Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 Plantas Medicinais como Recurso Terapêutico em Comunidade do Entorno da Reserva Biológica do Tinguá, RJ, Brasil – Metabólitos Secundários e Aspectos Farmacológicos. Luciana Santos de Oliveira1 Farmacêutica Bioquímica (UFRJ) Michelle Frazão Muzitano2 Doutora em Ciências (UFRJ) Marcela Araújo Soares Coutinho3 Mestre em Ciências (UFRJ) Giany Oliveira de Melo4 Doutora em Ciências (UFRJ) Sônia Soares Costa5* Doutora em Química (Université Paris XI) Resumo A Reserva Biológica do Tinguá, no centro-sul do Estado do Rio de Janeiro, possui uma rica biodiversidade de Mata Atlântica. Um levantamento foi realizado em uma comunidade do entorno desta Reserva, de forma a contribuir para o resgate e a preservação da sabedoria popular da região sobre o uso de plantas medicinais. Observou-se que a maioria da comunidade recorre às plantas para cuidar da saúde. Foram repertoriadas 72 espécies medicinais, suas formas de acesso, modo de preparo, dentre outras informações relevantes. Os dados indicam que as plantas medicinais representam um importante recurso terapêutico para a comunidade. A presença de metabólitos secundários bioativos nas espécies parece justificar o seu uso. Adicionalmente, algumas dessas plantas medicinais são de interesse ao SUS. Palavras-chave: Plantas Medicinais; Reserva Biológica do Tinguá; Mata Atlântica; Produtos Naturais. 1 Farmacêutica Bioquímica (UFRJ). Atualmente é professora da Faculdade de Farmácia da Universidade Severino Sombra (USS, Vassouras, RJ). Contato: [email protected] 2 Farmacêutica e Doutora em Ciências (UFRJ). Atualmente é professora da UFRJ, Campus Macaé. Contato: [email protected] 3 Farmacêutica Industrial e Mestre em Ciências (UFRJ). Atualmente é doutoranda no Núcleo de Pesquisas de Produtos Naturais (NPPNUFRJ). Contato: [email protected] 4 Farmacêutica e Doutora em Ciências (UFRJ). Atualmente é pesquisadora do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Contato: [email protected] 5* Farmacêutica Bioquímica (UFMG), Doutora em Química (Université Paris XI, França) e Pós-Doutorado em Química de Produtos Naturais (Muséum National d´Histoire Naturelle, França). Atualmente é professora e pesquisadora no Núcleo de Pesquisas de Produtos Naturais (NPPN-UFRJ). Contato: [email protected] Endereço para correspondência: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 21941-902, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Tel/Fax: (55) (21) 25626791 www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 Abstract The Biological Reserve of Tinguá, in the center-south of the State of Rio de Janeiro, represents a significant portion of the Atlantic Forest’s biological diversity. A survey of medicinal plants was carried out in a surrounding community of this Reserve with the aim of recording and preserving its traditional knowledge. Most of the inhabitants is dependent on plants for the treatment of illnesses. From the interviews, 72 medicinal species have been listed as well as their origin and herbal preparations, among other relevant information. The data collected indicate that medicinal plants are an important therapeutic resource for the community. The presence of bioactive secondary metabolites in these species seems to justify their use. Additionally, some of these medicinal species are of interest to SUS. Key Words: Medicinal Plants; Biological Reserve of Tinguá; Atlantic Forest; Natural Products. Introdução Ao longo dos tempos a sabedoria popular vem sendo transmitida de forma empírica entre as gerações. O conhecimento tradicional sobre o uso das plantas é vasto e, em muitos casos, é o único recurso disponível que a população rural de países em desenvolvimento tem ao seu alcance (PASA et al., 2005; AGRA et al., 2008; DE JESUS, 2009). Porém, atualmente, observa-se que as novas gerações não demonstram tanto interesse por este conhecimento, fato que contribui para o seu consequente desaparecimento. Diante desta situação, torna-se necessário uma