História natural da infecção por HIV Dra. Vivian Iida Avelino da Silva Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias HC FMUSP HIV/Aids • Introdução – Histórico – Epidemiologia • Diagnóstico • Quadro Clínico • Tratamento Introdução • Fam. Retrovírus, Gen. Lentivírus • Provável origem zoonótica a partir de primatas não humanos • Partícula viral: Envelope/Nucleocápside • HIV‐1: Grupos M (subtipos A‐D, F‐K), O, N • HIV‐2: Subtipos A‐E Origem do HIV M SIVcpz SIVsm HIV-1 HIV-2 N 9 subtipos (A,B,C,D,F,G,H,J,K) O Keele et al. Science, 2006 Histórico 1981: Relatos de PCP em homossexuais (MMWR, NEJM) Histórico 1981: Relatos de PCP em homossexuais (MMWR, NEJM) 1981: • • • 5 de Junho, 1981: 5 casos de PCP em homossexuais UCLA (MMWR) 3 de julho, 1981: 26 casos adicionais 10 de dezembro, 1981: 3 artigos do NEJM com descrição dos casos Gottlieb MS NEJM 2001;344:1788-91 Sepkowitz K NEJM 2001;344:1764-72 1981: Relatos de PCP em homossexuais (MMWR, NEJM) 1982: Definição do termo “AIDS” Primeiros casos em mulheres Transmissão vertical Associação a transfusão Gottlieb MS NEJM 2001;344:1788-91 Sepkowitz K NEJM 2001;344:1764-72 Histórico 1981: Relatos de PCP em homossexuais (MMWR, NEJM) Histórico 1982: Definição do termo “AIDS” Primeiros casos em mulheres Transmissão vertical Associação a transfusão 1983: Isolamento de um retrovírus de um paciente com AIDS (Montagnier) Gottlieb MS NEJM 2001;344:1788-91 Sepkowitz K NEJM 2001;344:1764-72 1981: Relatos de PCP em homossexuais (MMWR, NEJM) Histórico 1982: Definição do termo “AIDS” Primeiros casos em mulheres Transmissão vertical Associação a transfusão 1983: Isolamento de um retrovírus de um paciente com AIDS (Montagnier) 1984: Identificação do HTLV-III (Gallo) Gottlieb MS NEJM 2001;344:1788-91 Sepkowitz K NEJM 2001;344:1764-72 1981: Relatos de PCP em homossexuais (MMWR, NEJM) Histórico 1982: Definição do termo “AIDS” Primeiros casos em mulheres Transmissão vertical Associação a transfusão 1983: Isolamento de um retrovírus de um paciente com AIDS (Montagnier) 1984: Identificação do HTLV-III (Gallo) 1985: Primeiro teste sorológico comercial aprovado pelo FDA Gottlieb MS NEJM 2001;344:1788-91 Sepkowitz K NEJM 2001;344:1764-72 1981: Relatos de PCP em homossexuais (MMWR, NEJM) Histórico 1982: Definição do termo “AIDS” Primeiros casos em mulheres Transmissão vertical Associação a transfusão 1983: Isolamento de um retrovírus de um paciente com AIDS (Montagnier) 1984: Identificação do HTLV-III (Gallo) 1985: Primeiro teste sorológico comercial aprovado pelo FDA Gottlieb MS NEJM 2001;344:1788-91 Sepkowitz K NEJM 2001;344:1764-72 1987: AZT = primeiro ARV aprovado FDA Evolução dos Antiretrovirais DLV AZT ddC ddI NVP d4T 3TC RTV TDF ABC EFV FTC ’87 ’88 ’89 ’90 ’91 ’92 ’93 ’94 ’95 ’96 ’97 ’98 ’99 ’00 ’01 ’02 ’03 ’04 ’05 ’06 ’07 SQR NFV LPV/r ATV DRV FPV RTV IDV APV TPV T-20 MVC 1994: ACTG 076: Prevenção da transmissão vertical Histórico Gottlieb MS NEJM 2001;344:1788-91 Sepkowitz K NEJM 2001;344:1764-72 Simon V Lancet 2006;368:489-504 Futuro: Cura do HIV, vacina 1994: ACTG 076: Prevenção de transmissão vertical Histórico 1996: Primeiros estudos com uso de HAART Lei 9.313: garantia de acesso ao tratamento no Brasil 1998: Redução dramática da mortalidade por HIV/Aids Gottlieb MS NEJM 2001;344:1788-91 Sepkowitz K NEJM 2001;344:1764-72 Simon V Lancet 2006;368:489-504 1994: