do Presidente de Província José Miranda Reis. 1873. APMT: Cuiabá. 32 Página 62 a 70 vereadores e chefes de polícia, desertores e escravos. Para esses últimos a fronteira possibilitava fugas. Em suma, segundo José de Souza Martins, a fronteira é uma multiplicidade; é na verdade, ponto limite de território que se redefine continuamente, disputados de diferentes modos por diferentes grupos humanos; nela o outro é degradado para desse modo viabilizar a existência de quem o domina, subjuga e explora35. A atenção dos políticos, não estava voltada apenas para a fronteira, pois no Brasil segundo Marlene Vilela, vários estudos analisam também os portos como alvo de uma legislação e vigilância que visa impedir a entrada do inimigo, geralmente estrangeiro portador de doenças. Em Vila Maria, o rio Paraguai, localizado frente ao largo da Matriz fora também alvo de atenção do governo local de Vila Maria pois o referido rio movimentava a cidade pelas embarcações e pelos apitos dos vapores que ali chegavam, pelos passageiros, notícias e mercadorias vindas de outras províncias e do ocidente. Contudo, mesmo com o término da guerra o jornal “O Atalaia”, da referida vila de 1889, chamava atenção dos vereadores para o problema da salubridade da vila Maria do Paraguai noticiava que o vapor Pedro II, havia chegado na cidade de São Luis de Cáceres, proveniente do Porto de Corumbá, local onde haviam ocorrido inúmeros casos epidêmicos. Segundo a notícia, o vapor Pedro II estaria infestado pela epidemia da varíola, desembarcando os passageiros sem inspeção policial e sem exame médico. Além disso, o jornal chamava atenção dos vereadores para o problema da salubridade da seguinte forma: Tratem quanto antes a Câmara Municipal e autoridade policial (visto não haver aqui autoridade sanitária) de acordo com os conselhos médicos que serve nessa cidade, de tomar as indispensáveis providências higiênicas mandando proceder a limpesa das ruas e praças... por em execução as posturas municipais que entendem com salubridade publica, e entre elas a que manda remover do perímetro da cidade os animais que produzem imundícies, como porcos, vacas.36 Para Domingos Sávio Garcia, a guerra veio desnudar todas as ambigüidades que envolviam a diplomacia imperial no Prata e, com elas, a fragilidade da fronteira oeste. A dependência de um tratado de navegação para ter acesso à província de Mato Grosso e sua ligação com as demandas territoriais dos governantes paraguaios fora, como um dos vetores do conflito. 37 Podemos dizer, que o término do conflito, propiciou a navegação do Prata viabilizando a inserção da província de Mato Grosso no contexto do capitalismo mundial, estimulando o comércio com os países platinos e europeus, embora a referida província estivesse na órbita da dependência das importações de produtos manufaturados e exportação das matérias primas e alimentos.38 35 MARTINS, José de Sousa. Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano. São Paulo-SP: HUCITEC, 1997. p. 11-13. O Atalaia. nº 42. Cáceres, 17 de novembro de 1889. NDIHR. 37 GARCIA, Domingos Sávio da Cunha. Territórios e negócios na era dos Impérios: Os belgas na fronteira Oeste do Brasil. Tese de Doutorado. Campinas. 2005. p. 36. . 38 REYNALDO, Ney L ared. Op.cit. p. 60. 36 Página 62 a 70 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CAVALCANTI, Else Dias de Araújo. A sífilis em Cuiabá: saber médico, profilaxia e discurso moral (18701890).Cuiabá-MT. Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal de Mato Grosso. 2003 DELEMEAU. Jean. História do Medo no ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GARCIA, Domingos S. da Cunha. Uma Província na Fronteira do império (1850-1889) Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP. 2003 _____________________________ Territórios e Negócios na Era dos Impérios. Os Belgas na Fronteira Oeste do Brasil.Tese de Doutorado. Campinas: Universidade Estadual de Campinas. LEFEBVRE, George. O grande medo de 1789: Os camponeses e a revolução francesa. Rio de Janeiro: Campus, 1979. MARTINS, José de Sousa. Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano. São Paulo-SP: HUCITEC, 1997. PERARO Maria Adenir. Bastardos do Império; Família e Sociedade em Mato Grosso no século XIX, São Paulo: Contexto, 2001. REYNALDO, Ney Lared. Comércio e Navegação no Rio Paraguai. Cuiabá, Edufmt, 2004. VILELA, Marlene. Quando o dedo de Deus apontou a nossa província ao anjo da morte: A ocasião da varíola em Cuiabá 1867. Dissertação de Mestrado. UFMT, 2001. VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do Sertão: Vida Cotidiana e Escravidão em Cuiabá em 1850-1888. São Paulo: Marco Zero; Mato Grosso: UFMT, 1993.