maior valorização desta cultura e a recuperação do conhecimento que a população detém sobre o uso dos recursos naturais. O resgate de tais informações assume um papel indispensável, impedindo a sua perda com o passar dos anos, além de contribuir para a ciência contemporânea (VENDRUSCOLO et al., 2005; LEITÃO et al., 2009). Trabalhos de campo intensos, com o registro de todas as informações possíveis acerca da utilização das plantas medicinais de uma determinada região, devem ser realizados para que esses conhecimentos possam ser preservados (MARODIN & BAPTISTA, 2002). A Organização de Saúde Mundial (OMS) estima que 65% da população mundial incorporam o uso de plantas da medicina tradicional aos cuidados médicos. Diversos estudos ao longo dos anos permitiram fazer uma associação entre diferentes espécies medicinais e suas respectivas atividades biológicas a partir da observação, descrição e investigação experimental. Tais estudos, apoiados principalmente nos www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 conhecimentos de botânica, química, bioquímica e farmacologia, contribuíram amplamente para a descoberta de produtos naturais bioativos (FARNSWORTH, 1994). A Reserva Biológica do Tinguá é uma das maiores Unidades de Conservação da Mata Atlântica do Estado do Rio de Janeiro. A riqueza de sua flora e fauna torna-a uma das mais importantes áreas de vida silvestre do centro-sul do Estado (BRAZ et al., 2004). As plantas medicinais aparecem com grande força no interior da Reserva. Segundo Dias et al. (2002), estão presentes: Annona cacans (Warm.) - “Cortição”, utilizada como purgante; Geissospermum vellosii (Allemão) - “Pau-pereira”, para problemas estomacais; Sparattosperma leucanthum (Vell.) Schum. - “Cinco-chagas”, como depurativo do sangue; Salacia grandifolia (Peyr.) - “Castanha-mineira”, para problemas renais; Copaifera trapezifolia (Hayne) “Copaíba”, cicatrizante e antiofídica; Hymenaea courbaril L. - “Jatobá-rosa”, em casos de cistite e blenorragia; Sorocea guilleminiana (Gaud.) - “Falsa espinheira”, empregada contra gastrite e Ottonia jaborandi (Vell.) - “Jaborandi”, utilizada como anestésico, dentre outras espécies. Em torno da reserva, habitam diversas comunidades, praticamente rurais e de baixa renda (DIAS et al., 2002). Geralmente, neste tipo de localidade, não existem farmácias comerciais e o suprimento de medicamentos do Sistema Único de Saúde (SUS) é irregular. Este conjunto de fatores faz com que o conhecimento e a utilização de plantas medicinais pela população destas áreas sejam de grande valor, pois, muitas vezes, constituem a única opção no tratamento das enfermidades (DE JESUS, 2009). As plantas são capazes de biossintetizar determinadas substâncias, denominadas metabólitos secundários, que desempenham diversas funções, como por exemplo: proteção contra predadores, atratores voláteis, fornecimento de cor às plantas - facilitando a polinização, dentre outras (DEWICK, 2002). Os metabólitos secundários são, portanto, importantes para a adaptação e a propagação das espécies vegetais. Ao contrário dos metabólitos primários, como exemplo os carboidratos e os ácidos graxos, os metabólitos secundários não são necessariamente produzidos sob todas as condições. Como exemplo de metabólitos secundários, temos os alcaloides, os terpenos e os flavonoides. Estes últimos representam uma classe química de larga ubiquidade no grupo das substâncias fenólicas de origem vegetal (DEWICK, 2002). Um vasto leque de atividades biológicas é descrito para estas classes de metabólitos secundários, como por exemplo, ação antitumoral, anti-inflamatória, antioxidante, antibacteriana, antiparasitária, antiviral, dentre outras (COWAN, 1999; MIDDLETON et al., 2000; SIMÕES et al., 2004; COUTINHO et al., 2009). Estima-se que 40% dos medicamentos disponíveis na terapêutica atual foram desenvolvidos a partir de www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 fontes naturais, sendo que dentre os fármacos aprovados no período entre 1981 e 