ACTG 076: Prevenção de transmissão vertical Histórico 1996: Primeiros estudos com uso de HAART Lei 9.313: garantia de acesso ao tratamento no Brasil 1998: Redução dramática da mortalidade por HIV/Aids 2000: Complicações crônicas: doenças metabólicas, envelhecimento precoce, neoplasias não relacionadas a Aids Gottlieb MS NEJM 2001;344:1788-91 Sepkowitz K NEJM 2001;344:1764-72 Simon V Lancet 2006;368:489-504 1994: ACTG 076: Prevenção de transmissão vertical Histórico 1996: Primeiros estudos com uso de HAART Lei 9.313: garantia de acesso ao tratamento no Brasil 1998: Redução dramática da mortalidade por HIV/Aids 2000: Complicações crônicas: doenças metabólicas, envelhecimento precoce, neoplasias não relacionadas a Aids Gottlieb MS NEJM 2001;344:1788-91 Sepkowitz K NEJM 2001;344:1764-72 Simon V Lancet 2006;368:489-504 Allers K Blood 2011;117:2791-9 2012: Tratamento como prevenção Primeiro caso de cura do HIV: o paciente de Berlim Futuro: Cura do HIV, vacina razão Razão homem-mulher entre os casos de AIDS 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 ano (1983-2006) Epidemiologia 1. Grupos de risco – Hemofílicos – UDI – HSH – Trabalhadores do sexo Os 4 Hs: Imigrantes do Haiti Usuários de Heroína Homossexuais Hemofílicos Epidemiologia 1. Grupos de risco – Hemofílicos – UDI – HSH – Trabalhadores do sexo Não pertenço, acontece somente com o outro Estigmatiza os grupos Epidemiologia 1. Grupos de risco – – – – Hemofílicos UDI HSH Trabalhadores do sexo 2. Comportamento de risco – Sexo desprotegido – Promiscuidade – UDI Epidemiologia 1. Grupos de risco – – – – Hemofílicos UDI HSH Trabalhadores do sexo 2. Comportamento de risco – Sexo desprotegido – Promiscuidade – UDI Procura retirar o estigma sobre um grupo e atribuir o risco ao indivíduo Epidemiologia 1. Grupos de risco – – – – Hemofílicos UDI HSH Trabalhadores do sexo 2. Comportamento de risco – Sexo desprotegido – Promiscuidade – UDI 3. Vulnerabilidade – Todo indivíduo tem vulnerabilidade – Dependente de recursos individuais, sociais e programáticos Epidemiologia 1. Grupos de risco – – – – Hemofílicos UDI HSH Trabalhadores do sexo 2. Comportamento de risco – Sexo desprotegido – Promiscuidade – UDI 3. Vulnerabilidade – Todo indivíduo tem vulnerabilidade – Dependente de recursos individuais, sociais e programáticos Permite o desenvolvimento de ações de prevenção mais eficazes Santos e Paiva, 2007; Ayres et al, 1999 Transmissão Mecanismos de transmissão: • Sexual – Mucosa gastrointestinal – Mucosa reprodutiva • • Sanguínea Vertical – Transplacentária – Parto – Aleitamento materno Diagnóstico • • • • Consentimento e aconselhamento Baseado na detecção de anticorpos Anti‐HIV Janela imunológica Ensaios de triagem • Testes rápidos • Ensaio imunoenzimático (ELISA): alta sensibilidade • Ensaios confirmatórios • Imunofluorescência indireta: confirma presença de Acs • Imunoblot: confirma presença de frações virais • Western Blot: alta especificidade e sensibilidade Diagnóstico • Dois testes rápidos (TR1 e TR2) realizados em sequência com amostras de sangue • Um teste rápido utilizando fluido oral (TR‐FO) seguido por um teste rápido utilizando sangue (TR). • Triagem com Imunoensaio de 3ª ou 4ª Geração e Teste Molecular como Teste Complementar/Confirmatório. • Triagem com Imunoensaio de 3ª Geração e Western blot, Imunoblot ou Imunoblot Rápido como Teste