2002, cerca de 60% eram produtos naturais ou foram desenvolvidos a partir destes (CALIXTO, 2003; NEWMAN & CRAGG, 2007). Com base no exposto, este trabalho visou repertoriar as plantas medicinais mais utilizadas em uma das comunidades localizadas no entorno da Reserva Biológica do Tinguá, seus respectivos usos terapêuticos, forma de obtenção e preparo. De forma integrada, buscou-se também apresentar alguns aspectos relacionados à farmacologia e aos metabólitos secundários já descritos para as espécies, bem como demais necessidades da comunidade em termos de acesso à medicação. Materiais e Métodos Descrição da área de estudo - O estudo foi realizado em uma comunidade que habita o entorno da Reserva Biológica do Tinguá (REBIO do Tinguá). Esta reserva foi criada pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA), através do Decreto Federal nº 97.780 (23 de maio de 1989) e apresenta uma rica biodiversidade de Mata Atlântica nativa (BRAZ et al., 2004). O clima é tropical úmido, com temperaturas variando entre 15,7° C a 27,7° C. Está situada entre os municípios de Duque de Caxias, Petrópolis, Miguel Pereira e Nova Iguaçu, abrangendo uma área de 26.260 ha e 150 km de perímetro (Figura 1). A REBIO do Tinguá tem uma importância social incontestável, por conter mananciais de abastecimento de água que atendem a esses municípios. Também estão presentes em seus limites, reminiscências históricas importantes, que datam do século passado, como por exemplo, o caminho do ouro (trecho de 18 km construído por escravos para o transporte de ouro) e aquedutos. O nome da reserva advém do Maciço do Tinguá, que é formado por tinguaíto, uma rocha alcalina descoberta e descrita pela primeira vez na Serra do Tinguá. A palavra é de origem Tupi Guarani, Tin-gua - Tin-qua, que significa pico em forma de nariz (DIAS et al., 2002). www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 Figura 1: Mapa de localização da Reserva Biológica do Tinguá (RJ, Brasil). A região onde a Reserva se situa está em verde no destaque (SOUZA, 2003). Pesquisa de campo - Foram entrevistadas 30 famílias, em um total de 800 famílias, de uma comunidade habitante do entorno da REBIO do Tinguá. Os dados coletados apresentam nível de significância () de 5% e erro amostral (e) de 3%. O questionário foi elaborado de forma a abranger os seguintes itens: identificação do entrevistado, plantas medicinais utilizadas e suas aplicações, procedência do material vegetal (cultivo caseiro, horto ou aquisição em feiras livres), preparo e forma de utilização das plantas e uso do Sistema Único de Saúde (SUS). As entrevistas foram conduzidas durante visitas domiciliares, no período compreendido entre abril e agosto de 2005. A abordagem foi realizada de forma a não interferir nas respostas. www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 Resultados e Discussão Plantas utilizadas pela comunidade e aplicação terapêutica - A partir das entrevistas foram repertoriadas 72 espécies medicinais, distribuídas em 38 famílias botânicas, sendo a família Asteraceae a mais representativa neste estudo, com nove espécies citadas pela população (Tabela 1), assim como em um relato de Macía et al. (2005), sobre pesquisa realizada em comunidade latino-americana. Tabela 1: Espécies medicinais repertoriadas durante as entrevistas em comunidade do entorno da Reserva Biológica do Tinguá (RJ, Brasil). Família Espécie Botânica Nome popular Alismataceae Echinodorus grandiflorus Mitch Anacardium occidentale L. Mangifera indica L. Schinus terebinthifolia Raddi Annona muricata L. Ageratum conyzoides L. Artemisia verlotorum Lamotte Baccharis trimera (less.) DC Bidens pilosa L. Chamomilla recutita (L.) Rauschert Elephantopus mollis Kunth Mikania glomerata Spreng. Solidago chilensis Meyen Vernonia polyanthes Less Bixa orellana L. Bauhinia forficata Link Senna bicapsularis (L.) Roxb. Maytenus aquifolium Mart. Chenopodium ambrosioides L. Terminalia catappa L. Cuscuta racemosa Mart. Costus spicatus (Jacq.) SW. Kalanchoe brasiliensis Camb. Momordica charantia L. Sechium edule (Jacq.) SW. Equisetum hiemale L. Phyllanthus niruri L. Ricinus communis L. Cajanus cajan (L.) Mill sp. Erythrina velutina Willd Alpinia zerumbet(Pers.)B.L.Burtt & R.M.Sm. Leonurus sibiricus L. Melissa officinalis L. Mentha piperita L. Chapéu-de-Couro Caju Manga Aroeira Graviola Erva-de-São-João Novalgina Carqueja Picão Camomila Erva-grossa Guaco Arnica Assa-Peixe Urucum Pata-de-Vaca Sene Espinheira-Santa Erva-de-Santa-Maria Amendoeira Cipó-Chumbinho Cana-do-Brejo Saião Melão-de-São-Caetano Chuchu Cavalinha Quebra-Pedra Mamona Guandu Mulungu Colônia Erva-Macaé Melissa Hortelã-Pimenta Anacardiaceae Annonaceae Asteraceae Bixaceae Caesalpiniaceae Celastraceae Chenopodiaceae Combretaceae Convolvulaceae Costaceae Crassulaceae Cucurbitaceae Equisetaceae Euphorbiaceae Fabaceae Giberaceae Lamiaceae www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 Lauraceae Liliaceae Lithraceae Loranthaceae Malvaceae Myrtaceae Moraceae Musaceae Oxalidaceae Arecaceae Passifloraceae Phytolaccaceae Plantaginaceae Poaceae Punicaceae Rosaceae Rutaceae Solanaceae Urticaceae Mentha pulegium L. Ocimum gratissimum L. Plectranthus barbatus Andrews Laurus nobilis L. Persea americana Mill Allium cepa L. Allium sativum L. Cuphea carthagenesis (Jacq.) J.F. Mac Br. Phoradendron affine Nutt Malva sylvestris L. Eucalyptus globulus Labill Eugenia uniflora L. Psidium guajava L. Artocarpus incise L. Morus alba L. Musa paradisiaca L. Averrhoa carambola L. Cocos nucifera L. Passiflora edulis Sims Petiveria alliacea L. Plantago major L. Bambusa vulgaris Schr. Cymbopogon citratus (DC) Stapf Eleusine indica (L.) Gaertn Gymnopogon filiosus Wild Zea mays L. Punica granatum L. Rosa sp. Citrus aurantium L. Datura stramonium L. Lycopersicon pipinellifolium Mill Solanum americanum Mill Solanum cemuum Vell Phenax sonneratii (Poir) Wedd Poejo Alfavaca Boldo Louro Abacate Cebola Alho Sete-Sangria Erva-de-Passarinho Malva Eucalipto Pitanga Goiaba Fruta-Pão Amora Banana-Ouro Carambola Coco-da-Bahia Maracujá Guiné Tanchagem Bambu Capim-Limão Capim Pé-de-Galinha Grama-Barbante Milho Romã Rosa-Branca Laranja-da-Terra Trombeta Tomate Erva-Moura Panaceia Parietaria Dentre as nove espécies da família Asteraceae citadas pela comunidade da REBIO do Tinguá, destacamse as espécies Vernonia polyanthes Less, Baccharis trimera Less e Mikania glomerata Spreng. Também foi possível observar que os usos mais frequentes de plantas medicinais pela comunidade no entorno do Tinguá se aplicam às infecções respiratórias, problemas digestivos (afecções hepáticas), problemas renais e ansiedade. As famílias botânicas mais significativas para a comunidade da REBIO do Tinguá estão dispostas na Figura 2. www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 11% Asteraceae 26% 6% Lamiaceae 10% Poaceae Costaceae Verbenaceae Rutaceae 15% 17% 7% 8% Myrtaceae Crassulaceae Figura 2: Famílias botânicas mais significativas do levantamento de uso de plantas medicinais, em termos de número de citações, na comunidade do entorno do em comunidade do entorno da Reserva Biológica do Tinguá (RJ, Brasil). Dentre as 72 espécies medicinais repertoriadas, as dez mais citadas pela comunidade estão dispostas na Tabela 2, com destaque para Lippia alba (Mill) N.E. Br. (12 citações), Plectranthus barbatus Andrews. (11 citações), Kalanchoe brasiliensis Camb. (8 citações) e Citrus aurantium L. (7 citações) - em ordem de importância de uso pela comunidade. Algumas ações farmacológicas referentes ao uso popular das espécies citadas são comprovadas cientificamente. A espécie mais citada, Lippia alba (Verbenaceae), é conhecida pela comunidade como erva-cidreira, alecrim-selvagem e salva-limão, dentre outros nomes. Suas folhas são utilizadas na forma de infusão em casos de cólica e má digestão (PASCUAL et al., 2001; HENNEBELLE et al., 2008). Há relatos na literatura de atividade analgésica, espasmolítica e antibacteriana para esta espécie (LORENZI & MATOS, 2002; AGUIAR & COSTA, 2005; HENNEBELLE et al., 