Complementar/Confirmatório. Teste rápido • Proteína conjugada com antígenos de HIV-1/2 ligados a uma fase sólida • Complexo “imuno-conjugado” migra na membrana é capturado pelos antígenos fixados na área do TESTE: linha roxo/rosa 1-Antígeno do HIV é inserido na placa/adsorção Elisa 2-Soro do paciente (com anticorpos) é acrescentado à placa 3-Anticorpos reagem com Ags presentes na placa 4-Acrescentado novo anticorpo (q reage com Ac humano), conjugado a uma enzima 5-Adiciona-se o substrato da enzima, e a reação provoca mudança da cor do meio (proporcional à quantidade de Acs presentes na placa) P1 P2 P3 P4 C+/C- Imunofluorescência indireta IFI reagente IFI não reagente Western blot 1-Preparados purificados de HIV: aquecimento com detergente iônico (SDS) e agente redutor: separação de Ags 2-O preparado á submetido a corrente elétrica em gel: separação dos Ags conforme peso molecular 3-Ags são transferidos (blotted) para um meio sólido (membrana de nitrocelulose ou nylon) 4-A membrana é incubada com o soro do paciente; Acs presentes reagem com a banda específica, e a reação é demonstrada através de Ac anti-humano conjugado com uma enzima (leitura através de um filme) 5-Diagnóstico da infecção por HIV: 2 bandas dentre p24, gp41 ou gp 120/160 Quadro clínico HIV positivo: portador do vírus HIV, porém imunodeficiência clínica ou laboratorial Aids: condição caracterizada por uma série de doenças (oportunistas) ou alterações laboratoriais (TCD4+) que indicam imunodeficiência Sintomas C Candidíase esofágica, brônquica, traqueal ou pulmonar Câncer cervical invasivo Sintomas B Angiomatose bacilar Candidíase orofaríngea Sintomas A Assintomático Linfadenomegalia generalizada persistente Infecção aguda pelo HIV Candidíase vulvovaginal persistente Displasia cervical / ca in situ Coccidioidomicose disseminada ou extrapulmonar Criptococose extrapulmonar Criptosporidiose intestinal crônica (> 1m) D. por CMV (exceto fígado, linfonodos e baço); retinite Encefalopatia pelo HIV Herpes Simples: úlcera crônica (> 1m), bronquite, pneumonite, esofagite Sintomas constitucionais (febre, diarréia > 1m) Histoplasmose disseminada ou extrapulmonar Herpes zoster (mais de 1 dermátomo ou ≥ 2 episódios) Sarcoma de Kaposi Púrpura Trombocitopênica Idiopática Linfoma primrio de SNC Leucoplasia pilosa oral M. tuberculosis, qualquer localização Listeriose Outras micobactérias, disseminadas ou extrapulmonares Doença Inflamatória pélvica Pneumonia por Pneumocystis jiroveci Neuropatia periférica Pneumonia recorrente Isosporíase crônica intestinal (> 1m) Linfoma de Burkitt MAC ou M. kansasii extrapulmonar ou disseminado Leucoencefalopatia multifocal progressiva Sepse recorrente por Salmonelloa Toxoplasmose SNC Caquexia pelo HIV (Wasting syndrome) História Natural da infecção (sem tratamento) Simon V, Ho DD, Karim QA. Lancet 2006; 368: 489–504 História Natural da infecção (sem tratamento) Simon V, Ho DD, Karim QA. Lancet 2006; 368: 489–504 História Natural da infecção (sem tratamento) Simon V, Ho DD, Karim QA. Lancet 2006; 368: 489–504 História Natural da infecção (sem tratamento) Quadro Clínico Infecção aguda pelo HIV • Infecção inicial • Replicação ativa • viremia • CD4 • Resposta imune controle parcial da replicação viral • “set point” • CD4 • Sinais e sintomas 30‐70% pacientes Infecção Aguda pelo HIV: Principais sinais e sintomas febre 86 