2008), que apresenta como constituintes químicos vários terpenos como limoneno, carvona, linalol, safrol, geranial, mirceno, neral, dentre outros. Também estão presentes flavonas glicosiladas e biflavonoides (HENNEBELLE et al., 2008). Segundo Oliveira et al. (2006), seu uso na medicina popular pode ser explicado, parcialmente, pela ocorrência desses constituintes voláteis bioativos. Estudos científicos relatam o potencial terapêutico desta espécie na www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 prevenção de ulcerações gástricas (PASCUAL et al., 2001) e sua influência no comportamento e bemestar (VALE et al., 1999). A segunda espécie mais utilizada é Plectranthus barbatus (Lamiaceae), conhecida como falso-boldo, malva-santa e boldo silvestre. Suas folhas são utilizadas na forma de infusão em casos de má digestão, controle de gastrite, afecções do fígado, bronquite e pneumonia, dentre outras patologias (LUKHOBA et al., 2006). Apresenta como constituintes químicos os terpenos β-cariofileno (anti-inflamatório), ferruginol (antimicrobiano) e barbatusina (analgésico), dentre outros compostos. Estudo científico recente relata a atividade inibitória da bomba H+, K+-ATPase gástrica por plectrinona A, um constituinte diterpênico isolado desta espécie (SCHULTZ et al., 2007). Além disso, também já foi comprovado experimentalmente, em animais de laboratório, que ambos os extratos aquosos e hidroalcoólicos das partes aéreas dessa espécie reduzem consideravelmente o volume e a acidez da secreção gástrica, protegendo contra úlceras induzidas por estresse e etanol (LORENZI & MATOS, 2002; VENDRUSCOLO et al., 2005). A espécie Kalanchoe brasiliensis (Crassulaceae), também muito usada pela comunidade, é conhecida popularmente como saião, coirama-branca e folha-da-costa. Suas folhas são empregadas na forma de sumo para tratamento de afecções pulmonares, queimaduras e feridas na pele. A partir do sumo das folhas de K. brasiliensis foi possível isolar e identificar os componentes bioativos, especialmente flavonoides, dentre os quais se incluem os acetil-ramnosídeos de patuletina (COSTA et al., 1994), que se mostraram potentes inibidores da proliferação de linfócitos humanos. Dessa forma, observa-se que a composição química de K. brasiliensis justifica o seu comportamento imunomodulador (IBRAHIM et al., 2002). Por sua vez, a espécie Citrus aurantium (Rutaceae), conhecida pela população como laranja-da-terra e laranja-amarga, tem suas folhas, flores e frutos utilizados nas formas de infusão e xarope. É indicada em casos de má digestão, resfriados, dores estomacais, como calmante, dentre outros. Espécies do gênero Citrus são ricas em flavonoides, óleos voláteis (limoneno, linalol, nerol), cumarinas e pectinas. Sua atividade farmacológica é comprovada cientificamente na literatura. A atividade sedativa e hipnótica foi demonstrada para o óleo volátil da casca do fruto e o efeito antiespamódico para o extrato alcoólico da casca dos frutos. Atividade antimicrobiana in vitro (CARVALHO-FREITAS & COSTA, 2002; VENDRUSCOLO et al., 2005) e ação sobre o bem-estar e o comportamento (PULTRINI et al., 2006) também já foram evidenciadas. www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 Tabela 2: Espécies medicinais mais citadas, seu respectivo uso popular e os metabólitos secundários bioativos. Em destaque, as quatro espécies mais utilizadas pela comunidade do entorno da Reserva Biológica do Tinguá (RJ, Brasil). . www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 Plantas Medicinais Mais Citadas Número De Citações Uso Popular Formas De Utilização Assa-Peixe Vernonia polyanthes Less. (Asteraceae) 6 Tosse Sumo Boldo Plectranthus barbatus Andrews (Lamiaceae) 11 Afecções hepáticas, gástricas e pulmonares Infusão Folhas Capim-Limão Cymbopogon citratus Stapf. (Poaceae) 6 Resfriado Infusão/ Xarope Folhas Cana-do-Brejo Costus spicatus (Jacq) Sw. (Costaceae) 5 Afecções renais Infusão Partes aéreas Carqueja Baccharis trimera (Less) DC. (Asteraceae) 6 Afecções hepáticas Infusão Erva-cidreira Lippia alba (Mill) N.E. Br. (Verbenaceae) 12 Cólicas, afecções gástricas e ansiedade Infusão Guaco Mikania glomerata Spreng. (Asteraceae) 6 Tosse Laranja-da-Terra Citrus aurantium L. (Rutaceae) Pitanga Eugenia uniflora L. (Myrtaceae) Saião Kalanchoe brasiliensis Camb. (Crassulaceae) Parte Vegetal Utilizada Atividades Farmacológicas Comprovadas Substâncias Bioativas Referências Folhas Vasodilatador, afecções pulmonares Óleos essenciais, flavonoides, alcaloides DA SILVEIRA et al., 2003 Afecções hepáticas e gástricas Terpenos, alcaloides LORENZI & MATOS, 2002; LUKHOBA et al., 2006; SCHULTZ et al., 2007; VENDRUSCOLO et al., 2005 Antimicrobiano, antioxidante Óleos essenciais, taninos, ácidos fenólicos e flavonoides FIGUEIRINHA et al., 2008; PEREIRA et al., 2008 Antifúngico, afecções renais Flavonoides, saponinas Afecções hepáticas e gástricas Terpenos, flavonoides JANUARIO et al., 2004 Folhas Afecções gástricas, ansiedade, antimicrobiano Óleos essenciais, terpenos, flavonoides AGUIAR & COSTA, 2005; HENNEBELLE et al., 2008; LORENZI & MATOS 2002; OLIVEIRA et al., 2006; PASCUAL et al., 2001; VALE et al., 1999 Xarope Folhas Antibacteriano Óleos essenciais, cumarinas OLIVEIRA et al., 2007 SOARES DE MOURA et al., 2002 7 Afecções gástricas e pulmonares, resfriados, ansiedade Infusão/ Xarope Folhas, flores e frutos Afecções gástricas, antimicrobiano, sedativo Terpenos, flavonoides 4 Resfriado Infusão Folhas e frutos Antibacteriano, antioxidante Flavonoides, óleo essencial AURICCHIO et al., 2007; OLIVEIRA et al., 2008 8 Afecções pulmonares, queimaduras, feridas na pele (inflamações) Sumo Folhas Antiinflamatório, imunossupressor Flavonoides COSTA et al., 1994; IBRAHIM et al., 2002 Partes aéreas DE SOUZA et al., 2004; SILVA et al., 2008 CARVALHO-FREITAS & COSTA, 2002; PULTRINI et al., 2006; VENDRUSCOLO et al., 2005; Assim, observa-se que o grande número de citações relatado para estas espécies pode ser justificado por suas ações frente às patologias mais frequentes e às necessidades da comunidade, tais como problemas respiratórios, digestivos e ansiedade. Observa-se que além de Citrus aurantium L. (laranja-da-terra), Plectranthus barbatus Andrews. (falso-boldo) e Kalanchoe brasiliensis Camb. (saião), plantas medicinais www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 mais significativas na relação obtida durante a entrevista, a comunidade também tem acesso a quatro outras espécies, muito utilizadas no tratamento de problemas pulmonares, como resfriados e tosses: Vernonia polyanthes Less. (assa-peixe), Cymbopogon citratus (DC) Stapf. (capim-limão), Mikania glomerata Spreng. (guaco) e Eugenia uniflora L. (pitanga). Os principais constituintes químicos, que justificam o uso das espécies medicinais citadas, são mostrados na Figura 3. Terpenos Flavonoides OH OH O O O O carvona limoneno safrol Me O HO MeO HO OR2 O O OH O Me O R1O OH OH Cumarinas O O Kalambrosídeo A Kalambrosídeo B Kalambrosídeo C R1 Ac H Ac R2 Ac Ac H Figura 3: Estruturas dos principais metabólitos secundários bioativos presentes nas espécies medicinais citadas pela comunidade do entorno da Reserva Biológica do Tinguá (RJ, Brasil). Plantas de interesse ao SUS - O Ministério da Saúde vem realizando no Brasil importantes ações relacionadas ao uso de plantas medicinais e fitoterápicos no Sistema Único de Saúde (SUS). As diretrizes deste projeto preconizam o apoio às pesquisas que visem o aproveitamento do potencial terapêutico da flora nacional (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2007). Atualmente, a Relação Nacional de Plantas Medicinais de Interesse ao SUS (RENISUS) apresenta uma lista de 71 espécies medicinais. Entre as plantas listadas, encontram-se a alcachofra, a aroeira da praia e a unha-de-gato, usadas pela sabedoria popular e confirmadas cientificamente, para distúrbios de digestão, inflamação vaginal e dores articulares, respectivamente (PHARMACIA BRASILEIRA, 2009). www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 