letargia 74 mialgia 59 exantema 57 cefaléia 55 faringite 52 adenopatia 44 0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 % of patients Vanhems P et al. AIDS 2000; 14:0375‐0381. História Natural da infecção (sem tratamento) Quadro Clínico Fase de latência clínica • Assintomática • Duração de anos • Resposta imune ativação imune crônica • Replicação viral persistente • lenta e progressiva de CD4 História Natural da infecção (sem tratamento) Quadro Clínico Fase de doença avançada • Doenças oportunistas ou CD4 <200/mm3 • Elevada viremia e transmissibilidade Toxoplasmose em SNC Pneumocistose Sarcoma de Kaposi Tuberculose disseminada Sintomas AIDS Progressão rápida RNA-HIV Morte CD4 Sintomas Progressão intermediária AIDS RNA-HIV CD4 CD4 Progressão lenta ou ausência de progressão RNA-HIV Meses após a infecção Anos após a infecção MMWR Recomm Rep. 47(RR-5);1-41, 1998 Quais fatores que influenciam a progressão para AIDS? HIV‐ Exposição Sem progressão HIV+ AIDS Fatores que influenciam a susceptibilidade à doença: • Genética do hospedeiro (ex.: CCR5D32, HLA) • Diversidade viral (ex.: cepa Dnef) • Fatores ambientais (ex.: co‐infecções) Acompanhamento e Tratamento Multiprofissional • Profilaxia de doenças oportunistas • Papanicolaou ou citológico anal • Sorologias: Hepatites B e C, Sífilis, Toxoplasmose, CMV, HTLV, Chagas • Avaliação periódica de CD4 e carga viral (3‐6m) • Vacinas: dT, VHB, pneumo, influenza • TARV • Manejo de comorbidades TARV ‐ Quando iniciar? • Manifestações clínicas (independente do CD4) • Gestantes (independente do CD4) Boas notícias em 2013: • Política de tratamento como prevenção • Uso de medicamentos indicados em qualquer fase da doença Recomendações de terapia antirretroviral para adultos vivendo com HIV/aids no Brasil – 2012 TARV ‐ Quando iniciar? • Pessoas com parceiros sorodiscordantes • OBS: genotipagem pré‐tratamento – Gestantes – Pessoas infectadas por parceiros em uso de ARV Recomendações de terapia antirretroviral para adultos vivendo com HIV/aids no Brasil – 2012 Anti‐retrovirais ITRN: • • • • • Inibidores de Protease: Inibidores de entrada: • Amprenavir – APV • • Atazanavir – ATV • Indinavir – IDV • Lopinavir – LPV receptores (CCR5): • Ritonavir – RTV Maraviroc e Vicriviroc Abacavir – ABC Didanosina – ddI Lamivudina – 3TC Estavudina – d4T Zidovudina – AZT • Tenofovir – TDF • Emtricitabina ‐ FTC ITRNN: • Efavirenz – EFV • Nevirapina – NVP • Etravirina – ETV Inibidor de fusão: Enfuvirtide – T20 • Inibidores de co‐ (antagonista do P450) • Saquinavir – SQV • Tipranavir – TPV Inibidores de • Darunavir – DRV integrase: • Raltegravir • Elvitegravir Terapia Anti‐retroviral: alvos no ciclo de vida do HIV HIV Inibidores de Entrada Inibidor da Transcriptase Reversa (ITRN, ITRNN) Novo Virus Inibidor de Integrase Inibidor de Protease Com que esquemas iniciar? Recomendações para Terapia Anti-retroviral em Adultos Infectados pelo HIV. MS, 2008 Fatores para a escolha do esquema • Potencial de adesão ao regime prescrito: posologia, número de comprimidos; • Potência e toxicidade/tolerabilidade imediata e em longo prazo; • Possibilidade de preservação de esquemas futuros • Presença de co‐morbidades; uso concomitante de outros medicamentos; • Adequação do esquema a rotina de vida do paciente; • Interação com a alimentação; • Custo dos medicamentos. Tratamento Avaliação da resposta