Algumas das plantas repertoriadas durante entrevista na comunidade do entorno da Reserva Biológica do Tinguá (REBIO-Tinguá) também estão incluídas na listagem do RENISUS, como por exemplo, Plectranthus barbatus (boldo), Mikania glomerata (guaco) e Eugenia uniflora (pitanga), confirmando o seu potencial terapêutico. Inclusive, atualmente, o SUS já oferece fitoterápicos derivados de guaco, indicados em casos de tosses e gripes (PHARMACIA BRASILEIRA, 2009). Assim, outras espécies repertoriadas durante a entrevista à comunidade poderiam possivelmente ser incluídas na atual listagem, visto a sua importância medicinal e o seu uso popular no tratamento de doenças, como por exemplo, Kalanchoe brasiliensis (saião) e Lippia alba (erva-cidreira). Procedência do material vegetal - A população entrevistada mostrou obter as espécies medicinais em sua maioria através de cultivo caseiro (66%), em relação à obtenção direta do habitat natural (34%). A comunidade da REBIO do Tinguá usa preferencialmente plantas medicinais que não fazem parte da flora típica da região (INSTITUTO DE PESQUISAS JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO, 2010), mas que são cultiváveis em hortas e são comuns a diversas regiões do país. Desta forma, o maior número de citações encontrado para as espécies da Tabela 2, pode ser justificado por essa facilidade em cultivar e coletar as plantas medicinais, levando em consideração, inclusive, a sua disponibilidade em feiras populares. Algumas das espécies constantes da Tabela 1 são plantas medicinais encontradas em região de mata da REBIO e não se adaptam facilmente ao cultivo caseiro, como por exemplo: mulungu (Erythrina velutina Willd.; Fabaceae) e espinheira-santa (Maytenus aquifolium Mart.; Celastraceae), o que também justifica seu baixo número de citações. O quintal, além de ser um espaço que colabora para a subsistência da família, é utilizado para o cultivo das espécies medicinais, desempenhando um considerável papel econômico, assim como observado por Pasa et al. (2005) durante estudo em comunidade do interior do Mato Grosso, Brasil. Dessa forma, a população mantém a baixa dependência de produtos adquiridos externamente, pois os quintais são aptos a fornecer produtos para uso local, bem como contribuir para a conservação dos recursos vegetais e da diversidade cultural, fundamentada no saber e na cultura dos moradores locais (PASA et al., 2005). Modo de preparo - Em relação ao modo de preparo do material vegetal foi possível observar que a maioria da comunidade (70%) utiliza a forma de infusão (chá). O xarope, composto por mais de uma espécie medicinal, é empregado por 10% da comunidade, enquanto os dois tipos de formulação – infusão e xarope – são utilizados por 20% da população. A infusão também foi um dos modos de preparo mais www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 citados em estudo realizado em comunidade latino-americana por Macía et al. (2005). Estes autores observaram que a maioria das formulações era preparada a partir de uma simples espécie. Entretanto, algumas aplicações eram preparadas a partir de uma mistura de plantas medicinais - o mesmo observado durante o nosso levantamento botânico na comunidade da REBIO do Tinguá. Borba & Macedo (2006) também relatam o uso preferencial das espécies na forma de chá, em estudo realizado na Chapada dos Guimarães (Mato Grosso, Brasil). Além disso, também se pode observar que as partes da planta mais frequentemente utilizadas pela população da REBIO do Tinguá são as folhas, assim como observado em demais estudos realizados em comunidades rurais (MACÍA et al., 2005; TOGOLA et al., 2005; BORBA & MACEDO, 2006; LIMA & SANTOS, 2006). Dose, duração do tratamento e outras informações obtidas - Em relação à dosagem e à duração do tratamento, a população entrevistada demonstrou não possuir conhecimento sobre as possíveis consequências da ingestão de altas doses ou do uso prolongado das espécies medicinais utilizadas. Este fato foi evidenciado através de afirmações, dentre as quais se pode citar: “a gente usa até enquanto tem ou a gente vai usando até ficar curado...”. Além disso, foi possível observar uma grande parcela da população (80%) faz uso das plantas medicinais como forma de tratamento de diversas patologias, antes de consultar um especialista da área médica. A comunidade apresenta um grande déficit na área de saúde, pois conta com um único posto de saúde, cujo funcionamento é bastante precário (DIAS et al., 2002). No que diz respeito à utilização dos serviços do SUS, foi possível verificar que 63,3% das famílias recorrem ao atendimento médico. Através das entrevistas também foi possível constatar que os habitantes do entorno da REBIO do Tinguá não tem acesso a cursos, palestras ou outras fontes de informações, que visem uma melhor orientação no que diz respeito à utilização das plantas medicinais. Além disso, durante o processo de pesquisa de campo, os entrevistados fizeram algumas reivindicações, tais como o apoio de um profissional da saúde capacitado, a fim de orientar a comunidade em relação ao uso e a dosagem das plantas medicinais e em relação às plantas antiofídicas para atendimento de emergência. A comunidade não possui conhecimento dessas plantas e sofre com a ocorrência de acidentes ofídicos, principalmente com crianças. Uma maior interação entre os conhecimentos de um profissional da saúde capacitado, juntamente aos conhecimentos da população local, poderia levar a um máximo de aproveitamento em relação ao que o material vegetal é capaz de oferecer, prevenindo também questões relativas à dose e tempo de tratamento www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 com as plantas medicinais. Esta medida propiciaria melhoria da saúde através do uso de material de fácil acesso à população, auxiliando a comunidade em relação às possíveis interações e toxicidade proveniente do uso de altas concentrações, visto que esta já detém o conhecimento empírico. Desta forma, haveria uma integração de conhecimentos e o resgate dos valores da cultura popular. Importante ressaltar que a participação social é muito importante no resgate dessa cultura, pois só o respeito ao conhecimento e a sua valorização poderá manter vivo o conhecimento através das gerações. Conclusões Através deste estudo foi possível repertoriar as espécies medicinais de maior importância para a comunidade do REBIO do Tinguá. A análise das informações obtidas permitiu verificar que o uso popular das espécies está de acordo com a literatura. Diversos estudos já comprovam a presença de metabólitos secundários potencialmente terapêuticos nas plantas citadas, o que nos leva a sugerir que estas substâncias possam estar relacionadas, de maneira benéfica, com o uso popular das espécies vegetais pela comunidade. Este é o primeiro relato de levantamento botânico, relacionando aspectos químicos e farmacológicos, realizado em uma comunidade que vive no entorno da região desta Reserva biológica. Agradecimentos À comunidade visitada durante o projeto e a todos os entrevistados por suas sábias informações; à entidade ambientalista Onda Verde por sua colaboração durante as pesquisas de campo; à raizeira Luciene Alves Santos de Jesus pelo apoio e dedicação durante o projeto; ao raizeiro Dionísio Brives de Carvalho pela colaboração como guia da localidade; à CAPES pelo suporte financeiro. Referências AGRA, M.F.; SILVA, K.N.; BASÍLIO, I.J.L.D.; FRANÇA, P.F.; BARBOSA-FILHO, J.M. Survey of medicinal plants used in the region Northeast of Brazil. Revista Brasileira de Farmacognosia, v.18, n.3, p.472-508, 2008. www.interscienceplace.org páginas 54-74 Ano 4 - Nº 17 Abril /Junho – 2011 AGUIAR, J.S.; COSTA, M.C.C.D. Lippia alba (Mill.) N.E. Brown (Verbenaceae): levantamento de publicações nas áreas química, agronômica e farmacológica, no período de 1979 a 2004. Revista Brasileira de Plantas Medicinais, v.8, n.1, p.79-84, 2005. AURICCHIO, M.T.; BUGNO, A.; BARROS, S.B.M.; BACCHI, E.M. 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