ao tratamento: • Redução maior que 1 log ou 90% da carga viral inicial nas primeiras 4‐6 semanas • Redução maior que 2 log ou 99% em 12‐16 semanas • Carga viral indetectável em seis meses Falha terapêutica Virológica: geralmente mais precoce • • • • Ausência de carga viral <400 em 24 sem Ausência de carga viral <50 em 48 sem Rebote confirmado da CV para aqueles que atingiram supressão viral completa É o principal parâmetro para troca de ARV Imunológica: • Declínio progressivo de CD4, >25% Clínica: • Infecções ou tumores oportunistas Causas de falha terapêutica • Adesão • • • • Potência Fatores farmacológicos Transativação heteróloga Resistência CD na situação de falha: GENOTIPAGEM e novo esquema com 3 drogas ativas Percentage of patients with viral load <400 copies/ml Adesão e sucesso Terapêutico 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 >95 90–95 80–90 70–80 <70 Adherence rate (MEMS) Paterson et al. Ann Intern Med 2000;133:21‐30 Elevada taxa de multiplicação Elevada taxa de erros de transcrição Fitness da cepa selvagem SEM TRATAMENTO Elevada taxa de multiplicação Elevada taxa de erros de transcrição Inibição da replicação através de ARV COM TRATAMENTO EFICAZ Elevada taxa de multiplicação Elevada taxa de erros de transcrição Pressão seletiva: seleção dos mutantes resistentes COM TRATAMENTO IRREGULAR Sucesso... • Melhorar a imunidade • Não apresentar doenças oportunistas • Adotar medidas de prevenção E também... • Voltar a trabalhar, estudar, fazer planos • Recuperar a auto‐estima • Vencer o preconceito • Recuperar a vida afetiva O dia da cura “Numa manhã comum, como qualquer outra, abri o jornal e li a manchete: Descoberta a Cura da AIDS! A princípio fiquei deslocado na cama, como se a terra tivesse saído do lugar e meu quarto estivesse mais à esquerda do que de costume”. “Fiquei por um tempo parado, sem saber qual deveria ser o primeiro ato de uma pessoa de novo condenada a viver. Primeiro, certificar‐se. Telefonei para o meu médico. Realmente, a notícia era sólida, e o próprio presidente dava declarações na TV americana assumindo a veracidade do fato: dez pacientes em estado avançado da doença haviam tomado o CD2 e não apresentavam nenhum sinal ou sintoma da presença do vírus em seus organismos. Um eficiente viricida fora descoberto. As outras notícias seguiam o mesmo curso. O laboratório do CD2 tivera uma espetacular alta na bolsa de Nova Iorque. Na França, o Instituto Pasteur dizia que outra coincidência acompanhava os caprichos da ciência. Ali também o SD2 estava no forno, quase pronto para ser anunciado”. “Telefonei para o meu analista. Dei a notícia sobre a cura da AIDS e decidi que só enfrentaria a felicidade nas próximas sessões. Afinal me havia preparado tanto para a morte que a vida agora era um problema”. “Do meu lado, Maria ainda dormia e não sabia que nossa vida havia mudado. Casados há 21 anos, os últimos tinham sido um tempo de tensão a cada gripe, mancha na pele, febre sem explicação. O amor feito durante tanto tempo e que havia sido interrompido pelo medo do contágio, do descuido, do imponderável, estava agora ao alcance da vida como um milagre, apesar de meus 56 anos, como costuma insistir um jornal paulista. Pensei comigo mesmo, camisinhas nunca mais! Maria dormia, ainda não sabia da novidade. Ela agora poderia ser viúva de outras coisas mais banais, mais correntes, mais normais. Ela não mais seria a viúva da AIDS. Grandes avanços. Tinha os filhos para avisar. Não mais seriam órfãos da AIDS. O pai agora tinha algo de imortal ou podia morrer como todo os mortais”. “A TV continuava a mostrar cenas incríveis em Nova Iorque, e o meu telefone já começava a tocar. Afinal, eu havia sido, durante quase dez anos o entrevistado perfeito para o caso da AIDS: era hemofílico, contaminado e sociólogo. Podia desempenhar três papéis num só tempo e numa só pessoa. Eu era uma espécie de trindade aidética! Iam querer saber o que sentia, o que faria, meus primeiros atos, minhas emoções, minhas reações diante da vida e da normalidade. Imaginava as perguntas: como você se sente agora que é de novo um ser normal? O que vai fazer agora de sua vida? O que efetivamente mudou na sua vida? O que você aprendeu com a AIDS? Você continua a ter raiva do governo? Cheguei a pensar, como Chico Buarque, que daria minha primeira entrevista ao Jô Soares. Afinal, falaria da vida, tomando cerveja!” “Ainda na cama, onde, de manhã, gosto de ficar, tive saudades do Henfil e do Chico, e em meio à alegria que já me contagiava, chorei. Por que haviam sofrido tanto e morrido tão fora de hora? Quanto sofrimento inútil, quanta dor que palavras não descrevem. O olhar parado de quem expira. O abandono sem remédio. A fatalidade que nem a morte enterra? Por que logo eles haviam morrido, se eram meus irmãos, a quem telefonava com a certeza de quem acreditava poder fazer isso séculos e séculos seguidos? De repente, ninguém do outro lado da linha. Números riscados numa agenda sem remédio. Ainda a lembrança do Chico no enterro do Henfil, dizendo para mim, entre espanto e humor: hoje é o Henfil, amanhã serei eu, e você irá daqui a 03 anos... Bem, digamos 05!” “E hoje estou aqui passados 04 anos, quase 05, lendo essa notícia, e eles todos mortos antes do tempo. Não há remédio para a morte de meus irmãos, que são tantos. De repente me dou conta de que houve realmente remédio para a AIDS. É hora de levantar, atender os telefonemas, reunir o pessoal da ABIA. Festejar com o pessoal do IBASE. Abrir um champanhe, ou uma cerveja. Telefonar para saber onde estava o tal remédio, como comprá‐lo, o preço, o prazo da chegada. Estaria disponível quando, a que preço? Quem poderia comprá‐lo?” “Algo inusitado acontecia em paralelo. Amigos e amigas, que não suspeitava, me chamavam para dizer que eles também eram soropositivos, porque agora havia cura. Uns diziam que suas vidas sexuais eram um caos, mas que agora havia cura. Alguns me chamavam para dizer que iriam começar o tratamento, o controle e a pensar na vida, porque agora havia cura. E, finalmente, outros me diziam que agora poderiam revelar a imprensa sua condição de soropositivos, para servir de exemplo, porque agora havia cura”. “De repente, dei‐me conta de que tudo havia mudado porque havia cura. Que a idéia da morte inevitável paralisa. Que a idéia da vida mobiliza... Mesmo que a morte seja inevitável, como sabemos. Acordar, sabendo que se vai viver, faz tudo ter sentido de vida. Acordar pensando que se vai morrer faz tudo perder o sentido. A idéia da morte é a própria morte instalada. De repente, dei‐me conta de que a cura da AIDS existia antes mesmo de existir, e de que seu nome era vida. Foi de repente, como tudo acontece”. Herbert de Souza [email protected]